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Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />
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literárias, depois de contadas, acabavam por convidar histórias humanas a fazerem<br />
parte daquele cenário. Como numa trança. Como num encontro de águas de rios<br />
diferentes, desaguando num mesmo mar. É isso! E assim, com o fechar do livro, era<br />
passado o fio da palavra às crianças, onde se partilhava alegrias e desassossegos, medos<br />
e surpresas, encontros, dúvidas, delicadezas. A vida e a morte caminhavam juntas,<br />
lado a lado, e não em sentidos opostos como se costuma pensar. As crianças falavam<br />
da saudade de casa, dos irmãos, da escola, dos animais de estimação, da comida<br />
feita pela sua mãe e também falavam de outras crianças que, com o seu mesmo diagnóstico,<br />
encerravam ali suas histórias, quando elas pareciam estar apenas começando.<br />
A palavra guardava para nós um prestígio de nobreza. E a estas histórias humanas,<br />
começamos a dar-lhes fisionomia de contos, criando um mundo onde morassem<br />
para sempre todas as possibilidades, já que, ali, elas eram tão tolhidas pelas rotineiras<br />
normas do tratamento. E, neste mundo, entre o papel e a minha caneta, leite puro<br />
poderia ter gosto de leite com café pra agradar menino, uma vaca podia morrer de<br />
olhos abertos porque foi assim que menino viu sua avó morrer, as injeções podiam se<br />
abraçar dentro da geladeira pra curar solidão de menina, mãe-pomba podia dar cuscuz<br />
na boca do filhote pra agradar outro menino, e menina podia entrar até na fogueira<br />
pra abraçar a mãe sem se queimar, de tanta saudade que ela tinha.<br />
E em reverência a estas histórias, criadas ali na Oncologia, cortejadas pela dificuldade,<br />
editamos um primeiro livro cheio de histórias e, logo, o segundo. E a palavra<br />
continuava a ser levada pela correnteza da Oficina de Contos, que foi então desaguar<br />
também na Enfermaria da Cardiologia Pediátrica. O processo continuou seguindo o<br />
mesmo fio, reverenciando histórias humanas a ofertar-lhes histórias literárias. E editamos<br />
o terceiro e o quarto livros. Depois uma coletânea deles todos com livro e CD.<br />
As histórias humanas passaram a inspirar a criação de histórias literárias e, quando<br />
eu chegava, as crianças já anunciavam ter histórias inteirinhas morando em suas<br />
cabeças para me contar. Compomos um movimento bonito, uma sintonia mesmo,<br />
como as ondas e a areia, de ir e vir, de esperar pelo que se sabe chegar e chegar com<br />
maciez, com maciez de se estar tocando em sonhos infantis, uma imensa coleção de<br />
tesouros, rara, sensível, desigual.