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Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />
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Anos depois, já quase mocinha, ganhei um rádio de pilha de aniversário. Ia<br />
dormir com ele grudado no ouvido, o volume no mínimo e ainda por cima abafado<br />
pelo cobertor, pra não incomodar as irmãs nas camas ao lado. Caçava as vozes dos<br />
locutores dos primeiros programas de rock, ainda marginais naqueles tempos, pressentindo<br />
as emoções que a cultura dos jovens guardava pra quem a fosse descobrindo.<br />
Era revigorante a possibilidade de buscar e encontrar sozinha aqueles mundos, ao<br />
sabor das excursões pelo dial. Intuir que milhares de outras meninas e meninos da<br />
minha idade estavam ao mesmo tempo sozinhos em seus quartos, de ouvido nos<br />
radinhos, escutando a mesma coisa, dava um arrepio na espinha, como o prenúncio<br />
de uma revolução.<br />
O rádio permite uma intimidade, uma presença tátil, um tipo de conspiração<br />
narrativa entre quem fala e quem ouve. Ele envia pra longe a palavra encarnada e ao<br />
mesmo tempo preserva a proximidade que a voz humana instaura, em sua condição<br />
de corpo vivo. Afinal, “toda voz emana de um corpo, que permanece visível e palpável<br />
enquanto ela é audível”, como diz Paul Zumthor. Por isso, o rádio faz com que cada<br />
um dos milhares de ouvintes se sinta único, capaz de criar um rio de imagens mentais<br />
para acompanhar o fluxo da fala do parceiro, aquele locutor que está no estúdio.<br />
Que o rádio tem grande poder de animar a imaginação, é coisa já dita e redita. Em<br />
uma pesquisa feita há alguns anos com centenas de crianças, por exemplo, pediram que<br />
elas fizessem desenhos a partir de histórias ouvidas no rádio e na televisão. A versão<br />
em rádio estimulou desenhos mais imaginativos: as crianças escolheram uma variedade<br />
maior de conteúdos da história para representar graficamente, e incorporaram mais<br />
conteúdos exteriores à história em seus desenhos 1 .<br />
O apreço pelo rádio fez parte também da vida de um dos pensadores modernos<br />
mais apaixonados pela imaginação e pela narrativa oral, Walter Benjamin. Entre 1929<br />
e 1933, o grande teórico cultural escreveu e apresentou programas semanais de rádio<br />
para crianças, em Berlim e Frankfurt. Nesses programas de vinte minutos, ele contava,<br />
como se estivesse conversando ao pé da lareira, casos como o da destruição de<br />
1. Pesquisa relatada em Patricia Marx Greenfield, Mind and Media: The effects of television, video games, and computers.<br />
Harvard University Press, Cambridge, MA, 1984.