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Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes 220 voz e nos gestos da contadora dotada de prodigiosa – mas seletiva memória (na medida em que escolhe as histórias do seu imenso acervo, recorre a estratégias e organiza a estrutura segundo sofisticadas técnicas) – vibram e ecoam muitas outras vozes. Ao evocá-las, de viva voz, a tecelã das narrativas a elas acrescenta a própria voz. Vozes que repercutem nos nossos dias, graças às versões e traduções da obra (Antoine Galland, E. Lane, R. Burton, J. Mardrus, Ferreira Gullar, Mamede Jarouche...) e às ficções que revisitam essa bela tapeçaria, como Vozes do deserto de Nélida Piñon. A astuciosa contadora – também excelente poeta e leitora, conforme a tradução de Galland – oferece a Xariar a arte de contar histórias, o prazer do ficcional. E o sultão deixa-se seduzir, acolhe esse dom, exercitando, noite a noite, a arte de ouvir. Como Xerazade, o contador é também, em príncipio, um grande ouvinte/leitor. Dotado de escuta atenta, precisa encontrar ouvidos disponíveis para acolher o legado de sua memória. Este é precisamente o humano desejo do androide Roy, líder dos Nexus 6, em Blade Runner de Ridley Scott. Com seu breve tempo de vida prestes a expirar, o último dos replicantes narra sua experiência a Deckard, seu caçador (também ele caça), a quem acabara de salvar da morte. Salva, assim, a sua narrativa e, através dela, a possibilidade de permanecer vivo na memória de Deckard e de seus futuros ouvintes: “Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto de Orion. Vi a luz do sol cintilar no escuro, na Comporta Tannhausen. Todos estes momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva”. Narrar, cerzir: um dos cognomes de Riobaldo, personagem-narrador de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa é justamente Cerzidor, ao entretecer, por arte de seu criador, diversos fios/vertentes que convergem para a caudalosa narrativa/rio de uma memória que transcende a vivência particular e regional – a travessia do “homem humano”. As grandes contadoras são hábeis fiandeiras, cerzindo, através do fio das histórias, o corpo e a alma, em cuja cisão reside a grande ferida do humano. “Seremos incólumes se não separarmos o corpo e a alma”, afirma Maria Gabriela Llansol, escritora portuguesa que cerze imagens em seus textos, insistindo em refazer a túnica inconsútil, em buscar o fulgor que nos foi roubado.

A sageza do contador não consiste apenas em transmitir a sua experiência, nadando contra a corrente de “uma geral configuração traumática da modernidade” que quase emudeceu os narradores, mas também na capacidade de ser um elo na milenar corrente de experiência humana formada pelas histórias. Em cada contador vive uma Xerazade, “que imagina uma nova história em cada história que está contando” (Benjamin). Ou um Homero. No filme As asas do desejo de Wim Wenders “há um velho que se chama Homero e anda no mundo a contar histórias. Ele é o garante de uma experiência imemorial que se transmite. Num universo dominado pela celeridade da informação, é preciso recuperar o sentido da sageza e da experiência que apenas as histórias são capazes de dar. Histórias para adormecer, histórias para comer a sopa até o fim, histórias para seduzir. Alguma coisa decisiva sobrevive em nós através desse regresso do prazer do ficcional” (Eduardo Prado Coelho). Para que o círculo mágico da palavra se faça, refaça e propague. De mão em mão, de voz em voz, por dom e graça da arte de contar, ouvir e recontar. Na dialética entre tradição e inovação, permanência e mudança, sem a qual o templo das Musas (Museu) não será casa móvel, água viva, lugar de criação e disseminação, onde o conhecimento adquirido, ao ser rememorado, possibilite estabelecer nexos com o conhecimento novo. No canto alongado (Drummond). Na “continuação inventada” (Guimarães Rosa). Maria de Lourdes Soares 221

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E. Lane, R. Burton, J. Mardrus, Ferreira Gullar, Mamede Jarouche...) e às ficções que<br />

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A astuciosa contadora – também excelente poeta e leitora, conforme a tradução de<br />

Galland – oferece a Xariar a arte de contar histórias, o prazer do ficcional. E o sultão<br />

deixa-se seduzir, acolhe esse dom, exercitando, noite a noite, a arte de ouvir. Como<br />

Xerazade, o contador é também, em príncipio, um grande ouvinte/leitor. Dotado<br />

de escuta atenta, precisa encontrar ouvidos disponíveis para acolher o legado de sua<br />

memória. Este é precisamente o humano desejo do androide Roy, líder dos Nexus<br />

6, em Blade Runner de Ridley Scott. Com seu breve tempo de vida prestes a expirar,<br />

o último dos replicantes narra sua experiência a Deckard, seu caçador (também ele<br />

caça), a quem acabara de salvar da morte. Salva, assim, a sua narrativa e, através dela, a<br />

possibilidade de permanecer vivo na memória de Deckard e de seus futuros ouvintes:<br />

“Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto de<br />

Orion. Vi a luz do sol cintilar no escuro, na Comporta Tannhausen. Todos estes<br />

momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva”.<br />

Narrar, cerzir: um dos cognomes de Riobaldo, personagem-narrador de Grande<br />

Sertão: Veredas de Guimarães Rosa é justamente Cerzidor, ao entretecer, por arte de<br />

seu criador, diversos fios/vertentes que convergem para a caudalosa narrativa/rio<br />

de uma memória que transcende a vivência particular e regional – a travessia do<br />

“homem humano”. As grandes contadoras são hábeis fiandeiras, cerzindo, através do<br />

fio das histórias, o corpo e a alma, em cuja cisão reside a grande ferida do humano.<br />

“Seremos incólumes se não separarmos o corpo e a alma”, afirma Maria Gabriela<br />

Llansol, escritora portuguesa que cerze imagens em seus textos, insistindo em refazer<br />

a túnica inconsútil, em buscar o fulgor que nos foi roubado.

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