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09.02.2015 Views

Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes 128 tento implementar sua potência de vida, de mudança, de movimento. Rebelo-me contra a acepção das bibliotecas como estruturas de consagração somente, onde é desnecessária a comunicação, a provocação, ou seja, onde há a manutenção do apagamento, do silenciamento. Procuro eliminar a representação monumentalista que as identificam como palácios da memória ou templos do Saber (assim, com inicial maiúscula e no singular, demonstrando uma árida elitização). Insisto em trazer à tona sua face de forum, de território de discussão semeadora. Potencializo em minhas conversas sobre bibliotecas a conscientização acerca das algemas que podem significar sua etimologia e buscando imaginar muito mais para nossos acervos – qualquer que seja sua tipologia (acervo bibliográfico, acervo museológico, acervo arquivístico) –, a comparação com uma cristaleira, onde tudo pode ser visto, escolhido, tocado, usado, pois cristaleira se diferencia de um baú, uma caixa fechada a sete chaves. Tal qual a cristaleira que atrai recordações – lembranças representadas, por exemplo, pela última xícara do jogo de porcelana da avó, ou a vela enfeitada com laço de fita de cetim com a qual se dançou a valsa dos 15 anos –, nossas bibliotecas precisam ser também lugares de convívio, que permitam a troca, a interlocução; onde a ambiência convide e, não, empurre o leitor para fora, para o nunca mais. Um lugar de muitas e variadas vozes. Neste sentido, quero aqui tramar a possibilidade de construção de um paradigma outro para nossas bibliotecas: constituir nelas um território onde, sem o abandono à necessária preservação dos tesouros da humanidade – acervos que foram elaborados como representações da potência humana –, trabalhe-se muito mais com uma ação. Nossas práxis com acervos deverão estar, então, sedimentadas numa ação cultural e pedagógica com um viés tríplice: o da recepção/apropriação/expressão criadora a fim de configurá-los como territórios de (re) significação para os sujeitos sociais, na medida em que, servindo-lhes tanto como possibilidade de apropriação e produção, quanto de organização, oportunize construção de singularidades, transformação de realidades. Sendo assim, este é um trabalho em torno do sentido. E, pois, aquilo que costumo chamar de uma pedagogia da transformação; uma pedagogia do imaginário. Em resumo, trata-se de, partindo de nossa reserva simbólica, construída com os

fragmentos de nossas interpretações singulares e coletivas, alimentar o imaginário dos leitores das bibliotecas no desenvolvimento da função simbólica por meio de textos, de imagens, de sons, das vozes que narram, conferindo uma dimensão universal aos seus sentimentos. Já que temos desenvolvido muito mais a função lógica do educar, é preciso reencantar a Educação, dando relevo à sua função simbólica, mágica. Para isto, o trabalho primordial com as narrativas da tradição, com as vozes que nos chegam do mais profundo de nós mesmos e das nossas coletividades. As narrativas da tradição são tesouros do repertório humano arquitetado ao longo do tempo e simbolizam a jornada da alma rumo às transformações pessoais. Reserva simbólica da humanidade, portanto, estão repletas de figuras significativas que representam estágios de evolução subjetiva e coletiva. Nelas, as imagens nos fazem apreender o universo de modo instantâneo e as figuras significativas das narrativas da tradição – os arquétipos – enquanto projeções da alma dos sujeitos, são resíduos psíquicos acumulados no inconsciente da humanidade, são imagens primordiais, conteúdo eternamente presente no inconsciente coletivo e, assim, projeções do espírito de uma época. Nos contos tradicionais, as vozes encantadas que dizem de Bruxas, Velhos e Velhas Sábios, Heróis etc., potencializam este reencantamento mencionado. Quem são O que significam Quais suas características principais, seus atributos Nossas tentativas de respostas a essas indagações promovem o necessário olhar sobre o duelo entre estar inserido no imaginário cristalizadamente insalubre da contemporaneidade ou pôr em movimento constante o pensar sobre outros possíveis significados. Para tanto, minha práxis nas bibliotecas é a tessitura de suas múltiplas vozes na laçada fundamental possibilitada pelas narrativas e suas figuras de significação; é um reviver da reverberação que tiveram em nossas almas. Alguns se perguntam: será possível o resgate hoje Haverá interesse, nesses tempos fragmentados e fragmentadores, pelos contos da tradição E outros trabalham, sim, com o significado profundo dessas narrativas fundantes, incentivando o mergulho em sua atmosfera para melhor compreender suas próprias lembranças, ressimbolizando o passado, a fim de reescrevê-lo e à própria vida. Nesse sentido, enquanto Darnton nos Nanci Gonçalves da Nóbrega 129

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tento implementar sua potência de vida, de mudança, de movimento.<br />

Rebelo-me contra a acepção das bibliotecas como estruturas de consagração somente,<br />

onde é desnecessária a comunicação, a provocação, ou seja, onde há a manutenção do<br />

apagamento, do silenciamento. Procuro eliminar a representação monumentalista que as<br />

identificam como palácios da memória ou templos do Saber (assim, com inicial maiúscula<br />

e no singular, demonstrando uma árida elitização). Insisto em trazer à tona sua face de<br />

forum, de território de discussão semeadora. Potencializo em minhas conversas sobre<br />

bibliotecas a conscientização acerca das algemas que podem significar sua etimologia e<br />

buscando imaginar muito mais para nossos acervos – qualquer que seja sua tipologia<br />

(acervo bibliográfico, acervo museológico, acervo arquivístico) –, a comparação com<br />

uma cristaleira, onde tudo pode ser visto, escolhido, tocado, usado, pois cristaleira se<br />

diferencia de um baú, uma caixa fechada a sete chaves. Tal qual a cristaleira que atrai<br />

recordações – lembranças representadas, por exemplo, pela última xícara do jogo de<br />

porcelana da avó, ou a vela enfeitada com laço de fita de cetim com a qual se dançou<br />

a valsa dos 15 anos –, nossas bibliotecas precisam ser também lugares de convívio, que<br />

permitam a troca, a interlocução; onde a ambiência convide e, não, empurre o leitor<br />

para fora, para o nunca mais. Um lugar de muitas e variadas vozes.<br />

Neste sentido, quero aqui tramar a possibilidade de construção de um paradigma<br />

outro para nossas bibliotecas: constituir nelas um território onde, sem o abandono à<br />

necessária preservação dos tesouros da humanidade – acervos que foram elaborados<br />

como representações da potência humana –, trabalhe-se muito mais com uma ação.<br />

Nossas práxis com acervos deverão estar, então, sedimentadas numa ação cultural<br />

e pedagógica com um viés tríplice: o da recepção/apropriação/expressão criadora a<br />

fim de configurá-los como territórios de (re) significação para os sujeitos sociais, na<br />

medida em que, servindo-lhes tanto como possibilidade de apropriação e produção,<br />

quanto de organização, oportunize construção de singularidades, transformação de<br />

realidades. Sendo assim, este é um trabalho em torno do sentido. E, pois, aquilo que<br />

costumo chamar de uma pedagogia da transformação; uma pedagogia do imaginário.<br />

Em resumo, trata-se de, partindo de nossa reserva simbólica, construída com os

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