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09.02.2015 Views

Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes 20 pelos avôs e pais, no calor da família. Séculos depois, a invenção da imprensa salvou do esquecimento muitas dessas histórias tradicionais que continuam sendo recontadas em diferentes espaços sociais, como escolas, universidades, teatros e encontros de contadores. Outras se perderam, talvez para sempre ou, quem sabe, as carreguemos adormecidas dentro de nós sem saber. Narrar uma história é um modo de estruturar o mundo em função das nossas ações individuais. Implica um trabalho de organização da memória individual, feito a partir da acumulação e organização de dados de uma experiência não necessariamente vivida, visto que a memória é uma reorganização de ideias, impressões, subjetividades, afetos e conhecimentos adquiridos no vivido, na leitura, no imaginado. O ato de narrar requer um domínio do tempo narrativo, que corresponde a uma enunciação verbal do passado. Todos os contadores mantêm, por meio de suas histórias, um elo entre passado e presente, real e sobrenatural, possível e impossível, razão e imaginação. Por que é importante contar e ouvir histórias Porque quando fazemos isso alimentamos duas das mais importantes características dos seres humanos: a imaginação criativa e a oratória. Somente os humanos dizem era uma vez... Somente nós fazemos isso: contamos a nossa história, a dos outros, escrevemos histórias, acrescentamos detalhes, criamos situações que não aconteceram de fato, imaginamos outros mundos, outros seres, outras paisagens, outras formas de ver e viver neste e em outros mundos imaginados. Os outros animais vivem e experimentam alegrias e dores, mas não sabem contar o que sentem. Não criam nem imaginam situações, não contam para os outros o seu passado. O mais fascinante é que usamos o recurso do antropomorfismo, ou seja, atribuímos formas e características humanas aos entes naturais e sobrenaturais. Nesse mundo mágico, as plantas, os animais e os humanos dialogam; as fábulas são bons exemplos disso. Mas há, também, outras razões para ouvir e contar histórias. A primeira é que, quando as ouvimos, despertamos para situações que não tínhamos pensado antes. Dessa forma, ampliamos nossos conhecimentos, o que nos permite rever e reelaborar

alguns valores. A segunda é que as histórias mantêm sempre aceso o farol da imaginação, da criatividade, da curiosidade, da ludicidade. Elas despertam o espírito juvenil que existe em qualquer pessoa, seja criança ou adulto. Quem sabe muitas histórias, certamente é porque ouviu, leu ou contou. Assim, dispõe de mais conhecimentos para enfrentar situações novas durante o seu percurso de vida, uma vez que, ao contrário da maioria das formulações científicas, as histórias rejeitam verdades unívocas e permitem soluções múltiplas. É bom lembrar que, embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias conseguem, pois enquanto restar uma única pessoa que saiba contá-las, elas não morrerão. Na condição de animais gregários, atualizamos dia após dia o ato de narrar. Talvez para entender quem somos ou para tomar consciência de que existimos. Para Clarissa Pinkola Estés, “as histórias que as pessoas contam entre si criam um tecido forte que pode aquecer as noites espirituais e emocionais mais frias” 1 . Somente elas revelam a aptidão peculiar e preciosa que os humanos possuem em obter êxito nas tarefas mais árduas. Fornecem, também, as instruções essenciais que precisamos para ter uma vida útil, necessária, irrestrita, significativa. Segundo Joseph Campbell, contamos histórias para entrar em acordo com o mundo, para harmonizar nossas vidas com a realidade 2 . Sempre que me perguntam porque gosto tanto de histórias, costumo afirmar que o meu interesse por essas narrativas ancestrais nasceu na infância, pois cresci à sombra dessa tradição dos meus antepassados no litoral sul do estado do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. Desde cedo fui marcado na alma por uma heráldica narrativa que permanece até hoje. As histórias sempre estiveram presentes na minha vida, seja por meio dos contos narrados pelos contadores tradicionais do lugar onde nasci ou pelos vários livros de literatura lidos e relidos por mim ao longo dos anos. Hoje, nos momentos em que olho para trás, relembro o quanto as histórias permaneceram na minha memória, alimentaram a minha imaginação de emoções extraordinárias e tiveram uma ressonância na minha formação pessoal e profissional. Na minha tenra idade nunca achei necessário dizer obrigado por aquelas porções de Carlos Aldemir Farias 21 1. O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 38-39. 2. O poder do mito. Palas Athena, 1998

alguns valores. A segunda é que as histórias mantêm sempre aceso o farol da imaginação,<br />

da criatividade, da curiosidade, da ludicidade. Elas despertam o espírito juvenil<br />

que existe em qualquer pessoa, seja criança ou adulto. Quem sabe muitas histórias,<br />

certamente é porque ouviu, leu ou contou. Assim, dispõe de mais conhecimentos<br />

para enfrentar situações novas durante o seu percurso de vida, uma vez que, ao contrário<br />

da maioria das formulações científicas, as histórias rejeitam verdades unívocas<br />

e permitem soluções múltiplas.<br />

É bom lembrar que, embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias<br />

conseguem, pois enquanto restar uma única pessoa que saiba contá-las, elas não morrerão.<br />

Na condição de animais gregários, atualizamos dia após dia o ato de narrar.<br />

Talvez para entender quem somos ou para tomar consciência de que existimos. Para<br />

Clarissa Pinkola Estés, “as histórias que as pessoas contam entre si criam um tecido<br />

forte que pode aquecer as noites espirituais e emocionais mais frias” 1 . Somente elas<br />

revelam a aptidão peculiar e preciosa que os humanos possuem em obter êxito nas<br />

tarefas mais árduas. Fornecem, também, as instruções essenciais que precisamos para<br />

ter uma vida útil, necessária, irrestrita, significativa.<br />

Segundo Joseph Campbell, contamos histórias para entrar em acordo com o mundo,<br />

para harmonizar nossas vidas com a realidade 2 . Sempre que me perguntam porque<br />

gosto tanto de histórias, costumo afirmar que o meu interesse por essas narrativas<br />

ancestrais nasceu na infância, pois cresci à sombra dessa tradição dos meus antepassados<br />

no litoral sul do estado do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. Desde cedo<br />

fui marcado na alma por uma heráldica narrativa que permanece até hoje. As histórias<br />

sempre estiveram presentes na minha vida, seja por meio dos contos narrados pelos<br />

contadores tradicionais do lugar onde nasci ou pelos vários livros de literatura lidos e<br />

relidos por mim ao longo dos anos.<br />

Hoje, nos momentos em que olho para trás, relembro o quanto as histórias<br />

permaneceram na minha memória, alimentaram a minha imaginação de emoções<br />

extraordinárias e tiveram uma ressonância na minha formação pessoal e profissional.<br />

Na minha tenra idade nunca achei necessário dizer obrigado por aquelas porções de<br />

Carlos Aldemir Farias<br />

21<br />

1. O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 38-39.<br />

2. O poder do mito. Palas Athena, 1998

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