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organização<br />

Benita Prieto<br />

1ª edição<br />

Rio de Janeiro<br />

Prieto Produções Artísticas<br />

2011


© 2011 Organizadora Benita Prieto<br />

© Direitos de publicação<br />

prieto produções artísticas<br />

www.benitaprieto.com.br<br />

Coordenação editorial: Benita Prieto<br />

Assistente editorial: Priscila da Cruz Vieira<br />

Revisão: Ana Letícia Leal<br />

Design de capa e projeto gráfico: Marcos Corrêa<br />

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE<br />

BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL-LÚCIA FIDALGO-CRB7/4439<br />

C759<br />

Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes/<br />

Organização Benita Prieto. - Rio de Janeiro: s. ed, 2011.<br />

240p.<br />

ISBN 978-85-65126-00-7<br />

1. A arte de Contar Histórias. 2. Contadores de Histórias.<br />

I. Prieto, Benita, org. II. Título<br />

CDD: 808.068543<br />

22. ed.


“<br />

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios.<br />

Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio,<br />

mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao<br />

acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a<br />

própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia.<br />

O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que<br />

sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade<br />

é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia<br />

deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a<br />

mecha de sua vida.<br />

”<br />

O Narrador. Walter Benjamin.


prosas<br />

....................................................................prosa de abertura<br />

13 Contação de estória: vida e realidade<br />

Affonso Romano de Sant’Anna<br />

............................................................................................ )<br />

19 Contar histórias é alimentar a humanidade da humanidade<br />

Carlos Aldemir Farias<br />

25 Contos indígenas: uma experiência com narrativas dos primeiros povos brasileiros<br />

Daniele Ramalho<br />

31 Negras histórias (a valorização da cultura oral afro-brasileira)<br />

Rogério Andrade Barbosa<br />

37 DeusNumDé: dom da visão<br />

Edmilson Santini<br />

............................................................................................ (<br />

45 Vozes, corpos e textos nos vãos da cidade<br />

Júlio Diniz<br />

49 Muitas vidas, muitas vozes, muitas histórias<br />

Júlio Diniz & Morandubetá<br />

59 Impressões de uma contadora de histórias – meu encontro com a arte narrativa<br />

Bia Bedran<br />

67 A terceira margem da cena<br />

José Mauro Brant<br />

73 A voz quente do coração do rádio<br />

Gilka Girardello<br />

79 Contando na telinha<br />

Augusto Pessôa


85 Cinema: um griot cuja argila é o tempo e a estátua são os atores na fogueira da<br />

sala escura<br />

Paulo Siqueira<br />

95 Blog, uma janela para o mundo<br />

Marcio Allemand<br />

101 Paiquerê Piquiri Fiietó, um experimento com as linguagens<br />

Cléo Busatto<br />

105 Duas histórias contadas nos múltiplos caminhos dos Role-Playing Games (RPG)<br />

Carlos Eduardo Klimick Pereira & Eliane Bettocchi Godinho<br />

115 Como as histórias foram entrando na minha vida...<br />

Ana Luísa Lacombe<br />

121 Da boca da noite para a acolhida na escola<br />

Almir Mota<br />

127 Bibliotecas: vozes silenciadas<br />

Nanci Gonçalves da Nóbrega<br />

137 A contação de histórias vivenciada no chão da universidade: um quase relato<br />

de experiência<br />

Edvânia Braz Teixeira Rodrigues<br />

143 Por onde passo, levo comigo os contadores de histórias<br />

Maria Helena Ribeiro<br />

151 Narrativas na empresa<br />

Fernando Goldman<br />

157 Fagulhas habitam multidões<br />

Célia Linhares


163 Nos caminhos da Maré<br />

Lene Nunes<br />

169 Entre hospitais gerais e psiquiátricos: histórias humanas e literárias como um rio de<br />

caudaloso fio, tecendo redes de encontros na diversidade de afluências do viver saudável<br />

Kika Freyre<br />

177 Contos na prisão: um espaço chamado liberdade<br />

Rosana Mont’Alverne<br />

185 Histórias em sinais<br />

Lodenir Karnopp<br />

191 Palavras táteis<br />

AnaLu Palma<br />

............................................................................................ *<br />

196 E eles foram felizes para sempre.<br />

Regina Machado<br />

203 O ofício de viver contando histórias<br />

Cristiano Mota Mendes<br />

209 O paciente como contador de sua própria história: o olhar de um médico homeopata<br />

Conrado Mariano<br />

...............................................................................prosa final<br />

215 As águas da memória e os guardadores da corrente de histórias<br />

Maria de Lourdes Soares<br />

............................................................................................ &<br />

225 De quem são essas vozes


:prosa de abertura


Contação de estória:<br />

vida e realidade<br />

o


[Affonso Romano de Sant’Anna]<br />

Vou arriscar uma definição.<br />

Mais uma.<br />

Já tentaram de várias maneiras dizer o que é que define essencialmente o ser humano.<br />

Uns dizem, “homo faber”, porque ele sabe produzir instrumentos industriais de<br />

trabalho ou de guerra;<br />

outros dizem – “homo economicus”, porque conseguimos estabelecer uma sociedade<br />

baseada na economia, na qual viramos objeto de consumo;<br />

outros dizem – “homo ludens”, como Huizinga, e assim estudam o “jogo” presente<br />

na guerra, na poesia, no direito, etc.<br />

E assim continuam as intermináveis classificações que vêm desde o “homo sapiens”<br />

até aquilo que levou Cassirer a dizer que o homem é “animal simbólico” (“homo<br />

simbolicus”), ou seja, nossa habilidade em forjar símbolos exprime nossas perplexidades<br />

e faz nossa história.<br />

Outro dia li um texto que falava do “homo academicus”, referindo-se a esses indivíduos<br />

com a cabeça ilhada dentro das universidades, falando um “trobar clus” moderno.<br />

Todas essas características são verdadeiras. E cada uma é uma maneira de entrar<br />

no mistério da natureza humana. Penso se nessa sequência se poderia introduzir um<br />

outro traço que nos caracteriza e que não é desprezível. Não vou mais usar a seródia<br />

palavra “homo”, isto já prescreveu depois que o feminismo botou por terra muitos<br />

preconceitos. Não dá para repetir aquela frase que, dizem, é de Monteiro Lobato: “um<br />

país se faz com homens e livros”. Bota mulher nisto.<br />

13


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

14<br />

Portanto, falemos de pessoas e de indivíduos incluindo aí necessariamente as mulheres.<br />

Então, digo: somos seres que contam e ouvem histórias. E nisto as mulheres, até mais que<br />

os homens, são as grandes contadoras de história: mães, babás, tias, avós, madrinhas...<br />

Podemos avançar um pouco mais e dizer: o ser humano é não apenas um ser que<br />

conta histórias e ouve histórias, mas sobretudo é um ser que faz história. Fazer história<br />

é a suprema audácia dos humanos. Os romancistas, os cineastas e os líderes sociais,<br />

por exemplo, operam isto mais claramente. Não se contentam em ser atores, querem<br />

também ser autores, protagonistas de seu tempo.<br />

Portanto, somos seres irremediavelmente históricos.<br />

Digo isto e penso: eis uma observação banal. Qualquer pessoa sabe disto, não é<br />

necessário ser um erudito para chegar a essa conclusão. Aliás, até os analfabetos, que<br />

alimentam seu imaginário de contações de estórias, sabem disto. Então, por que fazer<br />

essa observação<br />

Primeiro por uma razão, digamos pleonasticamente, “histórica”. Ou seja, a contação<br />

de estórias passou a ser revalorizada de maneira notável nas últimas décadas, sobretudo<br />

a partir dos anos 1980. Uma diversificada bibliografia que permeia diversos ramos do<br />

conhecimento nos dá conta de uma verdadeira redescoberta da arte de contar histórias.<br />

Isto está até mesmo nos consultórios psicanalíticos, que utilizam a “narratividade” dos<br />

clientes como estratégia de tratamento, aperfeiçoando o que Freud há uns cem anos<br />

já praticara quando adotou “a cura pela palavra”, revalorizando assim a palavra falada<br />

capaz de destravar neuroses e traumas.<br />

E isto se tornou tão visível e notável que as universidades se voltaram para este fenômeno<br />

estudando o renascimento da contação de estórias em nossa cultura. Cursos de<br />

contadores de história se espalham por todas as partes, ao mesmo tempo em que, paralelamente,<br />

cursos sobre leitura, casas de leitura, secretarias de leitura e até mesmo Cátedras<br />

de Leitura (a exemplo da PUC–Rio) começam a ser criados nas universidades.<br />

Quer dizer, a leitura e a contação de estórias não apenas estão na moda, mas estão<br />

irremediavelmente geminadas.<br />

E isto, surpreendentemente, ocorre dentro de uma sociedade televisiva altamente


tecnológica, em que o cinema, a TV, a internet e os novos suportes ocupam espaços<br />

imensos no nosso cotidiano. Isto sucede numa sociedade que, segundo alguns, rejubilando-se<br />

de cultuar a imagem, desprezaria a oralidade como se ela fosse um suporte<br />

primitivo e ultrapassado. Nesse sentido, assim como nos últimos cem anos alardearam<br />

tantas mortes em nossa cultura – morte do autor, morte da arte, morte do homem, etc.<br />

– seria de se esperar que tivesse ocorrido a “morte” da arte de contar estórias.<br />

Não ocorreu. Ocorreu o contrário.<br />

Anotemos que uma das falácias de nosso tempo, seduzido pela visualidade, foi<br />

dizer que uma imagem vale mais que mil palavras. Será Ou se poderia dizer o contrário:<br />

uma metáfora, um hai-kai, uma estória valem mais que mil imagens De qualquer<br />

forma, são afirmativas radicais que não ajudam muito a entender a riqueza do<br />

nosso contexto cultural.<br />

Penso, para efeito de raciocínio, nuns exemplos concretos, dentro da própria arte da<br />

visualidade: o cinema, por exemplo. Poderia citar o caso de um filme nacional, Narradores<br />

de Javé, de Eliane Caffé: aí toda uma comunidade recorre à narração para salvar-se<br />

do naufrágio no tempo e espaço, quando uma projetada represa expandisse suas águas<br />

sobre as casas da comunidade. A estória, a narratividade e a memória passaram a ser<br />

a barragem imaginária contra a destruição, a ilha de salvação do imaginário humano.<br />

A filmografia sobre o valor das estórias orais tornou-se mais rica nos últimos tempos.<br />

E isto é sintomático do que estou dizendo. Penso num outro filme: Balzac e a costureirinha<br />

chinesa, tirado do romance homônimo de Dai Sigie. De novo estão o cinema<br />

e o romance nos dizendo da importância da narrativa oral. Mais do que isto, dentro<br />

deste filme/romance há algo fascinante: uma personagem confessa gostar mais da narrativa<br />

de um determinado filme do que do filme propriamente dito. Eis o cinema prestando<br />

homenagem à contação de estórias como uma predecessora da arte de narrar. E<br />

assim poderíamos lembrar mais um filme, A camareira do Titanic, película que repousa<br />

sobre a inventiva capacidade de um personagem de ir incrementando sua estória falsa<br />

& verdadeira e assim aumentando cada vez mais sua plateia até transformar a sua<br />

estória num espetáculo à parte.<br />

Affonso Romano de Sant’Anna<br />

15


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

16<br />

Anteriormente à modernidade, foram os românticos os responsáveis pela revalorização<br />

da memória oral das comunidades. Os romances foram uma recriação das narrativas<br />

orais. Por outro lado, os irmãos Grimm na Alemanha, o dinamarquês Hans<br />

Christian Andersen e os romancistas, como Alexandre Dumas, Walter Scott e José de<br />

Alencar, foram buscar nas lendas, na história, no folclore, o imaginário coletivo.<br />

E, na modernidade, ocorrem insólitas revalorizações da palavra. A arte contemporânea,<br />

depois de ter chegado ao abstracionismo, deu uma meia-volta em direção à<br />

palavra e institucionalizou a “arte conceitual” como uma das mais nítidas tendências<br />

do século XX. E isto se deu de tal forma que o “discurso” sobre os quadros ou obras<br />

passou a ser mais relevante que as próprias obras e a terem em relação a elas certa<br />

independência. (Tratei disto no livro O enigma vazio, editado pela Rocco).<br />

A indústria das novelas de televisão, o cinema, o teatro, as estórias em quadrinho e<br />

os romances continuam mais fortes que nunca. A publicidade tornou-se uma forma de<br />

narrar e de seduzir. Uma cidade é um livro, cheia de letras, como para o índio é a floresta.<br />

Disto tudo sobressai a palavra – narratividade. Narramos sem saber que narramos<br />

e somos lidos até sem nos darmos conta de que nos estão lendo. Mais do que nunca<br />

torna-se urgente que as pessoas tenham consciência de que ler o mundo é uma tarefa<br />

contínua, desafiadora e propiciadora do sucesso pessoal e social.<br />

Somos estórias em movimento. Parábolas vivas. E quem conta estórias vive várias<br />

vidas numa só.


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Contar histórias é alimentar a<br />

humanidade da humanidade<br />

o


[Carlos Aldemir Farias]<br />

Se o ato de sonhar não é uma exclusividade dos humanos, contar histórias é<br />

uma arte milenar exclusiva das sociedades humanas. Foi graças à tradição oral que<br />

muitas histórias se perpetuaram, sendo transmitidas de uma geração para outra. Tudo<br />

começou em uma caverna, quando os primeiros caçadores e coletores se reuniram em<br />

volta das chamas da fogueira para contar histórias uns aos outros, sobre suas aventuras<br />

na luta pela sobrevivência, para dar voz à percepção fenomenológica dos eventos<br />

naturais e sobrenaturais, e, assim, entrar em conformidade com a ordem social e<br />

cósmica. Algumas dessas histórias ficaram registradas nas paredes das cavernas e ainda<br />

resistem às intempéries acontecidas durante os milhares de anos.<br />

As conquistas de uns povos por outros, a passagem da caça à agricultura, as migrações<br />

e as guerras foram difundindo e transformando as histórias das diferentes tradições<br />

culturais em elementos reconhecidos pelo corpo social, no qual o contador de histórias<br />

exercia o papel de guardião da memória e as narrativas formavam a enciclopédia do<br />

saber coletivo das sociedades.<br />

Até hoje, em diferentes grupos sociais espalhados pelo planeta, por exemplo, indígenas,<br />

comunidades rurais, ribeirinhas e remanescentes de quilombos, predominam<br />

as formas orais de comunicação; a cultura é transmitida por meio da oralidade. Essas<br />

sociedades têm um conhecimento espetacular, pois desenvolveram um tipo de discurso<br />

argumentativo por meio das narrativas.<br />

No decurso do processo histórico, as histórias ancestrais, somadas a tantas outras,<br />

foram recriadas em função das circunstâncias e passaram a ser contadas pelas amas,<br />

19


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

20<br />

pelos avôs e pais, no calor da família. Séculos depois, a invenção da imprensa salvou<br />

do esquecimento muitas dessas histórias tradicionais que continuam sendo recontadas<br />

em diferentes espaços sociais, como escolas, universidades, teatros e encontros de<br />

contadores. Outras se perderam, talvez para sempre ou, quem sabe, as carreguemos<br />

adormecidas dentro de nós sem saber.<br />

Narrar uma história é um modo de estruturar o mundo em função das nossas<br />

ações individuais. Implica um trabalho de organização da memória individual, feito a<br />

partir da acumulação e organização de dados de uma experiência não necessariamente<br />

vivida, visto que a memória é uma reorganização de ideias, impressões, subjetividades,<br />

afetos e conhecimentos adquiridos no vivido, na leitura, no imaginado.<br />

O ato de narrar requer um domínio do tempo narrativo, que corresponde a<br />

uma enunciação verbal do passado. Todos os contadores mantêm, por meio de suas<br />

histórias, um elo entre passado e presente, real e sobrenatural, possível e impossível,<br />

razão e imaginação.<br />

Por que é importante contar e ouvir histórias Porque quando fazemos isso alimentamos<br />

duas das mais importantes características dos seres humanos: a imaginação criativa<br />

e a oratória. Somente os humanos dizem era uma vez... Somente nós fazemos isso: contamos<br />

a nossa história, a dos outros, escrevemos histórias, acrescentamos detalhes, criamos<br />

situações que não aconteceram de fato, imaginamos outros mundos, outros seres,<br />

outras paisagens, outras formas de ver e viver neste e em outros mundos imaginados.<br />

Os outros animais vivem e experimentam alegrias e dores, mas não sabem contar<br />

o que sentem. Não criam nem imaginam situações, não contam para os outros o seu<br />

passado. O mais fascinante é que usamos o recurso do antropomorfismo, ou seja,<br />

atribuímos formas e características humanas aos entes naturais e sobrenaturais. Nesse<br />

mundo mágico, as plantas, os animais e os humanos dialogam; as fábulas são bons<br />

exemplos disso.<br />

Mas há, também, outras razões para ouvir e contar histórias. A primeira é que,<br />

quando as ouvimos, despertamos para situações que não tínhamos pensado antes.<br />

Dessa forma, ampliamos nossos conhecimentos, o que nos permite rever e reelaborar


alguns valores. A segunda é que as histórias mantêm sempre aceso o farol da imaginação,<br />

da criatividade, da curiosidade, da ludicidade. Elas despertam o espírito juvenil<br />

que existe em qualquer pessoa, seja criança ou adulto. Quem sabe muitas histórias,<br />

certamente é porque ouviu, leu ou contou. Assim, dispõe de mais conhecimentos<br />

para enfrentar situações novas durante o seu percurso de vida, uma vez que, ao contrário<br />

da maioria das formulações científicas, as histórias rejeitam verdades unívocas<br />

e permitem soluções múltiplas.<br />

É bom lembrar que, embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias<br />

conseguem, pois enquanto restar uma única pessoa que saiba contá-las, elas não morrerão.<br />

Na condição de animais gregários, atualizamos dia após dia o ato de narrar.<br />

Talvez para entender quem somos ou para tomar consciência de que existimos. Para<br />

Clarissa Pinkola Estés, “as histórias que as pessoas contam entre si criam um tecido<br />

forte que pode aquecer as noites espirituais e emocionais mais frias” 1 . Somente elas<br />

revelam a aptidão peculiar e preciosa que os humanos possuem em obter êxito nas<br />

tarefas mais árduas. Fornecem, também, as instruções essenciais que precisamos para<br />

ter uma vida útil, necessária, irrestrita, significativa.<br />

Segundo Joseph Campbell, contamos histórias para entrar em acordo com o mundo,<br />

para harmonizar nossas vidas com a realidade 2 . Sempre que me perguntam porque<br />

gosto tanto de histórias, costumo afirmar que o meu interesse por essas narrativas<br />

ancestrais nasceu na infância, pois cresci à sombra dessa tradição dos meus antepassados<br />

no litoral sul do estado do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. Desde cedo<br />

fui marcado na alma por uma heráldica narrativa que permanece até hoje. As histórias<br />

sempre estiveram presentes na minha vida, seja por meio dos contos narrados pelos<br />

contadores tradicionais do lugar onde nasci ou pelos vários livros de literatura lidos e<br />

relidos por mim ao longo dos anos.<br />

Hoje, nos momentos em que olho para trás, relembro o quanto as histórias<br />

permaneceram na minha memória, alimentaram a minha imaginação de emoções<br />

extraordinárias e tiveram uma ressonância na minha formação pessoal e profissional.<br />

Na minha tenra idade nunca achei necessário dizer obrigado por aquelas porções de<br />

Carlos Aldemir Farias<br />

21<br />

1. O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 38-39.<br />

2. O poder do mito. Palas Athena, 1998


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

afetos literários emanados dos sábios contadores, que dedicaram parte de seu precioso<br />

tempo às crianças. Considero um privilégio ouvir histórias, essa sensação de maravilhamento<br />

diante do espetáculo da imaginação humana. Para mim não existe um<br />

afeto poético maior. Se pudesse voltar no tempo não teria palavras para agradecer por<br />

aqueles momentos mágicos. Sou grato a todos os contadores que, com suas legiões de<br />

personagens, iluminaram a minha vida.<br />

22


Contos indígenas:<br />

uma experiência com narrativas<br />

dos primeiros povos brasileiros<br />

o


[Daniele Ramalho]<br />

Ninguém respeita aquilo que não conhece. 1<br />

Wabuá Xavante<br />

No ano de 1500 os europeus chegaram ao território que hoje chamamos de<br />

Brasil. Havia aqui cerca de mil povos indígenas cuja população foi drasticamente<br />

reduzida e que hoje se concentra em cerca de 280 etnias, que falam 160 línguas – um<br />

Brasil que certamente precisamos conhecer.<br />

No ano de 2000 comecei a contar histórias indígenas. Havia alguns anos da primeira<br />

visita ao Museu do Índio do Rio de Janeiro. Ficava admirada com a riqueza<br />

da cultura daqueles que foram os primeiros habitantes de nossa terra e perplexa com<br />

nosso desconhecimento sobre sua realidade – apesar de terem se passado mais de<br />

quinhentos anos do primeiro contato.<br />

Yawanawá, Xavante, Enawenê-Nawê, Fulni-ô, Apurinã, Kuikuro, Mehinaku.<br />

Pesquisei diversas histórias e escolhi para estarem em “Contos indígenas” – aquele<br />

que seria meu primeiro espetáculo com este tema – narrativas das etnias bororo<br />

(“Subida para o céu”), kaxinawá (“A lenda da lua cheia”) e nambikwara (“O menino<br />

e a flauta”). A primeira conta a origem dos animais e das estrelas, a segunda mostra a<br />

origem da lua e da menstruação das mulheres e a terceira narra a origem dos alimentos<br />

e da flauta sagrada Wairu, que só pode ser vista pelos homens.<br />

As perguntas eram muitas: – Por que contar histórias indígenas em nossa sociedade<br />

Como colaborar para difundir a tradição destes povos Como utilizar versões<br />

dos mitos tradicionais e fazer com que alguns de seus símbolos possam ser apreendidos<br />

por pessoas de outra formação cultural Como abordar temas como sexualidade e<br />

morte, que para nossa sociedade são tabus, e que nas histórias indígenas são tratadas<br />

com naturalidade De que modo eu deveria contá-las<br />

25<br />

1. Frase que norteia o trabalho do Instituto das Tradições Indígenas, para o qual trabalhei no projeto Rito de Passagem.


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

26<br />

Divido com você “que me escuta” algumas reflexões após 11 anos de trabalho com<br />

a cultura indígena brasileira.<br />

Meu primeiro passo foi perceber que não há uma cultura indígena no Brasil, mas<br />

muitas, já que há grandes diferenças entre o modo de vida das etnias encontradas<br />

em nosso território. Como sugeriu Lévi-Strauss, para que haja uma compreensão dos<br />

mitos indígenas o melhor é entendê-los em seus próprios termos, ou seja, compreendendo<br />

o pensamento de quem os produz 2 .<br />

Fui buscar então maiores informações sobre as etnias e mitos que escolhi. Procurei<br />

referências que indicassem a que rituais se referiam, a que se destinavam e com<br />

que finalidade. Dois deles preparavam os jovens para a iniciação ritual que marcava<br />

sua passagem para a vida adulta. Esta pesquisa foi fundamental para guiar algumas<br />

escolhas na construção do trabalho.<br />

Citarei um exemplo. No mito kaxinawá “O menino e a flauta” conto a origem da<br />

flauta wairu, que apenas aos homens é permitido ver. Como na historia o menino e<br />

seu pai escutam o som da flauta, poderia ter sido o meu primeiro impulso usar uma<br />

flauta durante a narração. Com a pesquisa compreendi que, se a história trata exatamente<br />

da flauta wairu como um tabu para as mulheres, nada mais coerente do que eu,<br />

como mulher, não usar o instrumento na contação. Resolvi a questão reproduzindo<br />

o som da música ritual com minha voz. Mais que preciosismo, para mim este é um<br />

exemplo claro de como a pesquisa é importante no respeito às tradições do povo cuja<br />

história desejamos apresentar.<br />

Durante o longo período em que coletei versões dos mitos, encontrei muitas diferenças<br />

nas adaptações. Achei preciosidades como a coleção Morená, da escritora e<br />

ilustradora Ciça Fittipaldi, cujas versões uso no espetáculo.<br />

As narrativas dos mitos nos chegam normalmente em livros de antropólogos, escritores<br />

e pesquisadores que conviveram com povos indígenas. Há casos em que são narradas<br />

em português pelos indígenas – onde costumam se perder detalhes importantes<br />

em função das histórias não serem recolhidas na língua de origem do narrador. Há<br />

casos também em que os mitos são gravados ou escritos na língua indígena, e, posteri-<br />

2. Claude Lévi-Strauss revolucionou a antropologia através do estruturalismo, com importantes estudos sobre a análise<br />

de ritos e mitos


ormente, traduzidos – o que costuma apresentar melhores resultados.<br />

A importância de encontrar várias versões de uma mesma história é a possibilidade<br />

de perceber o quanto foi preservado da essência daquela narrativa e o quanto<br />

há de adaptação do autor, que muitas vezes “adultera” ou “corrige” o conteúdo do<br />

mito para que o seu teor “primitivo” não entre em atrito com as normas sociais de<br />

conduta de nossa cultura.<br />

Após o contato de nossa sociedade com os povos indígenas, foram criados projetos<br />

que visam registrar sua história mítica como, por exemplo, nas publicações utilizadas<br />

nas escolas indígenas ou em livros publicados por escritores indígenas – que, em<br />

diversos estilos literários, revelam a tradição ancestral. É a palavra dos antigos – que<br />

fala do tempo em que o mundo foi criado – apresentada pela nova geração, que<br />

mesmo após incorporar à sua cultura inovações como o uso da internet, luta para<br />

manter vivo o pensamento e o modo de vida harmônico de seu povo. Assim, apesar<br />

de terem sofrido mudanças significativas em seu imaginário, eles encontram meios de<br />

manter a sua identidade e reverenciar a sabedoria ancestral.<br />

Voltando a “Contos indígenas”: optei por trabalhar no espetáculo com a corporalidade<br />

como um meio de contar as histórias. Sempre me saltava aos olhos a maneira<br />

como os indígenas narram seus mitos. Um exemplo: na época em que trabalhei no<br />

projeto Rito de Passagem, do Instituto das Tradições Indígenas /IDETI, durante uma<br />

conversa com “Seu” Joaquim Yawanawá, ouvi-o narrando em pano (sua língua de<br />

origem) o trecho de uma história. Eu não entendia o significado do que ele dizia,<br />

mas era impressionante o vigor e intensidade com que me contava os fatos; os gestos<br />

que fazia. Era como se revivesse na frente de sua ouvinte cada personagem e acontecimento.<br />

Sei que há outras possibilidades, mas neste trabalho optei por uma forte<br />

presença da corporalidade para, de algum modo, trazer ao imaginário do público um<br />

encantamento e uma espécie de sentido ritual que considero bastante adequados para<br />

uma narração mítica.<br />

Como abordava três etnias diferentes, acabei optando por uma pesquisa mais<br />

genérica sobre referências corporais dos povos, encontrando uma corporalidade<br />

Daniele Ramalho<br />

27


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

28<br />

única, que permeasse todo o espetáculo. No começo da construção do espetáculo<br />

“Contos indígenas”, eu e André Masseno, diretor do trabalho, utilizamos fotografias<br />

de pessoas dos povos abordados em ações físicas cotidianas. Reproduzimos estas<br />

ações num treinamento corporal, codificadas em partituras físicas, que depois foram<br />

devidamente esquecidas. Posteriormente, na composição das narrativas propriamente<br />

ditas, os gestos e movimentos foram reaparecendo. E o corpo encontrado se refletiu<br />

também na sonoridade. Aprendi palavras e cantos das etnias cujas histórias escolhi<br />

em sua língua original, aprendi sons que os indígenas fazem em seu cotidiano – e, aos<br />

poucos, codifiquei um modo diferenciado de abordar o som nas narrativas.<br />

E qual é a importância de contar mitos indígenas hoje Sabemos que as narrativas<br />

míticas ajudam a compreender uma sociedade, trazendo sua visão sobre a ordem do<br />

mundo, suas regras de convívio – o que não só fortalece seu sentido de grupo, como<br />

carrega a sua memória. As histórias também preparam os indígenas para rituais de<br />

passagem. Trazem a conexão entre mundo material e espiritual e falam de um encantamento<br />

que pode nos conectar novamente com a magia da vida gerando uma nova<br />

compreensão de nossa existência através de uma ancestralidade viva. Gosto muito de<br />

Joseph Campbell quando ele diz que os mitos “...ensinam a se voltar para dentro...” e<br />

“...nos permitem uma leitura das mensagens que o mundo nos emite”. As narrativas<br />

indígenas podem, portanto, nos conectar para “além da internet” e gerar uma real<br />

ligação com o outro e com a sociedade.<br />

Sabemos que os mitos se referem a questões arquetípicas, tratando de símbolos<br />

que acessam emoções e imagens simbólicas que constituem a condição humana – o<br />

que nos leva a pensar que somos todos iguais! O africano Amadou Hampátê Bâ disse<br />

– referindo-se à tradição dos mitos de iniciação peuls – que “Um conto é um espelho<br />

onde qualquer um pode descobrir a sua própria imagem.” 3<br />

Por outro lado, o mito traz um caráter específico da cultura a que pertence – ou<br />

seja, trata da identidade de um povo; aquilo que o faz único – o que sugere que somos<br />

todos diferentes! Acredito que esta dicotomia presente nas narrativas míticas é que<br />

pode gerar reflexões que nos levem a ter maior tolerância com a diversidade cultural e<br />

3. Amadou Hampátê Ba foi escritor, historiador, poeta e contador de histórias nascido no Mali; um grande defensor da<br />

tradição oral africana.


fazer com que encontremos modos de convívio mais harmônicos com outras pessoas<br />

e culturas na grande aldeia global em que nos encontramos. É preciso, então, ver a<br />

oralidade como uma atitude diante da realidade, ligada a uma visão de mundo e à<br />

vontade de comunicação com o outro.<br />

Espero, de verdade, que possamos dar voz à tradição indígena de nosso país;<br />

que as histórias destes povos possam gerar respeito à riqueza da diversidade cultural<br />

brasileira e que elas sejam, cada vez mais, contadas e escutadas por todos e para todos,<br />

gerando mais compreensão e interação entre os povos.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u O poder do mito. Joseph Campbell. Pallas Athena, 1990.<br />

u Subida pro céu. Ciça Fittipaldi. Melhoramentos, 1986.<br />

u O menino e a flauta. Ciça Fittipaldi. Melhoramentos, 1986.<br />

u Memória e construção de identidades. Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos e Nilson<br />

Alves de Moraes (Orgs.). 7 Letras, 2000.<br />

u Mito e significado. Lévi-Strauss. Edições 70, 1985.<br />

Daniele Ramalho<br />

29


Negras histórias<br />

(a valorização da cultura<br />

oral afro-brasileira)<br />

o


[Rogério Andrade Barbosa]<br />

Eu me lembro muito bem... Tanto o meu pai quanto a minha mãe me contavam<br />

histórias antes de eu dormir. As narrativas de meu pai, que era escritor, tinham<br />

um sabor especial, pois eram em capítulos inventados por ele mesmo, recheados de<br />

aventuras mirabolantes, que se sucediam a cada noite. Foi assim que iniciei meus<br />

primeiros passos pelo fantástico mundo da contação de histórias.<br />

Depois vieram os livros que despertaram em mim, desde cedo, a vontade de viajar.<br />

Mais tarde, trabalhei durante dois anos como professor-voluntário a serviço das<br />

Nações Unidas na Guiné-Bissau, África. Ali, me encantei com as apresentações dos<br />

griots e com a diversidade dos contos tradicionais africanos, tema de inspiração para<br />

muitos de meus livros.<br />

Essa experiência foi também importante para minha atuação como contador de<br />

histórias e pesquisador da cultura oral afro-brasileira e africana.<br />

Nos últimos anos, graças aos movimentos organizados e, sobretudo, depois da<br />

lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura africanas e<br />

afro-brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio, público e particular, a<br />

literatura de raízes negras, nem sempre valorizada anteriormente, tem sido destaque<br />

em nosso panorama editorial.<br />

Também, pudera! Nós, brasileiros, somos frutos da união entre diversos povos e<br />

crescemos convivendo com uma rica pluralidade de culturas.<br />

Os versos da canção de um violeiro das barrancas do Rio São Francisco, em Minas<br />

Gerais, resumem a questão:<br />

31


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

32<br />

Sou índio, sou branco, sou negro.<br />

Eu sou brasileiro.<br />

Portanto, as diferenças culturais devem ser reconhecidas e, não, ignoradas, ou<br />

alvo de discriminação.<br />

O negro brasileiro, cujos ancestrais foram trazidos a ferro e fogo do continente<br />

africano, amontoados nos porões dos navios tumbeiros, trouxeram com eles um de<br />

seus bens mais preciosos, que ninguém lhes tiraria: as suas histórias.<br />

E nesse “baú fabuloso” vieram os contos, lendas e fábulas transmitidas de pais<br />

para filhos, há várias gerações.<br />

Um dos aspectos mais relevantes da cultura oral africana talvez seja a maneira<br />

como os contadores interpretam as histórias usando apenas o corpo, os gestos e a voz<br />

para cativar os ouvintes. Esses mestres da palavra, verdadeiras “bibliotecas vivas”, que<br />

mantêm um elo entre o presente e o passado, persistem até hoje.<br />

A presença de personagens negras contadoras de histórias é marcante na obra<br />

de vários escritores brasileiros. José Lins do Rego em Menino de engenho, descreve em<br />

detalhes uma delas, que nunca se apagou de sua memória:<br />

A velha Totonha de quando em vez batia no engenho. E era um acontecimento para a meninada.<br />

Ela vivia de contar histórias... Que talento ela possuía para contar suas histórias, com<br />

um jeito admirável de falar em nome de todos os personagens! Sem nem um dente na boca, e<br />

com uma voz que dava todos os tons às palavras.... A velha Totonha era uma grande artista<br />

para dramatizar.... Tinha uma memória de prodígio”<br />

Já Viriato Corrêa, em Cazuza, evoca outra dessas contadoras geniais:<br />

Vovó Candinha é outra figura que nunca se apagou de minha recordação.... É que ninguém<br />

no mundo contava melhor histórias de fadas do que ela. Devia ter seus setenta anos: rija,<br />

gorda, preta, bem preta e a cabeça branca como algodão em pasta... Não sei se é impressão<br />

de meninice, mas a verdade é que, até hoje, não encontrei ninguém que tivesse mais jeito<br />

para contar histórias infantis...<br />

Monteiro Lobato, em Histórias de Tia Nastácia, emprega a voz de Pedrinho para<br />

exaltar uma de suas personagens mais conhecidas e que tem sido alvo de tantas<br />

polêmicas e releituras:


... Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando de um para outro, ela deve<br />

saber.... – As negras velhas – disse Pedrinho – são sempre muito sabidas. Mamãe conta de<br />

uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas... Todas as noites ela sentavase<br />

na varanda e desfiava histórias e mais histórias. Quem sabe se Tia Nastácia não é uma<br />

segunda tia Esmeréria<br />

Já em O Saci, Tio Barnabé, outra das inúmeras criações de Monteiro Lobato, é o<br />

típico Pai João: “Negro de mais de 80 anos, descalço...”<br />

Embora estereotipado, ele é o grande conhecedor dos segredos da mata que<br />

envolve o sítio do Picapau Amarelo. A sua longevidade, no melhor estilo africano, é<br />

a fonte de sua sabedoria. É a ele que Pedrinho vai recorrer quando quer saber se Saci<br />

existe mesmo: “– Como não hei de saber tudo, menino, se já tenho mais de 80 anos Quem muito<br />

veve, muito sabe...”<br />

Contadores e contadoras de histórias tradicionais ainda são encontrados, principalmente<br />

em comunidades afastadas dos grandes centros urbanos. Em 2008, em<br />

minhas andanças pelo Brasil, tive a oportunidade de entrevistar uma senhora negra<br />

de 93 anos na ilha de Itaparica, Bahia, dona de memória invejável, que me contou<br />

histórias do seu tempo de criança, cantando e imitando as vozes de diferentes personagens<br />

de uma forma emocionante.<br />

Nossas histórias, danças, canções e saberes tradicionais têm uma grande influência<br />

da Mãe-África. Nesse aspecto, os livros destinados aos mais jovens têm um papel<br />

fundamental: o de contribuir para que a criança sinta-se orgulhosa de pertencer a<br />

uma cultura, seja ela qual for, e de aprender a respeitar às diferenças, contribuições e<br />

valores de sua própria comunidade e também de outros povos.<br />

A valorização passa pelo reconhecimento. As palavras e as ilustrações de um livro<br />

são como um espelho. E se a pessoa não vê a sua imagem refletida, pode se sentir<br />

desinteressada e desmotivada. A sua autoestima é afetada.<br />

Aos autores de livros para crianças e jovens, aos contadores de histórias e aos<br />

educadores cabe preservar, valorizar e divulgar as tradições orais. As histórias são<br />

importante fator de enriquecimento e afirmação de identidade social, especialmente<br />

em um país plural como o nosso.<br />

Rogério Andrade Barbosa<br />

33


E não se esqueçam: as histórias foram feitas para serem contadas e recontadas.<br />

Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Cazuza. Viriato Corrêa. Companhia Editora Nacional, 1976.<br />

u Histórias de Tia Nastácia. Monteiro Lobato. Brasiliense, 1947.<br />

u Viagem ao céu e O Saci. Monteiro Lobato. Brasiliense, 1960.<br />

u Menino de engenho. José Lins do Rego. José Olympio, 1960.<br />

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DeusNumDé:<br />

dom da visão<br />

o


[Edmilson Santini]<br />

Eis que a cadência da roda, no compasso da ciranda, dava o tom de todas as vozes,<br />

que em coro cantavam: “Até pro ano, se eu vivo for”. Era o encerramento do Circuito<br />

Estadual das Artes, realizado numa das praças da cidade de Caxias-RJ. Fazendo jus à<br />

tradição que, desde séculos aos dias atuais, acompanha a trajetória de artistas populares,<br />

em praças, ruas... o chapéu logo é mostrado... Feito pedra de anel, de mão em mão é<br />

passado, quando vê, está enriquecido em notas e moedas. O que não significa que ali<br />

está a paga pela função apresentada ao respeitável público. No andar das contações de<br />

histórias – vozes das praças – rodar o chapéu, no desfecho de cada função, é hábito que<br />

se mantém mais como um complemento brincante, eu diria. Dito isso, a presença de<br />

espírito, em carne, osso e voz, do contador de história, perante a sociedade atual (loucamente<br />

urbanizada, até certo ponto) se dá como proposta de lazer, educação, cultura...<br />

aos ouvidos de um público volante (sempre passando), personagem carente de um pouco<br />

de poesia nos fins-de-tarde-cair-da-noite de seus dias, em grande parte estressantes.<br />

Caía de vez a noite sobre o viaduto, quando os participantes do recém-encerrado<br />

espetáculo foram deixando a Praça, cada qual pegando seus adereços de cena e<br />

rumando em destino ao Lar, Doce Lar. Eu, apesar de já ter tomado parte em inúmeras<br />

apresentações de rua, com semelhante dimensão humana povoando a roda, vi ali um<br />

dos mais iluminados Pontos de Encontro Marcado com a Poética do Circo, por meio<br />

dos Pernas-de-Pau, que encenavam Ditos Populares, do Homem que fazia fogo jorrar<br />

por sua Boca de Palhaço... Enfim, tantas foram as provas do Poder Poético nas Vozes<br />

e Voos daquela Praça que, ao sair de lá, no intento de ir também pra casa, no meio<br />

37


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

38<br />

do caminho dei com Outra Praça, e dá-lhe gente em volta de uma figura que cantava,<br />

ao meu ver, de forma encantadora. Eu poderia muito bem fazer “ouvidos-de-tô-compressa”,<br />

passar, literalmente, ao largo da dita praça, mas, em vez disso, me vi atraído<br />

de tal maneira pelo entoo da Cantiga (era uma Cantiga de Roda em tom de peditório,<br />

acreditem), que pra lá fui levado a correr.<br />

Quando me dei conta, estava de cabeça, juízo e tudo, enfiado no meio daquela<br />

plateia que, mesmo compacta, me parecia uma imensidão humana, tamanha a simbologia<br />

do acontecido no meio daquele círculo de expressões atentas: Um Cego-Trovador.<br />

No impulso de quem tem a vivência de “rodar o chapéu, a cada função, perante o<br />

respeitável público (no meu caso, rodo sempre o Folheto de Literatura de Cordel), fiz<br />

zunir uma moeda no ar, que tilintou no miolo de um chapéu, que figurava no Centro<br />

da Roda. No boca a boca de todos ali presentes, ouvi um “Viva! Viva a moeda da<br />

sorte, que de longe acertou a boca do ganha-pão...”. Num gesto-meio-passe-de-mágica,<br />

o cego fez calar o vozerio e suspendeu a cantoria. Cada um ali em volta fazia vez de<br />

quem tinha uma história pra contar. Vendo no Cego uma História Viva em Pessoa,<br />

não hesitei em dimensionar a importância do que ali chamei – lá entre meus botões<br />

e pensamento – Teatro de Circunstância: aconteceu, virou diálogo. E um diálogo<br />

comecei – meio prosa, meio verso –, perguntando como o Cego se chamava:<br />

“Deusnumdé”! Respondeu ele. “Deus num quê”! Saiu a exclamação, num coro<br />

de muitas vozes. “Deus num deu olhos pra ver, mas deu o dom da visão”. O Cego<br />

assim respondeu, em tom de improvisação. Em torno ouviu-se o estalar de mãos,<br />

como se a praça inteira o aplaudisse de pé. No Centro da Roda – boca para o céu virada<br />

– o chapéu num instante havia multiplicado os valores. Levado por certo encantamento,<br />

no Cego quase me encostei. Olhando em seus olhos, vi que o Cego “me via<br />

por dentro”. Situação de um sonho enriquecedor, da qual eu dou testemunho: ele era<br />

eu, eu era ele e a Roda já era Outra. Um Mar de Encantaria fez vulto em meu pensamento.<br />

E na Cadência do Verso de DeusNumDé tive a prova: o danado do Cego em<br />

seu Universo Popular, nos abre os olhos para o lugar que ocupa, muitas vezes invisível,<br />

nesta Ciranda de Histórias, no dia a dia a rodar...


Por meio do inconsciente – ciente do encanto ali vivido – me vi inteiro tomado pelo<br />

zumbir sem fronteira da Tradição Oral. Logo, em vez de servir de guia, me vi guiado pela<br />

voz de DeusNumDé, numa Viagem, eu diria, de Retorno ao Mundo do Maravilhoso.<br />

Bem, na real, mesmo, àquela hora, encerrado o espetáculo acima citado, eu me<br />

encaminhei foi direto pra casa, como o mais comum dos mortais. Foi assim que<br />

me vi na Concreta Travessia da Avenida Brasil, à mercê de um trânsito emperrado,<br />

repleto de arruídos, que meu pensamento voou, ligando o itinerário da Via Expressa<br />

ao imaginário poético-viajante do Cego DeusNumDé. Estou ciente de que meu testemunho,<br />

a essa altura, vai tomando ares de metáfora errante, mas foi por meio dessa<br />

errância que eu pude ver, em tempo real, por irreal que pareça, a entrada de Deus-<br />

NumDé, agora, na Praça do Reino Encantado: Lugar dos Contos Populares. Lá vi<br />

DeusNumDé ser recebido ao som do Canto e Dança do Pastoril, Boi da Ressurreição,<br />

Maracatu do Baque Virado, com baque solto na festa. Isso me abriu uma Terceira<br />

Visão nos Sentidos, pois logo vi Meu Avô; que era ali um Velho Guardião de Muitas<br />

Vozes, mantendo em constante renovação (narrador de bom guardado), entre outras,<br />

as Histórias de Exemplos e Trancoso. Com DeusNumDé bem à vista, vi Meu Avô<br />

trancando e abrindo as feições, lá de seu rosto – sorrindo ou enfezado – conforme<br />

pedia o clima da história que estava contando, à beira do fogo, na Praça do Reino.<br />

Velho narrador de ontem, como hoje, desempenhando seu papel sagrado.<br />

A essa altura da viagem (concreta e imaginária) me ocorre dizer que, nos dias de<br />

hoje, o contador de histórias, seja sua atuação por meio do verso ou da prosa, é um ser<br />

essencial a uma sociedade que se vê necessitada em “dar um tempo ao tempo da poesia”.<br />

Cruzando, enfim, um Terceiro Sinal Verde, antes de chegar em casa, vi Deus-<br />

NumDé já transitando entre a Praça do Reino e a Praça da Pedra Medieval.<br />

Assim que entrei em casa, liguei a televisão, direto no programa Narradores do<br />

Tempo – Canal da Voz do Futuro. Quem eu vejo aparecer DeusNumDé, lá desafiando<br />

Homero. Não estando eu maluco – assim espero –, juro que isso eu vi suceder.<br />

Coisa do mundo da tevê.<br />

Partindo de um plano que se fechava nos dois, a tevê foi revelando uma grande<br />

Edmilson Santini<br />

39


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

40<br />

arena, onde se viam de gente antiga a modernosa... Ambiente de Encontro Celebrativo.<br />

De repente, em plano médio, eu vi e reconheci: um Médium, ao seu lado uma<br />

Alma Viva do Teatro. Se não me falha a imagem, o Espírito Dionísius também vi. Vi<br />

um Poeta mais atrás, só pela rima do olhar. Olha quantos entes da Criação Humana...<br />

Logo ao lado vi um senhor que tinha pinta de palhaço. Era uma Praça povoada de<br />

Porta-Vozes dos Saberes Populares. Vi a tevê fechar o plano de novo em Homero e<br />

DeusNumDé. A peleja entre ambos alcançava seu clímax. Desenrolando o desfecho,<br />

Homero desfiava lá um fuminho de rolo. A figura de seu rosto agora, do meu ponto<br />

de vista, era, escrito, a de meu Avô.<br />

Tevê voltou ao plano médio, e o poeta – reconhecido por mim – emendou contando<br />

um Conto dos Dias de Hoje. Aí eu tive a certeza: espaço de contador de história é<br />

espaço de precisão: vai onde é preciso ir. Nesse preciso momento, o cansaço se insinuando,<br />

me dominou as pestanas, meus olhos foram deixando os Narradores no Ar...<br />

Dia seguinte, as tantas vozes de um homem davam vez ao Teatro De Bonecos:<br />

Era o início do Festival Nacional de Teatro, nas Ruas de Angra dos Reis, onde a Cia.<br />

Chegança, do Maranhão foi chegando, já cantou pra guarnicê; e em pé sobre seu<br />

Banquinho, entre ruas e sinais, vestido só de jornais, Dalmo Saraiva fazia vez de “O<br />

Homem De Papel: Coberto de Notícia, sem Ler um Terço da Missa”. Num rito de<br />

itinerância, prossegui ouvindo e vendo, entre tantas semelhanças de fala, as diferenças<br />

na prosódia, nos sotaques... Seguindo minha abordagem, dei com a performance<br />

da “Mulher Que Roda e Cai”. Entre a Mulher e o Cais, outras histórias ouvi. À Beira<br />

do Mar de Angra, portanto a Praça do Porto, foi bonito de se ver: a Poética de Cordel<br />

(Teatro de Precisão, Indo Onde é Preciso Ir, como eu já disse) fez a Ponte entre o Narrado,<br />

o Vivido e o Cantado.<br />

No rastro desse convívio da arte de contar-encenar com outras artes afins, dei<br />

uma espichada de pernas, fui a becos e recantos, – que pareciam invisíveis aos olhos<br />

programação oficial –, até me achar num picadeiro, bem na frente da igreja. Pensei:<br />

Profano e Sagrado, numa alegre interação: Circo inteiro e ativo, compartilhando<br />

acrobacias com as preces do sacristão. Mal pensei, fui avistando, lá noutra esquina


um caboclo. Vi logo que era cria do lugar: um pescador de palavras. Sua voz estava na<br />

praça, mas apenas sussurrava uma história-para-dois. “Quem cochicha, o rabo espicha”.<br />

Pensando assim, espichei o meu pescoço, meti o nariz entre os três (narrador e<br />

seu público de dois): “Sou Seu Cochicha-Língua-Espicha!“ Ele a mim se apresentou.<br />

E continuou contando sua história agora pra três. Pensei nessa modalidade: Públicomicro<br />

em meio à macro-visão de gente. Ideia só dele ou não, foi um jeito encontrado<br />

de ser ouvido com atenção, valorizando, de verdade, cada palavra então falada. É nessas<br />

pequenas grandes nuances, por entre ouvidos e praças, que se percebe: espaço do<br />

contador de histórias nos dias atuais não se mede apenas pelo volume de público à<br />

sua volta, mas também pelo conteúdo e boa qualidade que se imprime em seu contar.<br />

Já em pleno pôr do sol, um céu de plasticidade: Azul, vermelho, amarelo, suavemente<br />

mandou a estrela-guia alumiar a cidade, pro Cortejo das Linguagens. Assim<br />

sendo: Do Homem de Papel ao Mímico, passando pelo Narrador-Para-Três, Mamulengos,<br />

Cirandeiros... Até Mestre Vitalino, com Bonecos de Lampião e Maria Bonita,<br />

acrescentaram pontos diversos na interação de contadores com outras artes. Desse<br />

ponto de partida, ao som de tambores, cantos, danças, contos, etc. – por ruas, praças<br />

e beira-mar o Cortejo circulou. Sendo o Ponto-de-Chegança o mesmo de onde partira:<br />

Frente à igreja: lugar do Circo Armado. Cortejo chegou, fez-se a Roda, rodou-se,<br />

então, o chapéu. Era o mesmo chapéu do começo dessa Jornada de Palavras.<br />

Sem mais o que dizer, peço licença a Guimarães Rosa pra indagar: “Aqui, a<br />

história acabada”. Acaba é nada! A história é dada a se verter, virar outras, conforme<br />

muda de voz ou de lugar. Toda história que se preza ser contada, guarda em si outras<br />

versões. Falando nisso...<br />

Lá Não vi foi DeusNumDé,<br />

mas ele segue no ar,<br />

contando, pra quem quiser<br />

em seu mundo navegar<br />

e contar, como puder,<br />

a história que imaginar.<br />

Edmilson Santini<br />

41


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

Meu Avô também não vi.<br />

Não quis ele aparecer<br />

em Angra, mas eu ouvi,<br />

– caro leitor pode ver, –<br />

suas palavras, dizendo:<br />

“Estou escutando, estou vendo,<br />

em Angra a Ema Gemer”.<br />

Este artigo foi pedido,<br />

pra ser em prosa, eu sei,<br />

mas me vi tão dividido,<br />

que um jeito no fim eu dei.<br />

Assim, versejado eu deixo,<br />

registrado este desfecho<br />

da história que contei.<br />

42<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Grande sertão: veredas. João Guimarães Rosa. Nova Fronteira.<br />

u Cantadores. Leonardo Mota. Itatiaia.<br />

u Zé Limeira, poeta do absurdo. Orlando Tejo. A União.<br />

u Patativa do Assaré, a trajetória de um canto. Luiz Tadeu Feitosa. Escrituras.


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Vozes, corpos e textos<br />

nos vãos da cidade<br />

o


[Júlio Diniz]<br />

Aliberdade, segundo o senso comum, é um direito inalienável de todo ser<br />

humano. Mas a luta para que ela seja valor imprescindível nas relações sociais,<br />

políticas e econômicas é um exercício que se perpetua na contemporaneidade. É<br />

impossível para o (e)leitor de nosso momento histórico conceber a arte submetida<br />

a regimes estéticos, mercadológicos e ideológicos autoritários. A liberdade, além de<br />

ser um segredo, como diz Clarice Lispector, tem uma densidade uma oitava acima de<br />

qualquer tom.<br />

Contar uma história, para mim, é sempre um exercício em liberdade. Não consigo<br />

entender como, diante dos impasses do presente, as narrativas individuais e coletivas<br />

possam ser controladas e/ou orientadas por forças externas a sua fundação como discurso.<br />

Estar diante do outro e falar para o outro do outro que habita em si é o grande<br />

gesto político, artístico e ético que um contador de histórias pode fazer num mundo<br />

de descasos e banalizações.<br />

Há quem ainda acredite e perpetue a ideia de que o autor morreu. Parece que<br />

alguns proto-pós-modernos de plantão não leram bem ou passaram apressadamente os<br />

olhos pelos textos de Foucault e Barthes que discutem essa questão. Como falar de<br />

morte do autor num momento de histeria coletiva diante do conceito de intimidade<br />

e da proliferação das narrativas do eu, das autobiografias e das autoficções<br />

As narrativas urbanas que moldam o corpo textual e sonoro do contador formam<br />

um contínuo e caudaloso rio que contempla margens e penetra territórios que vão da<br />

família à rua, da solidão ao encantamento, da loucura à memória. Infância, paixões, pre-<br />

45


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

46<br />

conceitos, violência, espanto, desejo e dor são tratados em liberdade por vozes que narram<br />

vozes em trânsito, corpos em suspensão, discursos entortados pela potência da vida.<br />

Toda essa discussão nos remete a uma luta contra a liberdade aprisionante do<br />

espaço branco do papel, da imobilidade do corpo como máquina desejante, do silêncio<br />

imposto à voz. Potentes em suas articulações e no diálogo com o contemporâneo,<br />

os contadores de história, diluídos na polifonia urbana, irmanam forças que resultam<br />

num delicado jogo de tensões.<br />

Se o contador se dispuser a embaralhar a ordem de performatização dos textos e<br />

construir a sua própria escolha, encontrará no vão do sentido a possibilidade de exercitar<br />

seus dons de bricoleur. Esse convite à trapaça, à invenção de um outro, tem um<br />

forte aliado nos cenários imagéticos da cidade de nosso tempo. Imagens, textos e vozes<br />

em dialogia e em rotação contínua. A liberdade, antes de tudo, é um jogo de seduções.<br />

Acredito muito na potência da figura e da ação dos contadores diante da amnésia<br />

imposta pelo capitalismo cognitivo para vender a memória como mercadoria. Há nos<br />

contadores que erram pelas cidades um desejo de trazer do subsolo das reminiscências<br />

das ruas, bairros e espaços públicos a força erótica da invenção. São griots e griotes<br />

que resistem na contemporaneidade ao descaso com a história dos afetos e das narrativas<br />

que a liberdade nos provoca.<br />

Como tentar revelar as múltiplas faces da liberdade até agora Como a contação<br />

de histórias pode se transformar no lugar da resistência e de afirmação da precariedade<br />

humana Como os (e)leitores de nosso tempo lidam com a vontade que potencializa<br />

o sim diante do controle e da vigia que os tempos pós-utópícos nos reservam<br />

Muito mais que certezas, estas questões estão impregnadas de desejos e dúvidas. Ler<br />

em liberdade é o dispositivo possível de sua apreensão e entendimento.


c<br />

Muitas vidas,<br />

muitas vozes,<br />

muitas histórias<br />

o


[Júlio Diniz & Morandubetá]<br />

Júlio Diniz – A palavra Morandubetá, o que significa<br />

Morandubetá – É uma palavra Tupi que significa “muitas histórias”.<br />

Júlio Diniz – Como o grupo surgiu Qual é a formação original Houve pessoas que<br />

entraram, ficaram um tempo e saíram<br />

Morandubetá – Em 1989 aconteceu no Rio de Janeiro um curso de contadores<br />

de histórias com o grupo da Venezuela “En Cuentos y Encantos”, formado pela<br />

venezuelana Isabel de los Ríos e o brasileiro Luiz Carlos Neves. Foram convidados<br />

por Eliana Yunes que era Diretora da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro<br />

Infantil e Juvenil, onde trabalhavam também Lúcia Fidalgo, Maraney Freire e Inês<br />

Rocha. As quatro fizeram o curso e foram a semente do futuro grupo, mas ainda<br />

não era o Morandubetá. Nesse meio tempo o Celso Sisto entrou para a FNLIJ,<br />

como especialista da área de literatura, e se juntou ao grupo. Começamos a nos<br />

reunir e contar histórias no Instituto Nazareth, um colégio dirigido por Regina<br />

Yolanda que ficava na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras. Eliana participava da<br />

equipe pedagógica e nos levou para lá. Ali nasceu o Morandubetá. Pouco depois<br />

a Inês foi viver na França. E o grupo ficou composto por Eliana Yunes, Celso<br />

Sisto, Maraney Freire e Lúcia Fidalgo. Então a Maraney saiu e chegou a Benita.<br />

A formação que existe até hoje – Benita Prieto, Celso Sisto, Eliana Yunes e Lúcia<br />

Fidalgo – começou em 1991. E o nome do grupo foi escolhido por causa do livro<br />

Morandubetá, de Heitor Luiz Murat, da Editora Lê, uma colheita de diversas fábulas<br />

indígenas. Quando vimos o nome, falamos quase que ao mesmo tempo: mas<br />

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Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

50<br />

que nome interessante, Morandubetá! Uma palavra diferente. Que remete ao que<br />

a gente quer... Homenagear os povos indígenas.<br />

Júlio Diniz – Iluminar o Brasil pouco iluminado, deixá-lo vazar e brilhar, não é<br />

Morandubetá – Isso! É, tudo nasceu daí e assim! Foi muito... Bonito e mágico!<br />

Júlio Diniz – E aí vocês começaram a fazer o quê em 91/92<br />

Morandubetá – Contávamos no projeto “Meu livro, meu companheiro”, da FNLIJ,<br />

que acontecia no INCA – Instituto Nacional de Câncer, onde foi montada uma<br />

sala com uma biblioteca chamada Bibliolândia, nome escolhido pelos frequentadores.<br />

Nesse momento começamos também a viajar pelo Brasil para formar<br />

contadores pelo Proler.<br />

Júlio Diniz – Qual era o repertório Era só para pacientes, para adultos e crianças<br />

Morandubetá – A sala e o repertório eram voltados para a literatura infantil e<br />

juvenil, mas acabou virando um espaço de convivência de todos, porque nesse<br />

momento também nascia no INCA um grupo de voluntários que estava sendo<br />

formado para trabalhar com as crianças. Daí surgiu a ideia de que, além de contar,<br />

poderíamos ministrar um curso de contador de histórias para esse grupo que teria<br />

a possibilidade de difundir essa ação nas suas atividades. Nós também íamos às<br />

enfermarias para contar, quando o paciente não podia se deslocar.<br />

Júlio Diniz – Podemos dizer que antes dos doutores da alegria chegarem ao Rio de<br />

Janeiro vocês já estavam lá e faziam esse trabalho<br />

Morandubetá – Sim! Com certeza! Nessa época inclusive começamos a pensar em<br />

fazer essa ação num trabalho voluntário, a ideia de contar histórias para os enfermos.<br />

Em 1995 fomos convidados para participar do projeto da Secretaria Municipal<br />

de Cultura Teatro é Vida, que era só com atores. Quando eles perceberam<br />

que já havíamos feito isso no INCA, resolveram nos chamar. Então tivemos a<br />

ideia de criar o projeto voluntário Cesta de Histórias que foi feito com o nosso<br />

dinheiro em seis hospitais da rede pública. Compramos as cestas de vime, doamos<br />

os livros, demos formação de contadores de histórias. Acabamos ganhando<br />

uma Moção de apoio da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro por essa ação.<br />

Foi uma bela surpresa!


Júlio Diniz – Como era ser um contador de histórias no início dos anos 90 Havia<br />

já essa importância Esse lugar Esse reconhecimento Vocês tiveram que respirar<br />

fundo e desbravar essa floresta selvagem<br />

Morandubetá – A narração de histórias é algo milenar, ninguém inaugurou nada.<br />

O que aconteceu refere-se ao surgimento e crescimento da narração urbana, que<br />

efetivamente se reintroduziu na prática social do brasileiro. Começamos muito<br />

timidamente, com muitos cuidados. Nós não saíamos dando oficina por aí,<br />

não. Assumimos que contar histórias fazia parte de um programa de formação<br />

de leitores, que ouvir narrativas organizava a cabeça das pessoas. Então quando<br />

surgiu o Proler – Programa Nacional de Incentivo à Leitura, da Fundação Biblioteca<br />

Nacional, fomos pelo Brasil. O Proler é que disseminou o nosso trabalho,<br />

mas nós somos os pioneiros na contação de histórias numa perspectiva contemporânea.<br />

Fomos também os precursores nessa história de grupos de contadores<br />

de histórias e de uma série de outras coisas: começamos as oficinas de contadores<br />

de histórias, começamos a organizar as sessões de contos como se fosse um espetáculo,<br />

demos os primeiros passos para o aparecimento de encontros de contadores<br />

de histórias, transferimos nossas experiências da prática para livros. E tudo isso<br />

começou numa época em que as pessoas não sabiam direito o que faziam os contadores<br />

de histórias. Em muitos lugares as pessoas achavam que os contadores de<br />

histórias liam histórias para crianças. Também creditamos ao Morandubetá essa<br />

ampliação de público, uma vez que também fomos nós que começamos a gestar<br />

apresentações para um público adulto, exatamente para fugirmos dessa ideia<br />

de que contar história é só para crianças. E podemos dizer, seguramente, que a<br />

experiência com o teatro do Celso e da Benita também abriu as portas para que<br />

outros atores descobrissem a “contação de histórias” como caminho. Abrimos,<br />

inclusive, a possibilidade dos contadores de histórias trabalharem em feiras de<br />

livros (via Bienal do Rio), que depois se espalhou para todo o país. Outra coisa: o<br />

Morandubetá sempre investiu em apresentações de histórias literárias, sendo precursor<br />

dessa prática de levar para a oralidade os textos escritos de vários autores,<br />

quando o comum era as pessoas contarem contos populares!<br />

Júlio Diniz & Morandubetá<br />

51


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

52<br />

Júlio Diniz – De onde vem essa palavra, “contação”<br />

Morandubetá – Essa palavra é do grande contador Gregório Filho. Primeiro ficávamos<br />

cheios de receios de usar, pois a palavra não existia. Mas Gregório nos<br />

convenceu. É melhor falar de um jeito que todo mundo entenda. A língua portuguesa<br />

aguenta tudo isso. Ele define assim contação, ação de contar.<br />

Júlio Diniz – Quando é que vocês deram um salto, ou seja, modificaram um pouco<br />

o trajeto, se profissionalizaram e foram para o teatro Já tive oportunidade de ver<br />

o trabalho de vocês em vários esquemas diferentes. Até no palco do CCBB – Centro<br />

Cultural Banco do Brasil – aqui no Rio<br />

Morandubetá – Fomos evoluindo sem perceber. A gente não tinha um plano.<br />

Ocupávamos os espaços. Houve um fato importante que marcou o início de nossa<br />

trajetória – o trabalho no Museu Histórico Nacional. A revista Veja fez uma matéria<br />

e aí despertamos o interesse do público, da imprensa e dos gestores de cultura.<br />

Passamos a ser chamados para projetos em várias instituições, nós fazíamos tudo<br />

ao mesmo tempo.<br />

Júlio Diniz – A partir daí, o que aconteceu<br />

Morandubetá – Naquele momento veio uma vontade de profissionalização. Decidimos<br />

ter um logotipo, assessoria de imprensa, pensar em ter produtos, virar uma<br />

microempresa. E decidimos sair da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil,<br />

para não parecer que pertencíamos à FNLIJ. Despedimo-nos com uma linda carta<br />

que está lá nos arquivos da Fundação.<br />

Júlio Diniz – A partir das vivências no Proler e no Leia Brasil, vocês formaram contadores<br />

de história, é isso Eu queria que vocês falassem um pouco sobre esse assunto.<br />

Morandubetá – Percebemos que não daríamos conta de tudo, já que o Proler e o<br />

Leia Brasil estavam crescendo por todos os cantos do país. Nessa época também<br />

surge a Casa da Leitura em Laranjeiras que abre espaço para os contadores. A<br />

Casa começa com a gente contando histórias porque ainda não havia a formação<br />

continuada de grupos. Ministramos também cursos na PUC-Rio, Ler UERJ, universidades,<br />

SESC, SESI. Era tanto lugar, uma loucura saudável.<br />

Júlio Diniz – Vou adaptar a frase do Millôr Fernandes que é muito boa para falar


desse aspecto. O Rio de Janeiro estava irreconhecivelmente inteligente naquele<br />

momento. É isso<br />

Morandubetá – É isso mesmo! No início não havia muito público. Tudo acontecia<br />

numa salinha. Levávamos nossos parentes e amigos para encher a sala. Depois o<br />

público foi crescendo, tinha disputa... Tinha senha. Às vezes fazíamos duas sessões<br />

no mesmo espaço. Todo o processo foi muito lindo. Tanto no CCBB quanto<br />

na Casa da Leitura.<br />

Júlio Diniz – Vocês se tornaram multiplicadores e formadores de novos contadores<br />

de história e de grupos, não é mesmo<br />

Morandubetá – Há vários grupos e contadores que são importantes no Brasil hoje<br />

que foram formados por nós. Praticamente deixamos um grupo em cada cidade<br />

por onde passamos. O Morandubetá possibilitou, junto com essas andanças,<br />

junto a esses projetos de que estamos falando, não só formar contadores como<br />

descobrir contadores, porque essa é a nossa missão também.<br />

Júlio Diniz – Agora falem um pouco do repertório.<br />

Morandubetá – A história de repertório é a seguinte. Como as nossas sessões tinham<br />

sempre um tema, precisávamos pesquisar muito. Começamos com literatura infantil,<br />

depois passamos para literatura adulta, dentro da Biblioteca Nacional. A ideia<br />

foi sumamente rejeitada. As críticas eram pesadas. Alguns achavam um absurdo<br />

funcionários ouvindo histórias, fazendo círculo de leitura. Achavam que era loucura<br />

contar histórias para gente que não sabia ler.<br />

Júlio Diniz – O pessoal da limpeza<br />

Morandubetá – É, porque só sobrou o pessoal da limpeza, porque ninguém, funcionário<br />

nenhum queria efetivamente participar. Quando passamos a fazer para o<br />

público em geral, escolhíamos histórias de acordo com a época, segundo o calendário.<br />

Tivemos que literalmente caçar nossas leituras, consultar outras pessoas<br />

e mergulhávamos na biblioteca para ver os acervos. Foi aí que a Lúcia e o Celso<br />

viraram escritores. Na medida em que não encontrávamos um repertório do que<br />

queríamos, tínhamos que criar. Chegamos a ter um repertório de cem contos<br />

cada um de nós. E também nos encontrávamos para estudar. Fazíamos reuniões<br />

Júlio Diniz & Morandubetá<br />

53


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

54<br />

semanais para ensaiar. Toda essa pesquisa nos deu segurança para trabalhar com<br />

a literatura oral e a autoral.<br />

Júlio Diniz – Vocês começaram localmente, depois ganharam uma importância<br />

regional, projeção nacional e agora o desafio é dialogar com grupos no exterior.<br />

Eu gostaria que vocês falassem sobre isso.<br />

Morandubetá – Na verdade já temos um ótimo diálogo com os contadores dos<br />

países de fala hispânica e portuguesa principalmente. Através dos encontros que<br />

participamos desde 1996 com a viagem da Benita para fora do Brasil e dos que<br />

produzimos por aqui desde 1999 construímos uma rede poderosa de ação.<br />

Júlio Diniz – Como é que vocês explicam o fato de estarem há mais de vinte anos<br />

juntos, sem se separarem, sem rachas, discordâncias maiores, essas coisas O que<br />

une essas quatro pessoas de uma forma tão forte, além da amizade<br />

Morandubetá – O compromisso que temos com a promoção da leitura. Isso é um<br />

compromisso de vida. Não contamos por contar.<br />

Júlio Diniz – E o plano de vocês daqui pra frente Tem alguma coisa mais imediata<br />

Fazer um livro, fazer outro espetáculo<br />

Morandubetá – O grupo teve que aprender a trabalhar de forma dividida. Os projetos<br />

individuais foram ganhando espaço também, junto com as atividades do<br />

grupo. E fomos investir na nossa formação profissional, qualificando-nos mais<br />

ainda. Mas o nome do Morandubetá sempre acompanha nossos trabalhos, mesmo<br />

os individuais. Temos muitas coisas a fazer, como divulgar a coleção Histórias<br />

das terras daqui e de lá, da Editora Zeus. A Lúcia fez a coordenação editorial e cada<br />

um de nós escreveu um livro em parceria com um contador estrangeiro. Tentar<br />

que o grupo se reúna duas vezes por ano para contar junto, porque a gente está<br />

muito disperso. Ter o nosso repertório registrado em CDs, pois gravávamos todas<br />

as nossas sessões de histórias, na Casa da Leitura, no início desse trajeto. Temos<br />

um livro pronto com contos indígenas, mas ainda sem editora. E também o No<br />

coração da palavra, que é um livro todo teórico e sobre nossas experiências. Queremos<br />

fazer um livro de contos autorais. Depois de tantos anos na estrada temos<br />

importantes contribuições a dar.


Júlio Diniz – A última pergunta para cada um de vocês. Quais são as expectativas da<br />

contação de histórias<br />

Benita Prieto – Estamos construindo uma bela história. Mas precisamos mapear o<br />

Brasil para ampliar as nossas bases nacionais. E solidificar as relações que mantemos<br />

com outros contadores no mundo construindo uma rede de cooperação que<br />

possibilite cada vez mais a troca de experiências e os intercâmbios. E algo que me<br />

aflige é a renovação. Há extrema necessidade de jovens contadores de histórias,<br />

para que todo esse trabalho não desapareça. Afinal e infelizmente eternas são<br />

somente as histórias.<br />

Celso Sisto – A contação de histórias no Brasil de hoje está bem difundida. Mas<br />

falta mais, falta muito mais. Primeiro é preciso investir enormemente na formação<br />

de grupos. Eu acredito nisso. Contar histórias coletivamente tem uma força<br />

incalculável, e o que a gente vê com mais frequência é o surgimento de contadores<br />

individuais (é mais fácil contar sozinho! ser dono de tudo!). Mas sou a favor dos<br />

grupos, dessa experiência coletiva e socializante, inclusive como maneira de “barrar”<br />

os estrelismos. O que importa é a literatura, o compromisso com as obras de<br />

qualidade. O que assistimos hoje é o que chamo de “pasteurização” da arte de<br />

contar histórias. Explico: o contador de histórias tem que se adequar à história<br />

que ele conta, e não o contrário. A história é quem deve determinar a forma, a<br />

maneira, o estilo requerido por ela, para ser contada, e não o contrário. O que<br />

se vê são contadores de histórias usando as histórias para ressaltarem suas qualidades<br />

artísticas e não “iluminarem” as histórias que contam. Toda e qualquer<br />

habilidade individual deve estar a serviço da história, para engrandecimento da<br />

história que se conta, e não do contador.<br />

Eliana Yunes – A contação de história sempre foi uma fórmula de abertura para<br />

ler o mundo. Pensando assim, como o mundo chega organizado às cabeças das<br />

pessoas, elas não sabem mais quais são as relações com as coisas. Que o mundo<br />

é o mundo da cultura, não é As histórias fizeram esse papel. A oralidade sobrevive<br />

porque ela dá para organizar as sociedades, mesmo quando essas formas são<br />

muito sofisticadas como o caso das formas gregas. Elas prevalecem, permanecem<br />

Júlio Diniz & Morandubetá<br />

55


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

56<br />

porque a oralidade dá a possibilidade de ter um sentido para a compreensão do<br />

mundo e das coisas. Eu acho que a gente pode ter um caminho todo da escrita<br />

digital, da escrita eletrônica, mas ouvir uma história de viva voz, com a respiração<br />

do contador, com o olhar do contador, é algo imbatível porque aproxima as pessoas.<br />

E as pessoas estão na verdade carentes de aproximação, de trocas pessoais.<br />

Penso que precisamos investir não como uma forma de institucionalizar ou de<br />

criar certas cerquinhas, em aspectos como a performática do contador de história,<br />

a questão da voz, do corpo, que não tem que se confundir com o palco, com o<br />

teatro. Como é que a gente transborda, transpira uma história Isso merece um<br />

estudo mais sistemático.<br />

Lúcia Fidalgo – Há um problema hoje com a questão do repertório. A escolha dos<br />

textos tem que ser ampliada porque os contadores infelizmente começaram nessa<br />

onda de cópia, cópia, cópia, usando sempre as mesmas histórias. Devemos nos<br />

preocupar bastante com isso. Estamos numa sociedade da informação. A gente<br />

não tem que ter somente competência informacional para trabalhar com ela.<br />

Eu acho que temos que ter competência informacional e emocional. Creio que<br />

o papel do contador nisso funciona muito bem. Me preocupo muito com essa<br />

questão do repertório, de formar repertórios novos pra gente não ficar repetidor,<br />

como um papagaio. Então, só sendo leitor, não é


Esta conversa com os participantes do grupo Morandubetá ocorreu na Cátedra<br />

UNESCO de Leitura da PUC-Rio. Era uma segunda-feira ensolarada, e a vontade<br />

de compartilhar experiências, relatos, sentimentos e lembranças nos aproximou<br />

naquela manhã de céu azul e luz na alma. Eu desempenhei o difícil e ao mesmo<br />

tempo prazeroso papel de mediador da conversa que contou com a presença de<br />

Benita Prieto, Lúcia Fidalgo e Eliana Yunes. Como o Celso Sisto estava no sul do<br />

Brasil, enviei por e-mail as questões para ele comentar. Suas observações foram<br />

incorporadas a este bate-papo.


Impressões de uma<br />

contadora de histórias<br />

– meu encontro com<br />

a arte narrativa<br />

o


[Bia Bedran]<br />

“Embora<br />

nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias conseguem...”<br />

EAssim a autora Clarissa Pinkola Estés encerra seu livro escrito no início dos anos<br />

1990, O dom da história. Nesta obra ela pretende desvelar a amplitude do alcance das<br />

narrativas orais através dos tempos e seu efeito de longa duração. Os componentes do<br />

mundo mítico associados ao “feitiço libertador dos contos de fadas”, que se destina<br />

a provocar uma sensação de felicidade, e ao acolhimento do conselho, têm a capacidade<br />

de perdurar e coexistir num mundo técnico que corre cada dia mais em busca<br />

do sentido para a vida. E do mesmo modo Walter Benjamin cita os elementos constitutivos<br />

dos contos de fadas: “E se não morreram, vivem até hoje...”.<br />

O estudo acerca do valor de longa duração dos contos oriundos das tradições<br />

orais é tema recorrente na obra de Câmara Cascudo (1898-1986) desde a década de<br />

1930. Especialmente em Literatura oral no Brasil, escrito entre 1945 e 1949, o autor nos<br />

fornece dados relevantes sobre a atmosfera sagrada que envolve a prosa do narrador<br />

e suas situações simbólicas apresentadas. Segundo ele, alguns segredos constituem as<br />

técnicas da narrativa popular:<br />

Os velhos irlandeses têm repugnância de contar estórias de dia porque traz infelicidade.<br />

Os Bassutos africanos crêem que lhes cairá uma cabaça ao nariz ou a mãe do narrador<br />

transformar-se-á numa zebra selvagem. Os Sulcas da Nova Guiné acreditam que seriam<br />

fulminados por um raio. Os Tenas, do Alasca, contam histórias de dia, mas o local deve<br />

estar na mais profunda obscuridade. Essa interdição é a mesma em Portugal e Espanha,<br />

decorrentemente para o continente americano. Quem conta estórias de dia cria rabo de<br />

cotia. (CASCUDO, 1984, p. 228).<br />

59


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

60<br />

De fato, se recorrermos à memória de nossa infância, verificamos que talvez tenha<br />

sido dentro da noite, na penumbra de um quarto, na proximidade aconchegante da<br />

presença de um narrador primeiro, que grande parte das situações simbólicas em<br />

nossas vidas puderam se apresentar. Assim foi o meu encontro com a arte narrativa e<br />

o canto, entremeando o enredo dos contos. Aconteceu muito cedo, na infância ainda<br />

não alfabetizada, quando a forma de ler o mundo se apresentava através das histórias<br />

contadas e cantadas por minha mãe. A exemplo do que Câmara Cascudo mostra ser<br />

o que acontecia no Brasil-Colônia, com as amas contando histórias e acalentando<br />

as suas crianças e as das sinhás, o material que me era passado por minha mãe foi o<br />

meu primeiro “leite intelectual” recebido. O pesquisador trabalha com o conceito de<br />

literatura oral no Brasil e o estudo por ele realizado é uma eterna fonte de inspiração<br />

para meu próprio trabalho criativo. A partir do vasto material de sua pesquisa escrevi<br />

livros infantis com adaptações de temas de contos tradicionais, compus centenas de<br />

canções também para crianças e gravei boa parte desta obra em CDs, por acreditar<br />

que, na ausência de um narrador tradicional, seja possível reinstalar aqueles momentos<br />

mágicos e encantadores por intermédio de suportes contemporâneos.<br />

Penso o quanto aquele rico e descompromissado momento proporcionado por<br />

minha mãe, era recheado de uma memória cultural de sua infância nos anos 1920,<br />

e o quanto esta memória transferiu-se para o meu imaginário, contribuindo para a<br />

construção do potencial imaginativo e criador que tenho hoje comigo. Logo em 1960,<br />

eu então com cinco anos, tive a chance e o privilégio de escutar as maravilhosas narrativas<br />

da Coleção Disquinho criadas por Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha<br />

para os amigos, e o João de Barro, para o mundo artístico. Aquelas encantadoras<br />

narrações de contos populares do Brasil e também clássicos da literatura infantojuvenil<br />

do mundo, eram entremeadas por músicas igualmente belas que pontuavam<br />

os momentos das histórias e as traziam mais oníricas e lúdicas para dentro do coração.<br />

A partir daí, não somente minha infância se enriqueceu e se encantou com a arte<br />

de cantar e contar histórias, como também esta arte sinalizou o caminho profissional<br />

que eu seguiria posteriormente. Prossegui ouvindo e inventando histórias e canções


na minha meninice e, mesmo antes de aprender a escrever, lembro-me de meus pais<br />

registrando poemas e músicas que eu criava e não sabia ainda colocar no papel...<br />

Costumo dizer como se fosse um lema do meu trabalho artístico enquanto criadora<br />

musical e contadora de histórias para crianças, que o ato de ler e escrever histórias é fazer<br />

um bem; ouvi-las e contá-las, também. Assim como repito sempre: Era uma vez, era uma<br />

outra vez, era sempre uma vez. Ou quando canto: É bom cantar, é bom ouvir, é bom pensar, é<br />

bom sentir, procuro demonstrar o quão perto habitam a palavra que se canta e a palavra<br />

que se fala, pois elas desvelam sentidos múltiplos para cada pessoa que as recebe.<br />

Considero o contador de histórias o detentor de uma arte não exclusiva ao mundo<br />

dos artistas profissionais. As narrativas orais sempre estiveram ao lado do homem<br />

e de suas conquistas dentro da arte de viver, então concordaremos que a arte de<br />

narrar faz parte de sua própria história no mundo e traz imbricados os conceitos de<br />

ancestralidade e contemporaneidade. Portanto sempre haverá encantamento quando<br />

alguém conta ou canta uma história, seja esta pessoa letrada ou não. A arte narrativa<br />

se manifesta tanto no contador tradicional, cujas histórias foram criadas e recriadas<br />

ao longo do tempo através da narração de sua experiência e de sua memória, quanto<br />

no contador contemporâneo, que se instrumentaliza através da pesquisa, da leitura<br />

e a insere na prática pedagógica. O professor contador de histórias promove em seu<br />

cotidiano o fazer artístico das crianças, que passam a construir obras criativas a partir<br />

da repercussão que as imagens poéticas das narrativas promovem dentro delas.<br />

Um simples desenho ou uma pintura que transpõe através de formas, cores ou<br />

texturas o que foi percebido de um momento específico narrado do conto, pode tornar-se<br />

uma experiência significativa de aprendizagem, pois ali estão expressas a leitura<br />

particular de cada indivíduo do mesmo fato objetivo da narrativa. A forma plástica<br />

escolhida, pela criança ou pelo adulto, ao desenhar uma narrativa é uma apropriação<br />

sua do significado objetivo do conto e sua consequente tradução subjetiva.<br />

Esta leitura singular de cada um, expressa em desenhos tão diferentes entre si,<br />

nos comprova a existência daquele “cinema mental” proposto por Ítalo Calvino,<br />

que afirma ser impossível que os cenários imaginados pelos ouvintes de uma mesma<br />

Bia Bedran<br />

61


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

62<br />

história possam ser semelhantes... E seguimos na esteira do conceito de Bachelard<br />

acerca da relação íntima da imagem poética com o devaneio, pois o ouvinte de uma<br />

história entra no estado de devaneio ao escutá-la e engendra em sua imaginação criadora<br />

um mundo sonhado, que dialoga com a função do real, ao mesmo tempo que o<br />

liberta dela. A imaginação modifica certos aspectos da narrativa e é capaz de ampliá-los<br />

enquanto os assimila, portanto talvez possamos alçar que o conto ajuda a memória a<br />

lembrar e a imaginação a imaginar...<br />

Quando uma vez me perguntaram numa entrevista porque seria importante para<br />

as crianças entrarem em contato com qualquer forma de expressão da arte, respondi<br />

que preferia inverter a questão e dizer que é a arte que nos proporciona entradas no<br />

mundo. A arte nos dá um olhar diferenciado ao que se nos apresenta em bombardeio<br />

diário pelos meios de comunicação. Ela nos propicia um olhar crítico para esse mundo<br />

moderno impregnado das necessidades fabricadas pela sociedade de consumo e<br />

distantes das necessidades essenciais do indivíduo.<br />

Eu diria que a arte de contar histórias se faz hoje mais do que nunca necessária<br />

exatamente porque quando ela se dá, seja num contexto pedagógico, numa roda<br />

informal de contos ou mesmo no contexto do que chamamos de indústria do espetáculo,<br />

o maravilhoso se instala. O maravilhoso contém elementos e valores ancestrais<br />

que vêm caminhando ao lado da existência humana em suas mais diversas culturas e<br />

quando um conto é narrado, as imagens saltam diretamente para a imaginação criadora<br />

do ouvinte, seja ele criança ou adulto. É nesse momento que o indivíduo realiza<br />

sua mais importante operação: a de significar sua relação com o mundo.<br />

Diz Herbert Read que a arte é um contágio, e se transmite como fogo, de espírito<br />

para espírito. Permito-me apropriar de sua colocação e dizer que a arte de contar<br />

histórias é uma transmissão que contagia por ser imanente à capacidade do homem<br />

de intercambiar experiências e produzir sentido para a vida. Quando a criança percebe<br />

que a história contada pelo professor pode continuar nela habitando, repercutindo,<br />

produzindo sentidos, cores, formas, texturas, e até “recriando memória”,<br />

expressão cunhada por Clarissa Pinkola Esthés, ela adquire poder para enfrentar a


difícil tarefa de viver e conviver. A narrativa é dirigida ao olhar do outro, é frontal. O<br />

contador entrega, oferece um texto oral, uma ideia, uma imagem poética, e as pessoas<br />

a recebem como se fosse uma bola que é devolvida com reflexão, expressão e criação.<br />

Os contos da tradição oral vieram através dos tempos instigando os sonhos, colocando<br />

à prova seus personagens diante da vida e da morte, revelando e derrubando<br />

valores, descobrindo mistérios, sortilégios, desventuras, alegrias e esperanças, e nos<br />

falam desta grande experiência compartilhada por todos nós, que é a aventura de viver.<br />

É também compartilhada por Walter Benjamin e Ítalo Calvino a afirmação de que a<br />

característica principal das melhores narrativas é a de evitar explicações psicológicas<br />

para as situações contidas na história. A presença do maravilhoso e o elemento capaz<br />

de surpreender estão incrustados na natureza dos contos tradicionais e são eles que<br />

provocam encantamento e suscitam novas criações. O extraordinário e o miraculoso<br />

são narrados sem que o contexto psicológico seja imposto ao leitor ou ouvinte.<br />

A imagem mais contundente que traduz a força ancestral que têm as narrativas<br />

orais é cunhada por Benjamin:<br />

Uma história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e<br />

reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram<br />

fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças<br />

germinativas”. (BENJAMIN, 1994, p. 204).<br />

Há meio século minha própria história está imbricada com a arte narrativa: num<br />

primeiro e definitivo momento, como ouvinte de uma contadora, cantadeira e encantadora<br />

mãe, e num período seguinte e até hoje, como uma amante das palavras contadas<br />

e cantadas propagadas pela estrada afora. Braguinha criou, na década de 1950, ao<br />

adaptar a história de Chapeuzinho Vermelho de Charles Perrault em música e versos:<br />

“Pela estrada afora eu vou bem sozinha levar esses doces para a vovozinha...”. E desde<br />

então eu sigo cantando e contando.<br />

Mas eu não estou sozinha nesta estrada, onde as histórias são vaga-lumes que<br />

sina-lizam com poesia, mistério e sabedoria os caminhos de todas as gentes e contam,<br />

desde sempre, a história de nossa história no mundo. Muitos escritores, poetas, filóso-<br />

Bia Bedran<br />

63


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

64<br />

fos, teóricos e artistas populares me ajudam a pensar o valor desta antiga arte milenar,<br />

onde a palavra é indicadora de rumos passados, presentes e futuros, são unânimes em<br />

relacionar a arte narrativa com a arte de viver. E todos eles precisam dos contadores de<br />

histórias e dos cantadores para que a palavra se dirija alma adentro e possa repercutir<br />

profundamente na forma de imagem poética. Letrados e não letrados leem o mundo e<br />

contam suas histórias. É preciso contá-las para que o mundo possa ouvi-las. Onde desaparece<br />

a arte de narrar, também desaparece o dom de ouvir, já dizia Benjamin:<br />

A narrativa mergulha a coisa na vida no narrador para em seguida retirá-la dele. Assim<br />

se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do barro.<br />

(BENJAMIN, 1994, p. 205)<br />

Aí está a relevância das narrativas orais que se mantiveram vivas e germinativas<br />

antes mesmo dos suportes que as pudessem registrar: a narrativa é uma forma artesanal<br />

de comunicação que se prolonga e repercute, ao contrário da informação que<br />

se esgota rapidamente. As narrativas estão imbricadas com a arte de viver. Portanto a<br />

arte de narrar e o dom de ouvir se entrelaçam para que a maior aventura do homem<br />

possa acontecer.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u A poética do devaneio. Gastón Bachelard. Martins Fontes, 2006.<br />

u Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.<br />

Walter Benjamin. Brasiliense, 1994. (obras escolhidas I)<br />

u Memória e sociedade – Lembrança de velhos. Ecléa Bosi. Cia. Das Letras, 1994.<br />

u A arte de contar histórias no século XXI: tradição e ciberespaço. Cléo Busatto.<br />

Vozes, 2007.<br />

u Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Ítalo Calvino. Companhia<br />

das Letras, 1990.<br />

u Literatura oral no Brasil. Luis da Câmara Cascudo. Universidade de São Paulo, 1984.


u O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Clarissa Pinkola Estés.<br />

Rocco, 1998.<br />

u A renovação do conto. Emergência de uma prática oral. Maria de Lourdes<br />

Patrini. Cortez, 2005.<br />

u A redenção do robô: meu encontro com a educação através da arte. Herbert<br />

Read. Summus, 1986.<br />

Bia Bedran<br />

65


A terceira margem da cena<br />

o


[José Mauro Brant]<br />

A voz é querer dizer e vontade de existência.<br />

Zumthor.<br />

Hoje, o interesse do teatro contemporâneo pela encenação de textos literários<br />

sem transposição de gênero é crescente. A ideia de fazer viver no palco o texto narrativo<br />

sem adaptações teatrais fez ressurgir na cena contemporânea a presença do atornarrador,<br />

O Ator Rapsodo. O titulo aqui alude à própria gênese do ator, a figura dos<br />

poetas rapsodos, contadores de histórias da Grécia antiga, detentores da poesia oral que<br />

estiveram em cena em vários momentos históricos do teatro. Neste teatro “narrativo”<br />

o Ator Rapsodo preserva a voz autoral, sendo o responsável direto pela comunicação.<br />

Ele quebra a quarta parede e se projeta do espaço dramático; se distanciando da obra<br />

e encontrando o público e, desse espaço de cumplicidade, ele pode narrar, comentar,<br />

descrever e até viver os personagens da obra que está encenando.<br />

O diretor Aderbal Freire filho, um dos grandes praticantes desse gênero e criador<br />

do Romance em cena define: “(...) o ator rapsodo é títere e titeriteiro. Ele representa em<br />

primeira pessoa mas narra em terceira. Se no cinema o ator faz e a câmera mostra, no<br />

‘romance em cena’ o ator faz e mostra.” O trânsito livre entre o narrado e o vivido<br />

cria um jogo franco com o público, sem ilusões, resultando numa teatralidade viva e<br />

instigante na qual o espectador é convocado como leitor, embarcando num exercício<br />

criativo de imaginação onde ele completa as imagens e os sentidos do texto.<br />

Mesmo dispondo das mesmas ferramentas e oferecendo ao público um mesmo<br />

exercício de recepção, o ator rapsodo parece distante do que hoje chamamos de Contador<br />

de Histórias – na realidade, os pontos de partida de ambos são diferentes. O<br />

Ator Rapsodo tem os pés fincados no palco e, da cena, abre uma janela pra vida real,<br />

67


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

68<br />

interagindo com o público. Apesar de se alimentar da linguagem do seu ancestral em<br />

comum, o ator rapsodo hoje costuma ser apenas uma importante peça de uma engrenagem<br />

na qual o grande contador de histórias é o próprio encenador. O Contador de<br />

Histórias, por sua vez, tem os pés na vida, e dali, do mesmo lugar que o público, abre<br />

uma janela pra fantasia.<br />

A faculdade de contar histórias é um dom de todos os seres humanos e os atores<br />

hoje são minoria no mundo dos narradores. Os contadores de histórias contemporâneos<br />

são escritores, educadores, leitores, pesquisadores, promotores de leitura e também<br />

atores, são indivíduos que possuem em comum um “impulso rapsódico”. Mais<br />

do que intérprete de um texto narrativo, o contador é também uma autoridade sobre<br />

o que está contando. Seu repertório é resultado de uma experiência individual com a<br />

literatura, com o seu universo mais íntimo de significações, com sua história de amor<br />

com a linguagem; ele tem o dom de trazer para a voz a palavra autoral por meio de<br />

um processo de apropriação que faz seu texto se transformar em oralidade. A questão<br />

que se coloca, a partir daí, é: seria essa prática, que é de todos, uma linguagem cênica<br />

Polêmico narrador e teórico das artes cênicas, o cubano, radicado na Espanha,<br />

Francisco Garzon Céspedes, cunhou o termo: narração oral cênica para designar a<br />

prática dos contadores de histórias do nosso tempo. No seu livro El arte escénico de<br />

contar cuentos [A arte cênica da contação de histórias] ele afirma: a arte de contar oral e<br />

cenicamente é uma arte cênica. Mas para Céspedes dizer cena não é dizer teatro, e é na<br />

oposição: teatro versus narração de histórias, que ele busca os paradigmas que vão<br />

apontar as direções dessa nova linguagem. “O teatro é ação. A narração oral cênica é<br />

sugestão. (...) O teatro é representação. A narração oral cênica é apresentação.”<br />

Meu mestre Fernando Lébeis dizia: “O ator bota máscaras, o contador de histórias<br />

tira as máscaras.” Diga-me o que contas e te direi quem és! Despido de personagens,<br />

descolado de qualquer “encenação”, o contador de histórias está pronto para, em<br />

qualquer espaço sob as condições mais adversas, fazer acontecer o seu “teatro”.<br />

Oriundo de uma sociedade em que a oralidade tem papel secundário, o contador<br />

de histórias urbano elege seu acervo a partir das muitas possibilidades que sua


história de leituras oferece, textos autorais, poesias, crônicas e também as histórias<br />

da tradição oral que reencontramos nos livros. Afinal ler é sempre escutar uma voz.<br />

Ao escolher um texto para contar o narrador vira dono desta voz. Ele tem o dom de<br />

saber escutar e sentir os movimentos subjacentes ao texto. As leis da cena ajudam<br />

no processo artístico, administrando essas reverberações e as transformando em algo<br />

expressivo. A memória (e não só a memorização) age como cocriadora do texto que<br />

é incorporado pelo narrador. Assim o conto vira carne, sangue, gesto, olhar, escuta,<br />

suor, respiração; ou seja, corpo; e especialmente, voz, sua principal emanação.<br />

Essa conquista se deve à sua capacidade de ver e ouvir a sua audiência e se entregar<br />

para um jogo onde o público não é mero espectador e sim interlocutor, tudo isso sem<br />

perder o fio da história. Sua autoridade cênica é absoluta e vem do seu compromisso<br />

quase sagrado com o texto e com a sua transmissão.<br />

Um dos maiores encenadores e pensadores do teatro contemporâneo, Peter<br />

Brook, conta no livro A Porta Aberta suas experiências observando a prática dos contadores<br />

de histórias tradicionais da Índia, Irã e Afeganistão, que mantém vivos os<br />

mitos ancestrais. Com um misto de alegria e gravidade os velhos narradores não perdem<br />

nunca a relação com seus ouvintes, não para agradá-los, mas para partilhar com<br />

eles as qualidades sagradas do texto. Os grandes narradores nunca perdem o contato<br />

com a grandeza do mito que estão fazendo viver: “Tem um ouvido voltado para o seu<br />

interior e outro para fora.” Assim Brook sintetiza a maior lição dos velhos narradores:<br />

estar em dois mundos ao mesmo tempo.<br />

O narrador artístico sabe transitar por esses dois mundos e sabe também que<br />

ele é responsável por criar um terceiro mundo, imaginário. O espaço de construção<br />

conjunta da história, espaço de comunhão com os indivíduos da plateia onde de fato<br />

toda ação do conto acontece. A terceira margem da cena.<br />

Um dos mais frequentes colaboradores de Peter Brook, o ator japonês Yoshi Oida<br />

(que traz na sua história a prática do gidaiyu, tradicional estilo de narração que tem<br />

seu lugar nas encenações do teatro Kabuqui), conta em um de seus livros que certa vez<br />

um talentoso ator interpretou um gesto que no Kabuqui indica “Olhar para Lua”. Ao<br />

José Mauro Brant<br />

69


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

70<br />

ver o ator apontando com o indicador para o céu, com elegância, todos admiraram<br />

a beleza do seu movimento e o virtuosismo técnico com que ele realizava a tarefa.<br />

Outro ator fez o mesmo gesto; apontou para a lua. O público não percebeu se ele<br />

tinha realizado ou não um movimento elegante; simplesmente viu a lua. O nome do<br />

livro O ator invisível. Sonho contar uma história em que eu, ao final, desapareça e só<br />

reste, para o público, as imagens do conto.<br />

Foi a paixão por essa generosa arte de fazer visível o invisível e meu amor pela palavra<br />

dita, cantada, escrita que me fez ser contador de histórias. Contar histórias libertou<br />

a minha voz das armadilhas do teatro e hoje ela está por aí, em bibliotecas, salas<br />

de aula, hospitais, livros, CDs, e, é claro, e sempre, no meu lugar de origem, o palco.<br />

Sonho com um teatro que volte a nascer de um impulso rapsódico. Do desejo de contar.<br />

Contar histórias, pra mim, é sentir na pele a verdadeira função do oficio do ator.<br />

É tocar a essência do próprio teatro.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u A porta aberta. Peter Brook. Civilização Brasileira, 2008.<br />

u Contadores de Histórias: Oralidade, Narração Oral e Narração oral cênica. Francisco<br />

Garzón Céspedes. In: O teatro dito infantil. Maria Helena Kühner (Org.). Cultura<br />

em Movimento, 2003.<br />

u O ator invisível. Yoshi Oida. Via Lettera, 2007.<br />

u Introdução à poesia oral. Paul Zumthor. UFMG, 2010.<br />

u Performance, recepção, leitura. Paul Zumthor. Cosac Naify, 2007.<br />

u Do livro para o palco: formas de interação entre o épico literário e o teatral. Luiz Arthur<br />

Nunes. In: O Percevejo – Revista de teatro, crítica e estética. Ano 8, Número 9.<br />

u O lugar das histórias(vídeo) In: Coleção Teatro. Volume 1. Fundação Joaquim Nabuco,<br />

2010.


A voz quente do<br />

coração do rádio<br />

o


[Gilka Girardello]<br />

Com a novela de rádio aprendemos a ansiar pela continuação de uma história:<br />

para muitas gerações de brasileiros, a radionovela foi a primeira Scherazade.<br />

Na minha vida, por exemplo, o primeiro rádio foi um Telefunken grandão,<br />

encaixado num móvel de madeira de um estilo que naqueles anos 1960 chamávamos<br />

de moderno. Esse móvel era o centro da sala do nosso apartamento em Porto Alegre:<br />

tinha toca-discos, um nicho espelhado para guardar bebidas… e o rádio.<br />

Depois do almoço, lavada a louça, minha mãe sentava conosco no tapete junto ao<br />

rádio – éramos quatro crianças – e amontoados escutávamos os acordes de abertura<br />

da novela. O rádio era quente, e quentes eram as vozes da mocinha, do galã, da vilã.<br />

Choros, soluços, suspiros, sussurros, batidas de portas, passos pelo chão, acordes de<br />

violino e sustos de tambor: como era quente tudo o que ouvíamos com o ouvido<br />

colado numa novela de rádio!<br />

De onde vinha aquele calor todo – fico pensando. Um pouco vinha das válvulas<br />

aquecidas do corpo físico do radião, claro. Outro pouco do aconchego das famílias<br />

que se embolavam em colo, café e cafuné na moleza das tardes daquele tempo mais<br />

lento. Mas muito vinha mesmo de uma linguagem íntima, de vozes que falavam coladas<br />

no microfone, a ouvidos que as escutavam colados na tela palpitante do rádio.<br />

Essa intimidade tinha a ver também com o espaço doméstico: não havia cenas<br />

externas nas radionovelas daquele tempo. O vento e os ruídos da cidade certamente<br />

atrapalhariam gravações de rua, e além disso os enredos em si eram intimistas: segredos<br />

atrás da porta, confissões no leito de morte, cartas encontradas em gavetas, promessas<br />

e maldições ao pé do ouvido.<br />

73


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

74<br />

Anos depois, já quase mocinha, ganhei um rádio de pilha de aniversário. Ia<br />

dormir com ele grudado no ouvido, o volume no mínimo e ainda por cima abafado<br />

pelo cobertor, pra não incomodar as irmãs nas camas ao lado. Caçava as vozes dos<br />

locutores dos primeiros programas de rock, ainda marginais naqueles tempos, pressentindo<br />

as emoções que a cultura dos jovens guardava pra quem a fosse descobrindo.<br />

Era revigorante a possibilidade de buscar e encontrar sozinha aqueles mundos, ao<br />

sabor das excursões pelo dial. Intuir que milhares de outras meninas e meninos da<br />

minha idade estavam ao mesmo tempo sozinhos em seus quartos, de ouvido nos<br />

radinhos, escutando a mesma coisa, dava um arrepio na espinha, como o prenúncio<br />

de uma revolução.<br />

O rádio permite uma intimidade, uma presença tátil, um tipo de conspiração<br />

narrativa entre quem fala e quem ouve. Ele envia pra longe a palavra encarnada e ao<br />

mesmo tempo preserva a proximidade que a voz humana instaura, em sua condição<br />

de corpo vivo. Afinal, “toda voz emana de um corpo, que permanece visível e palpável<br />

enquanto ela é audível”, como diz Paul Zumthor. Por isso, o rádio faz com que cada<br />

um dos milhares de ouvintes se sinta único, capaz de criar um rio de imagens mentais<br />

para acompanhar o fluxo da fala do parceiro, aquele locutor que está no estúdio.<br />

Que o rádio tem grande poder de animar a imaginação, é coisa já dita e redita. Em<br />

uma pesquisa feita há alguns anos com centenas de crianças, por exemplo, pediram que<br />

elas fizessem desenhos a partir de histórias ouvidas no rádio e na televisão. A versão<br />

em rádio estimulou desenhos mais imaginativos: as crianças escolheram uma variedade<br />

maior de conteúdos da história para representar graficamente, e incorporaram mais<br />

conteúdos exteriores à história em seus desenhos 1 .<br />

O apreço pelo rádio fez parte também da vida de um dos pensadores modernos<br />

mais apaixonados pela imaginação e pela narrativa oral, Walter Benjamin. Entre 1929<br />

e 1933, o grande teórico cultural escreveu e apresentou programas semanais de rádio<br />

para crianças, em Berlim e Frankfurt. Nesses programas de vinte minutos, ele contava,<br />

como se estivesse conversando ao pé da lareira, casos como o da destruição de<br />

1. Pesquisa relatada em Patricia Marx Greenfield, Mind and Media: The effects of television, video games, and computers.<br />

Harvard University Press, Cambridge, MA, 1984.


Pompeia pelo Vesúvio, o do terremoto de Lisboa, e muitas anedotas surpreendentes<br />

como esta, que se passa em Nova Orleans, no tempo da Lei Seca:<br />

Dois rapazes negros andam pelo corredor de um trem que acaba de parar, escondendo sob a<br />

roupa frascos de diferentes formatos, onde se lê em letras graúdas: “chá gelado”. Um viajante<br />

faz sinal a um dos vendedores e compra um dos frascos, pelo preço de um terno, escondendoo<br />

em seguida. Outro faz a mesma coisa, depois mais dez, vinte ou cinquenta. “Senhoras e<br />

senhores”, imploram os rapazes, “esperem que o trem volte a andar antes de beberem seu<br />

chá”. Todos piscam o olho em cumplicidade... O apito soa, o trem parte, e os passageiros<br />

levam os frascos aos lábios. Mas o desapontamento logo nubla seus rostos, pois o que estão<br />

bebendo é mesmo chá gelado 2 .<br />

Nem a TV nem a internet acabaram com o rádio, que se acomodou à primeira e<br />

se acoplou à segunda, passando hoje muito bem, obrigado. No Brasil inteiro existem<br />

hoje rádios nas escolas e comunidades, rádios de curto e longo alcance, rádios feitas<br />

por crianças, por jovens, por velhos, rádios que falam todas as línguas que se fala no<br />

Brasil, muito além do português. Tanto existem emissoras interativas on-line, quanto<br />

emissoras captadas pela antena do radinho de pilha que o pedreiro escuta na obra, a<br />

professora enquanto corrige provas em casa, e o motorista, no táxi.<br />

Nem só de música, esporte e notícias se faz a programação dessas rádios. Em<br />

muitos projetos, nas grandes cidades e vilarejos do interior, as vozes no rádio contam<br />

histórias de vida, contos, poemas, fazem teatro com a textura da voz, experimentam<br />

linguagens e temas contemporâneos. As histórias que o rádio conta abastecem de<br />

emoções, arte e companhia os dias e noites das mulheres e dos homens em seus<br />

momentos de intimidade ou solidão, falam aos românticos, aos visionários, e a todos<br />

os que simplesmente buscam sintonizar seus semelhantes. O coração quente do rádio,<br />

nos cantos das casas brasileiras, aquece o cotidiano de milhões, e é um dos nossos<br />

grandes e nem sempre reconhecidos parceiros na aventura de povoar o cotidiano com<br />

histórias contadas, e portanto com mais sentido na vida.<br />

Gilka Girardello<br />

75<br />

2 Em MEHLMAN, Jeffrey: Walter Benjamin for children: an essay on his radio years. Chicago: University of Chicago<br />

Press, 1984, p. 8.


Leituras Inspiradoras<br />

Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

u Voz, presença, imaginação: a narração de histórias para crianças pequenas. Gilka<br />

Girardello. In: Infância: imaginação e educação em debate. Celdon Fritzen e Gladir<br />

Cabral. Papirus, 2007.<br />

u Teorias do Rádio – Textos e Contextos. Eduardo Meditsch (org.). Insular, 2005.<br />

u O corpo tornado voz: a experiência pedagógica da peça radiofônica. Mirna<br />

Spritzer. Tese de doutorado em educação. UFRGS, 2005.<br />

76


Contando na telinha<br />

o


[Augusto Pessôa]<br />

Acho que contar histórias é um exercício de intimidade. Uma relação profunda<br />

entre o narrador, a história e o ouvinte. Tendo como elemento principal<br />

a narrativa, o texto que é dito. A contação de histórias não necessita de imagens, de<br />

encenações ou outros subterfúgios. Eles podem até fazer parte do trabalho, mas esses<br />

elementos devem servir ao texto e somente a ele. O grande trabalho do contador é<br />

dizer o texto de forma clara para que ele seja elaborado na imaginação do ouvinte.<br />

Sou contador de histórias há muito tempo. Descobri recentemente que já tenho<br />

18 anos de contação. Pra mim, parece que foi ontem. Mas já vivi várias experiências<br />

interessantes durante esse tempo. Uma realmente interessante é a relação da contação<br />

de histórias com a televisão. É curioso porque supostamente são linguagens que não<br />

combinam: a televisão vive de imagem. Uma imagem que é mostrada. Não há muito<br />

espaço para imaginação. O telespectador precisa ver e acreditar naquilo que é mostrado.<br />

Uma vez li uma entrevista do autor de novelas Silvio de Abreu onde ele dizia<br />

mais ou menos isso: “A realidade não precisa ser real, mas a teledramaturgia sim”. Na<br />

minha opinião essa frase é bastante significativa do trabalho realizado nas emissoras.<br />

Além disso, a televisão também precisa de dinamismo. As imagens não podem ficar<br />

mais de dois minutos no ar. Os cortes são rápidos. As informações aceleradas.<br />

Já a contação de histórias necessita exatamente do contrário. Precisa do tempo,<br />

do olho no olho, da intimidade. As informações são lentas, não precisam ser “reais”<br />

e necessitam da imaginação do ouvinte.<br />

As emissoras de televisão desejam essa intimidade com o telespectador e tentam<br />

colocar dentro do seu formato uma atividade que aparentemente não cabe nele.<br />

79


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

80<br />

Dentro dessas tentativas de aproximação, participei de algumas reuniões com a<br />

intenção de afinar os formatos. Certa vez tivemos uma reunião na Casa da Leitura no<br />

Rio de Janeiro com um diretor e produtores de uma emissora de televisão. Tínhamos<br />

gravado algumas histórias num estúdio e esse trabalho foi apresentado aos senhores<br />

da emissora. Por coincidência, uma história que eu conto até hoje foi a primeira a<br />

ser apresentada: “Uma aposta”. Uma narrativa cheia de lirismo e romance de Artur<br />

Azevedo. A história tem aproximadamente oito minutos o que levou o diretor da<br />

emissora à loucura. O tal senhor ficou extremamente exaltado. Elogiou a história e a<br />

contação (para minha alegria), mas ficou espantado com a duração da história. Disse<br />

que seria impossível realizar o trabalho com narrativas desse tamanho. A discussão<br />

ficou acalorada e o projeto subiu no telhado.<br />

Numa outra tentativa, fomos para um estúdio gravar pilotos de um possível programa<br />

sobre contação de histórias. O diretor pediu para que eu contasse uma história<br />

para crianças. Escolhi “A rã e o boi”, uma deliciosa fábula. Conto essa história<br />

utilizando uma bola de encher, soprando até ela explodir. Por já ter vivido outras<br />

experiências frustradas com o veículo, contei a história de uma forma bem contida<br />

numa tentativa de enquadrá-la no formato televisivo. Não deu certo. O diretor me<br />

perguntou se era assim que eu contava normalmente. Respondi que não. Quando<br />

conto, me movimento muito. Os gestos são largos e grandes. Tentei explicar que, da<br />

forma que faço normalmente, não caberia na telinha. Mas o homem insistiu. E fiz.<br />

Confesso que até exagerei um pouquinho. E, como eu já desconfiava, o diretor ficou<br />

espantado e o projeto subiu no telhado também.<br />

Depois de muitas tentativas, surgiu um convite de uma emissora estatal. Fiquei<br />

mais animado principalmente porque, por ser estatal, a emissora não teria uma grande<br />

preocupação com a parte comercial. Mas foi só ilusão minha. A proposta era gravar<br />

vinte histórias que seriam apresentadas durante o mês de outubro numa homenagem<br />

as crianças. As narrativas teriam no máximo três minutos e uma animação gráfica. Eu<br />

faria a adaptação e a contação das histórias.<br />

E aí, começaram os problemas: como adaptar as narrativas para o tamanho pro-


posto Optei por adaptar histórias curtas e fragmentos de histórias. Entreguei os textos<br />

e eles me pediram para diminuir o tempo para dois minutos. Fiz as novas adaptações<br />

e... pediram para diminuir para um minuto. Um minuto! Agora fui eu que tive<br />

um espanto: Impossível!! Não conseguiria contar uma história em um minuto por<br />

mais curta que ela fosse. Pensei em recusar e apresentei minhas alegações. Para minha<br />

alegria, voltaram aos dois minutos, mas eu tinha que cronometrar as histórias para<br />

que tivessem realmente o tempo exigido. Fiz.<br />

Na época eu estava produzindo um espetáculo teatral baseado no conto popular<br />

“O rei doente do mal de amores”. Como eram vinte histórias e eu estava enrolado<br />

com a produção do espetáculo, pedi para que os textos adaptados fossem colocados<br />

num teleprompter. Eles aceitaram, mas aí veio a surpresa: seriam três câmeras!<br />

Não tenho muito experiência com o veículo. Não sei bem como agir na frente de<br />

uma câmera. Como ator, estou mais acostumado com o teatro. No teatro o gesto é<br />

grande, a voz é empostada e precisa atingir a famosa velhinha surda que está sentada<br />

na última fila. Como contador de histórias, dependendo do público, o processo é<br />

semelhante ao do teatro. Com o diferencial que na contação de histórias o texto é<br />

transmitido exclusivamente para o público.<br />

E ainda tinha o problema das tais três câmeras. O tempo de mudança de uma<br />

câmera para outra não tinha sido cronometrado. Resumindo: todas as adaptações<br />

ultrapassaram o limite de dois minutos. Para meu alívio, eles gostaram do resultado<br />

e não pediram para refazer as adaptações. Mas ainda tinha um problema: o olhar.<br />

Quando você vira de uma câmera para a outra, o seu olho vai antes do que seu<br />

rosto. Já imaginou Nunca tinha pensado nisso! Precisava controlar meu olhar que,<br />

teimoso, insistia em ir antes do meu rosto. E também tinha que imaginar algumas<br />

figuras que seriam colocadas posteriormente pela computação gráfica. Como se eu<br />

interagisse com essas figuras. Foi difícil. Principalmente porque não tinha um único<br />

olhar para aquecer a contação. Somente o frio olho da câmera. Gravei em três dias.<br />

Três manhãs para ser mais preciso. Não podia me mexer muito e tinha que estar com<br />

uma “cara boa”. Essa era a pior parte. Como estava produzindo um espetáculo, tinha<br />

Augusto Pessôa<br />

81


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

82<br />

muito trabalho. Várias vezes o diretor chamou a maquiagem para esconder minhas<br />

olheiras. Realizei o trabalho e fiquei esperando o resultado final com os desenhos da<br />

computação gráfica. Não tinha muita certeza de como ficaria. Vi alguns trechos, mas<br />

não o resultado completo. Sinceramente, desconfiava de que não iria dar certo.<br />

No início de outubro, quando já imaginava que os programas nem iam mais<br />

passar, realizei um trabalho no estado da Bahia, na cidade de Feira de Santana. Um<br />

dia estava no hotel e liguei a televisão. Por uma feliz coincidência o aparelho estava<br />

ligado exatamente na tal emissora e... vi o programa! Era um tipo de trabalho que<br />

eles chamam de “interprograma”. Não tinha um horário certo para passar. Era transmitido<br />

durante a programação, entre os programas fixos. Tive a sorte de ligar e dar<br />

de cara comigo na televisão contando uma história. Lembro da narrativa: João mais<br />

Maria. Era um fragmento do conto popular. Terminada a transmissão a sensação foi<br />

boa. Boa e estranha.<br />

Diferente do que eu desconfiava, o trabalho funcionou. Mas de repente me dei<br />

conta de que o programa seria transmitido para o Brasil todo. Durante um mês eu<br />

entraria, sem pedir licença, na casa das pessoas, para contar uma história. Mas tive<br />

uma satisfação: a história estava ali! Não plena, pois faltava, no momento em que o<br />

trabalho foi gravado, a figura do ouvinte. O espectador viria depois e eu não podia<br />

me relacionar com ele. Mas mesmo assim, de alguma forma, a história alcançou o<br />

seu objetivo. A animação não era excessiva e estava ali para realçar o que era dito. A<br />

estrela continuava a ser a narrativa.<br />

O trabalho, que deveria durar apenas o mês de outubro, foi estendido. Um dia<br />

recebi uma ligação da produção da emissora falando do sucesso do programa e perguntando<br />

se eu me incomodava que ele se estendesse por mais um mês. Aceitei. No<br />

final de novembro nova ligação com pedido para estender o trabalho e assim foi. Os<br />

programas ficaram no ar por quase cinco anos. Por causa de problemas financeiros<br />

(a televisão era estatal, lembra) dos vinte programas, só treze foram finalizados. Mas<br />

foi um sucesso. Mesmo com o fim das transmissões, até hoje sou parado na rua por<br />

desconhecidos que perguntam sobre o programa e quando ele vai retornar. Tive outras


experiências com a telinha contando ou lendo histórias. Mas, com certeza, a mais<br />

bem sucedida até agora foi a dos “interprogramas”. Atribuo esse sucesso às histórias.<br />

Ao poder que essas narrativas exercem e sempre exerceram sobre o ser humano. Independentemente<br />

do formato, a história ainda consegue sobreviver e encantar.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Contos populares do Brasil. Silvio Romero. Itatiaia.<br />

u Contos tradicionais do Brasil. Luis da Câmara Cascudo. Ediouro.<br />

u O folclore no Brasil. Basílio de Magalhães. Imprensa Nacional.<br />

u Guardados do coração – memorial para contadores de histórias. Francisco<br />

Gregório Filho. Amais.<br />

u Literatura oral para a infância e a juventude. Henriqueta Lisboa. Peirópolis.<br />

u Como um romance. Daniel Pennac. Rocco.<br />

u Gramática da fantasia. Gianni Rodari. Summus.<br />

u As raízes históricas do conto maravilhoso. Vladímir Propp. Martins Fontes.<br />

u A arte de ler e contar histórias. Malba Tahan. Conquista.<br />

Augusto Pessôa<br />

83


Cinema: um griot cuja argila é o<br />

tempo e a estátua são os atores na<br />

fogueira da sala escura<br />

o


[Paulo Siqueira]<br />

Meus avós eram da roça e eu passava todos os finais de semana ou férias lá. Me<br />

lembro bem que minha avó realmente acreditava no Saci, assim como as pessoas<br />

da região. Vejam bem, não era um folclore, as pessoas tinham visto, tinham tido ou<br />

conheciam quem tivesse vivido alguma experiência com o Saci. É diferente dos adesivos<br />

em carros do “eu acredito em duendes”. Não era uma questão de atitude, mas<br />

uma realidade próxima. Meu avô nasceu em 1905, ele viu a cerca chegar ao nordeste,<br />

e meus pais, que são de 1934, nasceram num país rural e participaram do processo<br />

de urbanização do país. Hoje temos um Saci domesticado e tratado de forma lúdica,<br />

não poderia ser diferente, vivemos num país moderno, urbano, virtual, digital e globalizado.<br />

Para meus avós a escuridão do campo à noite, o som do vento, das corujas<br />

piando no escuro, os insetos, as formas das árvores sob a lua, tudo isso possibilitava<br />

uma sensação de obscuridade com relação à noite e aos entes que por ela corriam. A<br />

noite urbana é diferente, cheia de luzes, sons de pessoas, carros, música, etc. Mas se<br />

o Saci nos parece uma fantasia distante, por outro lado o E.T. de Varginha existe, ah<br />

existe, sim! Existe porque eu conheço gente que viu o hospital cercado pelos soldados<br />

da aeronáutica e que conhecem as meninas que os viram, lembra o segredo de Fátima,<br />

né Ou seja, tirando à parte a existência ou não desses mitos, a necessidade humana<br />

de vivenciá-los ainda persiste. Graças a Deus! Por isso mantenho meu emprego. Mas<br />

como se diz em física: na natureza nada se cria, nada se perde, o mito se transforma!<br />

Se meu avô contava suas histórias de caçada de onça, se minha avó contava sobre o<br />

cangaço e Sinhô Pereira, ou Neco Valõe, Lampião, Luiz Padre, Corisco... hoje, quan-<br />

85


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

86<br />

do vou às favelas fazer algum documentário, os meninos me contam das histórias<br />

do Caveirão, do Bonde que invadiu tal comunidade, do traficante que enfrentou o<br />

helicóptero Águia da polícia, do Bope, da CORE... Ou seja, persiste a necessidade de<br />

contar e ouvir histórias.<br />

Epa! Aí eu posso ganhar dinheiro! O cinema é hoje um griot universal, a relação<br />

candidato/vaga no vestibular das faculdades de cinema se aproxima das de medicina.<br />

As pessoas querem deixar alguma coisa para o mundo, querem deixar histórias e seus<br />

pensamentos. Se meu avô andava a cavalo, meu pai anda de carro, eu uso a internet.<br />

Se meu avô contava histórias na fogueira com a viola, meu pai lê e vê televisão,<br />

eu uso a internet. Minha geração (tenho 37) ainda foi alfabetizada antes da grande<br />

rede. Vejo minha sobrinha de cinco anos, que nem sabe ler, mas já sabe navegar, e<br />

imagino onde isso vai dar. Quer dizer: fizeram estradas, alguém um dia inventou o<br />

carro, fizeram o projetor de imagens em movimento, alguém inventou o cinema. Taí<br />

a internet... Eu ainda tive a referência rural, minha sobrinha só terá a audiovisual.<br />

A minha relação com o tempo, que já é totalmente diferente da dos meus avós, será<br />

muito mais complexa com minha sobrinha. A velocidade com que minha sobrinha<br />

absorverá informação e portanto a velocidade contra a qual eu tenho que manter<br />

sua atenção, são os fatores X da equação. Para o homem rural, o tempo se apresenta<br />

cíclico, com as colheitas se repetindo, as estações, etc. Para o urbano do século XX,<br />

o tempo industrial-linear, como a linha de montagem de uma fábrica, onde o metal<br />

entra e sofre o processamento, até sair um carro do outro lado (assim foram escritos<br />

os roteiros da grande maioria dos filmes ao longo do século). Pra minha sobrinha<br />

virtual, o tempo digital é elíptico/polifônico, ou seja, ela pode estar pesquisando um<br />

assunto numa wikipedia e se deparar com um hiperlink que a levará para universos de<br />

interesse totalmente diferentes, e ela pode voltar ao assunto original ou seguir em suas<br />

aventuras virtuais. Pior! (ou melhor), são várias páginas da internet abertas ao mesmo<br />

tempo, junto com os sites de relacionamento, os messengers, a TV ligada, ouvindo<br />

música... Tudo isso reestrutura em sua cabecinha digital-multimídia a relação com os<br />

personagens ou heróis que iremos apresentar.


O cinema é uma indústria cara, são investimentos de milhões para a realização<br />

de um filme. Quando se chega a estas cifras, o objetivo econômico é um fator preponderante,<br />

sim! Não podemos nos enganar em achar que os filmes (claro que em<br />

regras gerais) são regidos somente por princípios artísticos. Um filme tem o dever de<br />

gerar lucro, ou seja, produtores tentam minimizar os riscos de um fracasso de bilheteria.<br />

Opiniões ideológicas à parte (afinal é muito fácil pedir coragem com o pescoço<br />

alheio), ao longo deste século cinematográfico, foram estudadas regras de construção<br />

de roteiros que potencializam o prazer em se assistir a um filme. O cinema não possui<br />

o recurso presencial simultâneo. Com os recursos de que se dispõe hoje em dia<br />

(internet, TV digital, TV por celular, jogos digitais), pode-se trabalhar uma interatividade<br />

muito interessante, mas provavelmente dentro de um processo individual,<br />

dificilmente numa experiência coletiva num futuro próximo. Porém, temos recursos,<br />

como apresentação do primeiro corte para uma plateia experimental, etc. Mas até se<br />

chegar ao primeiro corte, já foram gastos milhões, portanto na compilação do roteiro,<br />

onde os gastos são ainda pequenos, precisamos garantir o máximo de eficiência.<br />

Os produtores de cinema procuram ficar antenados às necessidades da plateia em<br />

potencial. Hoje em dia os filmes americanos sobre a guerra ao terrorismo, superam<br />

em muito os sobre a guerra do Vietnã. No processo de elaboração do roteiro se buscam<br />

bússolas em pensadores como Aristóteles, Syd Field, Gabriel García Márquez,<br />

Christopher Vogler (o preferido dos roteiristas de hoje em dia, que na verdade adapta<br />

Joseph Campbell para o cinema e que trabalha não somente a estrutura macrodramatúrgica<br />

temporal do roteiro, mas principalmente os arquétipos dos personagens e<br />

da jornada mítica).<br />

A partir do momento em que se inventa o trem, a questão do tempo para o<br />

homem se torna fundamental. Percebe-se a importância do fuso horário, por exemplo.<br />

A velocidade de locomoção humana vai evoluindo e hoje, com a internet, temos<br />

tempos simultâneos, onde um acionista da bolsa de valores no Brasil investe na bolsa<br />

de Tókio on-line.<br />

Segundo Hitchcock, que além do grande cineasta, foi um pensador teórico do<br />

Paulo Siqueira<br />

87


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

88<br />

cinema, a “argila” (sua matéria-prima) do cineasta é o tempo. Para ele, todo o processo<br />

de montagem de um filme molda o tempo. Por exemplo, uma bomba-relógio cujo<br />

contador conta regressivamente cinco segundos, os cortes para o rosto tenso do desmontador<br />

da bomba, do mostrador de tempo, das vítimas, o som... estes cinco segundos<br />

podem durar mais de um minuto na tela. Por outro lado, uma passagem de tempo<br />

de anos, se faz através de um corte de uma cena pra outra, numa fração de segundos.<br />

Juntando todos estes pensadores, de Aristóteles a Vogler, muito me encanta o<br />

conflito, os personagens (arquétipos) e sua relação temporal, afinal isso elabora psicologias<br />

dos personagens e do espectador.<br />

Hoje o cinema se encontra em crise, não somente pela pirataria, mas tanto o<br />

cinema quanto a televisão, rádio ou jornais. São modelos que irradiam, em mão<br />

única, o conteúdo ao espectador que só tem o poder de mudar de canal, ou sair da<br />

sala, mas não pode interagir diretamente. A televisão tem buscado através do uso de<br />

telefones, votações, criar alternativas. Mas ainda tateamos no escuro. Por falar no<br />

escuro, me lembrei daquele contador, ao redor da fogueira (engraçado como ela nos<br />

hipnotiza, né), contando e ouvindo histórias, onde a via de interlocução é de mão<br />

dupla. Ali o espectador interage diretamente, seja de maneira mais agressiva, interferindo,<br />

emendando, contando também, ou de maneira mais sutil, com seu olhar,<br />

sua reação ou sua concentração.<br />

Quando fui realizar o filme Histórias me deparei com o seguinte problema: Como<br />

fazer um documentário sobre este assunto (contar histórias) que é subjetivo e imaterial<br />

Porque num documentário sobre uma cidade, uma fábrica, ou uma pessoa, há o<br />

objeto do documentário ali presente, seja por imagens que produzamos, ou por fotos,<br />

pinturas, etc. A representação pura e simples das histórias contadas não seria correto,<br />

pois há diferença entre a narração e a interpretação, que se dá no jogo de imaginação<br />

proposto. Uma peça de teatro apresenta a princesa, enquanto a narração da princesa<br />

dá ao ouvinte o papel criador de imaginar esta princesa. Mais, não sou um conhecedor<br />

teórico do assunto, afinal sou diretor de vídeo/cinema, o que sabia sobre contar<br />

histórias e seus contadores eram as referências familiares, da escola, etc. Nunca podia


imaginar que alguém vivesse disso, ou estudasse o assunto com tanta profundidade.<br />

Mãos à obra. Fui contratado, tinha que me virar. Primeira conclusão óbvia: eu<br />

não estava realizando uma narrativa oral, eu estava realizando um filme. Graças a<br />

Deus! Isso muda tudo. Era um filme sobre a narrativa oral, mas era um filme, com<br />

suas regras próprias da cinegrafia, seus códigos e truques. Ah sim, não acreditem os<br />

contadores que nós do cinema, só porque não temos o recurso presencial simultâneo<br />

– o que permite ao ator teatral ou ao contador sentir a plateia e assim utilizar interjeições,<br />

mis-en-scènes, improvisações, olhares e até (e por que não) modificar a história<br />

– não somos capazes de manipular (no bom sentido, né gente) o nosso público.<br />

Senti-lo e com ele interagir.<br />

O meu primeiro privilégio enquanto diretor é justamente o de ser o espectador<br />

número um do meu trabalho. Enquanto estou editando o filme, eu sou também<br />

plateia. Gente, não esqueçamos que o meu objeto é totalmente diferente do de um<br />

narrador oral. A minha matéria-prima são o tempo, as imagens e os sons que eu<br />

produzo. Imagens captadas por uma câmera, onde eu escolho o enquadramento, o<br />

que significa que são imagens descritivas mas também críticas da cena. É como se<br />

eu escrevesse um livro, onde eu leio e releio o quanto for necessário ou possível (há<br />

um fator econômico limitador envolvido no processo) a minha obra. Mas se a escrita<br />

é um ato individual (como conclui Boniface Ofogo) no filme Histórias, o cinema é<br />

uma experiência coletiva, o que o difere em muito da televisão, do computador, da<br />

leitura (se alguém lê em voz alta para uma plateia, o livro deixa de ser o veículo de<br />

interlocução, este papel cabe ao leitor, sendo o livro ali, sua matéria-prima). O cinema<br />

contém em si um processo ritualístico e também da oferta do mito. Uma plateia cinematográfica<br />

respira junto, criam-se laços de sintonia, onde, quando um ri, contagia<br />

os outros, é como num berçário, onde um bebê dispara o choro coletivo. A sala de<br />

cinema remete às fogueiras do passado, toda escura, as chamas bruxuleiam da tela,<br />

pra onde se voltam todas as atenções. Esse elemento é fundamental na compilação de<br />

um roteiro que vai pro cinema ou pra televisão. Nesta última, a atenção é disputada<br />

com a tensão do dedo sobre o controle remoto, o parente na cozinha, o vizinho na<br />

Paulo Siqueira<br />

89


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

90<br />

janela, o telefone que toca, a criança que brinca, o cachorro que late, etc.<br />

Portanto, o cinema retoma o ritual da fogueira, (Opa! Olha um ponto de conexão<br />

aí.) o ritual de sociabilidade. Quando vamos ao cinema, geralmente buscamos no<br />

jornal o filme que nos chame a atenção, telefonamos para alguém, amigo, namoro,<br />

paquera, etc. Combinamos o encontro. Antes de sairmos, tomamos banho, colocamos<br />

uma roupa melhorzinha, compramos o ingresso. Compramos a pipoca, conversamos<br />

até que comecem os trailers, e logo nos calamos para a vivência do filme.<br />

Após este, vamos a algum bar ou restaurante e completamos nossa experiência social.<br />

Hoje em dia, quando as ofertas de mídias são cada vez mais individuais, como TVs<br />

por celular, internet, etc. O cinema exerce seu papel de oferecer histórias através dessa<br />

experiência social.<br />

Por tudo isto, o cinema potencializa o chamado processo de “Desligamento Voluntário<br />

da Descrença” (vamos chamar de D.V.D.), este é um acordo tácito entre o<br />

espectador e o produtor da obra, onde o espectador se dispõe a mergulhar na vivência<br />

do filme, esquecendo que aquilo é uma representação e realmente acredita no que vê.<br />

Portanto se fazem ridículos certos questionamentos como, por exemplo, alguém que<br />

contesta a inverossimilhança do super-homem não ser reconhecido quando coloca os<br />

óculos e se disfarça de Clark Kent. Ora, se nós acreditamos que o sujeito voa, as balas<br />

não penetram seu corpo, tem visão laser, ficarmos nos questionando com relação aos<br />

óculos!! Assistir ao super-homem só é possível por conta do D.V.D. A partir disto o<br />

cinema nos proporciona algo fundamental, o mito e seus arquétipos. A possibilidade de<br />

entrarmos no mundo do fantástico. É de um valor inestimável.<br />

Nem todo contador tem à mão o recurso da fogueira, mas eu, através da sala de<br />

cinema, tenho. Voltando ao “Histórias”, fui buscar dentro das várias culturas que<br />

se apresentaram pra mim, os diferentes modelos de tempo, trabalhei numa macroestrutura<br />

de roteiro linear, partindo no início do filme das culturas pré-orais, até<br />

os dias atuais, nesta cultura pós-moderna-virtual-multimídia-digital, mas usando o<br />

tempo cíclico e elíptico ao longo dos vários momentos do filme. E mais, o tempo<br />

do narrador é totalmente diferente no cinema, portanto editei as histórias narradas,


cortando partes, dando dinâmicas a outras, no meu direito de diretor do filme. Fui<br />

em busca dos personagens com seus arquétipos. Estes últimos me eram narrados e<br />

eu não queria apresentá-los, mas manter o direito do meu espectador de imaginá-los.<br />

Então, bruxuleei as imagens dos contadores em suas narrativas (afinal sua presença é<br />

o cerne da narração) por entre imagens que não descreviam o que se contava, mas que<br />

criticavam o conto (no sentido de construírem junto, ou desconstruírem, afirmarem,<br />

potencializarem ou contestarem). Procurei trabalhar através dos recursos de edição,<br />

sonorização e pictóricos, a interação com a plateia, trabalhando suas emoções ou<br />

abstrações, de acordo com o objetivo de cada cena ou assunto abordado. Procurei que<br />

o filme contasse sua história dentro das histórias contadas e das teorias levantadas,<br />

assim como as experiências de vida relatadas.<br />

Assim procurei que o filme Histórias cumprisse os seus papéis: o papel de sociabilidade,<br />

levando gente ao cinema, o papel de trazer o mito e os arquétipos através dos<br />

personagens narrados, o papel de discutir o tema do contar histórias, seja através da<br />

narração, da literatura, de educar ao esclarecer sobre o assunto, o papel de divulgar o<br />

assunto, de seduzir para “a causa”, de divertir e entreter.<br />

Cheguei à seguinte bela e triste conclusão: a tradição oral tem sua maior força<br />

onde é sua maior fraqueza, pois quando uma pessoa morre, leva consigo seu universo<br />

de imaginação e uma biblioteca se queima aqui na Terra. Aí, não há livro que registre,<br />

vídeo, filme... Talvez, a partir da captação audiovisual eu consiga reter um pouco mais<br />

de seu jeito ou interpretação do que através da escrita, mas seu universo interior,<br />

ainda não há técnica capaz de preservar.<br />

Paulo Siqueira<br />

91


Leituras Inspiradoras<br />

Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

u Documentário “Histórias”. Paulo Siqueira. Ópera Prima.<br />

u A poética. Aristóteles. Nova Cultural.<br />

u Hitchcock / Truffaut: entrevistas. François Truffaut. Companhia das Letras.<br />

u Esculpindo o tempo. Andreai Tarkovsky. Martins Fontes.<br />

u A jornada do escritor. Christopher Vogler. Ampersand.<br />

92


Blog, uma janela para o mundo<br />

o


[Marcio Allemand]<br />

Eu conto histórias desde muito moleque, se bem que custei a me dar conta disto.<br />

Lembro que costumava deixar minha prima Mônica intrigada e de boca aberta<br />

com tantas invencionices que saíam da minha mente pra lá de fértil. Afinal eu era o<br />

primo mais novo, mas nestas horas a diferença de idade pouco importava. Na verdade<br />

eu era só uma criança que não parava de pensar um segundo sequer, observava tudo<br />

e a todos, criava as situações mais absurdas e tinha sempre uma ideia nova na cabeça.<br />

Minhas tias diziam que eu gostava de inventar moda. Concordo. Por outro lado, tenho<br />

um amigo que diz que eu tenho a mente voltada para o mal. Discordo totalmente.<br />

Com os amigos da rua em que eu morava, no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro,<br />

não era diferente. Eu era o que se pode chamar de arteiro. Não que eu fosse um<br />

moleque levado, agitado, daqueles que não parava quieto. Muito pelo contrário. Mas<br />

eu gostava de inventar arte e volta e meia deixava a vizinhança de cabelo em pé.<br />

Até hoje nunca descobriram quem realmente jogava ovos na casa da vila ao lado do<br />

meu prédio. Se desconfiarem de mim, continuarei negando. Já o caso do açougue,<br />

este todos souberam. Houve também uma época em que as meninas da minha rua<br />

começaram a receber cartas anônimas. Eram cartas onde eu me declarava apaixonado,<br />

cheias de versinhos simples e rimas baratas. Eu me divertia mesmo era vendo<br />

a cara das mães das meninas que, ao receberem as tais cartas, desciam para tentar<br />

adivinhar quem seria o autor desta ou daquela. Muito provavelmente eu fui o responsável<br />

pela maioria delas. Ou de todas, sei lá. Mas eu era precavido. Em meio aos versos<br />

e rimas, escrevia um “apaichonado“, assim com ch mesmo, e todas as vítimas acaba-<br />

95


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

96<br />

vam desconfiando de um outro vizinho, que não me cabe aqui revelar o nome, mas<br />

carregava a má fama de ter uma certa dificuldade com a nossa ortografia. As meninas<br />

nunca quiseram namorar com ele, entre outras coisas, porque ele escrevia errado. Eu<br />

não. Eu escrevia correto. Mas elas também não queriam nada comigo.<br />

Anos mais tarde, quando eu cursava o segundo grau – atual ensino médio –<br />

cobrava para escrever cartas de amor para as namoradas de alguns amigos meus. Não<br />

cobrava caro não. Um lanche na cantina do colégio bastava. Na verdade eu nem<br />

gostava de escrever tais cartas, mas atendia aos apelos dos amigos mais chegados. O<br />

engraçado foi quando uma das namoradas de um destes amigos foi estudar no mesmo<br />

colégio que eu. Na mesma turma, aliás. O camarada ficou enciumado. Passou a sentar<br />

no fundo da sala. Não deixava a menina se relacionar com ninguém e parou de falar<br />

comigo. Quase um Cyrano de Bergerac.<br />

Ao mesmo tempo que escrevia cartas de amor para a minha namorada ou para as<br />

namoradas dos amigos, eu também gostava de escrever poesias e pequenas histórias.<br />

Até hoje guardo com carinho um caderno com meus primeiros escritos. Ganhei da<br />

Verinha, uma prima do meu pai, quando fiz 12 anos. Talvez ela nunca tenha se dado<br />

conta da importância que aquele presente teve na minha vida. De capa dura, cor de<br />

laranja, pautado, grosso. Bonito mesmo. Este caderno acompanhou toda a minha<br />

trajetória na tentativa de me tornar escritor e aprendiz de poeta. Ainda não existia<br />

internet e os computadores eram máquinas enormes, complicadíssimas e de difícil<br />

acesso. Hoje está tudo diferente. Tudo mais rápido. Vivemos conectados numa vida<br />

cada vez mais segmentada, única. E é realmente preciso surfar nesta onda para acompanharmos<br />

a evolução humana e tudo o que envolve este processo. Porque como<br />

disse o poeta, “o tempo não para” e, com ele, os meios de comunicação, a linguagem,<br />

a oralidade, as palavras, as rimas, as histórias. Talvez por isso eu ainda me surpreenda<br />

quando eu leio o que eu escrevia no meu antigo caderno.<br />

Durante muitos anos este caderno foi o meu melhor amigo. Ninguém sabia da<br />

sua existência. Ficava escondido. Só na faculdade resolvi revelar que ele existia e tudo<br />

o que estava ali escrito virou material de um trabalho que tive de entregar num dos


primeiros períodos. Tirei dez e minha autoestima foi às alturas. Meus amigos também<br />

gostaram e para muitos deles foi uma surpresa saber que eu escrevia poesias. E escrevia<br />

no meu caderno. Computadores ainda eram raros.<br />

Lá se vão quase duas décadas e desde então eu perdi a conta das poesias e das<br />

histórias que escrevi em todos estes anos. Formado em jornalismo, já fiz de tudo na<br />

área da comunicação social. Hoje sou repórter de um grande jornal, mas já experimentei<br />

o audiovisual, fiz uma centena de vídeos institucionais, alguns curtas-metragens,<br />

sabe-se lá quantos roteiros e um documentário que me levou a Cuba. Foi com<br />

este documentário, por sinal, que pude conhecer mais de perto o universo dos contadores<br />

de histórias e pude me dar conta da importância da tradição oral para o desenvolvimento<br />

da humanidade. Entre as poucas certezas que eu tenho nesta vida, uma é<br />

que é primordial preservar nossas histórias. E contá-las a quem quer que seja. Porque<br />

uma boa história faz bem para todo mundo.<br />

Atualmente mantenho um blog chamado “Eu sei cozinhar” (www.euseicozinhar.<br />

blogspot.com), onde as minhas poesias, memórias e os fatos do cotidiano servem de<br />

ingredientes para incrementar a receita do que eu escrevo. Se a cozinha é lugar de<br />

experimentar novas receitas, o meu blog é meu lugar de experimentação. Eu tenho<br />

a sorte de ter alguns leitores fiéis, ou seguidores, como são conhecidos os leitores de<br />

blog, que fazem lá seus comentários, sejam críticas ou elogios. É uma ferramenta que<br />

me deu novo fôlego e estímulo para continuar a escrever. Se antes o meu caderno<br />

ficava escondido, fechado numa gaveta, meu blog é literalmente um livro aberto.<br />

Qualquer um pode ler, esteja onde estiver.<br />

E isso me fascina na comunicação virtual. É um terreno fértil e promissor, pois<br />

nada mais estimulante do que saber que seus textos, suas poesias, suas histórias, estão<br />

na rede e que qualquer pessoa de qualquer parte do mundo pode ter acesso a elas. E<br />

me fascina mais ainda poder interagir com estas pessoas, trocar ideias, fazer amigos<br />

do outro lado do mundo e então perceber que esta é a verdadeira globalização, a globalização<br />

das palavras e da perpetuação das histórias.<br />

Nestas horas eu volto ao caderno laranja de capa dura que ficava escondido. Era o<br />

Marcio Allemand<br />

97


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

98<br />

meu maior segredo e só eu sabia o que nele estava escrito. Eu era o meu único leitor<br />

e foi assim durante muitos anos. Até que a tal professora mandasse que seus alunos<br />

escrevessem um livro. O meu já estava pronto. Do fundo da gaveta surgia um caderno<br />

com as poesias de um menino. Este menino cresceu e nunca mais parou de escrever.<br />

Hoje, com mais de 40 anos, não para de ter ideias e continua pensando no que vai<br />

fazer quando o futuro chegar.<br />

E se o futuro só chegar quando eu tiver 80 anos, eu vou querer acompanhar as<br />

novidades de perto. Quiçá estar à frente delas. Seja plugado na internet ou no que<br />

mais inventarem até lá. Por ora sigo falando a mesma língua que meus filhos – e daqui<br />

a pouco meu neto – e transito muito bem nas tais redes sociais mais conhecidas atualmente.<br />

É engraçado e muito interessante ver como as novas gerações têm facilidade<br />

com a linguagem da web. Tenho a impressão de que daqui a pouco os bebês já sairão<br />

das maternidades com um tablet nas mãos. Se isto é bom ou ruim, eu não sei. O fato<br />

é que estamos on-line, ligados no mundo via fibra ótica, escrevendo, lendo, buscando<br />

informação e diversão. Tudo ao mesmo tempo agora. Num mundo que parece estar<br />

a cada dia mais veloz, onde o que acontece lá do outro lado do planeta em poucos<br />

minutos vira notícia do lado de cá.<br />

E eu adoro fazer parte de um mundo que vem derrubando suas barreiras na<br />

mesma velocidade em que a comunicação se fragmenta. É neste tipo de futuro que<br />

acredito. Enquanto este mundo corre, minha imaginação voa e eu escrevo tudo. Esta<br />

é a história que eu conto.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u We’ve got blog: how weblogs are changing our culture. Rebecca Blood. Perseus<br />

Publishing.<br />

u Blog: understanding the information reformation that’s changing your world.<br />

Hugh Hewitt. Paperback.


Paiquerê Piquiri Fiietó,<br />

um experimento com<br />

as linguagens<br />

o


[Cléo Busatto]<br />

Eu me lembro do fogo. Eu me lembro das histórias ao redor da fogueira. Lembro-me<br />

das histórias que falavam do fogo. Imagem que salta da memória – fogo crepitando.<br />

Eu me lembro da água, me lembro de histórias contadas à beira do rio. Vejo<br />

mulheres lavando roupa e cantando histórias. A memória traz a imagem de águas<br />

rolando, cachoeira, rio com pedras.<br />

Eu me lembro das histórias ao pé da cama, preparando o sono. Eram histórias<br />

de amor. Não lembro muito bem o nome. Ah! É tão bom dormir depois de ouvir<br />

histórias. Imagem mítica – noite bem escura com lua estreita pendurada no céu.<br />

Estrelas despencando sobre a terra.<br />

Eu me lembro das histórias no computador. Tem dessas também. Clica, arrasta, minimiza,<br />

maximiza, e de repente surge outra forma de se contar histórias. Imagem no tempo<br />

presente – multimídia colorindo a tela anuncia a chegada de uma contadora virtual.<br />

Assim começava o espetáculo Paiquerê Piquiri Fiietó que apresentei no teatro do<br />

Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, durante o outono de 2009. Quase 7 mil pessoas,<br />

80% de crianças passaram por lá. Resultado da investigação sobre as possibilidades<br />

da narração oral de histórias no século XXI. Antes disso, já vinha pesquisando<br />

como as histórias podem se apresentar no meio digital. Esse trabalho originou quatro<br />

CD-ROMs: Contos e encantos dos 4 cantos do mundo; Lendas brasileiras; Nos campos do<br />

Paiquerê (a referência para o espetáculo) e Formosos monstros, um game, um livro virtual<br />

que revisita os monstrengos da literatura universal.<br />

São tantos os cenários, tantos suportes para um texto literário se materializar.<br />

101


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

102<br />

Do primeiro movimento, ao redor da fogueira, onde soou pela primeira vez a voz de<br />

um contador de histórias, até a imersão no ciberespaço, onde pode soar a voz de um<br />

contador do tempo de agora, se passaram séculos. Porém, o que sustenta essas ações é<br />

a história que, enquanto sujeito, engendra o encantamento necessário para nos emocionar.<br />

E na essência, a palavra que desperta a memória, reaviva lembranças e afetos,<br />

propõe, instiga, efetiva vivências.<br />

O século XXI é assim. Sugere a hibridez das linguagens. Em Paiquerê Piquiri Fiietó<br />

foi assim. O presencial se fundia ao digital e nos mostrava como duas linguagens<br />

distantes no tempo podiam gerar uma terceira, que trazia consigo a marca da contemporaneidade.<br />

Atuei na interface entre a arte e as novas tecnologias. Ao mesmo tempo<br />

em que me utilizei de sofisticados recursos digitais, me apropriei da velha arte de contar<br />

histórias, técnica ancestral que chega ao século XXI agregada a valores estéticos,<br />

significados e significantes distintos. É dessa forma que em cena ocorreu um diálogo,<br />

em tempo real, entre o narrador presencial e o narrador virtual.<br />

Ora, se durante a contação presencial, o espectador se vê envolvido pelos sentimentos<br />

suscitados pelo sujeito-contador, na contação digital há um distanciamento<br />

que permite ao sujeito-ouvinte comentar a ação e senti-la sob outro ângulo, não<br />

menos envolvente, apenas distinto. Pensar a narração oral de histórias no século XXI<br />

é pensar nos meios disponíveis para que se dê a fruição desse conto. Supõe a reflexão<br />

sobre novas mídias e sobre o conceito de arte interativa. É de se considerar que a criança<br />

da atualidade encontra-se envolvida num imaginário construído por produções<br />

que utilizam tecnologia de ponta e que chegam até ela através da internet, softwares,<br />

blogs, games, redes de bate-papo. São os novos códigos geradores de poéticas. Novas<br />

leituras e outros tantos sentidos. A hibridez do meio e dos processos expondo diferentes<br />

significações.<br />

E no Paiquerê Piquiri Fiietó o espetáculo foi se fazendo, devagarinho, apresentando<br />

um personagem aqui, uma ação cênica acolá, revelando como a linguagem teatral<br />

pode dialogar com a digital. A atriz cedia lugar à contadora de histórias que, de<br />

posse da palavra, apenas sugeria e apresentava os personagens e as ações. Não mais


epresentava um outro. Enquanto isso, nos espaços de projeções (três bolas de diferentes<br />

tamanhos e dispostas numa diagonal direção frente-fundo do palco) surgiam<br />

imagens, como se fossem faíscas da memória ficcional dos personagens que falavam<br />

no palco: a narradora, o xamã, a criança, a velha, a gralha branca. As imagens interagiam<br />

com a narradora, as mãos que ocupavam o primeiro plano na tela era um corpo<br />

expressivo em cena. Num exercício lúdico, eu, autora, atriz-narradora, me permitia<br />

viver essas criaturas e oferecia meu corpo e minha voz para que os personagens se<br />

materializassem, consciente de que, estivesse a contadora no palco ou na tela do computador,<br />

era ela, a palavra falada, a palavra querida, a palavra revelada que criava a<br />

história, fundava a magia e fazia um outro mundo acontecer.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u O livro depois do livro. Giselle Beiguelman. Peirópolis, 2003.<br />

u A arte de contar histórias no século XXI – tradição e ciberespaço. Cléo Busatto.<br />

Vozes, 2008.<br />

u Contar e encantar – pequenos segredos da narrativa. Cléo Busatto. Vozes, 2007.<br />

u Cibercultura. André Lemos. Sulina, 2002.<br />

u Máquina e imaginário. Arlindo Machado. Edusp, 2001.<br />

u Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Janet H. Murray. Itaú<br />

Cultural: Unesp, 2003.<br />

u Cultura das mídias. Lúcia Santaella. Experimento, 1996.<br />

Cléo Busatto<br />

103


Duas histórias contadas nos<br />

múltiplos caminhos dos<br />

Role-Playing Games (RPG)<br />

o


[Carlos Eduardo Klimick Pereira<br />

& Eliane Bettocchi Godinho]<br />

Aristóteles ensina em sua POÉTICA que uma história tem início, meio e fim. Todas as partes<br />

igualmente importantes para a representação da ação. Devemos lembrar, porém,<br />

que todo ponto de chegada é novo ponto de partida. E nos caminhos da vida, histórias<br />

se entrelaçam, como neste texto, escrito a quatro mãos. Quem começa é o Carlos.<br />

Em minha jornada, a estrada acadêmica que percorri foi talvez pouco usual,<br />

com uma graduação em Administração, um mestrado em Design e um doutorado<br />

em Letras (Literatura). Há, porém, um elemento em comum, são todas áreas que se<br />

propõe a serem interdisciplinares, da prática administrativa à práxis estética educativa<br />

do Design Didático ao saber com sabor da Literatura. É, pois, um sujeito mestiço que<br />

vos fala pela escrita. Biologicamente, descendendo pela mãe de russos e pelo pai de<br />

negros e índios. Culturalmente, carioca de nascimento e criação, filho de pai paulista<br />

do interior e de mãe americana, mas sem inglês do berço devido à influência da avó<br />

paterna, a língua materna da mãe foi aprendida fora do lar para ao lar retornar. A mestiçagem<br />

é então assumida como posição, mais que condição, nesta vivência escrita.<br />

Ao viver acadêmico, soma-se um viver prático desde 1992 escrevendo, publicando<br />

e divulgando os Role-Playing Games (RPG) como livros de narrativa para o entretenimento,<br />

tendo como primeira obra o RPG Desafio dos bandeirantes, primeiro RPG a<br />

abordar a história, cultura e folclore do Brasil. Em 1998, comecei a jornada de aplicação<br />

do RPG à educação em escolas de Ensino Fundamental, principalmente para<br />

História e Geografia. O retorno à academia se deu em 2002 e 2003 com o mestrado<br />

105


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

106<br />

em Design, utilizando histórias interativas para auxiliar crianças surdas a adquirir português<br />

oral e escrito, além de desenvolverem criatividade. O doutorado em Literatura<br />

trouxe o aprofundamento da pesquisa, na busca de se verificar se as histórias interativas<br />

podem contribuir para a formação de habilidades de leitura e escritura críticas em<br />

adolescentes do Ensino Médio.<br />

Eu conheci as histórias dos Role-Playing Games com amigos, vivenciando aventuras<br />

em tardes divertidas. Como observou o autor de RPGs estadunidense Ed Greenwood,<br />

as sessões de RPGs são basicamente sobre criar memórias de momentos divertidos<br />

com seus amigos. Divertir-se criando histórias interativamente, cooperativamente,<br />

compartilhando fantasias.<br />

Basicamente, no RPG, os praticantes criam suas personagens que participam de<br />

histórias parcialmente contadas por um Narrador (também chamado de Mestre). No<br />

livro (ou qualquer que seja o suporte) de RPG se encontra parcialmente descrito um<br />

cenário, no qual se passarão as histórias. As personagens criadas pelos “jogadores”<br />

e pelo Narrador serão coerentes com o cenário: bandeirantes e índios num cenário<br />

de Brasil colonial; cavaleiros e alquimistas num cenário de Europa Medieval, etc. A<br />

história começa a ser contada pelo Narrador, mas os “jogadores” são livres para decidir<br />

o que suas personagens falam e fazem na história. Assim, os rumos da história são<br />

frequentemente alterados pelas ações das personagens, sendo na verdade uma história<br />

contada em conjunto pelas interações de seus praticantes, Narrador e “jogadores”.<br />

Um dos temas mais usuais em RPG, devido a seu público ser majoritariamente<br />

formado por adolescentes do sexo masculino e sua origem estadunidense, é o da<br />

fantasia medieval. Este é um jargão do meio do RPG. Refere-se a um cenário em que<br />

existem povos de diferentes “raças” (normalmente humanos, elfos, anões e hobbits/<br />

halflings/pequeninos) em que heróis, como cavaleiros, magos, sacerdotes, bardos e<br />

ladinos, enfrentam monstros e outros seres malignos. A magia e os seres sobrenaturais<br />

são presentes. O ambiente costuma ser inspirado no imaginário da Idade<br />

Média europeia, com castelos, tavernas, vilarejos, nobres, dragões, etc. Foi o primeiro<br />

tipo de cenário dos RPGs e até hoje é um dos mais populares. Atualmente há uma


grande diversidade de cenários (fantasia; terror; histórico; aventura etc.) e o RPG passou<br />

a ser aplicado para outros fins além do entretenimento. Surgiram outros termos<br />

como “Narrador”; “História”; “Crônica”; etc., em clara “contaminação” do gênero<br />

por reflexos da Teoria da Literatura.<br />

Depois de jogar, vivenciar, as histórias interativas, nós quisemos criar um cenário<br />

e, atrevimento juvenil, publicá-lo para compartilhá-lo com pessoas que nem conhecíamos.<br />

Buscando valorizar nossa brasilidade, criamos o RPG Desafio dos bandeirantes,<br />

apresentando a fantasiosa “Terra de Santa Cruz” inspirada no Brasil de meados do<br />

século XVII, onde os jogadores poderiam vivenciar personagens, como jesuítas, bandeirantes,<br />

pajés, quilombolas, feiticeiros e lidar com seres mágicos, como iaras, curupiras,<br />

sacis, lobisomens, boiúnas, boitatás, dentre outros. Nesse processo, conheci a<br />

ilustradora, artista plástica, designer gráfica, pesquisadora, que viria a se tornar minha<br />

esposa: Eliane Bettocchi. Iniciou-se uma parceria de 14 anos, cada vez mais profunda<br />

e apaixonada.<br />

A experiência com o RPG Desafio dos bandeirantes nos despertou para o potencial<br />

do RPG como interface didática, pois não foram poucas as pessoas que nos disseram<br />

que passaram a se interessar por História do Brasil depois de jogarem num cenário nela<br />

inspirado. Parti então para as experiências com alunos do Ensino Fundamental.<br />

Em 2002 tive a oportunidade de trabalhar com crianças surdas em meu mestrado,<br />

nele as histórias interativas foram usadas para auxiliar as crianças a adquirir linguagem<br />

escrita e oral em português e auxiliá-las a fixar a Libras (Língua Brasileira de<br />

Sinais). Uma história interativa foi roteirizada e criada em dois suportes: um website,<br />

para as atividades de fonoaudiologia, e um flanelógrafo para a Educação Infantil.<br />

O website pode ser visitado em http://www.historias.interativas.nom.br/zoo<br />

O flanelógrafo se constituiu em uma flanela presa ao quadro negro, as figuras<br />

eram feitas de papelão com velcro colado no verso. A atividade era dinamizada por<br />

um contador de histórias e as crianças manipulavam as figuras manualmente. Foi<br />

interessante observar que em alguns momentos a interatividade alcançada era maior<br />

no flanelógrafo porque as crianças tinham maior espaço para cocriarem a história<br />

Carlos Eduardo Klimick Pereira &<br />

Eliane Bettocchi Godinho<br />

107


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

108<br />

com o contador de histórias, em vez de se limitarem a escolher entre as opções de<br />

desenrolar de história apresentadas no website.<br />

Em 2004, a oportunidade no doutorado foi atacar o problema do baixo desempenho<br />

na leitura e escrita de adolescentes alunos da rede pública. Educadores e escritores<br />

veem a necessidade de “explicadores do escrito” em postos de atendimento público<br />

e o fracasso de estudantes nas universidades tanto na leitura quanto na elaboração<br />

de textos como tendo uma origem em comum: um contato infeliz, mal realizado, com<br />

a leitura que a transformou de portal para um universo de descobertas em abismo de<br />

pesadelos. Isso numa realidade que efetivamente ampliou as possibilidades de leitura!<br />

(Yunes, 2002).<br />

O desafio é buscar um caminho para resgatar leitores desse trauma, desse encontro<br />

mal-sucedido.<br />

Cabe observar que enquanto professores reclamam que seus alunos leem e<br />

escrevem cada vez menos e pior, no altamente interativo meio da internet cresce o<br />

volume de e-mails e o número de blogs, diários virtuais que dão a cada um que o<br />

desejar uma voz na grande rede de informática.<br />

Portanto, parece plausível que trazer um nível mais evidente de interatividade na<br />

relação do leitor com a obra e os colegas e dar-lhe voz seria um caminho para despertar<br />

o gosto pela leitura e escrita.<br />

Esta foi a proposta da pesquisa de campo feita com alunos do Ensino Médio de<br />

um colégio da rede pública no Rio de Janeiro. O cenário escolhido foi a obra Capitães<br />

da Areia, de Jorge Amado, tendo como suportes um website e um livro impresso<br />

interativo, em que se podiam acrescentar páginas criadas pelos alunos e os elementos<br />

que eles quisessem adicionar. As personagens dos alunos e alunas eram membros do<br />

bando dos capitães da areia que interagiam com as personagens de Amado, que eram<br />

interpretadas pelos narradores.<br />

A produção dos alunos teve duas etapas, uma livre e outra obrigatória. Os resultados<br />

obtidos foram encorajadores com alunos produzindo criativamente e demonstrando<br />

terem apreendido as questões de Jorge Amado na obra, bem como seu entorno. Um


elemento importante foi que os jogadores eram alunos do primeiro ano do Ensino<br />

Médio e os narradores foram alunos voluntários do terceiro ano do Ensino Médio.<br />

Maiores detalhes sobre a pesquisa podem ser encontrados em http://www.historias.<br />

interativas.nom.br/incorporais/cpareia/index.html<br />

A pesquisadora Janet Murray aponta que as narrativas tem um papel fundamental<br />

na formação das comunidades e em nós como indivíduos, criamos nossas identidades<br />

muito em função das histórias que compartilhamos. Não é à toa que os jesuítas usavam<br />

o teatro como forma de educar e moralizar as pessoas já há séculos em nosso país.<br />

Os RPGs por agirem de forma interativa, abrindo espaço para a criação cooperativa,<br />

estimulando o trabalho de equipe e compartilhando fantasias, têm forte capacidade<br />

socializante, motivando e facilitando uma produção criativa. Em qualquer uma de<br />

suas formas, RPG de mesa com as pessoas sentadas ao redor da mesa e descrevendo as<br />

ações de suas personagens, live-action RPG com os jogadores dramatizando as ações de<br />

suas personagens em um teatro de improviso, ou através das ferramentas virtuais dos<br />

Massive Multiplayer Online RPG (MMORPG), esses valores de cooperação, socialização<br />

e criatividade devem ser mantidos para que o RPG possa alcançar todo seu potencial<br />

na criação de histórias ludicamente ou lúdico-pedagogicamente. As novas tecnologias<br />

trazem efetivamente grandes avanços quando vêm acompanhadas de novas formas de<br />

pensar, do contrário apenas “passam a limpo”, como usar o computador para decorar<br />

tabuada, em vez de inovar. Um filme de grande sucesso entre os fãs de RPG é Conan, o<br />

bárbaro, em que o vilão Tulsa Doom diz para Conan: “o que é uma espada comparada<br />

com o braço que a empunha”. Parodiando, podemos dizer que se uma arma só é<br />

tão forte quanto o braço que a empunha, uma interface educacional/narrativa só é<br />

tão benéfica quanto a mente que a manipula. Interatividade implica ouvir e respeitar<br />

o outro. As histórias interativas então não podem ser vistas apenas como meios de<br />

transmitir conteúdos para os alunos e alunas, e sim como meios para que eles criem<br />

a partir do que vivenciaram.<br />

Carlos Eduardo Klimick Pereira &<br />

Eliane Bettocchi Godinho<br />

109<br />

Passo a bola agora para a Eliane.


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

110<br />

O RPG apareceu na minha vida durante a graduação na UFRJ, quando um colega<br />

percebeu meus desenhos nas folhas dos cadernos. Entre mitocôndrias, ciclos bioquímicos<br />

e cortes histológicos, surgiam guerreiras de espada em punho, dragões e castelos.<br />

Conforme minhas personagens ganhavam pontos de experiência, eu fui migrando,<br />

suavemente, mas não sem algum sofrimento, da Biologia para o Design: da anatomia<br />

vegetal para a ilustração botânica e desta para a ilustração fantástica, que deu frutos na<br />

editora GSA, responsável pelo lançamento do primeiro RPG feito no Brasil (Tagmar),<br />

e do primeiro RPG com temática brasileira, o já mencionado Desafio dos bandeirantes.<br />

Depois da pós-graduação lato sensu em Teoria da Arte pela Universidade do Estado<br />

do Rio de Janeiro, levei minhas questões de arte e design para o mestrado em<br />

Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e mergulhei de cabeça<br />

nestas questões no doutorado em Design na PUC-Rio, concluído em 2008.<br />

Assim, a arte me levou de volta para o método científico, agora na área humana.<br />

E, por conta destas navegações, a motivação para minhas pesquisas visuais emerge justamente<br />

destas fronteiras pouco nítidas entre arte e design, entre comercial e poético,<br />

entre lúdico e crítico, e procura sempre focalizar um olhar desejante sobre a indústria<br />

cultural, com seus estereótipos cristalizados e suas possibilidades de deslizamento. E,<br />

dentro da indústria cultural, o meu laboratório científico e artístico é o mundo dos<br />

games, mais precisamente, o do Role-Playing Game, ou RPG.<br />

Mesmo sendo um conteúdo interativo e hipermidiático, o RPG continua sendo<br />

massivamente veiculado em suporte impresso, sob a forma de livros e revistas, sem<br />

abrir espaço para uma intervenção mais direta dos usuários cada vez mais acostumados<br />

à flexibilidade dos suportes eletrônicos. Um problema que parece extrapolar o<br />

universo restrito do RPG para um universo muito mais abrangente: o do próprio livro<br />

como objeto, preocupação de Roger Chartier e do Núcleo de Estudos do Design na<br />

Leitura (NEL – Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio), onde o projeto encontra-se<br />

atualmente inserido. Os suportes impressos de RPG continuam seguindo o aspecto<br />

mais tradicional do design de um livro na forma de códice: a linearidade.<br />

Roland Barthes fala de uma “responsabilidade da forma” no processo de signifi-


cação: certas preferências históricas sobre a maneira como se profere uma mensagem,<br />

não sobre a mensagem em si. Se de início estas preferências são importantes para constituir<br />

e caracterizar um repertório, chega uma hora em que elas se esvaziam, sobretudo<br />

quando se perdem suas referências. O que era antes parte de um contexto histórico<br />

torna-se “inquestionavelmente natural”, não aquele natural “orgânico e fluido”, mas<br />

aquele que, também remetendo à natureza, cristaliza e endurece. Assim, a forma que<br />

vira fôrma fecha os links do código, limitando suas possibilidades e imprevisibilidades.<br />

Mas é pela própria forma que se pode reabrir as janelas, “trapaceando a linguagem”.<br />

Deste modo, a abertura pode permitir novos significados, que segundo Roland<br />

Barthes, consiste na escritura, ou em um fazer poético no sentido aristotélico de<br />

recriação, como propõem Paul Ricoeur e Julio Plaza e o próprio Barthes na sua atividade<br />

estruturalista.<br />

Na pesquisa de doutorado, desenvolvi um método denominado Design Poético<br />

para concepção de um suporte que desse conta do RPG como uma obra aberta, em<br />

que se permitam associações sígnicas de caráter crítico e questionador, como propõe<br />

Barthes, tanto na sua construção quanto na sua fruição (Bettocchi, 2006).<br />

O filho mais novo da parceria com Carlos Klimick nasceu em 2008 (a mais velha<br />

nasceu em 2005 e se chama Alice), com auxílio da Faperj, como atividade de formação<br />

continuada para professores do Colégio Estadual Vicente Januzzi, no Rio de Janeiro.<br />

Chama-se TNI, ou Técnicas para Narrativas Interativas, que compõem um método<br />

de utilização de histórias interativas do tipo Role-Playing Game (RPG) para construção<br />

coletiva de histórias, expressão criativa e construção de conhecimento dentro de uma<br />

pedagogia construtivista, cujas principais ações são a geração de suportes impressos,<br />

projetados via Design Poético, para veiculação dos cenários, adaptados para a situação<br />

de jogo para estimular e incorporar a produção dos jogadores; e a capacitação dos<br />

jogadores, por meio de oficinas presenciais, na utilização destes suportes impressos<br />

e da TNI para expansão do cenário jogado ou para aplicação da TNI a seus projetos<br />

particulares, qualificando novos participantes, num efeito multiplicador.<br />

Assim como meu primeiro trabalho publicado foi no RPG Tagmar, também no<br />

Carlos Eduardo Klimick Pereira &<br />

Eliane Bettocchi Godinho<br />

111


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

112<br />

cenário deste RPG nasceu uma personagem guerreira, até hoje em jogo, durante um<br />

evento em Juiz de Fora, Minas Gerais. E para as Gerais então retorno, agora, como<br />

professora do Instituto de Artes e Design da UFJF, espaço de acolhimento para muitas<br />

aventuras hipertextuais e poéticas ainda por vir.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Design poético: intersemiose e abertura no projeto gráfico de um RPG. Eliane Bettocchi.<br />

In: Design, arte e tecnologia: espaço de trocas. Universidade Anhembi Morumbi,<br />

PUC-Rio & Rosari, 2006. (CD-Rom/PC Windows).<br />

u A imagem como link: autonomia, crítica e criatividade na aquisição de linguagem.<br />

Eliane Bettocchi & Carlos Klimick. Espaço (INES), v. 18/19, p. 76-82, 2003.<br />

u Escrita e leitura através de narrativas e livros interativos. Eliane Bettocchi &<br />

Carlos Klimick. In: Os lugares do Design na leitura. Luiz Antônio Coelho et all. Novas<br />

Idéias, 2008.<br />

u RPG & Educação: jogando e aprendendo; diálogos possíveis; um intertexto; a<br />

construção do conhecimento através do lúdico. Jane Maria Braga Silva. Universidade<br />

Federal de Juiz de Fora.<br />

u A leitura na escola: problemas e soluções. Jane Maria Braga Silva. In: Anais do I<br />

Simpósio RPG & Educação. Devir, 2004. [2002] pg. 256-266.<br />

u RPG: o resgate da história e do narrador. Kazuko Kojima Higuchi. In: Novas linguagens<br />

na escola. Adilson Citelli. Cortez, 2001.<br />

u Brincando de matar monstros: por que as crianças precisam de fantasia, videogames<br />

e violência de faz-de-conta. Gerard Jones. Conrad, 2004.<br />

u RPG & Educação. Carlos Klimick. http://www.historias.interativas.nom.br/educ<br />

u Construção de personagem & aquisição de linguagem: o desafio do RPG no INES.<br />

Carlos Klimick. Dissertação de mestrado, Depto. de Artes e Design - PUC-Rio. 2003.<br />

u RPG & educação: metodologia para o uso paradidático dos role playing games. Carlos<br />

Klimick. In: Design Método. Luiz Antônio Coelho (organizador). PUC-Rio, Novas<br />

Idéias, 2006. pp. 143-161.


u TNI (Técnicas para Narrativas Interativas). Carlos Klimick. Boletim Técnico do<br />

SENAC, v. 33, p. 72-85, 2008.<br />

u Uma ponte pela escrita – Histórias interativas como apoio à inclusão social e<br />

estímulo a escrita. Carlos Klimick. Tese de doutorado. Depto. de Letras, PUC-Rio.<br />

2008.<br />

u Mini Gurps: O resgate de “retirantes”: uma aventura de RPG pela vida de Cândido<br />

Portinari. Carlos Eduardo Lourenço. Devir, 2003.<br />

Carlos Eduardo Klimick Pereira &<br />

Eliane Bettocchi Godinho<br />

113


Como as histórias foram<br />

entrando na minha vida...<br />

o


[Ana Luísa Lacombe]<br />

Na verdade, elas estavam lá o tempo todo, era só prestar atenção.<br />

Nas férias, meu irmão e eu íamos para o sítio dos meus avós maternos. De manhã<br />

vivíamos histórias de aventura que inventávamos nas nossas brincadeiras: encarapitados<br />

no alto das árvores, fazendo acampamentos, pintando nosso corpo com urucum.<br />

Na hora do lanche, sentados em torno da enorme mesa de madeira rústica da<br />

cozinha, ouvíamos as histórias de quando minha mãe e meus tios eram crianças e<br />

passavam as férias naquele sítio. Minha mãe narrava as brincadeiras que faziam, as<br />

brigas, as tristezas e as histórias que sua avó contava para ela. Eram contos dos Irmãos<br />

Grimm, vindos pela oralidade brasileira.<br />

À noite, minha mãe lia para nós Monteiro Lobato, Condessa de Ségur, Coleção<br />

Menina e Moça, A Ilha do Tesouro... Essa tinha sido a leitura de sua infância, e foi<br />

também a minha iniciação aos livros.<br />

Minha avó Lucia, mãe da minha mãe, me ensinou a bordar, a fazer tricô, tapeçaria<br />

e um pouquinho de costura. Bem pequena, já me interessei pelo assunto e ela pacientemente<br />

me ensinou. Nessas horas conversávamos bastante e ela me contava um<br />

pouco das histórias da família, um pouco de como eram os vestidos, sobre a moda...<br />

Meu avô materno era brigadeiro da aeronáutica e adorava política. Comprava<br />

TODOS os jornais, que lia de cabo a rabo. Com ele as histórias eram dos acontecimentos<br />

do momento em discussões inflamadas onde defendia suas ideias.<br />

Em casa, minha mãe sempre nos contava histórias na hora de dormir. A nossa preferida<br />

“O anjinho que tinha medo do escuro”, criada por ela, hoje faz parte do meu repertório.<br />

115


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

116<br />

Meu pai tocava piano e tínhamos uma conexão pela música. Não me esqueço de<br />

estar sentada em seu colo e ele me contando a história da suíte dos Pescadores de Dorival<br />

Caymmi. Ouvíamos o disco e ele explicava. Lembro-me da tristeza poética daquele<br />

momento quando descobri que o homem morria no mar. Tristeza boa de sentir.<br />

O pai de meu pai era o rei das histórias, só que com H maiúsculo. Era um grande<br />

historiador e contava para nós a história do nosso país. Mas não era de um jeito chato<br />

ou didático, nada disso! Aos domingos os netos reuniam-se na casa desses avós. Era<br />

uma casa de três andares. No último ficava a biblioteca do Vovô Meco. Tinha mais de<br />

não sei quantos mil livros. Uma delícia aquele cheiro! Meu avô mandava encadernar<br />

todos os livros e colocar o seu Ex Libris. Às vezes as histórias vinham no meio da conversa,<br />

às vezes na dúvida de algum primo que estava estudando determinado assunto.<br />

O vovô contava os episódios de nossa História como se tivesse participado de todos<br />

os fatos. Era um ótimo contador de histórias!<br />

Minha avó Gilda, mãe do meu pai, me ensinou a fazer crochê. Era muito carinhosa<br />

e seu talento eram os doces. Que eu adorava comer, mas fazer... Este já não era<br />

meu forte. Ela me apresentou Agatha Christie e seu indefectível Monsieur Hercule<br />

Poirot, de quem eu fiquei fã. Vovó tinha a coleção completa. Minha adolescência foi<br />

recheada desse tipo de literatura, adorava Arsène Lupin, um personagem tipo ladrão<br />

de casacas. Este foi meu pai que me apresentou.<br />

Em casa, almoçávamos e jantávamos quase sempre juntos e nesses momentos conversávamos<br />

bastante. Não havia TV na sala e tínhamos tempo de trocar ideias.<br />

Tornei-me uma boa leitora. Com nove anos elegi como meu preferido Os colegas,<br />

da Lygia Bojunga Nunes, que li nove vezes seguidas... Chegava ao fim, virava para a<br />

primeira página e começava de novo. (Coincidência os nove anos e as nove vezes...)<br />

Depois me apaixonei pela A fada que tinha idéias, da Fernanda Lopes de Almeida! Eu<br />

queria ser a Clara Luz!<br />

Meus pais sempre nos levaram para ver peças de teatro. Vi todas as montagens do<br />

Tablado, do Grupo Navegando, do Ilo Krugli... Fui aluna do Ilo aos sete anos, numa<br />

escola que ele tinha no Rio de Janeiro, chamada NAC (Núcleo de Artes Criativas),


depois, na minha adolescência, fui aluna da Maria Clara Machado, no Tablado. Já<br />

querendo fazer teatro como profissão.<br />

Meu mundo simbólico foi incessantemente alimentado e eu aproveitei cada gota disso.<br />

Hoje, quando dou aulas sobre “como contar histórias”, costumo conversar com os<br />

alunos e pergunto sobre suas experiências.<br />

Constato que é uma benção que de vez em quando falte energia elétrica, pois na<br />

maioria das vezes os depoimentos se referem às historias contadas nesses momentos.<br />

A família se reúne em volta de uma vela e pronto! Que maravilha! Conversam, contam<br />

fatos, histórias, memórias...<br />

Hoje são olhos grudados em telas.<br />

Muitas vezes constato também que as pessoas esquecem as referências do seu passado<br />

e quando começamos a conversar sobre as lembranças e as narrativas do passado...<br />

Rememoram e se emocionam. Às vezes têm um mundo simbólico enorme,<br />

cheio de experiências profundas, mas abandonam estas histórias, guardam-nas tão<br />

fechadas e tão escondidas que se esquecem que elas existem e de como são importantes<br />

para a construção do ser que somos.<br />

Com uma produção de livros infantis cada vez maior e mais rica nas livrarias, os<br />

pais às vezes se contentam em oferecer belas publicações a seus filhos. Muitas vezes<br />

a escolha é feita pela beleza e não pelo conteúdo. Perde-se a chance de compartilhar<br />

com o filho o momento mágico de uma história que pode ser significativa para ambos.<br />

Conversar, contar histórias faz com que a gente reflita sobre nós, sobre o mundo,<br />

sobre as relações humanas. Assim, nos tornamos seres críticos e comprometidos com<br />

a nossa vida e com a vida dos outros.<br />

É com grata satisfação que vejo o crescimento dos contadores de histórias pelas<br />

cidades e o interesse das pessoas em assistir a estas apresentações. É como se esse universo<br />

das histórias e da memória tivesse rompido as paredes das casas e invadido os espaços<br />

da cidade. Surgiram contadores de histórias urbanos, que fazem cursos, misturam<br />

linguagens, usam objetos, músicas, figurinos... A narração vira performance e entra em<br />

espaços culturais. Os pais levam seus filhos e experimentam juntos o papel de ouvintes.<br />

Ana Luísa Lacombe<br />

117


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

118<br />

Os contadores de histórias, que percebem o poder da palavra e a utilizam com<br />

maestria, encantam crianças e adultos e mobilizam memórias e símbolos. Semeiam o<br />

desejo de compartilhar narrativas...<br />

Os pais que percebem o poder de sua emoção e envolvimento ao narrar para seus<br />

filhos histórias e episódios de suas vidas mobilizam o afeto e significados profundos<br />

no seu coração e no de seus filhos...<br />

A sociedade que percebe que sua História, suas memórias, seus símbolos, seus<br />

mitos é que tornam a vida e as relações significativas mobilizam seus cidadãos a uma<br />

vida mais generosa e harmônica.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Fiando palha tecendo ouro. Joan Gould. Rocco.<br />

u Lin e o outro lado do bambuzal. Lucia Hiratsuka. SM.<br />

u A fada que tinha idéias. Fernanda Lopes de Almeida. Ática.<br />

u Os colegas. Lygia Bojunga. Casa Lygia Bojunga.


119


Da boca da noite para a<br />

acolhida na escola<br />

o


[Almir Mota]<br />

Quando eu era criança, na casa da minha avó, tínhamos o hábito de sentar na<br />

calçada na “boca da noite”, para ouvir histórias. Era assim todos os dias, ali se<br />

reuniam meus tios, tias, meus pais e minha avó paterna. E se preparavam depois do<br />

jantar, sentados em cadeiras de couro de bode, para ouvir uma boa prosa. O terreiro<br />

era de barro batido branco e, em noite de lua, tudo ficava claro ao redor da casa.<br />

Ali surgia um novo mundo na minha cabeça. Distante daquela realidade difícil do<br />

sertão, da falta de inverno e muita carestia. A roda de histórias na casa da minha avó,<br />

a Dona Canela, era o momento de lazer de toda a família.<br />

Chegado o meu tempo de escola, não me lembro de ter ouvido histórias na sala<br />

de aula, acho que histórias a gente já tinha em casa, então a professora se preocupava<br />

com outros conteúdos pedagógicos, além de ensinar a ler, escrever e fazer somas.<br />

Reconheço que se tratava de uma escola pequenina, mas o rosto gordo da mestra eu<br />

ainda lembro.<br />

Observo que nos últimos vinte anos as histórias foram saindo dos lares e aos poucos<br />

foram invadindo as escolas, ganhando a voz do professor. Hoje reconheço vozes<br />

que tecem o imaginário, o lúdico e o literário na sala de aula. São as novas metas<br />

educacionais. As promoções do livro, da leitura e da literatura fazem parte de novos<br />

parâmetros, e na escola surge o professor encantador, aquele que prepara histórias deliciosas<br />

para os seus alunos como se fossem biscoitos. O forno desta nova educação é<br />

a memória do professor, a imaginação onde cada vez mais crianças e adolescentes são<br />

convidados a sonharem os mundos que moram nos livros.<br />

121


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

122<br />

Nós, educadores e pais, sabemos que tem histórias de todo tipo e para qualquer<br />

momento, com personagens e enredos diferentes. Tem aquelas para dormir, e se cenário<br />

é um pai contando um conto para uma menina de oito anos na cabeceira de sua cama,<br />

pode ser um conto de fadas; se um outro pai está com o filho na esteira na aldeia pode<br />

ser uma lenda, mas se o cenário for de uma mãe sertaneja balançando o filho na rede<br />

deve ser um causo de boi assombrado, deve ser assim ainda em alguns destes lares.<br />

E qual é a voz da escola<br />

Os contos de fadas me parecem ainda favoritos, pois muitos professores foram<br />

alimentados com eles, e na verdade são contos maravilhosos. Mas chega aquela hora<br />

que o professor encantador de crianças, de tanto trabalhar com as mesmas histórias e<br />

livros, cansa um pouco das princesas e príncipes, olhando com bons olhos para novas<br />

histórias de autores bem vivinhos e até próximos da escola e da realidade brasileira.<br />

Atualmente a contação de histórias na sala de aula é igualmente literária como<br />

no passado, mas hoje utilizamos textos autorais. Antes no lar contavam-se histórias<br />

populares, “causos” de domínio público onde ninguém lembrava quem era o autor.<br />

Hoje os contos na escola, nos quais se propõe trabalhar a leitura, têm autores que são<br />

bem conhecidos e isto é muito bom.<br />

Aquelas vozes da professora impregnadas de literatura começam a aprender muitos<br />

outros contos, às vezes um livro por semana, criamos assim a mulher-livro, ou<br />

homem-livro, como queiram. Há entre os professores um esforço em preparar boas<br />

histórias e colocar o universo do livro e da literatura, obras da literatura infantojuvenil<br />

de boa qualidade na escola.<br />

É claro que estamos falando da prática da professora narradora, aquela que dá voz<br />

às histórias e toda a escola a reconhece.<br />

Mas temos práticas ditas de contação de histórias como a manipulação de bonecos<br />

em tendas, ou detrás da mesa, às vezes uma televisão artesanal para passar uma<br />

história, isto é arte sim, mas não acredito que seja realmente o que se propõem. É<br />

preciso dizer que o contador de histórias pode até usar alguns elementos para contar<br />

um conto, música, outras interferências, ou nada, mas é bom lembrar que o mais


importante é o que está dentro dele, guardado na sua memória, as histórias.<br />

Veja o caso onde apresento uma professora e ela tem uma colega vizinha da sua<br />

sala que não conta histórias para sua turma de educação infantil, é uma professora<br />

dedicada, brinca, canta e assobia, mas não conta histórias para suas crianças de<br />

quatro e cinco anos. Quando chega a metade da tarde os seus alunos olham para a<br />

sala em frente que às vezes dá até para ver a professora que eles chamam de Kaka, e<br />

ficam apontando e balbuciando − história. É para a sala ao lado que sua professora e<br />

outras levam suas crianças para ouvir uma professora enfeitiçadora.<br />

Outra professora relatou-me que de tanto contar histórias na sala e devido a seu<br />

desempenho é convidada para abrir eventos para toda a escola. O gosto pelas histórias<br />

dos seus trinta alunos de quatro e cinco anos é o bastante para os mesmos ficarem<br />

tentando encontrar, no cesto de livros do canto da sala, novas ou velhas histórias para<br />

que ela as conte. E se ela ocultar a palavra, desandam a contarem tudo de novo.<br />

Nota-se que em salas de aula onde as crianças estão sempre ouvindo histórias,<br />

elas são também, frequentemente as mais expressivas, falantes. Claro que existem as<br />

salas de aula onde não tem sessões de contos, mas sim de leituras, isto não é ruim.<br />

Leitura e contação de histórias contribuem juntas para o mesmo objetivo de educar<br />

e entreter, criando mundos para pequenos seres que no geral só conhecem a sala de<br />

aula e a sua casa. Cada Floresta, fadas ou piratas, na voz da professora são pedaços de<br />

mundos e muita aventura.<br />

É verdade, às vezes fazemos atividades que não sabemos ao certo como realizamos,<br />

mas, no fundo, sabemos que dá certo, pois identificamos resultados felizes nas crianças,<br />

que “acham” os contos bem contados em livros coloridos, cheio de imagens, do<br />

qual se apossam e não largam por nada, até ser contado novamente ou surgir uma<br />

nova história contada pela professora.<br />

No projeto que coordeno no Ceará, uma professora disse o seguinte sobre uma<br />

criança que estava contando histórias para outras crianças, se apresentando na sua<br />

escola e outras do seu bairro e vizinhança: “Ele é outro menino, realiza as tarefas<br />

com mais entusiasmo e participa de tudo na sala.” A professora estava falando de um<br />

Almir Mota<br />

123


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

124<br />

menino tímido, com problemas de fala, era assim, pois agora não erra mais as palavras<br />

e nem troca mais.<br />

Qual a mágica disto Por que a voz da professora encanta tanto as crianças<br />

Seria alguma semelhança com a voz da mãe. A voz que escutamos antes de dormir<br />

Realmente eu não sei. Como pai, sempre contei histórias para o meu filho e ele<br />

era muito pequeno quando conheceu certos contos. Atualmente engajado no mesmo<br />

projeto cultural citado acima, Casa do Conto, ele busca livros que já tinha ouvido,<br />

talvez sem lembrar daquelas histórias e ele conta para outras crianças, é como se uma<br />

história que ouvimos carregássemos para sempre, vamos dizer que seja assim. Então é<br />

melhor capricharmos em boas narrativas, pois nós seguiremos, e eles ficam.<br />

Há muitas vozes na escola e precisamos primar para a realização de nossa intenção,<br />

ou seja, vamos narrar contos e só isto. Os grandes enfeites musicais e produções vamos<br />

deixar para os outros contadores que não têm plateia como você, que tem seus alunos<br />

que lhe adoram e seguem seus passos. Os outros contadores de fora da escola têm que se<br />

matar de estudar, ensaiar e esperar o público para realizar sua tarefa, mas isto para você,<br />

professora contadora de histórias é moleza, faz parte do seu cotidiano escolar.<br />

A sua voz, professora, e aqui faço questão de escrever professora, para fazer justiça<br />

à grande maioria de mulheres que educam neste Brasil, sua voz faz a diferença para<br />

estes meninos e meninas que buscam nela nada mais que um aconchego, às vezes não<br />

encontrado no lar.<br />

Aqui a nossa intenção, acredito, não é oferecer métodos para quem já pega no<br />

batente todo dia como vocês, devo lembrar que é muito bom contar histórias quando:<br />

‘ O livro que lemos, gostamos tanto que poderíamos contar na mesma hora;<br />

‘ É um autor novo na sala de aula, e as crianças ainda não o conhecem;<br />

‘ Crie dias diferentes na escola, onde seus alunos e os demais realizem uma maratona<br />

de histórias;<br />

‘ Se você gosta, fantasie-se, receba as crianças com um figurino de bruxa ou fada;<br />

‘ Ou não realize nenhuma das alternativas anteriores e narre ótimas histórias.<br />

O resto você sabe fazer. Como diz um conto dinamarquês: “Tudo que você faz é<br />

sempre bem feito”.


Leituras Inspiradoras<br />

u A pedagogia Waldorf – caminho para um ensino mais humano. Rudolf Lanz.<br />

Antroposófica, 1998.<br />

u Da manhã ao anoitecer – jardim de infância cantando e brincando. Leonor von<br />

Osterroht. Diagrama, 2008.<br />

Almir Mota<br />

125


Bibliotecas:<br />

vozes silenciadas<br />

o


[Nanci Gonçalves da Nóbrega]<br />

Ao conversar sobre bibliotecas, costumo iniciar falando sobre a etimologia do seu<br />

nome: o histórico da palavra ensina que ela é biblion e théke, ou seja, compartimento<br />

de guarda. Sendo assim, muitos fazem desta herança – a da preservação – a única possível.<br />

E, então, muitas bibliotecas reforçam a imagem de lugar inóspito, de penumbra,<br />

de aprisionamento, onde é impossível estar sem medo, sem fastio, sem tristeza. Nessas,<br />

impera o paradigma do silêncio. Ou, para ser mais exata, do silenciamento.<br />

Quantas histórias já ouvi, principalmente sendo professora de Biblioteconomia<br />

e Documentação! Histórias contadas por estudantes que, até mesmo fazendo essa<br />

Graduação, confessam num murmúrio que não frequentam o tal espaço. Estão lá as<br />

histórias de impedimentos, de recusas, de inacessibilidade às informações produzidas<br />

e registradas, seja em que suporte informacional for.<br />

Desta forma, se há algumas décadas os padrões informacionais eram baseados<br />

em premissas de estocagem, guarda, provisão e distribuição, hoje, esses paradigmas<br />

não alcançariam o vital poder interpretativo para os fenômenos comunicacionais da<br />

sociedade contemporânea, cujo ambiente é o das redes e das novas tecnologias; ambiente<br />

onde a troca de saberes é fundamental para a polifonia das múltiplas vozes que<br />

querem, precisam e se fazem ouvir.<br />

Minha conversa, então, passa a girar na contramão do persistente imaginário<br />

social a respeito de bibliotecas. Em oposição a uma imagem de acervos como espaços<br />

que estocam informação, como lugares de memória petrificada, discuto uma ação<br />

para transformá-los em territórios de produção de sentidos. Em vez de espaço de morte,<br />

127


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

128<br />

tento implementar sua potência de vida, de mudança, de movimento.<br />

Rebelo-me contra a acepção das bibliotecas como estruturas de consagração somente,<br />

onde é desnecessária a comunicação, a provocação, ou seja, onde há a manutenção do<br />

apagamento, do silenciamento. Procuro eliminar a representação monumentalista que as<br />

identificam como palácios da memória ou templos do Saber (assim, com inicial maiúscula<br />

e no singular, demonstrando uma árida elitização). Insisto em trazer à tona sua face de<br />

forum, de território de discussão semeadora. Potencializo em minhas conversas sobre<br />

bibliotecas a conscientização acerca das algemas que podem significar sua etimologia e<br />

buscando imaginar muito mais para nossos acervos – qualquer que seja sua tipologia<br />

(acervo bibliográfico, acervo museológico, acervo arquivístico) –, a comparação com<br />

uma cristaleira, onde tudo pode ser visto, escolhido, tocado, usado, pois cristaleira se<br />

diferencia de um baú, uma caixa fechada a sete chaves. Tal qual a cristaleira que atrai<br />

recordações – lembranças representadas, por exemplo, pela última xícara do jogo de<br />

porcelana da avó, ou a vela enfeitada com laço de fita de cetim com a qual se dançou<br />

a valsa dos 15 anos –, nossas bibliotecas precisam ser também lugares de convívio, que<br />

permitam a troca, a interlocução; onde a ambiência convide e, não, empurre o leitor<br />

para fora, para o nunca mais. Um lugar de muitas e variadas vozes.<br />

Neste sentido, quero aqui tramar a possibilidade de construção de um paradigma<br />

outro para nossas bibliotecas: constituir nelas um território onde, sem o abandono à<br />

necessária preservação dos tesouros da humanidade – acervos que foram elaborados<br />

como representações da potência humana –, trabalhe-se muito mais com uma ação.<br />

Nossas práxis com acervos deverão estar, então, sedimentadas numa ação cultural<br />

e pedagógica com um viés tríplice: o da recepção/apropriação/expressão criadora a<br />

fim de configurá-los como territórios de (re) significação para os sujeitos sociais, na<br />

medida em que, servindo-lhes tanto como possibilidade de apropriação e produção,<br />

quanto de organização, oportunize construção de singularidades, transformação de<br />

realidades. Sendo assim, este é um trabalho em torno do sentido. E, pois, aquilo que<br />

costumo chamar de uma pedagogia da transformação; uma pedagogia do imaginário.<br />

Em resumo, trata-se de, partindo de nossa reserva simbólica, construída com os


fragmentos de nossas interpretações singulares e coletivas, alimentar o imaginário dos<br />

leitores das bibliotecas no desenvolvimento da função simbólica por meio de textos,<br />

de imagens, de sons, das vozes que narram, conferindo uma dimensão universal aos<br />

seus sentimentos. Já que temos desenvolvido muito mais a função lógica do educar, é<br />

preciso reencantar a Educação, dando relevo à sua função simbólica, mágica.<br />

Para isto, o trabalho primordial com as narrativas da tradição, com as vozes que<br />

nos chegam do mais profundo de nós mesmos e das nossas coletividades. As narrativas<br />

da tradição são tesouros do repertório humano arquitetado ao longo do tempo<br />

e simbolizam a jornada da alma rumo às transformações pessoais. Reserva simbólica<br />

da humanidade, portanto, estão repletas de figuras significativas que representam<br />

estágios de evolução subjetiva e coletiva. Nelas, as imagens nos fazem apreender o<br />

universo de modo instantâneo e as figuras significativas das narrativas da tradição – os<br />

arquétipos – enquanto projeções da alma dos sujeitos, são resíduos psíquicos acumulados<br />

no inconsciente da humanidade, são imagens primordiais, conteúdo eternamente<br />

presente no inconsciente coletivo e, assim, projeções do espírito de uma época.<br />

Nos contos tradicionais, as vozes encantadas que dizem de Bruxas, Velhos e Velhas<br />

Sábios, Heróis etc., potencializam este reencantamento mencionado.<br />

Quem são O que significam Quais suas características principais, seus atributos<br />

Nossas tentativas de respostas a essas indagações promovem o necessário olhar sobre<br />

o duelo entre estar inserido no imaginário cristalizadamente insalubre da contemporaneidade<br />

ou pôr em movimento constante o pensar sobre outros possíveis significados.<br />

Para tanto, minha práxis nas bibliotecas é a tessitura de suas múltiplas vozes na<br />

laçada fundamental possibilitada pelas narrativas e suas figuras de significação; é um<br />

reviver da reverberação que tiveram em nossas almas.<br />

Alguns se perguntam: será possível o resgate hoje Haverá interesse, nesses tempos<br />

fragmentados e fragmentadores, pelos contos da tradição E outros trabalham, sim,<br />

com o significado profundo dessas narrativas fundantes, incentivando o mergulho em<br />

sua atmosfera para melhor compreender suas próprias lembranças, ressimbolizando o<br />

passado, a fim de reescrevê-lo e à própria vida. Nesse sentido, enquanto Darnton nos<br />

Nanci Gonçalves da Nóbrega<br />

129


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

130<br />

ensina que essas narrativas da tradição são histórias que se prendem a um imaginário<br />

coletivo, a uma memória de todos, Benjamin impulsiona em nós a necessidade do<br />

resgate da própria arte de narrar. Traz à tona a potência das histórias que se prendem<br />

ao imaginário popular, à memória coletiva; narrativas que constituem/são constituídas<br />

(como) nossa reserva simbólica. As que são insumo e produção de nossos acervos<br />

pessoais e coletivos.<br />

Assim, neste novo olhar, mais ampliado, a temática do imaginário nos auxilia a<br />

compreender sobre a existência de uma base poética da mente, como nos ensina Hillman,<br />

assim como sobre a dimensão fantástica da vida cotidiana, recriada pelas palavras de<br />

Certeau, e é evidência do repertório simbólico de toda sociedade, desde a tradicional,<br />

até as sociedades complexas da atualidade, conforme Durand. Nada mais incentivador<br />

para o homem contemporâneo, “oco de sentidos” no dizer de Fernando Pessoa.<br />

Nesta era homogeneizante, a Arte acontece como ponto de mutação, como ato<br />

micropolítico de transformação. Assim, dispositivos ou artefatos artísticos, se assim me<br />

posso expressar, em oposição a dispositivos de armazenamento será o mote para uma<br />

ação relacionada aos acervos dentro de uma dinamização que é anima ação (ação de<br />

alma). Dioniso integrado a Apolo, se me faço entender. Pois afinal somos homo sapiens,<br />

homo faber e homo ludens, todos ao mesmo tempo.<br />

Nesse sentido, valorizar as imagens significativas, singularizá-las enquanto movimentos<br />

singulares e coletivos possuidores de valores para a alma, diz de uma dimensão<br />

psíquica e planetária e cósmica para este novo espírito pedagógico veiculado/<br />

veiculador das imagens, do imaginário, pois nele compreendo a ética como fundamento<br />

capital. O primordial aqui é desenvolver uma metodologia da invenção, do<br />

reencantamento, pois precisamos estar grávidos para poder criar. Assim, penso ser o<br />

papel da Biblioteca emprenhar os leitores de poemas, de filmes, de sonhos, desejos,<br />

risos, dores, imagens significativas, de vozes que ressoam no mais profundo de cada<br />

um. Povoar o imaginário, mas não para a domesticação da imagem – as simplificações<br />

deformantes das imagens, das narrativas; a preocupação em “dosar” a Fantasia; a<br />

subnutrição do imaginário seria exatamente o contrário desta didática da invenção.


O que aqui se diz é da Arte como ato ético-político de transformação. Ética e Estética<br />

juntas no quefazer com os acervos.<br />

Desta maneira, em nossos acervos, cada vez mais espaço às narrativas como estratégias<br />

de autocriação. As narrativas que (se) compõem (a partir de) imagens singularizadas,<br />

num movimento constante de (re) construção. Formas estéticas e vitais de<br />

organização, são potência, elas próprias, para a provocação e o conhecimento. São<br />

como instrumentos, ou brechas, para nossos universos interno e externo. Pois com<br />

elas somos conduzidos ao terreno das subjetividades de nossos leitores, onde são realizadas<br />

as leituras próprias e singulares sobre os conteúdos todos do mundo, da vida.<br />

Nesse sentido, proporcionar concretamente ambiências de leitura para a criação de<br />

espaços de convivência; inserir a práxis com os acervos pessoais e coletivos utilizando<br />

álbuns de retratos, objetos biográficos, relatos, histórias de vida, compondo mapas afetivos;<br />

inserir a práxis com os acervos literários para a construção de conhecimento e a<br />

fruição; possibilitar espaço para a criação, as várias formas de manifestação criadora: o<br />

escrever, o desenhar, o cantar, o esculpir, o dançar, o inventar, o aprender; criar acervos<br />

possíveis com almofadas, plantas, obras de arte, brinquedos e brincadeiras, sonhos e<br />

desejos, contos, mitos, causos, águas, algodão doce, caixas de maquilagem, caixinhas de<br />

música, anjos de verdade, ou não, latinhas de pó de mico, fantasmas, bicho carpinteiro,<br />

livros e mais livros, etc. e coisa e tal. E as vozes das histórias que nos construiram e constroem<br />

esses que somos, enfatizando o trabalho com a oralidade e a escuta, experiências<br />

comunicativas fundamentais – o contar e ouvir histórias, o fazer com os falares, os cantares<br />

diversos, as conversas (as artes orais, como as denomina Havelock).<br />

É preciso, entretanto, primeiro compreender este plano de ação como um palimpsesto<br />

1 , pois que não deve haver receitas ou fórmulas, e há que se ter cuidado em não<br />

cair na armadilha de um aporte funcionalista, se me faço entender. Ver a questão<br />

em seu caráter dinâmico, não normativo, já que precisa ser uma práxis sempre em<br />

andamento, construindo-se ela própria como narratividade, em que se possibilitam<br />

estratégias de apropriação, produção e comunicação dos sentidos, que são sempre<br />

moventes. Como as interpretações, como o mundo e a vida. Depois, pode-se elencar<br />

Nanci Gonçalves da Nóbrega<br />

131<br />

1. Nos palimpsestos, a reescrita era feita por medida de economia: raspava-se no couro, no pergaminho as marcas deixadas<br />

do texto primeiro, para usar de novo o suporte onde estivera a escrita anterior. Aqui não me refiro ao objetivo<br />

econômico, mas ao fazer e refazer necessário, constante.


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

132<br />

como possíveis itens de elaboração alguns pontos-chave, tais como aqueles que utilizo<br />

em minha vivência com as bibliotecas e seus leitores: a) um grande desejo de transformação;<br />

b) a leitura de múltiplas linguagens como propulsora e facilitadora dos encontros<br />

– e a linguagem da Arte, aí, como fundamental; c) o trabalho com a singularização<br />

das imagens; d) a inserção do que denomino de redes afetivas – mais do que com<br />

as comunidades interpretativas; redes cuja comunicação é, no meu entender, uma<br />

comum ação, uma comunhão; e) a constituição de um olhar indagador; f) o movimento<br />

da Informação, instrumental das bibliotecas, ser percebido como recurso simbólico, e<br />

a cultura ser compreendida como um reservatório, ou repertório de práticas e referentes<br />

internos/externos; g) teoria e prática devem imbricar-se num quefazer que envolva<br />

espaços teóricos de discussão e de prática com abordagem prazerosa da relação textosujeito-contexto;<br />

h) uma ressignificação dos conteúdos muitas vezes dilacerantes da<br />

realidade empreendida por grupos solidários entre si, por meio da ressignificação das<br />

práticas informacionais das comunidades a que pertencem.<br />

E, mais que tudo, compreender que um dos seus aspectos mais importantes é o<br />

da significação, e que, portanto, perguntar-se sobre seu valor também é da ordem<br />

das questões capitais.<br />

O mito da busca do sentido, para Maffesoli, porque estamos vivendo momento de<br />

profunda entropia, fragmentação, desintegração, é um mito que devemos buscar juntos.<br />

Assim o autor defende, em sua obra mais conhecida, uma tribalização do mundo. E<br />

é este o sentido contemporâneo de Estética para o autor: ela tem, agora, um sentido de<br />

comunhão. Esta consciência estética se opõe a uma consciência racionalista; ela gira em<br />

torno de uma compreensão da Totalidade, valendo-se da virtualidade que já existe em<br />

nós (Forma/Força). Como ainda não compreendemos, pois nossa percepção ainda está<br />

na linha da causalidade (causa/efeito), será necessária uma transfiguração – sair do que<br />

nossos olhos percebem (a figura) e ir para o ícone (imagem com sentido).<br />

O que implica numa metodologia de ruptura com os padrões até então vigentes.<br />

Uma ruptura no modo corriqueiro de ver a Biblioteca, para uma ampliação do olhar<br />

sobre ela; uma ruptura para um religare do homem consigo mesmo, com o contexto


que o envolve e com o próprio Mistério.<br />

Fácil não é. Por isso gosto de lembrar o conceito fantástico de equilíbrio precário,<br />

de Eugenio Barba. Corpo/alma no mais extremo de si; o gesto intenso para o voo,<br />

se assim posso me expressar. Conscientemente atento à intensidade do gesto, o ator<br />

(estamos falando da antropologia teatral de Barba, mas também estamos falando do<br />

ator que somos todos nós no teatro da vida) busca superar(-se), transformar. O equilibrista<br />

no fio, na difícil e escolhida tarefa de dar o próximo passo. Ação sonhada e<br />

possível, mas que requer desejo, este elemento vital a uma política.<br />

E por isso há sempre um projeto político em potência nos acervos, numa biblioteca.<br />

Por isso, nós, os que lidamos com acervos (e todos nós o fazemos, não é)<br />

precisamos ser guardiães dessas delicadezas e tesouros. Guardiães e hermeneutas.<br />

Porque precisamos também perturbar o conforto institucional, conforme o nomeia Silviano<br />

Santiago, que um acervo pode representar. Buscar brechas, janelas, possibilidades<br />

para, por exemplo, compreender o acervo como uma aventura (no seu sentido<br />

mais profundo ad ventura, aquilo que vai acontecer). Tomar consciência a respeito<br />

da potência dessas estratégias do fazer. Pois: o que eu quero dizer com o acervo que<br />

elaboro, com o qual trabalho O que estou pretendendo narrar O que narram nossos<br />

acervos O que comunicam<br />

Uma ação político-pedagógica que traz à tona nossa clareza política e nossa competência<br />

científica, ao nos perguntarmos – Bibliotecas: vozes silenciadas<br />

Nanci Gonçalves da Nóbrega<br />

133<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Reencantar a educação. Hugo Assmann. Vozes, 2004.<br />

u Poética do devaneio. Gastón Bachelard. Martins Fontes, 2006.<br />

u A canoa de papel: tratado de Antropologia Teatral. Eugenio Barba. HUCITEC,<br />

1986.<br />

u O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Walter Benjamin. In: Obras


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

134<br />

escolhidas / 1. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história<br />

da cultura. Brasiliense, 1994. p. 197-221.<br />

u A invenção do cotidiano/ 1. Artes de fazer. Michel de Certeau. Vozes, 2004.<br />

u História da Leitura. Robert Darnton. In: A escrita da História: novas perspectivas.<br />

Peter Burke (Org.). UNESP, 1992. p. 199-236.<br />

u As estruturas antropológicas do imaginário. Gilbert Durand. Martins Fontes, 2002.<br />

u Oralidade. Eric Havelock. In: Cultura escrita e oralidade. David Olson e Nancy Torrance<br />

(Orgs.). Ática, 1995.<br />

u Psicologia arquetípica: um breve relato. James Hillman. Cultrix, 1983.<br />

u A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Michel Maffesoli. Sulina, 1997.<br />

u Cultura, Informação e Educação de profissionais de informação nos países em desenvolvimento.<br />

Michel Menou. Ci. Inf., Brasília, v. 25, n. 3, 1996. Disponível em www.ibict.br/cionline<br />

u A caverna, o monstro, o medo. Nanci Gonçalves da Nóbrega. FBN-Proler, 1995.<br />

u De livros e bibliotecas como memória do mundo: dinamização de acervos. Nanci Gonçalves<br />

da Nóbrega. In: Pensar a leitura: complexidade. Eliana Yunes (Org.). PUC-<br />

Rio; Loyola, 2002. p. 120-135.


135


A contação de histórias<br />

vivenciada no chão da<br />

universidade: um quase<br />

relato de experiência<br />

o


[Edvânia Braz Teixeira Rodrigues]<br />

Era uma vez, nos tempos das andanças do Morandubetá pelo Brasil afora, no<br />

final do século XX, mais precisamente no ano de 1993, conduzidos pela nave mãe<br />

do Módulo Zero, comandada pelo Proler, no meio de suas inúmeras manobras fantásticas,<br />

fantasiosas, intrigantes e sedutoras de leitores, esta nave maravilhosa acabou<br />

por aterrizar nas terras do Cerrado Goiano, atraindo professores, atores e agentes culturais<br />

vinculados a várias instituições e dentre eles três professoras da Universidade<br />

Federal de Goiás, das quais duas eram vinculadas ao Centro de Ensino e Pesquisa<br />

Aplicada a Educação (CEPAE/UFG).<br />

É importante dizer que durante o contato imediato estabelecido entre estas três<br />

professoras e os tripulantes da nave mãe módulo zero, as duas professoras do CEPAE/<br />

UFG foram contaminadas por um micro-organismo poderosíssimo que as tomou e as<br />

transformou de tal forma que nunca mais elas foram as mesmas, haja vista que passaram<br />

a ler compulsivamente e a contar histórias em suas salas de aula, de forma tão<br />

constante e deliciosamente envolvente, que foram disseminando este hábito, numa<br />

rapidez tal, que as pessoas foram sendo seduzidas a compartilhar leituras.<br />

Aí... Alguns apaixonados por esta nova mania que havia se instalado, no âmbito<br />

da Universidade começaram a se preocupar com a possibilidade de que algum cientista<br />

desvairado se dedicasse a descobrir a cura para aquela deliciosa contaminação.<br />

Então, demandaram, daquelas professoras, a fórmula para disseminarem aquela febril<br />

vontade de ler e com ela aquela contagiante necessidade de contar as histórias lidas.<br />

Ah! Aquelas professoras pioneiras se sentiam como Naftali, personagem do livro<br />

137


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

138<br />

Coração de Tinta, de Cornélia Funke, em seu diálogo de preocupação com as crianças<br />

desprovidas do acesso ao livro “– Mas como fazem essas crianças sem livros de<br />

histórias – perguntou Naftali. E Reb Zebelun respondeu: – Elas têm que se conformar.<br />

Livros de histórias não são como pão. Pode-se viver sem eles. – Eu não poderia<br />

viver sem eles. – disse Naftali.”<br />

Eu não poderia viver sem livros. Este foi o princípio básico da contação de história<br />

que se vivenciava nas salas de aula do Colégio de Aplicação da UFG, naquele tempo...<br />

contavam-se histórias para despertar o desejo pelo texto escrito e, para contá-las, era<br />

necessário gostar muito delas, outro princípio básico.<br />

Aquelas duas professoras, agora acompanhadas de outros colegas de trabalho,<br />

então, fundaram um grupo de contadores de histórias, Grupo Gwaya Contadores de<br />

Histórias, da UFG. Este grupo institucionalmente era um projeto de extensão e cultura,<br />

que propiciou a elas o tempo necessário para saírem por aí em escolas, hospitais,<br />

festas, seminários e eventos, contando muitas histórias. E, com isso, se depararam<br />

com uma nova demanda, muitos e muitos professores que desejavam aprender a<br />

contar histórias.<br />

o ato de ler guarda sempre significados que estão além dele, transforma-se em metáfora que<br />

alimenta desejos ancestrais que a humanidade sempre perseguiu, mesmo se em vão. Em<br />

várias culturas, em várias épocas, ele foi promessa de revelação, de superação final da precariedade<br />

imposta como condição (PERROTI: 1990, p.39)<br />

Eu buscava estes significados no trato com a leitura e com a escola básica e coletivamente<br />

o grupo passou a construir o seu projeto de formação de novos contadores. Os<br />

livros lidos, as discussões realizadas, as histórias contadas, o contato com o universo<br />

da literatura e da arte cênica essencial para contar história foi me mostrando que o<br />

livro tem um poder que se estabelece em duas perspectivas, na primeira ele se coloca<br />

como objeto histórico que narra a história refletindo, difundindo, permitindo, testemunhado<br />

e me colocando como partícipe do tempo, dos costumes, dos valores, do<br />

imaginário, do contexto e da época que ele me narra; na segunda o livro é constitutivo,<br />

nele mesmo, de um imaginário de sua significação e, em meio a estas constatações me


vi diante de questionamentos sobre o sentido das políticas de acesso ao livro que em<br />

última instância estão atreladas às questões da construção da cidadania e da emancipação<br />

humana, não me afastando, também, da percepção primeira que vivenciei em<br />

minha vida de leitora, a do livro como momento de lazer, sonho, doação, aventura...<br />

sempre trazido à minha presença pelas carinhosas mãos ora de minha mãe, ora de<br />

minha avó materna.<br />

É importante ressaltar o quanto pode ser significativo que os pais leiam histórias para seus<br />

filhos, ou folheiem alguma literatura infantil, levando-os a dizerem o que imaginam o que<br />

irá acontecer na página seguinte (JOLIBERT, 1994. p. 129)<br />

Mas também sentia necessidade de refletir, construir, socializar as ideias de forma<br />

fundamentada e sistematizada, assim, várias leituras, vários textos, vários projetos e<br />

um livro foi produzido e publicado – Contação de HISTÓRIAS: uma METODOLO-<br />

GIA de incentivo à LEITURA. Daqueles cursos foram surgindo outras ações em outros<br />

espaços educativos: escolas, clubes, igrejas... e também a outros grupos, os integrantes<br />

do Grupo Gwaya inicial iam e vinham, porém os princípios, os objetivos do trabalho<br />

permaneciam, se ampliavam, se aprofundavam, se verticalizavam.<br />

Hoje o Grupo Gwaya Contadores de Histórias/UFG é constituído por 15 integrantes,<br />

dos quais a mais “antiga” sou eu, mas temos também integrantes que aprenderam<br />

a contar histórias, quando estavam no terceiro ano do Ensino Fundamental<br />

e, hoje, estão na faculdade.... Professores que conheceram o trabalho quando ainda<br />

estavam na ativa e, hoje, já aposentadas continuam na ativa, contando histórias...<br />

Professores de Física.... Estudantes de Engenharia... Não importa a área de conhecimento,<br />

todos querem ler e compartilhar histórias... Enfim, as pessoas passam pelo<br />

grupo... o grupo se renova... mas o amor pela leitura... o trabalho de formação de<br />

novos leitores... a dedicação ao incentivo à leitura... ESTES PERMANECEM!<br />

Atualmente, vivendo entre os livros de literatura infantojuvenil, os livros que<br />

refletem sobre a educação, os livros que nos mostram dados, imagens, ideias... a cada<br />

dia me convenço do árduo caminho a ser percorrido na luta pelo incentivo à leitura<br />

de “textos de qualidade” que sejam prenhes da possibilidade de transformação de<br />

Edvânia Braz Teixeira Rodrigues<br />

139


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

140<br />

dogmas, de crenças, de preconceitos. Ah!!! Esse poder ilimitado dos livros, estampado<br />

e construído dentro das possibilidades e limites do seu construtor, do seu leitor... Ele<br />

é fonte de renovação e transformação do conhecimento, do mundo!<br />

E a professora que existe dentro da contadora de histórias me diz para estar atenta,<br />

para buscar sustentação teórico-prática, pois assim poderei contribuir melhor com<br />

o processo de superação das barreiras encontradas pelos que nos procuram, no início<br />

de seu processo de formação como novos contadores de histórias. A preocupação<br />

com a formação de novos contadores fez com que professores integrantes do Grupo<br />

Gwaya, associados a outros professores da UFG propusessem a realização de um<br />

curso de especialização lato sensu em Metodologia da Arte de Contar Histórias Aplicada<br />

à Educação – este curso, presencial, teve sua primeira turma no ano de 2005.<br />

Nosso projeto de formação de professores atende a Rede Estadual de Ensino de<br />

Goiás, trabalhando com os Dinamizadores de Biblioteca e tem, como proposição,<br />

tornar o espaço da biblioteca escolar mais dinâmico com o objetivo precípuo de<br />

chegar aos estudantes de forma mais lúdica, participativa e cênica. Mas, também, o<br />

grupo publica histórias: Iluminando histórias (Cleidna Landivar ) e Haja Fôlego! (Nilton<br />

Murce), ambos pela Editora RHJ, temos ainda: Tem contação de histórias no céu! (Edvânia<br />

Braz Teixeira Rodrigues), pela CEGRAF/UFG edição comemorativa 40 anos da<br />

UFG e, temos ainda: Deu queimada no cerrado (Diane Valdez), Deu macaco na cabeça<br />

(Maria de Fátima Teixeira Barreto) e Bocó: um lobo muito bobo (Edvânia Braz Teixeira<br />

Rodrigues) que compõem a coleção Coisas de bicho – Editora Gwaya. Sendo que, a<br />

coleção Coisas de bicho foi especialmente preparada para ser distribuída nas escolas da<br />

Rede Estadual de Ensino de Goiás e para os Colégios de Aplicação das Universidades<br />

Federais.<br />

A editoria destes livros da coleção foi mais uma experiência extremamente gratificante,<br />

pois pude experienciar o processo de produção do objeto de desejo “livro” em<br />

sua completude, desde a sua idealização, o processo de escritura, a revisão, a ilustração,<br />

a definição do formato, o acompanhamento da editoração, impressão, pensar o<br />

lançamento, acompanhar a distribuição... mas, posso afirmar com toda a certeza que


nenhuma emoção bateu mais forte que a do brilho do olhar das crianças e adolescentes<br />

ao lerem ou ouvirem a narrativa daquelas histórias!<br />

“O prazer de ser transportado de forma benevolente e cuidadosa, ao universo das palavras<br />

que possuem corpo, das histórias que se tornam tangíveis, daquilo que nos humaniza”<br />

(SISTO: 2001, p. 32)<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Cenas de leitura. Verbena Maria Rocha Cordeiro. In: Leitor formado, leitor em<br />

formação: a leitura literária em questão. M. Z Turchi e V. M. T. Silva (orgs). ANEP,<br />

2006.<br />

u Formando crianças leitoras. Josette Jolibert e colaboradores. Artes Médicas, 1994.<br />

u Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Celso Sisto. Argos, 2001.<br />

u Confinamento cultural, infância e leitura. Edmir Perrotti. Summus, 1990.<br />

u Coração de tinta. Cornélia Funke. Cia. Das Letras, 2006.<br />

Edvânia Braz Teixeira Rodrigues<br />

141


Por onde passo,<br />

levo comigo os<br />

contadores de histórias<br />

o


[Maria Helena Ribeiro]<br />

Contar histórias, apesar de ser uma arte milenar, para mim foi tomando uma<br />

nova dimensão a partir de 1989, quando trabalhava no setor de projetos da Fundação<br />

Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ. Havia um burburinho, algo de novo,<br />

um frisson em torno de um tal curso, ministrado por um grupo estrangeiro, que algumas<br />

pessoas fizeram, criando alma nova para a questão do livro, da biblioteca e da<br />

formação do leitor. Esta foi a primeira notícia que me chegou.<br />

Continuava sem saber bem o que era, mas via a movimentação das pessoas, um<br />

entusiasmo no ar, um falatório nos corredores, até que a minha curiosidade chegou<br />

ao máximo e me forcei a saber exatamente o que estava se passando.<br />

O assunto girava em torno de algumas pessoas da Fundação que haviam feito um<br />

curso de Contadores de Histórias. Esse curso mudou as suas vidas e, por tabela, as<br />

nossas também, que não fizemos o curso. Houve uma contaminação de entusiasmo.<br />

Era como se a narração de histórias precisasse de um empurrãozinho para se firmar<br />

como a melhor estratégia de encantamento no processo de construção de um leitor.<br />

Esse empurrãozinho foi dado, pois desencadeou uma nova história na promoção da<br />

leitura, pelo menos por aqui.<br />

Todos nós sabíamos da importância de contar histórias, porque como professores<br />

e promotores de leitura já nos utilizávamos dessa ferramenta para incentivar a leitura.<br />

Mas, parece que esse curso foi um marco na história da Contação de Histórias no<br />

Brasil, inclusive originando, logo em seguida, o Grupo Morandubetá de Contadores<br />

de Histórias, que foi a primeira escola para a formação de outros contadores.<br />

143


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

144<br />

Fiquei impressionada com a rapidez com que esse movimento se disseminou. As<br />

pessoas ficavam encantadas com a nova forma de contar histórias, com os segredos<br />

para fazê-las mais atraentes, com as novas técnicas de apresentar os textos dos livros,<br />

seduzindo a plateia.<br />

Aí, contavam-se histórias em todos os lugares, desde os corredores da Biblioteca<br />

Nacional, para os funcionários, até em praças públicas e espaços culturais.<br />

Um curso desses, eu nunca fiz, mas, naquele momento, fui contagiada pelos contadores<br />

de histórias que começavam a se formar com essa nova orientação. Acreditei<br />

neles e nunca mais os abandonei. Em todas as instituições que trabalhei, daí pra<br />

frente, levei essa bandeira comigo, contribuindo assim, um pouco, para a concretização<br />

dessa arte no Brasil<br />

Migramos da Fundação do Livro para o Proler – Programa Nacional de Incentivo à<br />

Leitura da Biblioteca Nacional, onde assumi a coordenação pedagógica do Leia Brasil<br />

– Programa de Leitura da Petrobras, um programa de Bibliotecas Volantes em escolas<br />

públicas, com capacitação de professores para a questão da leitura.<br />

Levando comigo esse entusiasmo e a certeza da importância das histórias contadas<br />

na formação do leitor, para que ele tomasse o impulso que precisava, logo acrescentei<br />

ao Programa um curso de formação de Contadores de Histórias para os professores<br />

do programa e apresentações de contadores nas escolas, nos dias das visitas do<br />

caminhão-biblioteca.<br />

Enquanto isso, na Casa da Leitura – sede do Proler e do Leia Brasil – a comunidade<br />

de Laranjeiras e especialistas em Leitura e Literatura descobriam o encantamento<br />

das histórias contadas pelos novos contadores. De todas as atividades que a<br />

casa oferecia, o Curso de Contadores era o mais procurado. Artistas, atores principalmente,<br />

produtores culturais, educadores, psicólogos, leitores e até donas de casa iam<br />

buscar algo que lhes trouxesse prazer.<br />

Eliana Yunes, nossa diretora, e Francisco Gregório Filho, nosso querido chefe,<br />

planejaram um curso de excelência por onde se formaram os hoje mais renomados<br />

contadores de histórias e grupos de contação. Começou com esse curso uma com-


pulsão pela leitura. Falava-se todo o tempo de textos, de escritores, de lançamentos<br />

de livros, de temas interessantes para se contar, de cultura popular, contos da carochinha,<br />

e, assim, circulavam os livros, trocavam-se experiências, formavam-se grupos,<br />

pesquisava-se sobre a leitura da literatura.<br />

O mais interessante é que os cursos não tinham exclusivamente o objetivo de<br />

ensinar a contar histórias, pois isso já é quase inerente ao ser humano. Basicamente<br />

visavam o incentivo à leitura pelo viés da arte, da literatura. Mas os alunos, além de se<br />

descobrirem leitores, descobriam-se também contadores de histórias. Até hoje encontramos<br />

nos cursos de Letras, ou já formados nas Universidades, pessoas que, a partir<br />

dos cursos da Casa da Leitura, descobriram sua vocação e hoje são profissionais dessa<br />

área; meu filho José Mauro Brant e minha neta Alluana Ribeiro são alguns exemplos.<br />

O Leia Brasil, que chegou a ter, em 1998, 16 Bibliotecas Volantes em 89 cidades<br />

de seis estados do Brasil, teve a contação de histórias como seu carro-chefe. Não havia<br />

uma atividade do Leia que não iniciasse e acabasse com uma história contada pelos<br />

novos contadores. Além disso, oferecíamos cursos de contadores de histórias para<br />

todos os professores, o que tornava o Programa cada vez mais respeitado e querido<br />

pelas Secretarias de Educação dos Municípios conveniados.<br />

Nas cidades, muitos professores tornaram-se contadores, ou individualmente, ou<br />

em grupos e, por essa atividade se apaixonaram também pela leitura e pela literatura<br />

a ponto de mudar suas vidas. Não é exagero não, pois quem conta a história do Leia<br />

Brasil sabe a influência que as histórias autorais e as populares, apresentadas daquele<br />

jeito de contar, tiveram na formação de professores leitores, na sua atuação como<br />

promotores da leitura e nas suas histórias pessoais. Houve uma melhoria significativa<br />

na relação da escola com a leitura, dos professores com a leitura dos seus alunos e dos<br />

professores entre si. Foi a questão do encantamento. Foram todos encantados pelos<br />

contadores de histórias e trabalhar com leitura passou a ser um prazer.<br />

Após quase sete anos no Leia Brasil, fui para o Sesc Rio, levando comigo essa bagagem<br />

de experiências bem sucedidas com a contação de histórias. No programa de leitura<br />

que implantamos no Sesc, chamado Tecendo o Amanhã – Programa de Leitura do Sesc<br />

Maria Helena Ribeiro<br />

145


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

146<br />

Rio, pude continuar abrindo espaços para a disseminação dessa arte e dessa prática.<br />

Como o programa tinha como objetivos estimular a leitura, dinamizar os acervos<br />

das Bibliotecas e promover, nas unidades do Sesc, eventos e atividades culturais em<br />

torno da leitura, encontrei nele a melhor oportunidade para divulgar o trabalho dos<br />

Contadores nas unidades do Sesc.<br />

Nesse momento, o trabalho de contar histórias nas Unidades do Sesc Rio foi tão<br />

bem aceito, que o desejo de ampliá-lo, para além dos espaços das bibliotecas, foi crescendo,<br />

crescendo tanto, que deu origem à ideia de se criar uma rede de contadores e<br />

juntá-los num só evento, aberto ao público em geral.<br />

Benita Prieto, do Grupo Morandubetá, havia feito, em 1999, pelo Leia Brasil, o<br />

Encontro de Contadores de Histórias com o maior sucesso. Eu participei desse processo<br />

e achei que seria o evento de que necessitávamos.<br />

E assim, em 2002, realizamos o Simpósio Internacional de Contadores de<br />

Histórias, primeiro realizado no Brasil. Convidamos a participar os maiores nomes<br />

nessa área, brasileiros e estrangeiros. Tanto sucesso fez, que até hoje, 2009, fica na<br />

nossa memória o evento em si e o que ele representou para o nosso país, tornando-o a<br />

referência mundial na contação de histórias e na questão da leitura e da oralidade. Foi<br />

muito gratificante participar do início da história dos Contadores de Histórias no país.<br />

Levar os contadores comigo pelas instituições por onde passava era como se tivesse<br />

levando o Proler – Programa de Incentivo à Leitura da Biblioteca Nacional para dentro<br />

delas. No Sesc Rio não foi diferente. Levei o Proler para dentro das unidades, agreguei<br />

o valor da contação de histórias à formação das bibliotecárias, transformei as bibliotecas<br />

em ambientes bonitos, prazerosos para ler, ouvir e contar histórias. Eram crianças,<br />

idosos, jovens, todos encantados pelas histórias que habitavam o interior das unidades.<br />

As bibliotecas do Sesc nunca foram tão cheias de jovens como nas sessões de<br />

histórias. Os livros saíam mais das prateleiras, e os velhos livros de gramática, que<br />

eram vítimas das máquinas de Xerox, foram substituídos por novos livros de literatura<br />

de qualidade, lidos na própria biblioteca ou emprestados para serem lidos em casa.<br />

O movimento precioso de leitura que vivia o Sesc gerou um outro projeto Jornada


de Leitura Sesc Rio: Formação de Jovens Agentes de Leitura, que talvez tenha sido o<br />

melhor projeto social que realizei em toda a minha vida. Acreditei que os jovens podiam<br />

ser leitores apaixonados e promotores de leitura nas suas comunidades, contrariando<br />

todo o estigma de que jovem não gosta de ler. Devo mais essa aos contadores de<br />

histórias que, como eu, acreditaram nos jovens e enfrentaram essa jornada de trabalho<br />

comigo. Quando saí do Sesc, foram eles que deram continuidade a esse nosso projeto.<br />

As instituições, que no início estranhavam a minha insistência na utilização da contação<br />

de histórias para tudo, logo se rendiam e concordavam em usar essa prática como<br />

“panaceia para todos os males”: abrir e fechar reuniões, criar ânimo nas pessoas, para<br />

relaxar, sensibilizar, entrosar equipes, minimizar conflitos, aumentar a autoestima.<br />

Sempre foi muito importante a atuação dos contadores na vida da cidade, tanto<br />

nas atividades de entretenimento, como nos projetos de grande relevância sociocultural,<br />

como nos hospitais, favelas, creches, com jovens e idosos, com crianças com<br />

dificuldades e comprometimentos de aprendizagem.<br />

Convicta de que a contação de histórias se enquadrava em qualquer circunstância<br />

educacional, cultural ou social, e que os contadores de histórias eram sempre excelentes<br />

parceiros das instituições, levei, mais uma vez, esse trabalho comigo para a Obra Social<br />

da Cidade do Rio de Janeiro, em um projeto de inclusão social em casas de convivência<br />

e lazer para idosos. Os idosos, assim como crianças e jovens, haviam de precisar dessa<br />

prática para ter uma vida melhor, com mais qualidade. Não sabia o quanto!<br />

Melhorar a autoestima, minimizar os efeitos das perdas e promover a sua integração<br />

social, desenvolvendo o imaginário dos idosos, recuperando as suas memórias<br />

afetivas, despertando seus talentos e habilidades, resgatando seus desejos reprimidos<br />

e satisfazendo-os na medida do possível era a nossa meta. Para isso, começamos nas<br />

Casas como se elas fossem a Casa da Leitura. Era uma volta ao passado. E os contadores<br />

sempre comigo.<br />

Por meio das oficinas de contação de histórias, dei início à concretização desses<br />

objetivos. Nessas casas, os idosos recuperaram suas lembranças, suas histórias, seus<br />

afetos, as histórias das suas famílias, suas ruas e cidades, as brincadeiras da infân-<br />

Maria Helena Ribeiro<br />

147


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

cia, das músicas e poesias preferidas. Nelas também cantaram, leram, recitaram,<br />

recortaram, pintaram, contaram histórias, riram, choraram, fizeram pipas, bonecos,<br />

escreveram cartas, montaram álbuns de memórias, murais de fotos.... E foram felizes<br />

durante os cinco anos que conviveram com os contadores de histórias.<br />

Hoje os idosos que tiveram essa oportunidade contam histórias em creches, escolas,<br />

em grupos sociais, e alguns até dão oficinas de leitura e histórias, contribuindo<br />

com esse rendimento para o aumento da sua renda familiar ou pessoal.<br />

Os contadores de histórias que me acompanharam na Obra Social fizeram dessas<br />

casas um espaço social de relevância no cenário cultural da cidade do Rio. É<br />

sempre assim: por onde passam, deixam um rastro de benfeitorias. Vão passando e<br />

carregando com eles pessoas que se tornam mais leitoras, mais esperançosas, mais<br />

participantes e mais felizes.<br />

Em qualquer instituição, seja ela educacional, social, cultural; seja em hospitais,<br />

creches, escolas, empresas, teatros, bibliotecas; seja em oficinas, aulas, apresentações,<br />

rodas de leitura... eles serão sempre os arautos da boa-nova.<br />

148<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Os cem melhores contos brasileiros do século. Seleção Ítalo Moriconi. Objetiva,<br />

2000.<br />

u O livro dos medos. Organização Heloísa Prieto. Companhia das Letras,1998.<br />

u Mil histórias sem fim: contos orientais. Malba Tahan. Record, 2001.<br />

u O livro dos abraços. Eduardo Galeano. L&PM, 2007.<br />

u Uma idéia toda azul. Marina Colasanti. Global, 1999.<br />

u Lendas do céu e da terra. Malba Tahan. Conquista,1960.


149


Narrativas na<br />

empresa<br />

o


[Fernando Goldman]<br />

Quando comecei minhas pesquisas sobre a Gestão do Conhecimento Organizacional,<br />

confesso que – engenheiro de formação que sou, por isso mesmo mais ligado<br />

às ciências exatas, às coisas objetivas do mundo, com um pensamento mais cartesiano<br />

– estranhava a frequência com que esbarrava em referências às narrativas.<br />

Era perturbador notar que quanto mais eu me aprofundava em áreas tão especializadas<br />

como Administração Estratégica, Aprendizado Organizacional, Gestão da Inovação,<br />

Gestão da Mudança, Instituições, Teoria da Firma, Teoria Evolucionária das Mudanças<br />

Econômicas, etc., mais evidente ficava o importante papel representado pela contação de<br />

histórias (storytelling) na formação do capital social das empresas realmente de sucesso, ou<br />

seja, naquelas que têm a característica da longevidade e não nas de sucesso efêmero.<br />

Justamente quando poderia parecer que os rápidos desenvolvimentos tecnológicos<br />

dos tempos da globalização – tanto da informação, como das comunicações – tornariam<br />

aquela antiga arte uma coisa obsoleta, eu ia me apercebendo da importância<br />

crescente das narrativas.<br />

Dentro desta ótica, eram claros os indícios de que é no melhor entendimento dos<br />

fatos de suas histórias que as empresas constroem aquilo que os especialistas apontam<br />

como fundamental para sua sobrevivência nos dias de rápidas mudanças que<br />

vivemos: sua capacitação para inovar.<br />

Confesso que relutei em aceitar que as dificuldades vividas em fases iniciais pela<br />

empresa, suas crises importantes do passado, seus eventos marcantes, seus executivos<br />

anteriores, seus mitos e seus heróis moldassem e restringissem seu comportamento<br />

151


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

152<br />

atual e futuro. Era difícil estabelecer uma conexão entre os aspectos mais tecnológicos<br />

das empresas e esta sua dependência de trajetória.<br />

Hoje noto que há algo de novo sobre a arte de contar histórias em ambientes organizacionais.<br />

Não se trata mais apenas do seu uso proposital para alcançar resultados<br />

práticos em questionáveis e antiquadas práticas de liderança.<br />

Em minhas pesquisas venho descobrindo que empresas longevas (as que se caracterizam<br />

como verdadeiras comunidades) têm como principal característica aquela<br />

especial capacitação para se adaptar constantemente às mudanças em seus ambientes<br />

de negócios, com mais rapidez do que seus concorrentes.<br />

Mas a inovação não é apenas uma vontade declarada. Ela exige a prática regular e<br />

constante de uma humildade em busca do que precisa ser aperfeiçoado na empresa,<br />

de um ambiente com abertura suficiente para tal, caracterizando que os verdadeiros<br />

proprietários do capital social não deveriam ser pequenos grupos – que podem facilmente<br />

ser tornar obsoletos – mas a empresa que, vista como uma comunidade, se<br />

mostra muito mais apta a dar respostas.<br />

Para atender aos atuais desafios de adaptação, contínuos e necessários, sempre<br />

com maior rapidez, diversos autores de diferentes áreas de estudos vêm chamando<br />

atenção para o fato de que as estruturas burocráticas e hierárquicas baseadas em<br />

mecanismos de comando e controle, que se mostraram tão eficientes desde o início<br />

do taylorismo, já não funcionam adequadamente e funcionarão cada vez menos. Há<br />

assim a necessidade da troca da ênfase em simples e objetivas relações de causa e efeito<br />

pelo foco em aspectos menos explícitos, menos objetivos, digamos mais tácitos.<br />

Esse novo mundo organizacional, de valores, significados e experiências, com<br />

atenção às interações humanas, precisa identificar o conhecimento, entendido como<br />

a união de saberes e habilidades para uma capacidade de ação eficaz, como novo e<br />

mais importante fator de produção.<br />

Sendo o conhecimento contextual e só existindo nas pessoas que compõem uma<br />

empresa, me chama atenção a importância da palavra “contexto” e a forma como ela<br />

é negligenciada nas empresas que não conseguem se ver como comunidades.


É o contexto que faz com que, embora construído pela análise da informação e<br />

que possa algumas vezes ser transformado em informação para ser disseminado, o<br />

conhecimento não seja apenas um tipo especial estático de informação, como muitos<br />

creem. Isto porque diariamente importantes elementos de contexto são incorporados<br />

ao conhecimento nas mentes e corpos das pessoas, nas rotinas das empresas e, principalmente,<br />

no relacionamento entre as pessoas e entre elas e suas empresas.<br />

As empresas e suas pessoas em um determinado momento são apenas um instantâneo<br />

de um quadro dinâmico em que pessoas vão e vêm, influenciam e são influenciadas<br />

por aquilo a que nos referimos simplificadamente como organização.<br />

É fácil dizer que a empresa é uma organização. Mais fácil ainda é alardear que a<br />

organização é uma comunidade, mas na prática criar um ambiente propício ao florescimento<br />

do conhecimento exige muito mais do que simples slogans.<br />

Uma pessoa para expressar aquilo que conhece ou pelo menos aquilo que tem<br />

consciência que conhece não pode deixar de fazê-lo senão emitindo algum tipo de<br />

informação (conteúdos), na forma de mensagens, sejam orais, escritas, sinalizadas,<br />

gráficas, gestuais, dançadas, corporais ou qualquer outra forma que um ser humano<br />

tenha para se comunicar.<br />

É preciso conectar os conteúdos disponibilizados, representados por dados e<br />

informações, aos contextos, para que outras pessoas possam criar novos conhecimentos<br />

capazes de possibilitar à empresa se modificar de modo a se adaptar às mudanças<br />

de seus ambientes de negócios.<br />

Fui assim começando a entender que o elo, entre os conteúdos e os contextos, são<br />

as narrativas, que sendo a forma como as pessoas constroem um mundo de significados,<br />

se tornam um tipo de código, útil em ambientes dinâmicos, de racionalidade limitada<br />

e de incerteza, como os enfrentados pelas empresas na atual era de globalização, pois<br />

transformam a incerteza da mudança em algo compreensível e com significado.<br />

Seguindo as ideias de Argyris e Schoen sobre toda empresa ter uma teoria “proclamada”<br />

e uma “aplicada”, são as narrativas que nos informam sobre as regras informais,<br />

quando chegamos a uma empresa.<br />

Fernando Goldman<br />

153


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

154<br />

No meu entender as narrativas organizacionais, além de proverem meios fundamentais<br />

para se compreender os processos do cotidiano organizacional, são elementos<br />

fundamentais na construção retrospectiva da realidade em que a empresa se encontra<br />

– o chamado sensemaking.<br />

Para mim, as narrativas representam os modos de falar sobre a empresa e, assim,<br />

refletem a disseminação e o compartilhamento de percepções. Dessa forma, as narrativas<br />

tratam das políticas de significados, isto é, como são selecionados os significados,<br />

codificados, legitimados e institucionalizados na empresa. O aprendizado e a<br />

criação de conhecimento, tendo características progressivas e implícitas no processo<br />

organizacional, se beneficiam sobremaneira de um ambiente propício às narrativas.<br />

Se é cada vez mais verdade que as empresas precisam adaptar-se rapidamente a<br />

mercados em constante mudança e às novas tecnologias, porém sem negligenciar os<br />

aspectos humanos, então as narrativas como aliadas das metáforas e analogias podem<br />

exercer um papel muito importante nos aspectos mais tácitos do conhecimento.<br />

Além disso, o futuro da empresa só pode ser construído considerando seu passado,<br />

pois os eventos de ontem delineiam o comportamento de hoje. Dessa forma, a<br />

mudança só pode ser entendida numa perspectiva de histórias, pois para romper com<br />

o passado é preciso antes de tudo, entendê-lo.<br />

Assim, considerando a empresa como uma cultura, as narrativas - tendo como<br />

principal objeto a construção de significados – são uma poderosa ferramenta para<br />

viabilizar a compreensão dos processos de mudança e aprendizado, possibilitando<br />

mudanças de percepção e a aquisição de novos significados.<br />

Foi assim, aos poucos, que descobri que a velha arte da contação de histórias pode<br />

fazer toda a diferença em ambientes tão atuais e complexos como as grandes empresas.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u O poder das narrativas nas organizações. Stephen Denning. Campus - Elsevier, 2006.


u The concept of “Ba”: building foundation for knowledge creation. I. Nonaka e<br />

N. Konno. California Management Review, v. 40, n. 3, Spring 1998.<br />

u Criação de conhecimento na empresa: como as empresas japonesas geram a<br />

dinâmica da inovação. I. Nonaka e H. Takeuchi. Campus, 1997.<br />

Fernando Goldman<br />

155


Fagulhas habitam multidões<br />

o


[Célia Linhares]<br />

Logo que fiz nove anos, perdi meu pai. Voltei para o Maranhão e encontrei uma<br />

paisagem já conhecida pelas conversas familiares e que, de vez em quando, ganhavam<br />

um tom nostálgico, próximo de um sentimento de exílio. Ah! Como o Rio de<br />

Janeiro ficava longe de São Luís!<br />

O re-encontro com minha cidade, me fez descobrir que ao construí-la, imaginariamente,<br />

nela havia reservado lugares de relevo para os primos e os tios, as alvoradas<br />

com suas brisas, os sabores e os batuques das festas populares. Então, me surpreendi<br />

com tantas ladeiras (difíceis de subir), com as travas de poderes estagnados, enfim,<br />

com as noites e suas tormentas...<br />

Sei que num desses dias em que os bondes pareciam saltar dos trilhos para trafegar<br />

em meu coração, me assombrei com a intensidade de perguntas que nem sabia formular.<br />

Acreditei que não ia dar conta da vida. Pedi a Deus que me ajudasse, mandando<br />

um anjo me buscar de forma veloz, se possível, fulminante.<br />

De repente, ao entrar numa das alcovas do sobrado, onde vivíamos, no Canto da<br />

Viração, deparei com uma imagem trêmula, estranha, assustadora, que se associou a um<br />

conjunto de vozes que cantavam, com determinação, se encontrando em desencontros.<br />

— Os céus me ouviram Resolveram me atender Estes eram os sinais não de um, mas de uma<br />

legião de anjos Como poderia eu recuar de minhas súplicas, diante de uma decisão celestial<br />

— Não, não queria ir pro céu. Era urgente, urgentíssimo declinar da viagem com os anjos.<br />

Pedi, com o coração aos saltos, uma prorrogação.<br />

Corri pra janela, arriscando um canto de olho e decifrando o mistério da figura<br />

157


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

158<br />

vacilante: era uma calça comprida de meu irmão, pendurada pelo suspensório, numa<br />

coluna de cama antiga!<br />

Em compensação, presenciei nas ruas uma passeata potente, contra a posse de<br />

um governo que o povo não aceitava pela usurpação e iniquidade do processamento<br />

eleitoral. Nunca tinha visto uma multidão tão decidida e tão vibrante em sua marcha.<br />

Por isso, a cada instante se encorpava mais.<br />

Ali, naquele momento que coube um fluxo de uma existência, entendi a dor e a beleza<br />

de sermos porosos, interdependentes uns dos outros, unindo os humanos aos viventes,<br />

às coisas, mas também ao cosmos, tecendo-nos com milhões de fios, que nos desafiam<br />

com enigmas que não se fecham em nós, pedindo conjunções, compartilhamentos.<br />

— Ah! Então são esses os movimentos sociais, em que nos perdemos e nos achamos, entrando<br />

e saindo de nós e, assim, nos constituindo nesses entre nós<br />

Os anos rolaram e acompanhei as esperanças de minha geração, com a UNE, a<br />

JUC que se articulava com a JOC, a JEC e tantos outros movimentos estudantis, mas<br />

também com o MEB, os CPCs, a campanha pelo Petróleo é nosso...<br />

A Petrobrás foi a nossa vitória,<br />

Nossa primeira vitória,<br />

De vitória em vitória...<br />

Se escreve a história...<br />

Mas, todo esse entusiasmo coletivo foi interrompido com uma prolongada noite<br />

de chumbo que mostrou o quanto os estados de exceção, com suas tiranias e barbáries<br />

nos rondam e nos ameaçam permanentemente, comprometendo os projetos<br />

democráticos, exigindo repensá-los a contrapelo. (Benjamin, 1993, Agamben, 2004).<br />

E esses riscos se mostram e se agudizam quando os movimentos sociais se intensificam,<br />

se renovam, se reinventam, atualizando suas potências ao afirmar tradições<br />

inquietas e tenazes, com sonhos de dignidade existencial, política, que nunca morrem.<br />

Por tudo isso, não só nos fortalecemos, mas também nos alertamos contra tantos<br />

elitismos que também nos impregnam, compondo desigualdades que nos modelam<br />

historicamente. Ressoa em nós Darcy Ribeiro, lembrando como permanece em nós


essa convivência ambígua e paradoxal entre as cicatrizes de escravos e oprimidos, que<br />

se polarizam com a arrogância de senhores.<br />

De toda maneira, com a ditadura, os espaços dos movimentos sociais foram fechados,<br />

vigiados e punidos. Mas não interrompidos. Como rios nos desertos, os fluxos de<br />

tantas águas, irromperam por outros caminhos, manifestando-se de diferentes formas<br />

em oásis, pedindo novas formas de invenção e captação.<br />

A ditadura se enrijecia, recriando-se com outros níveis de selvageria e ferocidade,<br />

com sequestros e prisões, com torturas e assassinatos e inovando com a ocultação<br />

dos corpos dos opositores dessa barbárie instalada. Foi nesse período trágico que Rui<br />

Frazão Soares, estudante de engenharia foi preso e desapareceu no cárcere em 1974.<br />

Se o medo era imenso, toda essa generosidade dos que discordavam abriam<br />

caminhos para a liberdade que nunca deixou de fagulhar... Assim, os movimentos<br />

sociais se deslocaram para espaços que antes pareciam destituídos de política. As<br />

associações de moradores insurgiram em toda parte, nas comunidades de base, nas<br />

práticas da Teologia da Libertação, com os mutuários de casa própria, das donas de<br />

casa, dos aposentados, das mulheres, negros, indígenas e gays que se organizaram e<br />

tornaram mais abertas, compartilhadas e visíveis suas lutas.<br />

A realidade mudava e nossos instrumentos de apropriação dos movimentos sociais<br />

também precisavam ser refeitos (Evers, 1984). Os novos sujeitos coletivos instalavam outro<br />

tempo-espaço e requeriam uma outra inteligibilidade (Sader, 1988). Os movimentos de<br />

1968 mostraram que as relações políticas não estão distanciadas das tensões cotidianas.<br />

Se Foucault (1984) tematizou a mobilidade do poder, que não se concentra nos<br />

palácios, nem se fixa nos gabinetes e nem, muito menos, se reduz a impor e negar<br />

condutas, potencializando ferramentas para intervirmos nos funcionamentos sociais,<br />

Paulo Freire (1992) também, por outros contornos, trabalhou o alargamento da<br />

política, discutindo uma processualística responsável pela manutenção dos mecanismos<br />

que fortalecem opressores e oprimidos.<br />

Ressaltou as relações entre políticas, culturas e existências sócio-humanas, sustentando<br />

poderes arbitrários e opressores, que ao invés de se instalarem exclusiva-<br />

Célia Linhares<br />

159


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

160<br />

mente, numa entidade externa, se alojam com tensões e complacências, nos sentimentos<br />

e afetos do oprimido, subjugando-o.<br />

De toda forma, para romper essa submissão, não pode ser dispensado nem o<br />

desejo de liberdade, nem as condições concretas de libertação, que precisam ser criadas<br />

e mobilizadas. Por isso, Paulo Freire valorizou a educação para a liberdade, como<br />

um exercício de autonomia, sempre inconcluso, em que os oprimidos se apropriam<br />

da vida, do mundo, para refazê-lo.<br />

Esses novos tipos de movimentos sociais, mesmo sob silenciamentos e suspeitas<br />

acadêmicas, foram construindo outras formas de ações políticas, intensificando solidariedades<br />

em circuitos crescentes, capilarizando-se e encontrando-se com aqueles até então<br />

banidos da fruição dos bens materiais e imateriais que a sociedade vinha produzindo.<br />

O avanço do capitalismo com suas forças necrófilas, foi derrubando fronteiras<br />

(como entre as Alemanhas) para reduzir a criação de mundos possíveis, proclamando a<br />

urgência de sofisticar, globalizando um mundo único; mundo que as políticas neoconservadoras<br />

e neoliberais pretendem infligir a tudo e a todos, como o Império irrecusável.<br />

Mas o preço da participação nesse império é não somente alto, muito alto, mas<br />

impagável, pois atinge de muitos modos a vida, o planeta, os corpos, enfim, toda uma<br />

múltipla realidade, enredando-os em relações agenciadoras em que nem faltam coerções<br />

cruéis e explícitas, nem tão pouco manipulações sutis e sedutoras.<br />

Assim, apesar das cadeias relacionais que se instalam e se apresentam como redes<br />

inescapáveis, emerge desse cerceamento formas múltiplas de afirmações de vida que<br />

vão instituindo fagulhas com que se constroem possibilidades de outros mundos mais<br />

solidários, em que as multiplicidades se dispersam e confluem diferindo e singularizando<br />

sujeitos coletivos e individuais, pelas interdependências entre objetos e sujeitos,<br />

rompendo com as formas de organização binária da vida (Lazaratto, 2006).<br />

Portanto, escapando de concepções e práticas endurecidas pela imutabilidade das<br />

utopias, Negri e Hardt (2001) vão ressignificar a concepção e a prática de multidão,<br />

tomando-a como resistência, multiplicidade e potência, atualizando-a pela apropriação<br />

dos circuitos cibernéticos.


É bom observar o comportamento das multidões em suas iniciativas que tomam<br />

celulares para mobilização social que se dispersa, atuando de modo livre, mas confluindo<br />

na causa comum de defesa da vida, da liberdade. Por isso, valorizam a pluralidade<br />

dos sujeitos e instrumentos reinventando, em sintonia com nosso tempo,<br />

militâncias interativas.<br />

Vale concluir lembrando a analogia que Negri (2001) faz entre as multidões e<br />

Francisco de Assis: “(...) encontramo-nos na situação de Francisco, propondo contra<br />

a miséria do poder a alegria do ser. Esta é a revolução que nenhum poder controlará”.<br />

Para minha mãe Alice e minha irmã Anna Maria<br />

que, em meio a labirintos, me fizeram encontrar movimentos sociais,<br />

que se recriam e com os quais me reinvento sem parar.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Estado de exceção. Giorgio Agamben. Boitempo, 2004.<br />

u Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Walter Benjamin. Brasiliense, 1993.<br />

u Identidade: a face oculta dos novos movimentos sociais. Tilman Evers. In: Revista<br />

Novos Estudos CEBRAP, vol.2, nº 4, Abril de 1984.<br />

u Microfísica do poder. Michel Foucault. Organização e Tradução de Roberto Machado.<br />

Edições Graal, 1984.<br />

u Educação como prática da liberdade. Paulo Freire. Paz e Terra, 1992.<br />

u Império. Michael Hardt & Antonio Negri. Record, 2001.<br />

u As revoluções do capitalismo. Maurizio Lazzarato. Civilização Brasileira, 2006.<br />

u Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos<br />

trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Eder Sader. Paz e Terra, 1988.<br />

Célia Linhares<br />

161


Nos caminhos da Maré<br />

o


[Lene Nunes]<br />

Meu nome é Marilene Nunes, nasci numa cidadezinha do Espírito Santo chamada<br />

Mimoso do Sul. A minha vinda para o Rio de Janeiro aconteceu quando<br />

ainda era criança. Como toda criança que mora no interior, sempre ouvi muitas<br />

histórias contadas por minha mãe, lembro que ficava horas sentada na porta de casa<br />

ao anoitecer, ouvindo mamãe contar contos de assombração, de fazendeiros, histórias<br />

de vida, etc.<br />

O tempo foi passando, me mudei e ainda era pré-adolescente quando cheguei à<br />

Maré, vinda de Del Castilho, removida da avenida Suburbana. Assim que cheguei,<br />

achei tudo muito estranho, a casa era chamada de “Dúplex”, porque tinha dois<br />

andares (embaixo ficava sala, cozinha, banheiro e em cima dois quartos), havia uma<br />

caixa d’água instalada, mas não tinha água encanada. A minha casa ficava numa parte<br />

já aterrada da Maré, na comunidade Nova Holanda, eu visitava várias colegas que<br />

moravam nas palafitas, era divertido e ao mesmo tempo perigoso quando andava nas<br />

pontes sobre as águas e no calor era gostoso, porque sempre molhava meus pés. Outra<br />

diversão era carregar água com o “rola-rola” ou “lata na cabeça” para encher a caixa<br />

d’água. (Era difícil conseguir água, porque tinha que sair pedindo nas casas distantes.)<br />

A minha entrada nesse universo de contar histórias aconteceu através de uma amiga<br />

que me informou que haveria uma Oficina de Contação de História no CEASM<br />

(Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré), logo me interessei, pois sempre gostei<br />

de ouvir e contar histórias para os meus filhos. Fiz a inscrição e fui entrevistada, mas<br />

saí de lá com a certeza de que não seria selecionada, pois a faixa etária exigida era de<br />

163


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

164<br />

16 a 21 anos. Até então, só conhecia a ONG através de comentários dos moradores.<br />

A ONG CEASM foi fundado em 1997, por alguns moradores universitários que,<br />

a partir de suas ações de militância dentro da comunidade, viram a necessidade de<br />

proporcionar à comunidade o acesso à universidade através do “pré-vestibular comunitário”,<br />

o primeiro projeto da instituição. O CEASM atua nas áreas de educação, comunicação<br />

e cultura. Como moradora, acho muito importante participar desse resgate e<br />

valorização da história local, passar para os jovens de hoje toda essa luta e resistência,<br />

mostrar que seus pais e avós foram agentes importantes nesse processo de construção<br />

do Bairro, é apresentar a Maré de uma forma diferente do que é mostrado na mídia.<br />

Ao saber que fui selecionada, dei um grito de alegria. O primeiro encontro logo<br />

foi marcado e, então, foi iniciada a oficina. Fui até o encontro feliz da vida, pensando<br />

já no que ia contar caso pedissem, pensei comigo: Acho que vão nos ensinar a contar<br />

histórias para crianças, literatura infantil, era uma vez a princesa... Porém, fiquei<br />

surpresa com o andamento da oficina, foi muito além do que imaginava, trabalhei<br />

com dinâmicas, música, som, expressão corporal, leituras e durante uma atividade<br />

diária, onde os participantes contavam suas histórias de vida, foi confeccionado, em<br />

pequenas costuras, um grande tapete colorido que até hoje é utilizado nas contações.<br />

O que mais me atraiu foi saber que ia contar as histórias do bairro da Maré, pesquisar<br />

e entrevistar antigos moradores e a partir disso formular um repertório de histórias,<br />

causos e lendas da região da Maré.<br />

A partir da oficina surgiu o grupo Maré de Histórias, com jovens e adultos do Bairro<br />

da Maré. Demos início ao trabalho com a proposta de atuação nas áreas da cultura e<br />

educação dentro da comunidade, oferecendo às escolas da região oficinas de histórias<br />

com o intuito de divulgação e valorização da memória local. Juntamente com o grupo<br />

foi iniciado o primeiro trabalho, duas vezes por semana, na Escola Municipal IV<br />

Centenário, Maré. O encontro com as turmas era realizado no pátio, embaixo de uma<br />

árvore onde era estendido o imenso tapete colorido. Nos encontros, eram realizadas<br />

atividades e brincadeiras lúdicas, como jogos de memória e quebra-cabeça com fotos da<br />

Maré antiga, assim os alunos puderam conhecer um pouco mais o local onde moram e


suas transformações ao longo do tempo. A partir do trabalho feito com o livro “Contos<br />

e Lendas da Maré”, os alunos eram estimulados a ler, conhecer, criar e contar outras<br />

histórias. O mais interessante é que a partir da imaginação de cada um, iam surgindo<br />

através de desenhos e escritos novas maneiras de recontar os contos do livro. Percebi<br />

que, a partir do livro, criou-se um diálogo entre os jovens e seus pais, uma vez que<br />

estes pais vivenciaram e conheceram personagens vivos de alguns causos, surge uma<br />

importância maior e um sentimento de pertencimento dessas histórias, fazendo com<br />

que assim busquem ainda mais informações sobre esses fatos, cada local onde possivelmente<br />

aconteceram esses causos passaram a ser uma referência dentro da Comunidade.<br />

Com a construção do Museu da Maré, em maio de 2006, minhas ações e as do<br />

grupo foram ampliadas para também atender o público diversificado, recebendo grupos<br />

agendados uma vez por semana com contação de histórias. Uns dos contos é o<br />

Casamento na palafita, que eu conto na varanda do Tempo da Casa, segundo tempo<br />

do museu (uma vez que a concepção o divide em doze partes chamadas Tempos). E<br />

é dentro dessa réplica que as pessoas recordam, choram e resgatam, de dentro de si,<br />

toda a memória aterrada, adormecida, de uma época vivida ali. Numa dessas visitas<br />

que eu acompanhei, tive uma experiência com uma senhora que, ao entrar na réplica<br />

de uma palafita, construída dentro do Museu, chorou pelas lembranças que vieram<br />

à tona, ao ver expostos ali vários objetos e pertences que fizeram parte de sua vida.<br />

Quando a levei até o velho fogão Cosmopolita 1 e falei do “pente-quente” 2 , foi uma<br />

emoção ainda maior, pois choramos juntas e lembrei-me da época em que minha mãe<br />

alisava meus cabelos com esse objeto.<br />

Outra experiência que vivi foi no Tempo do Medo. Em uma visita, a filha reconheceu<br />

a mãe, os irmãos e o primo numa foto, sentados na ponte, exposta ali, e<br />

contou para a mãe. Na semana seguinte, a mãe veio conhecer o Museu e ficou muito<br />

emocionada com tudo que viu, percebi que ela tinha pressa em chegar onde estava a<br />

tal foto, e, quando chegou perto, apontou um por um de seus familiares e disse: “O<br />

tempo passou, pois nesse retrato aqui, os meus cabelos eram pretos e agora estou com<br />

a cabeça branca. Ah, minha filha, meus meninos caíam muito dentro dessa maré. E<br />

Lene Nunes<br />

165<br />

1. Marca de um fogão.<br />

2. Objeto que se esquentava ao fogo para alisar o cabelo (seria a prancha de hoje).


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

166<br />

eu mesma presenciei muita gente caindo dessas pontes e alguns até morreram.”<br />

Minha atuação como contadora de história me possibilitou um envolvimento<br />

maior com um povo que lutou e resistiu à força do tempo, esse trabalho mexeu com<br />

meu passado. Em minha opinião, a arte de contar histórias é viajar, interpretar, viver,<br />

passear pelos caminhos por onde passam cada personagem, e contar as da Maré, é<br />

uma questão de honra, de propriedade e pertencimento.<br />

Como eu sempre digo: “Quem não tem passado não tem história.”<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Livro de contos e lendas da Maré. Vários autores. CEASM, Núcleo de produção<br />

editorial Maré das Letras, INFRAERO.<br />

u Guilherme Augusto Araújo Fernandes. Mem Fox. Brinque-Book.<br />

u Contos tradicionais do Brasil. Luis da Câmara Cascudo. Global.<br />

u Maré, vida na favela. Ivaldo Bertazzo, Drauzio Varella, Paola Berenstein Jacques. Casa<br />

da Palavra.


167


Entre hospitais gerais<br />

e psiquiátricos:<br />

histórias humanas e literárias<br />

como um rio de caudaloso fio,<br />

tecendo redes de encontros<br />

na diversidade de afluências<br />

do viver saudável<br />

o


[Kika Freyre]<br />

Uma Contadora e um livro de histórias. Uma enfermaria e várias crianças. Foi<br />

assim que os contos chegaram ao Hospital Universitário Oswaldo Cruz, no Recife<br />

(Brasil), para que pudessem construir laços de parceria com o tratamento quimioterapêutico<br />

e cardiológico de crianças.<br />

Vieram fazer parte do Programa A Arte na Medicina às vezes cura, de vez em quando<br />

alivia, mas sempre consola, da Faculdade de Ciências Médicas da UPE (Universidade<br />

de Pernambuco), que já contava com oficinas de artes plásticas, fotografia e vários<br />

instrumentos musicais. Para estas aulas, as crianças precisavam ir até a Escolinha<br />

de Artes e Iniciação Musical, no próprio hospital. Mas e aí e quando estas crianças<br />

estavam em processo de quimioterapia E quando as suas defesas, de tão baixas não as<br />

deixavam sair da enfermaria Que fariam elas Daí a ideia da Oficina de Contos, para<br />

levar as histórias ao pé da cama, ao pé do ouvido, sobretudo às crianças que, cheias de<br />

achaques e cateteres, mal podiam ficar de pé.<br />

As histórias foram chegando comigo e logo se propagavam por todo aquele andar.<br />

As crianças pediam e a médica prescrevia: amor todos os dias, remédios tal e tal hora<br />

e ao menos uma história por semana. E assim, se cumpria a rotina terapêutica, sempre<br />

quebrada pela chegada de gente nova ou pela alta de quem lá estava – às vezes<br />

também se quebrava pela morte, mas isso é uma outra história. E rápido, como efeito<br />

de medicação intravenosa, os contos passaram a fazer parte do tratamento e, uma vez<br />

por semana, cada criança recebia a sua dose de fantasia.<br />

Mas não era só de fantasia que a Oficina de Contos vivia. Porque as histórias<br />

169


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

170<br />

literárias, depois de contadas, acabavam por convidar histórias humanas a fazerem<br />

parte daquele cenário. Como numa trança. Como num encontro de águas de rios<br />

diferentes, desaguando num mesmo mar. É isso! E assim, com o fechar do livro, era<br />

passado o fio da palavra às crianças, onde se partilhava alegrias e desassossegos, medos<br />

e surpresas, encontros, dúvidas, delicadezas. A vida e a morte caminhavam juntas,<br />

lado a lado, e não em sentidos opostos como se costuma pensar. As crianças falavam<br />

da saudade de casa, dos irmãos, da escola, dos animais de estimação, da comida<br />

feita pela sua mãe e também falavam de outras crianças que, com o seu mesmo diagnóstico,<br />

encerravam ali suas histórias, quando elas pareciam estar apenas começando.<br />

A palavra guardava para nós um prestígio de nobreza. E a estas histórias humanas,<br />

começamos a dar-lhes fisionomia de contos, criando um mundo onde morassem<br />

para sempre todas as possibilidades, já que, ali, elas eram tão tolhidas pelas rotineiras<br />

normas do tratamento. E, neste mundo, entre o papel e a minha caneta, leite puro<br />

poderia ter gosto de leite com café pra agradar menino, uma vaca podia morrer de<br />

olhos abertos porque foi assim que menino viu sua avó morrer, as injeções podiam se<br />

abraçar dentro da geladeira pra curar solidão de menina, mãe-pomba podia dar cuscuz<br />

na boca do filhote pra agradar outro menino, e menina podia entrar até na fogueira<br />

pra abraçar a mãe sem se queimar, de tanta saudade que ela tinha.<br />

E em reverência a estas histórias, criadas ali na Oncologia, cortejadas pela dificuldade,<br />

editamos um primeiro livro cheio de histórias e, logo, o segundo. E a palavra<br />

continuava a ser levada pela correnteza da Oficina de Contos, que foi então desaguar<br />

também na Enfermaria da Cardiologia Pediátrica. O processo continuou seguindo o<br />

mesmo fio, reverenciando histórias humanas a ofertar-lhes histórias literárias. E editamos<br />

o terceiro e o quarto livros. Depois uma coletânea deles todos com livro e CD.<br />

As histórias humanas passaram a inspirar a criação de histórias literárias e, quando<br />

eu chegava, as crianças já anunciavam ter histórias inteirinhas morando em suas<br />

cabeças para me contar. Compomos um movimento bonito, uma sintonia mesmo,<br />

como as ondas e a areia, de ir e vir, de esperar pelo que se sabe chegar e chegar com<br />

maciez, com maciez de se estar tocando em sonhos infantis, uma imensa coleção de<br />

tesouros, rara, sensível, desigual.


E se os contos nos encantam tanto, nos inspiram tanto e neles nos reconhecemos<br />

tanto, é porque eles trazem expressas em metáforas as nossas necessidades primordiais<br />

de aprender com a vida, de viver as suas aventuras, e o fio da história vem como um<br />

rio, nos carregando na sua correnteza para dentro dela, e estar em uma enfermaria<br />

de hospital, definitivamente, não nos impede de nada. Porque através da partilha da<br />

palavra neste cenário montado entre Contador, criança, história e hospital, o Contador<br />

que também escuta a história da criança busca dosificar (e também dulcificar)<br />

a carga pesada de suas histórias humanas, a aproximação com a morte, com o medo,<br />

com a solidão, com a dúvida, com a dor. É diferente de fingir que elas não existem,<br />

atenção! Mas é tentar buscar um equilíbrio, subjetivo, claro, sem receitas, entre toda<br />

a mazela emocional que a aflige e a promessa de felicidade perpétua que encerra as<br />

histórias literárias. E assim, as histórias acabam por às vezes ajudar a curar, n’outras a<br />

aliviar e n’outras ainda a consolar crianças e pais em situação de longo internamento.<br />

Os pais se aproximam mais dos filhos, e o diálogo flui mais transparente, brando, feito<br />

água de nascente. E cada vez mais os pais escolhem participar e partilhar histórias<br />

ouvidas, vividas e inventadas.<br />

Porque cada vez mais as pessoas buscam voltar ao tempo deste contato perdido,<br />

de partilhar o olhar, o gesto terno, a graça, a verdade das palavras. E o Contador de<br />

Histórias ganha força neste cenário, porque, para além da história que amortece o<br />

correr dos batimentos cardíacos, amacia a velocidade da pressão arterial, ele, o Contador,<br />

oferece no hospital este ambiente de possibilidades. Traz um viver feliz para<br />

sempre provável e a cada encontro, perpetua esta probabilidade. E acreditar nesta<br />

possibilidade de cura pode inverter muitos papéis de doenças. Porque esta crença<br />

acaricia a autoestima, passa um bálsamo na imunidade, elevando os números das<br />

defesas orgânicas. Fisiologicamente as histórias mexem conosco também. Elas entram<br />

pelos nossos poros, pelos nossos olhos, pelas janelas da nossa alma e se alojam ali,<br />

lá dentro, no sótão do nosso coração e a gente sabe que o sangue que passa, carrega<br />

tudo, inclusive os sonhos de cura que as histórias plantam lá naquele cantinho tão<br />

‘desavistado’ dentro de nós.<br />

...<br />

Kika Freyre<br />

171


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

172<br />

Mais uma vez, uma Contadora e um livro de histórias. Uma Casa para tratamento<br />

psiquiátrico de adultos no Recife/Brasil (NAPPE) e outra em Braga/Portugal (Casa<br />

de Saúde do Bom Jesus).<br />

Também aqui os contos chegavam como fios, tentando alinhavar o emaranhado de<br />

desintegrações que faziam sofrer a alma das pessoas que ali buscavam cura, alívio, consolo.<br />

As pessoas com esquizofrenia vivem um processo de desintegração de sua personalidade<br />

e os contos ajudam a montar este mosaico desconectado a partir do reconhecimento<br />

de traços próprios nas características dos personagens. Por alguns momentos,<br />

uma história que pertence a toda a humanidade passa a pertencer a uma só pessoa,<br />

como se falasse dela, como se houvesse sido escrita pra ela, tamanha a empatia com seus<br />

feitos e personagens.<br />

Os contos são oferecidos como acalantos, como uma possibilidade de embalar<br />

sonhos reais, que estavam perdidos ou desacreditados. Eles carregam o cheiro da esperança<br />

um dia vivida, sobretudo da esperança de se viver um final feliz em seu próprio<br />

conto real, em sua história de vida.<br />

A estrutura literária dos contos possibilita a reestruturação do pensamento esquizofrênico:<br />

quando escuta um conto, a pessoa segue o seu fio, seu trajeto e assim começa<br />

a ordenar seus pensamentos quebrados, desconectados a partir de uma mesma ordem<br />

e então é possível se compreender muitas de suas atitudes, dos seus delírios, das suas<br />

ausências, das suas desintegrações com a ‘vida comum’.<br />

Ademais dos contos, também é rico se trabalhar com as imagens que estes contos<br />

suscitam nas pessoas. Com estas imagens, propomos a conexão entre a história<br />

literária e a história de vida, história humana. Uma conexão com o que há de saudável<br />

nesta pessoa que sofre e buscar fazer com que esta salubridade se manifeste frente<br />

à doença. É um duelo difícil, mas possível. Ao escutar, escrever, ler e contar esta<br />

história ao longo do seu tratamento, a pessoa que está doente começa a tomar posse<br />

da sua própria história, vai juntando as linhas para tecer-se como o croché de um novo<br />

sujeito que agora se reconhece e conhece o seu entorno e pode ir voltando a tomar as<br />

suas próprias decisões e voltar a funcionar de forma ativa em sua vida; podendo falar


de si e conhecendo os seus limites, pode fazer com que as novas histórias os ampliem<br />

cada vez mais.<br />

Este é o objetivo de se trazer as histórias, do popular para o individual, do plural<br />

para o singular, e cuidar de feridas emocionais tão particulares e tão comuns. E nesta<br />

teia de diversidades, tínhamos a pluralidade humana, a constantemente enriquecer<br />

o nosso enredo:<br />

Esta menina aqui é Contadora de Histórias. Contou-nos uma história tão linda e tão interessante<br />

na passada quinta-feira, que eu pedi a cópia para reler todas as vezes que a coragem me<br />

faltar para resolver a minha vida. Eu nunca vi um lugar com Contadora de Histórias, mas<br />

aqui é assim. E foi a melhor coisa que me aconteceu aí dentro. Eu quero esquecer que adoeci<br />

e tive que me internar estes dez dias por causa do meu marido, quero esquecer! Mas quero<br />

lembrar sempre desta história porque ela me ajudou a resolver como a tecelã resolveu. E depois<br />

eu percebi o que eu quero e percebi que não quero esta vida para mim, de trabalhar por quem<br />

só me quer para serviçal. Eu nunca vou esquecer esta história. Parece que a menina adivinhou<br />

e a trouxe mesmo para mim. Obrigada! Joca, 53 anos<br />

Para este trabalho com histórias, o diagnóstico pouco importa. O rótulo mais<br />

importante é o nome de cada uma destas pessoas – que também escolhem alcunhas<br />

para quando as suas frases aparecerem citadas. E sempre começamos a trabalhar em<br />

busca de se conhecer a história deste nome que se carrega por toda biografia, que,<br />

para tanta gente, traz uma força desigual. E, a partir daí, partilhamos enredos onde as<br />

pessoas traduzem capítulos das suas vidas... e das suas tantas mortes.<br />

São importantes as histórias para uma pessoa ouvir e vir a pensar sobre o que está a fazer<br />

da sua vida. Vico, 38 anos<br />

E cavando os alicerces dos seus trajetos, encontramos pessoas que foram se construindo<br />

enchidas de nada, carentes, carentes de tudo, inclusive de ouvidos para suas<br />

próprias histórias. E diante deste manancial, fazemos juntas um trabalho arqueológico<br />

mesmo. Trabalhamos com memória, com acervo, com patrimônio imaterial. Trabalhamos<br />

com a leitura e a constante proposta de releitura dos fatos vividos em busca<br />

de um sentido para esta vida.<br />

Kika Freyre<br />

173


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

174<br />

Há histórias que trazem mistérios. Eu gosto do mistério das histórias. As nossas vidas também<br />

trazem mistérios. As histórias são as nossas vidas contadas aos poucos, de mistério em<br />

mistério. Carlota, 39 anos<br />

Trabalhamos com o que está guardado. Trabalhamos com o mistério e com os<br />

tantos vazios que às vezes passamos a vida inteira em busca de conseguir preencher.<br />

Trabalhamos com o que ficou retido daquele ‘eu’ que, com receio do mundo, encontrou<br />

no adoecer a única possibilidade de conseguir sobreviver. Trabalhamos com a<br />

verdade. Não a verdade que se cria para se apresentar ao mundo, a verdade social, mas<br />

a verdade íntima, profunda, desigual. Aquela que existia antes do mundo imprimir<br />

a nossa imagem em nós. Daí a importância da posse da nossa história. Da história<br />

legitimamente nossa, genuína. Construída com as linhas que contornam nosso semblante,<br />

que tatuam a nossa alma e nos acompanham por toda a caminhada; para que<br />

saibamos reconhecer quando aquele enredo ou aqueles personagens não fazem parte<br />

dos nossos capítulos e, assim, possamos construir e demarcar nossos parágrafos com<br />

os nossos próprios pontos finais.<br />

E peneirando os tesouros brotados entre histórias humanas e literárias, editamos<br />

dois livros com contos criados na partilha de olhares, palavras e silêncios.<br />

‘ A lenda das sementes e outras histórias bonitas (FREYRE, Kika [Org.], Ed. Livro<br />

Rápido, Olinda, 2006)<br />

‘ À margem de um sol poente… histórias de vários caminhos (FREYRE, Kika [Org.], Ed.<br />

Novo Estilo, Recife, 2007)<br />

E assim, seguimos buscando e partilhando o que há de saudável, nobre e rico,<br />

o que ainda está guardado no sótão do coração da alma, onde a doença pode até<br />

tentar chegar, mas não alcança. Onde as metáforas da vida e os desassossegos diários<br />

propõem novas esperanças a cada nascer do sol.


Ser mulher com doença mental é o nosso desassossego dia-após-dia. É preciso ter força de<br />

vontade para que sejamos grandes pessoas na sociedade e no meio em que estamos a viver.<br />

As histórias ajudam-nos a buscar esta força dentro de nós, onde ela existe de verdade. As<br />

histórias ajudam-nos a não perdermos a fé em nós. LaraLinda, 49 anos<br />

E isto é tudo.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u A Psicanálise dos contos de fadas. Bruno Bettelheim. Paz e Terra, 1980.<br />

u O que conta o conto Jette Bonaventure. Paulus, 1992.<br />

u No terreno das histórias… sementes de uma medicina humanizada – histórias<br />

para acordar os homens e celebrar a vida. Kika Freyre & Paulo F. B. C .Mello.<br />

EDUPE, 2009.<br />

Kika Freyre<br />

175


Contos na prisão:<br />

um espaço<br />

chamado liberdade<br />

o


[Rosana Mont’Alverne]<br />

Se tens um coração de ferro, bom proveito.<br />

O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.<br />

José Saramago<br />

Contadores de Histórias sempre me fascinaram. Que magia era aquela, capaz de<br />

transportar, encantar, transformar, emocionar, divertir, unir, confortar Qual seria<br />

a motivação dessa gente portadora de histórias tão poderosas De onde vinha tamanha<br />

generosidade, para entregá-las nas horas mais necessárias E o talento para transformar<br />

em arte o singelo ato de narrar Com as histórias aprendi a fazer perguntas e a buscar<br />

respostas diretamente na fonte. Aprendi também que contamos as nossas próprias<br />

experiências. Não nos apaixonamos por um conto de fadas em vão. A partir dessa<br />

reflexão, percebi de onde vinha a minha própria vontade de contar: da necessidade de<br />

me expressar no mundo, de repartir minhas experiências de uma maneira lúdica e interessante,<br />

de ajudar o outro através da palavra do conto, do mesmo modo como sempre<br />

me senti confortada ao ouvir histórias. O discurso direto, as exortações e explanações<br />

meramente racionais, não possuem a força e o poder de tocar os corações, como uma<br />

história bem contada possui. O tempo do “era uma vez” é mágico; é um tempo verbal<br />

que só existe no faz de conta, terreno onde temos a possibilidade de resolver nossas<br />

angústias por meio das aventuras e desventuras dos heróis. Descobri que não estava sozinha,<br />

que mais alguém viveu os mesmos medos e inseguranças que eu. E isso fez pressão<br />

no meu peito: eu precisava compartilhar isso com os outros.<br />

Comecei contando para a família e os amigos. Na medida em que fui me profissionalizando,<br />

passei a me apresentar em associações, espaços culturais, escolas e<br />

empresas. Até que em 1998 propus ao Tribunal de Justiça, onde sou funcionária<br />

concursada, o Projeto Conto Sete em Ponto, constituído por espetáculos mensais de<br />

177


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

178<br />

narração de histórias, sempre na última quinta-feira do mês, no melhor estilo Mushkil<br />

Gusha (se você ainda não conhece a história de Mushkil Gusha, não perca tempo,<br />

existem versões na internet). Durante os dez anos em que o projeto foi realizado nos<br />

auditórios daquela instituição, fizemos dois concursos, que revelaram novos talentos<br />

da arte narrativa e que resultaram em dois livros: Uma história para contar (2004) e<br />

Histórias que ouvi, histórias que vivi: o lado inusitado e pitoresco da Justiça Mineira (2005).<br />

O Conto Sete em Ponto hoje é realizado também em Ouro Preto e, em Belo Horizonte,<br />

os espetáculos acontecem mensalmente no Palácio das Artes.<br />

Os contos tradicionais e a literatura escrita, por possuírem ensinamentos que<br />

ultrapassaram séculos e regiões do mundo inteiro, têm o poder de nos apontar<br />

direções, de produzir insights e de nos despertar de um longo sono. Alguns têm verdadeiro<br />

poder de cura e parecem chegar na hora certa para nos auxiliar em momentos<br />

de escolhas difíceis, mudanças de fases de vida e início de novos projetos. Além do<br />

mais, uma roda de histórias é sempre uma diversão e um momento de religação com<br />

o que temos de mais humano: nossa capacidade de nos percebermos como seres em<br />

movimento; partes de um elo ancestral que nos une e nos lembra de nossa verdadeira<br />

identidade. Em um mundo cheio de padrões e modelos a seguir e a consumir (roupas,<br />

comida, música, modo de vida etc.), as histórias nos ajudam a nos lembrar quem<br />

somos, de onde viemos e para onde vamos. Nesse trajeto, sem dúvida, estaremos mais<br />

seguros se acompanhados de uma boa história.<br />

Em setembro de 2004, recebi uma carta inusitada. O Juiz da Vara de Execuções<br />

Penais de Itaúna, Dr. Paulo Antônio de Carvalho, que conhecia o meu trabalho com<br />

a arte de contar histórias, convidou-me a ministrar oficinas semanais de contos para<br />

os presos da APAC de Itaúna — MG (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados).<br />

Arrematou o convite com um verso de Cecília Meireles: “Não faças de ti um<br />

sonho a realizar. Vai”. Confesso que dúvidas e medos me cercaram. Estaria pronta<br />

para a tarefa Senti que chegava a hora de experimentar o poder da palavra do contador<br />

de histórias no espaço da coerção, da punição, da privação da liberdade: a prisão.<br />

Lembrei-me da situação carcerária no Brasil, que, diga-se de passagem, é ampla-


mente conhecida de todos os brasileiros minimamente informados. O sistema penal<br />

brasileiro vem sofrendo modificações legislativas, muitas vezes por pressão da sociedade,<br />

que vê no recrudescimento das penas e do aparato penitenciário a solução<br />

para a questão da segurança pública e da defesa social. Porém, cresce o número de<br />

encarcerados e cresce também a criminalidade. Não é mais possível e nem útil nos<br />

negarmos a reconhecer que os criminosos são parte do mesmo tecido social do qual<br />

também fazemos parte.<br />

Nesse tecido, eles tanto influenciam quanto são influenciados. Trabalhar pela<br />

recuperação real dessas pessoas, a fim de que possam se reintegrar de forma harmoniosa<br />

na comunidade, oferecer-lhes a oportunidade da socialização em lugar de excluílas<br />

parece ser a melhor alternativa, senão a única, na busca de uma solução definitiva<br />

do problema. Essa não é uma tarefa só do aparato estatal, mas de toda a sociedade.<br />

Mas é preciso esclarecer que a APAC de Itaúna é um estabelecimento prisional<br />

diferente, uma associação civil juridicamente constituída, sem fins lucrativos e tem<br />

apoio dos Poderes Judiciário e Executivo do Estado de Minas Gerais. Sua filosofia de<br />

trabalho é a de que um bandido recuperado é um bandido a menos nas ruas. Lá não<br />

há policiais nem agentes carcerários. Voluntários atuam em diversas áreas e os presos<br />

tomam conta dos presos. A APAC de Itaúna é referência mundial em recuperação de<br />

presos e foi o solo fértil para o desenvolvimento do trabalho com os contos.<br />

Nem é preciso dizer que aceitei o convite. Quantas portas se abrem quando nos<br />

permitimos entrar na aventura e nos lançamos com paixão em nosso ofício!<br />

Os participantes – todos condenados cumprindo pena em regime fechado –<br />

começaram a escutar histórias, contar, recontar, ler e criar, além de ter aulas sobre<br />

postura corporal, técnica vocal, expressão oral, gestual e visual e outros segredos que<br />

formam o bom contador de histórias. Nas improvisações, a criatividade e a memória<br />

são estimuladas; surgem belíssimas histórias, transcritas e incorporadas ao repertório<br />

do grupo. Antigos contos de fadas são recontados e discutidos, gerando reflexão e<br />

aprendizagem. Os contos surgem como opção de resignificação de vidas, de encantamento<br />

da própria história, que passa a ter valor. Esse é o principal objetivo do projeto:<br />

Rosana Mont’Alverne<br />

179


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

180<br />

enriquecer o imaginário dos presos, trazendo-lhes novas representações, situações<br />

semelhantes às suas, mas tratadas de outra maneira. Trata-se de oferecer-lhes a chance<br />

de se recriarem em uma nova história onde a queda seja um acidente de percurso e<br />

não um destino irrefutável. Um acidente com o qual se aprende o que tiver para ser<br />

aprendido e se avança no caminho.<br />

Como resultado desse trabalho, foi formado um Grupo – os Encantadores de<br />

Histórias – que desde 2004 vem representando a APAC de Itaúna em outras cidades,<br />

sensibilizando as comunidades para a necessidade de outro olhar e novas atitudes<br />

quanto à recuperação de presos. O Grupo já se apresentou também em diversas universidades,<br />

Encontros Internacionais de Contadores de Histórias no Rio e em São<br />

Paulo, presídios, Centros de Internação de Menores Infratores, Encontros de Magistrados,<br />

escolas, creches e teatros. Também já foi publicado o primeiro livro de autoria<br />

coletiva do Grupo: O segredo da caixa (2006). A escolha do nome do Grupo, sugerida<br />

pelos próprios presos, foi uma grata revelação: Encantadores de Histórias. A beleza do<br />

nome reflete um poderoso desejo se não apenas contar, mas encantar, o que, segundo<br />

os dicionários, significa: “exercer encantamento em; tornar-se encantado”. Não esperava<br />

o nível de envolvimento do grupo com a proposta nem o quanto aprenderia<br />

com eles. Durante as primeiras oficinas, lembrava-me recorrentemente das palavras<br />

de Guimarães Rosa: “mestre é aquele que de repente aprende”.<br />

Falar de arte-educação e contos de fadas dentro de uma cadeia como possibilidade<br />

de recuperação pode parecer, à primeira vista, mais uma utopia. Será que contadores<br />

de histórias e esses teóricos da arte-educação já entraram em uma penitenciária pelo<br />

menos uma vez na vida Será que eles acham que contando histórias ou ouvindo as<br />

histórias dos presos, estes vão sair de lá bonzinhos e nunca mais voltarão ao crime<br />

Certo é que por detrás de uma sociedade cada vez mais armada, onde as empresas de<br />

segurança proliferam e auferem lucros exorbitantes, onde crescem os condomínios<br />

fechados, onde impera a truculência policial, a violência urbana, os morros ocupados<br />

por traficantes e onde os altos índices de morte violenta causam indignação a poucos,<br />

há um sentimento: o MEDO.


Como disse o então Presidente da APAC de Itaúna, atual Presidente da FBAC<br />

(Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados), Valdeci Antônio Ferreira:<br />

A sociedade vive hoje o drama do medo. É como se ninguém mais pudesse se sentir seguro.<br />

Medo do terrorismo. Medo do tráfico de drogas. Medo da violência e da poluição. Medo<br />

do desemprego e da solidão. Medo da guerra e do abandono. Medo da doença e da velhice.<br />

Medo das balas perdidas e das balas não encontradas. Medo de que chova muito e leve as<br />

casas. Medo de que não chova e aumente a fome. Medo da fraude e da corrupção. Medo da<br />

verdade que dói e da mentira que mata.<br />

Os presidiários também vivem nesse constante estado de medo. Temem as fugas,<br />

as rebeliões, a doença, a morte na calada da noite, além de temerem o que está além<br />

do seu controle, no mundo exterior: a reação da família, a infidelidade do cônjuge, o<br />

rigor do julgamento e a (não) assistência do advogado. O medo funciona como uma<br />

doença, afetando o nosso bem-estar e disseminando insegurança. A cura, ou seja, a<br />

restauração da tranquilidade, é uma necessidade de todos nós. Valdeci Antônio Ferreira<br />

também percebeu esses sentimentos e concluiu:<br />

Nesse momento, me vem à memória as minhas avós já falecidas, minha mãe e meu pai em<br />

volta do fogão à lenha, comendo biscoito frito e tomando café. Recordo-me, com saudades,<br />

das histórias contadas e recontadas para afastar o nosso medo de criança. (...) Tem gente<br />

que conta histórias para afastar o medo; e essas histórias contadas e recontadas possuem o<br />

dom de encantar a vida.<br />

Contra o medo – nosso e dos presos – acredito na contribuição da força da palavra<br />

do conto ou da palavra encantada ou, ainda, na força na “boa palavra”, que carrega<br />

consigo a sabedoria e a possibilidade de dar nova interpretação a fatos do passado<br />

que não podem ser mudados. A palavra do contador de histórias, trabalhada artisticamente,<br />

ganha o atrativo estético, que cativa e encanta o ouvinte, conduzindo-o até<br />

a sabedoria e aos ensinamentos guardados no conto. A arte permite que o ouvinte se<br />

integre ao que é sublime, enriquecendo a experiência.<br />

Na atualidade, o retorno da prática da narração de histórias obedece a uma necessidade<br />

que extrapola a intenção profissional do artista, mas favorece a função social da<br />

Rosana Mont’Alverne<br />

181


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

182<br />

prática e o bem-estar individual. A integração de um indivíduo mais equilibrado com o<br />

mundo ao seu redor é um dos efeitos que se destaca a partir do diálogo com os contos.<br />

Um presidiário é duplamente condenado. Primeiro pela Justiça e, nesse caso,<br />

cumpre pena pelos seus próprios delitos praticados. Não é o caso de, aqui, entrar<br />

nesse mérito. Quanto à segunda condenação, sim. A segunda condenação de um<br />

presidiário é pela linguagem. Esta o aprisiona num estado de pouca mobilidade, pois,<br />

muitas vezes, é pobre em imagens e vazia de sentidos; e, ainda que não o seja, a<br />

repetição incessante de um mesmo “trecho” da própria história – esse que o levou à<br />

condição de presidiário – tende a fixá-lo num estranho curriculum repetido como uma<br />

litania que, aos poucos, o caracteriza como lenda viva, que fascina e atrai a curiosidade<br />

mórbida em seu entorno.<br />

Muitos podem sugerir que a superpopulação carcerária, as condições deficientes<br />

de trabalho dos presos ou o ócio completo, a falta de higiene, a promiscuidade sexual,<br />

a assistência psicológica deficiente ou inexistente e problemas como corrupção e violência<br />

são fatores que precisam ser enfrentados prioritariamente. E estão certos. É<br />

preciso uma conjugação de forças, trabalho e método a fim de que se obtenha o ambiente<br />

propício para o plantio de sementes como, por exemplo, iniciativas no campo da<br />

arte-educação. No caso, as sementes das histórias. Mas é bom lembrar que, no Brasil<br />

ou em qualquer lugar do mundo, nem sempre podemos contar com as condições<br />

ideais para começar um empreendimento. Às vezes, é preciso simplesmente começar.<br />

Muito cedo aprendi que nada nessa vida vem de graça, tudo é fruto de esforço e muito<br />

trabalho, como dizia minha mãe. Também meu avô, com sua sabedoria de matuto,<br />

ensinava a evitar os atalhos nos longos caminhos a percorrer na construção dos sonhos:<br />

se atalho fosse bom, não existiriam os arredores, dizia, entre uma baforada e outra do<br />

cigarrinho de palha. Aprendi, mais tarde, que Gaston Bachelard lhes daria razão ao<br />

afirmar, na sua obra O direito de sonhar, que nada é dado, tudo é construído. Se é assim,<br />

tudo é possível, até transformar presidiários em cativantes contadores de histórias.<br />

Por que não


Leituras Inspiradoras<br />

u As prisões da miséria. Loïc Wacquant. Jorge Zahar Editor, 2001.<br />

u Mulheres que correm com os lobos. Clarissa P. Estés. Rocco, 1992.<br />

u Le droit de rêver. Gastón Bachelard. PUF, 1970.<br />

u Correspondências do cárcere: um estudo sobre a linguagem de prisioneiros.<br />

Rosana de Mont’Alverne Neto. Dissertação de Mestrado em Educação. UFMG, 2009,<br />

disponível em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/FAEC-<br />

84PJD5<br />

Rosana Mont’Alverne<br />

183


Histórias em sinais<br />

o


[Lodenir Karnopp]<br />

Aprimeira aproximação que tive com pessoas surdas e a língua de sinais foi<br />

através de Cursos de Libras e, posteriormente, como professora de português em<br />

uma escola de surdos. Aproximação que trouxe e traz rupturas, possibilidades, deslocamentos.<br />

Estranhamento diante da língua e da cultura surda. Fala suspensa, sinais<br />

que emergem, sinais que capturam o olhar e a atenção. Sinais que contam histórias.<br />

“Atenção aos sinais!” foram os enunciados propositivos nos cursos de Libras e nos<br />

diálogos com os surdos! Olhares atentos, histórias em sinais trouxeram-me experiências<br />

com a língua de sinais, uma língua que flui através de mãos que vão combinando<br />

movimentos, configurações de mão, pontos de articulação, expressões faciais<br />

e corporais, posicionando o sujeito discursivamente. Visual-gestual, modalidade de<br />

uma língua de sinais, que alavanca uma diferença na forma como tradicionalmente<br />

concebemos as línguas. Línguas de sinais que nos posicionam e nos jogam para outra<br />

experiência: aquela em que o logofonocentrismo é deslocado.<br />

Olhares atentos, mãos ágeis e a ressignificação dos enunciados – difícil, longo,<br />

constante, mas atraente aprendizado. A língua sendo tecida naquele espaço de enunciação<br />

em frente ao corpo, com sinais articulados em diferentes camadas linguísticas.<br />

Discursivamente nos posicionamos, as armas sonoras silenciam, possibilitando<br />

o cultivo de uma outra experiência, em uma comunidade que interpela nosso olhar,<br />

nossos sinais.<br />

Não é simplesmente um deslocamento da experiência linguística falada para<br />

outra, que é visual. Trata-se, antes de tudo, de considerar que há sinais que nos per-<br />

185


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

186<br />

mitem olhar e outros que nos ensinam a olhar. Olhar a cultura, o sujeito, a língua. A<br />

experiência, e aqui com referência à experiência de uma língua visual, é aquilo que<br />

“nos passa, que nos acontece, o que nos toca”. A experiência que estamos referindo<br />

considera “aquilo que nos acontece, nos sucede” 1 .<br />

Fui paulatinamente me aproximando das histórias que são contadas em Libras<br />

através das mãos que contam histórias. No entanto, esse contato ocorreu após alguns<br />

anos de convívio com a comunidade surda. Como professora de português, meu<br />

olhar esteve muito centrado em ensinar português. Ao me aproximar da comunidade<br />

de surdos, conviver com amigos surdos e ler textos relacionados às experiências de<br />

vida de pessoas surdas, tanto em narrativas sinalizadas quanto em textos acadêmicos,<br />

encontrei outras possibilidades de diálogo, de trocas, de aprendizados. Aprendi, por<br />

exemplo, com Miranda (2001), pesquisador surdo, que a escrita na língua portuguesa<br />

continua sendo a camisa de força que limita e conforma o saber à capacidade de<br />

decifração gráfica. Muitos dos programas de educação fracassam, também porque<br />

parte-se do princípio de que a língua portuguesa deve ser igual para todos. E esses<br />

todos são pessoas tratadas como monolíngues, assexuadas, sem história ou idade, sem<br />

raça, sem emprego, sem desejos. O apagamento da diferença linguística e cultural<br />

tem historicamente posicionado o surdo como ‘deficiente linguístico’, prevalecendo o<br />

acento em uma tradição que rejeita a existência de uma pluralidade de manifestações<br />

linguísticas.<br />

Presenciamos cenas em que não se reconhece a situação bilíngue do surdo e se<br />

rejeita de forma intolerante qualquer manifestação linguística diferente. Diante de<br />

tais cenas, uma das maiores contribuições que contadores de histórias, pesquisadores<br />

e educadores de surdos podem prestar hoje é varrer a ilusão da “deficiência linguística”<br />

e trazer para o cenário outras histórias, outras imagens, outras narrativas, outras<br />

traduções, outras línguas, outros olhares.<br />

Apesar de mudanças significativas na legislação e de iniciativas de algumas instituições,<br />

o fato é que, há muito tempo, temos por parte dos surdos uma luta histórica<br />

tentando fazer valer a diferença linguística e cultural que lhes é devida, não somente<br />

1. (Larrosa 2002, p. 24)


nos espaços escolares, mas também na mídia e nos diferentes artefatos culturais.<br />

Sabe-se que há a predominância de uma única forma linguística, silenciando as manifestações<br />

linguísticas tecidas em outras línguas, como é o caso, inclusive, da Libras.<br />

Desse modo, é “emudecida a trova, são silenciadas as histórias antes contadas nas<br />

quermesses, põe-se para adormecer a memória popular, imobilizam-se as mãos e as<br />

narrativas que os sinais tecem.” (Souza 2000, p. 87)<br />

O desafio é, então, explorar as condições de possibilidade de um olhar sobre a<br />

surdez que não se limite à deficiência, limitação, incapacidade. Que não se limite a<br />

uma “aceitação” ou tolerância da língua de sinais.<br />

Aproximei-me de narrativas, de poemas em Libras através de histórias contadas<br />

por surdos em diferentes momentos: nas associações de surdos, nos encontros anuais<br />

da Feira do Livro em Porto Alegre, em escolas de surdos. Épicos, poemas, anedotas<br />

e contos foram capturando meu olhar, minha atenção, tornando-se um dos temas<br />

de pesquisa que venho realizando. O encontro com a literatura surda, com histórias<br />

contadas em sinais e com traduções de diferentes histórias traduzidas para a Libras<br />

foram trazendo a articulação de olhares entre/culturas. Esse movimento poético/<br />

político evidenciou que “Os surdos começam a se narrar de uma forma diferente, a<br />

serem representados por outros discursos, a desenvolverem novas identidades surdas,<br />

fundamentadas na diferença (...)” (Skliar 1999, p. 12).<br />

Nas últimas três décadas, no Brasil, ocorreram importantes conquistas das comunidades<br />

surdas, em diferentes espaços, especialmente, o reconhecimento da cultura<br />

surda e a oficialização da Língua de Sinais Brasileira. Produções culturais de surdos<br />

possibilitaram a elaboração de outras representações sobre os surdos.<br />

Atualmente desenvolvemos um projeto de pesquisa intitulado Literatura Surda.<br />

Buscamos histórias que são contadas por surdos contadores de histórias em diferentes<br />

regiões no Brasil, em Libras, seja presencialmente (em Associações de Surdos,<br />

Escolas de Surdos...) ou virtualmente (internet, youtube). Quando analisamos a Literatura<br />

Surda, a primeira observação que podemos fazer é que ela tem uma tradição<br />

próxima a culturas que transmitem suas histórias oral e presencialmente. Manifesta-se<br />

Lodenir Karnopp<br />

187


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

188<br />

nas histórias contadas em sinais; no entanto, o registro de histórias contadas no passado<br />

permanece na memória de algumas pessoas surdas ou foram esquecidas. Desse<br />

modo, quando analisamos as histórias contadas em sinais, percebemos formas visuais<br />

do registro dessas histórias, por exemplo, através da filmagem de histórias (fitas VHS,<br />

CD, DVD), de textos impressos que apresentam imagens, fotos e/ou traduções para<br />

o português. O registro da literatura surda começou a ser possível principalmente a<br />

partir do reconhecimento da Libras e do acesso à tecnologia, que possibilitaram formas<br />

visuais de registro dos sinais.<br />

As histórias contadas por surdos em línguas de sinais marcam a cultura surda, são<br />

caracterizadas pela experiência visual, corporificadas em prosa e verso de um modo<br />

singular, em que o enredo, a trama, a linguagem utilizada e os sinais evidenciam<br />

o caminho da autorepresentação dos surdos na luta pelo estabelecimento do que<br />

reconhecem como suas identidades, legitimando sua língua, suas formas de narrar as<br />

histórias, suas formas de existência, suas formas de ler, traduzir, conceber e julgar os<br />

produtos culturais que consomem e que produzem.<br />

Para a análise das produções culturais em comunidades de surdos, deslocamo-nos<br />

entre a diferença linguística e cultural, entre fronteiras definidas e limites porosos, entre<br />

pessoas que compartilham a experiência visual e o uso de uma língua de sinais. Como<br />

pesquisadores, preocupa-nos o fato de que o que aparentemente são “histórias que nos<br />

fazem rir” possam, no entanto, servir para nutrir caricaturas e estereótipos. Entramos<br />

em cena à procura de histórias e, às vezes, involuntariamente, caminhamos em direção<br />

ao campo das construções do “outro”, nutrindo uma política de representação que frequentemente<br />

contribui para uma caricatura das mulheres e dos homens surdos.<br />

Uma vez que coletamos histórias de nossos contadores, a próxima etapa a demonstrar<br />

dificuldade envolve a interpretação, a tradução e a intraduzibilidade. Quando<br />

analisamos e traduzimos histórias/narrativas produzidas em língua de sinais, nós –<br />

pesquisadores — estamos inclinados a sermos atraídos pelo exótico, pelo bizarro, pelo<br />

violento. À medida que fazemos uma reflexão sobre as narrativas em sinais, nos sentimos<br />

na obrigação de explorar meticulosamente a rotina, o cotidiano, a experiência


de ser surdo e usuário de uma língua minoritária, sinalizada.<br />

Reconhecemos que traduzir histórias pode apresentar diferentes possibilidades de<br />

análise. A convergência é improvável e, talvez, indesejável. Enfim, suscetíveis à contradição,<br />

à heterogeneidade e à multiplicidade, produzimos uma colcha de histórias<br />

e uma tela de sinais que conversam entre si em tom de disputa, dissonância, apoio,<br />

diálogo, contenda e/ou contradição.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u O nome dos outros. Narrando a alteridade na cultura e na educação. Silvia Duschatzky<br />

e Carlos Skliar. In: Habitantes de Babel. Políticas e poéticas da diferença. Jorge<br />

Larrosa e Carlos Skliar. Autêntica, 2001, p. 119–138.<br />

u Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Jorge Larrosa. Revista Brasileira<br />

de Educação. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, n. 19,<br />

2002, p. 20-28.<br />

u Atualidade da educação bilíngüe para surdos. Carlos Skliar (org.). Mediação, 1999.<br />

(vol. 1 e 2)<br />

u Que palavra que te falta Lingüística, educação e surdez. Regina Maria de Souza.<br />

Martins Fontes, 1998.<br />

u Contando histórias sobre surdos(as) e surdez. Rosa Silveira. In: Estudos Culturais em<br />

Educação. Marisa V. Costa. UFRGS, 2000.<br />

Lodenir Karnopp<br />

189


Palavras táteis<br />

o


[AnaLu Palma]<br />

Entrei na sala e encontrei uma plateia barulhenta, sentada de forma muito<br />

desorganizada. Uma plateia que não se dispunha frontalmente ao palco, como é<br />

de hábito em apresentações. O espaço físico era preenchido por aqueles corpos numa<br />

composição incomum aos meus olhos necessitados de harmonia formal. Desejei criar<br />

frases em relevo no chão e em cada letra, dispor uma cadeira, alinhando palavras e<br />

corpos. Palavras táteis que organizassem, conduzissem e distribuíssem aquelas pessoas<br />

no espaço. Mas isso foi só um lampejo, habituada que estou a me valer das palavras<br />

para dar conta do inusitado.<br />

Tenho por costume sorrir para cumprimentar e para chamar a atenção. É uma<br />

espécie de cartão de visitas que captura o olhar do outro e me coloca na zona privilegiada<br />

do foco. Sorrio com o corpo todo e sei o que meu sorriso provoca. Contudo,<br />

não adiantaria nada este recurso. A menos que eu esculpisse pelas paredes meu rosto<br />

e convocasse todos ao toque. Imaginei diversas bocas escancaradas em alegria tátil,<br />

cumprindo sua função costumeira de simpatia. Isso era mais um raio de imaginação,<br />

buscando adaptar meios para resolver a realidade nova que se me apresentava.<br />

Inspirei fundo e escolhi a dedo as palavras que trariam para mim a atenção de<br />

todos. Pressenti que escolher a forma de dizer seria mais contundente do que as<br />

palavras em si. E como nos exercícios de leitura, imaginei uma mesma frase sendo<br />

dita com ternura, com veemência, com desleixo, com piedade, em tom de súplica.<br />

Ensaiei baixinho, só na minha cabeça. Quantas entradas diferentes eu poderia ter<br />

nesta mesma sala, quantas impressões diferentes poderia causar apenas pela maneira<br />

191


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

192<br />

diversa de me dirigir ao público. Escolhi as palavras sopradas do coração.<br />

Súbito silêncio. E eu, tão afeita a silêncios meditativos, gostaria de assim permanecer.<br />

Procurar uma comunicação outra, cinestésica, sensorial, perceptiva, quando<br />

ondas calorosas e coloridas se comunicariam umas com as outras. E um turbilhão de<br />

auras tomaria a sala, deslizando livres e expressivas, comunicando os estados emocionais<br />

mais escondidos na alma. Todos os sentimentos se revelariam. Um mar de luzes<br />

interagindo, se harmonizando, se fundindo... Até que uma voz perguntou:<br />

Vai começar<br />

Imaginei o barulhento: Começa! Começa! Começa!<br />

Abri o livro. Recebi o vento da folha (de) no rosto. Minhas mãos deslizaram pela<br />

página. Eu queria tocar as palavras, mas palavra de vidente é chata, amassada, comprimida.<br />

Minhas letras não são de arquiteto, afeitas ao carinho da pele. Desejei a textura<br />

do A, me aproximar do G, tocar o Q. As palavras não estão ao alcance de minhas<br />

mãos: tenho dedos que não leem. Elas se dão aos meus olhos, vejo-as. Queria tatuar<br />

em minha pele um poema de Pessoa em relevo.<br />

As palavras inanimadas do livro tomaram a forma dos estados de alma propostos<br />

pelo autor. Busquei um contato com a plateia através dos sons que emitia. As palavras<br />

saíam de minha garganta e meus lábios como pedaços de ideias tridimensionais.<br />

Assim, iam sendo transportadas e arquivadas na lembrança dos ouvintes. Eram pedaços<br />

imateriais a repercutir no espírito daqueles que me emprestavam os ouvidos.<br />

Minha voz queria ir ao encontro do outro, aniquilar nossas solidões, fazer unas<br />

as dores, angústias, paixões, alegrias. Minha voz articulada em palavras criava pontes<br />

unificadoras e humanas.<br />

Contar histórias para pessoas cegas abriu minha imaginação, porque precisei lidar<br />

com uma realidade completamente diferente da minha. Fez com que eu saísse de<br />

minha condição de quem enxerga para compreender o que era ser e estar no mundo<br />

sem poder ver o pôr do sol ou sem enxergar o rosto do homem amado.<br />

No contato com esta realidade pude compreender a escassez de livros disponíveis<br />

para os cegos e eu, tão afeita à literatura, decidi trabalhar, criando um acervo de livros


gravados. Contudo, eu sozinha seria incapaz de dar conta do mercado editorial...<br />

passei a buscar aliados que ampliassem a quantidade de livros acessíveis: muitas vozes<br />

contando muitas histórias, com o propósito único de distribuir livros.<br />

A importância de contar histórias para as pessoas com deficiência visual é a mesma<br />

para aquelas que não o são, enriquece a vida, abastece a alma, dá profundidade à<br />

mente. Quando um novo livro se abre para que as palavras impressas se tornem som<br />

é o reencontro com o princípio: o verbo.<br />

Entretanto, esta estrada jamais foi de mão única. Quantas vezes sentei-me quieta<br />

enquanto alguma amiga não vidente abria seu volumoso livro feito de palavras em relevo,<br />

de palavras que não sei ler. Minha escuta perpassava várias dimensões humanas, até atingir<br />

a escuta interna de meu coração feliz, ritmado com as palavras tocadas e proferidas.<br />

Lindo foi ver crianças de uma escola diante de uma contadora de histórias cega 1 .<br />

As crianças alvoroçadas, incrédulas, perguntando como era possível com o deslizar<br />

do dedo construir frases. Elas queriam tocar também, não apenas as palavras, mas<br />

a contadora de história, para certificarem-se de que era real. Alguma coisa muito<br />

especial ficou gravada para sempre na memória daquelas crianças. Era a chance de<br />

compreender a diferença naquilo em que é mais potente: a diversidade humana, tão<br />

rica, tão bela, tão facilmente integrável.<br />

Se hoje minha voz é capaz de modulações variadas, devo aos ouvidos que precisei<br />

conquistar. Se hoje minha sensibilidade é aguçada, devo à utilização dos sentidos. Se<br />

hoje componho história é para aproximar os que enxergam dos que não enxergam ou<br />

que enxergam de uma forma diferente.<br />

Assim, formou-se o acervo de quatrocentos livros. Hoje, oito países que falam esta<br />

Língua com a qual me comunico com vocês poderão ouvir todos estes encantamentos.<br />

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,<br />

Voando pela noite silenciosa,<br />

A fada das crianças vem, luzindo.<br />

Papoulas a coroam, e, cobrindo<br />

Seu corpo todo, a tornam misteriosa.<br />

AnaLu Palma<br />

193<br />

1. Aconteceu na Biblioteca Infantil da UNIRIO em novembro de 2008.


À criança que dorme chega leve,<br />

Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

194<br />

E, pondo-lhe na fonte a mão de neve,<br />

Os seus cabelos de ouro acaricia –<br />

E sonhos lindos, como ninguém teve,<br />

A sentir a criança principia.<br />

E todos os brinquedos se transformam<br />

Em coisas vivas, e um cortejo formam:<br />

Cavalos e soldados e bonecas,<br />

Ursos e pretos, que vêm, que vão e tornam,<br />

E palhaços que tocam em rebecas...<br />

E há figuras pequenas em engraçadas<br />

Que brincam e dão saltos e passadas...<br />

Mas vem o dia, e, leve e graciosa,<br />

Pé ante pé, volta a melhor das fadas<br />

Ao seu longínquo reino cor-de-rosa. 2<br />

(PESSOA, 1997: 562)<br />

Leitura Inspiradora<br />

u A Voz do Ator Vidente: O Caminho Sonoro para o Ator com Deficiência Visual. Ana<br />

Lúcia Palma Gonçalves. In: Temas em inclusão: saberes e práticas. Aliny Lamoglia<br />

(Org.). Synergia, 2009.<br />

2. PESSOA, Fernando. Obra Poética – Volume Único. In Poesias Coligidas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar, 1997.


**********<br />

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195<br />

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E eles foram felizes para sempre.<br />

— disse a mãe fechando o livro.<br />

Demorou muito para eles chegarem lá<br />

— perguntou o menino de quatro anos.<br />

Lá onde, meu filho<br />

Eles não foram felizes para sempre<br />

Onde é que fica esse sempre<br />

o


[Regina Machado]<br />

Não é uma pergunta absurda. Não é uma pergunta banal. SEMPRE pode não ser<br />

um lugar para onde se vá, digamos, a pé ou a cavalo. Mas com certeza é um lugar<br />

onde se vive. Onde moram os contos milenares, sementeiros ancestrais da palavra<br />

que se renova, a todo instante e em qualquer espaço, na voz de cada contador ou<br />

contadora de estórias.<br />

Guimarães Rosa disse uma vez numa célebre entrevista:<br />

“Para quem vive no Infinito, como eu...”<br />

Penso aqui com meus botões, que o SEMPRE é um lugar dentro da gente, como<br />

outros que habitamos, dependendo da circunstância.<br />

Há o lugar do “imediatamente” para onde queremos ir quando aquele chocolate<br />

nos acena da prateleira. O lugar do “nunca mais” onde muitas vezes nos grudamos<br />

feito chicletes de sofrimento e saudade.E tantos outros lugares que compõem o quebra<br />

cabeças daquilo que acreditamos que somos nós.<br />

A imagem que me aparece do SEMPRE é a de um lugar vazio, que pode ser tudo<br />

e ter tudo. Não de qualquer jeito, desarrumado, uma bagunça, mas numa ordem<br />

absolutamente mutável segundo a gramática da Fantasia.<br />

É o lugar em que, quando criança, a gente brincava de cabaninha. A gente se<br />

metia embaixo de lençóis e colchonetes muito bem arrumados pra gente caber lá<br />

dentro com nossos travesseiros e o que mais desse vontade. Para viver o SEMPRE.<br />

O SEMPRE que nunca foi antes e nunca será outra vez, existindo só e apenas<br />

naquele instante, fora do tempo horizontal da História, da contingência.<br />

197


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

198<br />

Um lugar para experimentar mil combinações do que é possível, para aprender o<br />

que pode vir a ser.<br />

Precisamente o que as estórias milenares nos convidam a fazer, num passeio pela<br />

paisagem mítica preservada humanidade afora. Que ecoa na nossa paisagem interior,<br />

aberta para nossa passagem quando estamos encantados.<br />

Sinto um pouco de pena das pessoas que confundem alhos com bugalhos. Então,<br />

nesse caso, por exemplo:“Os contos de fadas foram ridicularizados pela arte moderna<br />

e pelos freudianos como instrumento de alienação” (frase tirada do artigo: Disney,<br />

vida e fantasia de luzes e sombras, de Daniel Piza para o Jornal O Estado de São Paulo<br />

em 17 de maio de 2009).<br />

O encantamento não é alienado e também não é infantil. E os contos de fadas<br />

são um ramo apenas recente de uma árvore que existe desde que o mundo é mundo,<br />

enraizada no desejo de saber.<br />

E nem todos os freudianos concordariam com a afirmação acima, mas isso é uma<br />

outra conversa.<br />

O encantamento é um estado de conhecimento. A qualidade que acende sua<br />

vivacidade é o movimento perene e flexível da imaginação criadora. Uma qualidade<br />

forjada no SEMPRE que se manifesta nas mais variadas situações: nas formas da<br />

Natureza, nas brincadeiras das crianças (quando elas PODEM brincar), nas obras<br />

de artistas, de cientistas, nos mitos e nos ritos das culturas tradicionais, em todas as<br />

transgressões que transformam a História dos grupos humanos.<br />

Outro menino de quatro anos estava brincando com sua avó. De repente a corrente elétrica<br />

foi interrompida.<br />

No escuro, disse a avó: “Nossa, a luz caiu!”<br />

Logo em seguida tudo voltou ao normal. A avó outra vez: “Que bom, a luz voltou !”<br />

O menino, em silêncio por um certo tempo, abriu um ar de descoberta: “Sabe, vó, eu estava<br />

pensando. A luz caiu e depois ela voltou. Deve ser porque tem uma cama elástica dentro da<br />

parede!” (Caso contado pela avó, Eliana)<br />

O SEMPRE é também um lugar de risco, da aventura de formular hipóteses, de


alargamento do espaço do conhecido, como um salto livre para o que ainda não sei,<br />

para o que tenho vontade de saber, ou até para o que sei, mas não sabia que sabia.<br />

Digamos que não é exatamente na escola, na igreja, na família ou no ambiente<br />

de trabalho que as pessoas do mundo de hoje são convidadas a esse tipo essencial de<br />

busca de conhecimento.<br />

Mas é precisamente no SEMPRE da arte da Fantasia, onde os contos tradicionais<br />

milenares existem como expressão privilegiada e vigorosa, que esse convite é feito<br />

a qualquer um, criança ou adulto, sem cerimônia ou hierarquia, planejamentos ou<br />

dinâmicas de equipes de RH.<br />

É a própria estrutura narrativa, desenhada como uma rede de relações simbólicas,<br />

que pega cada um pela mão e a gente se vê num instante lá dentro da estória brincando<br />

de cabaninha, enredando nossa própria história nas ações dos personagens.<br />

Na nossa vida, todos os dias de manhã acordamos para o desconhecido, mas nós<br />

não nos lembramos disso.<br />

Nas culturas tradicionais os mitos, artefatos, cantos, danças e outras narrativas<br />

são documentos dessa lembrança, são símbolos.<br />

Os contos tradicionais são uma substância que armazena, perpetua e difunde<br />

conhecimento na forma de arte da Fantasia.<br />

Os contos dispõem uma situação que instiga nossa curiosidade, por meio de uma<br />

questão proposta logo no início da narrativa. E se a estória é boa, a gente se vê querendo<br />

saber “o que será que vai acontecer...depois” . E pouco a pouco, como uma<br />

espécie de contrário da alienação, que nos fixa no limite e na impossibilidade (“eu<br />

sou assim, sabe, o que é que vou fazer...”), podemos experimentar a liberdade do<br />

SEMPRE possível, num exercício de autonomia em que nos arriscamos a ficar horas<br />

dentro do ventre de uma baleia, a voar nas costas de uma águia, a conversar com um<br />

cavalo que é um príncipe encantado por um bruxo.<br />

Visitar esse espaço do SEMPRE dentro de nós, penso que é uma necessidade.<br />

Os contos tradicionais sacodem um lugar de confortável aparente certeza em que<br />

nos escoramos no dia a dia e desafiam em nós algum tipo de representação imaginária<br />

Regina Machado<br />

199


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

200<br />

de limite. Enquanto acompanhamos o trajeto de um príncipe, de uma árvore, de uma<br />

mulher serpente, de um peixe sonhador, vivendo junto o desnovelar da narrativa,<br />

podemos experimentar possibilidades desconhecidas:<br />

E se fosse possível que eu fosse capaz de viver um amor desse tamanho, como o<br />

desse príncipe por essa jovem camponesa<br />

Que eu vivesse uma generosidade tão grande<br />

Que eu pudesse aguentar um medo, ou uma traição tão forte assim<br />

E, de fato, quem sabe encontramos dentro de nós um espaço mais amplo, maior<br />

do que “imaginamos” que ele é.<br />

Pelo cômico, pelo trágico, pelo intrigante, pela experiência amorosa, pela aventura<br />

e risco, pelos obstáculos e ajudantes misteriosos, os contos surpreendem nossa percepção,<br />

dentro do SEMPRE, onde tudo é possível.<br />

E a gente que conta estórias sabe que não é só com as crianças que esse encantamento<br />

pode acontecer.<br />

Já cansei de ver adultos na plateia torcendo para o jovem herói acertar a flecha no<br />

ovo atirado para o alto pelo velho mestre, com gestos aflitos e OHS! de admiração,<br />

respiração suspensa e risos de alívio. Para aqueles que se esqueceram da maravilha<br />

desse tipo de experiência, o “faz de conta” é cuidadosamente esquartejado com as<br />

armas da razão, que ilusoriamente o rotula de “infantil”, “pueril”, “fuga da realidade”<br />

e outros que tais.<br />

Bem, se não fossem essas as mesmas pessoas que expressam, ou escondem, sonhos<br />

de se tornar um dia, quem sabe, o presidente da firma, a modelo famosa, o ator da<br />

Globo, o premiado não sei o quê, o próximo fenômeno do futebol.....<br />

Mais importante que tudo, penso que a Arte da Fantasia é a Arte do encontro<br />

entre pessoas.<br />

Eu não poderia dizer que esse encontro é impossível quando alguém está sozinho<br />

diante do computador apertando um ratinho mecânico, até, pode ser, escrevendo e<br />

lendo histórias. Meios são meios “para alguma coisa” e podem servir para encontros.<br />

Encontros no SEMPRE Acho que não..


Gente, não dá pra brincar de roda no computador.<br />

Parece que o SEMPRE, para acontecer, precisa na maioria das vezes do calor<br />

dos corpos sentados uns ao lado dos outros, da voz plena e do olhar brilhante dos<br />

contadores de estórias mirando nossos olhos. Das risadas, suspiros, mãos na boca e<br />

variadas caretas que os computadores até podem registrar, mas.......<br />

a respiração que anima todos esses gestos, eles não podem transmitir. A mesma<br />

respiração que leva pessoas juntas guiadas pela cadência das palavras encantadas,<br />

para além do horizonte visível.<br />

Para SEMPRE possamos escolher boas estórias, bem contadas, quando possível, por...<br />

(ainda existem muitos)<br />

seres humanos, com terra sob nossos pés e céu acima de nossas cabeças.<br />

Dedico essas palavras à querida Mery Soucourouglou,<br />

nossa mama que se foi de vez viver no sempre<br />

Regina Machado<br />

201


O ofício de viver<br />

contando histórias<br />

o


[Cristiano Mota Mendes]<br />

Nasci num tempo e lugar onde contar histórias era tão comum quanto apanhar<br />

manga madura em árvore ou caída na terra. Assim como frutos maduros jogavam<br />

no ar seus cheiros, atraindo crianças e pássaros, as histórias contadas pelos mais velhos<br />

nos atraíam para viagens no maravilhoso da imaginação.<br />

Minha mãe e meu pai eram contadores de histórias de estilos bem diferentes.<br />

Benzinho, minha mãe, era eclética e sedutora em suas narrativas, que podiam<br />

começar em alguma versão ibérica de um conto de fadas e desembocar no Axixá,<br />

litoral maranhense. Eram histórias e estórias misturadas aos personagens da família<br />

e às toadas de bumba-meu-boi. Esta deliciosa transgressão das estórias tradicionais<br />

em apropriação particular, íntima, povoou minha infância e meu interesse vida afora<br />

pelas coisas que se mestiçam.<br />

Benzinho era cantora e adorava cantar, imprimia às suas narrativas, quase sempre,<br />

comentários musicais, a tal ponto que música e história se invadiam e vadiavam livremente<br />

sem nenhum compromisso com os limites normais dos significados. Não é à<br />

toa que eu e um dos meus irmãos, Ronaldo, nos tornamos músicos.<br />

Já seu Raimundo, nosso pai, fazia mais a linha cartesiana, com começo, meio e fim.<br />

Seus contares falavam quase sempre de bichos, rios e pássaros, índios do Pindaré,<br />

de Barra-do-Corda. Seu Mundoca, como ele era conhecido no interior do Maranhão,<br />

por onde vivia viajando, era um ambientalista romântico, andarilho, apaixonado por<br />

sua terra. Trabalhou no antigo SPI, Serviço de Proteção ao Índio, precursor da Funai,<br />

como seu pai, irmãos, primos e sobrinhos.<br />

203


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

204<br />

Certa vez, contava ele, estava viajando no rio Mearim com um grupo de caçadores,<br />

quando avistaram um bando de macacos-prego numa árvore grande, perto da<br />

margem do rio. Um dos homens fez menção de apontar a arma para o bando. Imediatamente,<br />

uma das fêmeas mostrou para o grupo de caçadores o filhotinho que carregava<br />

às costas, como se dissesse: “não me matem, que tenho meu filhinho pra criar”.<br />

Esta história me marcou profundamente e creio que ela se mantém viva dentro<br />

de mim até hoje na compaixão e ternura que sinto pelos animais silvestres ou<br />

domésticos. Uma pequena história, na narrativa de um bom contador, é capaz de<br />

acompanhar e orientar um sentimento, contribuir decisivamente para uma formação<br />

ética e humanista.<br />

O ofício de contar histórias é um brinquedo mágico, misterioso e infinito. O<br />

contador de histórias desenha um caminho que vai dar no coração de quem o escuta.<br />

Se a tua Cigarra, contador, prenuncia a chuva ou se embriaga de néctar e jasmim,<br />

não importa. Se o coração do ouvinte, criança, adulto ou velho, não se hipnotiza<br />

por tua história é porque carece do sopro que acende a chama antiga feita de alma e<br />

paixão. Eros e Psique.<br />

Nenhuma narrativa, mito, causo, lenda, estória, resiste se não se atualiza dentro<br />

de quem escuta ou lê.<br />

Escutei mais de uma vez, de uma moça que trabalhava na casa dos meus pais, uma<br />

história de sereia que nunca esqueci. A Sereia, contava Teresa, se banhava nas águas<br />

de um poço, no quintal de sua casa, em Caxias no Maranhão.<br />

Não era mãe d’água de um grande rio ou do alto-mar. Ela apenas se banhava no<br />

poço e cantava na lua cheia com seus negros cabelos e nudez.<br />

Cada casa do interior do mundo tem um poço com mãe d’água.<br />

E cada sereia tem o sonho de um menino a visitar.<br />

Muitos anos depois leria histórias de um poeta cego que falava de sereias e de<br />

homens que tinham de ser amarrados aos mastros dos navios para não serem arrastados<br />

por elas ao fundo do mar. Alguns dizem que o tal do poeta não existiu. Talvez seja<br />

a mistura de muitos poetas que caminhavam pelo mundo contando histórias.


Independente das histórias e seus narradores, o mar sempre existiu e por volta dos<br />

16 anos de idade me vi dono de um barco que se chamava Tucum. Seu cavername,<br />

espécie de esqueleto dos saveiros, foi trazido a reboque de Belém do Pará para São<br />

Luís do Maranhão pelo meu professor e sócio, Clemens Hilbert, um músico alemão<br />

aventureiro, que navegou por aqueles mares nos anos 1970 e 1980.<br />

A reconstrução do Tucum, num tosco estaleiro da Gamboa, bairro de São Luís,<br />

foi um acontecimento que não poderia esquecer. Dois mestres artesãos, irmãos,<br />

foram recolocando a madeira do barco, meses a fio, num processo complicadíssimo<br />

de construção e reconstrução, até que ressurgiu grandioso e belo como um enorme<br />

animal ressuscitado.<br />

Clemens parecia um menino de tão feliz. Era bonito navegar na lua cheia do delta<br />

do Parnaíba com um coração ávido por descobrir o mundo.<br />

Mais de trinta anos depois, uma outra história de barco me esperava.<br />

Foi no Etnodoc – Edital de apoio a documentários etnográficos sobre patrimônio<br />

cultural imaterial. Participei da gestão do projeto. Um dos filmes selecionados, O barco<br />

do mestre, do antropólogo e cineasta Gavin Andrews, documenta o ofício de fazer<br />

barcos na Região Norte e sua eminente extinção. Espero que isso nunca se confirme.<br />

Comecei a ler a obra de Guimarães Rosa mais ou menos na época que Tucum<br />

renascia das cinzas, ou melhor, das águas. Rosa disse certa vez ao crítico de literatura<br />

Günther Lorenz, que são as “estórias” que nos escrevem. No “Entremeio com o<br />

vaqueiro Mariano”, que considerava o maior vaqueiro do mundo porque conhecia a<br />

alma dos bois, escreveu que narrar é resistir.<br />

Encerro este artigo lembrando de amigos e colegas que estarão nessa hora contando<br />

histórias, no ofício mágico de viver contando histórias. Penso nesse tecido fino<br />

que vem de nossas almas. Penso nas histórias que nos fabricam o Ser e que nos fazem<br />

rir, chorar, encantar, refletir, educar e sonhar.<br />

Cristiano Mota Mendes<br />

205<br />

A Benzinho e Raimundo


Leituras Inspiradoras<br />

Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

u Entremeio: com o vaqueiro Mariano. Guimarães Rosa. In: Estas estórias.<br />

José Olympio.<br />

u Nas águas do tempo. Mia Couto. In: Estórias abensonhadas. Nova Fronteira.<br />

u O vendedor de passados. José Eduardo Agualusa. Gryphus.<br />

206


207


O paciente como contador<br />

de sua própria história:<br />

o olhar de um<br />

médico homeopata<br />

o


[Conrado Mariano]<br />

Para toda história contada tem que existir um ouvinte, seja criança ou adulto,<br />

aluno ou não, espectador ou não, no meu caso, um médico, ofício que exerço<br />

há pouco mais de trinta anos. Logo, ouço, por todo este tempo, histórias as mais<br />

diversas, engraçadas por vezes, comuns de outras, dolorosas em grande parte. Seja<br />

do ponto vista apenas físico, seja da alma, e, o mais comum, de ambos. Afinal, como<br />

homeopata não dá para ouvir o que a alma tem para contar sem ouvir também o que<br />

o corpo está falando, não apenas através do gestual, das atitudes, mas também, em<br />

boa parte das vezes, principalmente, dos sintomas físicos. Desde sempre fui considerado,<br />

por amigos e familiares, um bom ouvinte e admito que estão certos. Em todas<br />

as histórias ouvidas, a pouca interferência é necessária para que possamos ocupar o<br />

lugar do outro naquela história. É preciso que aquele que ouve, entenda a história<br />

pela perspectiva de quem conta. Muitas vezes histórias contadas por pessoas com<br />

outros hábitos, com outras culturas, outras maneiras de entender a vida, são muito<br />

diferentes das daquele que ouve. Mas uma coisa é comum a todos e não depende de<br />

nenhuma destas categorias: a emoção. Esta, sim, é universal. Não há ser humano, de<br />

qualquer parte do mundo, que viva sob seja qual for o regime político ou religioso,<br />

sob qualquer cultura, que não tenha emoções.<br />

Assim, fui treinando, durante a vida, esta arte de escutar, colocando-me sempre<br />

no lugar de quem conta. Sem julgar, sem avaliar, sem criticar, sem intervir, apenas<br />

ouvindo e buscando entender não apenas aquela história que me contam, mas o<br />

sujeito que a vive e a relata. Aprendi, com isso, que ouvir talvez seja a forma mais amo-<br />

209


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

210<br />

rosa de acolhimento, desde que não tomemos como nosso o direito de julgar, determinar<br />

normas de vida, enfim, prescrever um estilo de vida para o outro. Temos que<br />

saber que quem conta sua história quer, antes de tudo, ser ouvido e compreendido.<br />

Só, mais nada. Só assim, penso eu, poderemos entender o que o outro está falando,<br />

na visão do outro, claro. Não adianta, neste caso, avaliarmos ou emitirmos qualquer<br />

julgamento, principalmente de valores. Importa sim, entender o outro. Não se trata<br />

de uma história arquetípica, ou que leve a uma reflexão ética, ou que nos traga uma<br />

mensagem que nos obrigue a pensar. Não é destas histórias que eu falo, pois estas<br />

devem ser contadas por profissionais experientes no ofício de contar histórias, por<br />

atores, atrizes, bailarinos e músicos, afinal as histórias não precisam ser contadas apenas<br />

oralmente. Falo não destas histórias, mas de outra: das histórias que são contadas<br />

por aqueles que vivenciam experiências durante sua existência e com elas constroem<br />

suas vidas.<br />

Pelo tipo de trabalho que executo, ouvir histórias faz parte do cotidiano e se aprende<br />

na faculdade – até hoje me lembro da aula sobre anamnese, estava no terceiro ano<br />

da faculdade — a “obter uma história” sempre a partir da anamnese que nada mais é<br />

do que uma investigação oral sobre os sintomas que o paciente nos relata. Assim, com<br />

determinados sintomas relatados, algumas perguntas feitas, bem objetivas, para algumas<br />

caracterizações, temos uma história clinica que, com alguns exames solicitados,<br />

vão permitir um diagnóstico e tratamento adequados. Não é da história clínica que eu<br />

falo, afinal esta é uma história guiada pelo médico, mas da história daquela pessoa que<br />

está ali com aqueles sintomas os quais, em si, falam da doença, mas não do doente.<br />

Para que eu possa ouvir e entender aquela pessoa sentada à minha frente, o relato<br />

tem que ser outro, acompanhado de sintomas clínicos muitas vezes, mas estes isoladamente<br />

são insuficientes para que eu possa lidar com o indivíduo que sente a dor.<br />

Diversas foram e são as histórias que ouvi. Dos mais diversos tipos de pessoas.<br />

Coisas que ouvi, as quais numa situação normal gerariam, inclusive, reações fortes,<br />

mas o papel de médico homeopata nos coloca de tal forma isento, visto que o mais<br />

importante no momento da consulta é a possibilidade de se entender o que o paci-


ente nos relata e a maneira pela qual, peculiarmente, ela a vivencia. Busca-se identificar,<br />

nestes casos, a emoção que acompanha uma atitude. A intencionalidade emotiva<br />

da ação faz transparecer uma particularidade que mostra a identificação daquele ser:<br />

a sua essência. Certa vez ouvi dizer que ninguém é de todo mau nem de todo bom.<br />

Claro, não podemos pensar no ser humano de forma maniqueísta, afinal o bom e o<br />

mau existem em todos nós. Só somos bons porque conhecemos valores que são maus.<br />

Isso aparece no paciente e o homeopata consegue perceber isso pelos conceitos que<br />

aprende de homem, doença e cura.<br />

Uma paciente, um dia, me contou: “... me despedi do meu marido e saí, esqueci<br />

um documento e precisei voltar para casa e o ouvi ao telefone, pelo papo, desconfiei<br />

e não deu outra: ele tinha uma amante. Me descontrolei, estou neste estado que você<br />

vê. A forma como ele falou de mim para a outra me destruiu. Segui a mulher, cheguei<br />

a bater na casa dela, mas graças a Deus não havia ninguém em casa. Não sei o que<br />

eu faria. Entretanto, tenho que confessar: eu já o traí, com um amigo dele. Mas não<br />

suporto a ideia de ter sido traída por ele. Sei que estou sendo injusta, eu também já<br />

fiz isso, mas não consigo fazer diferente”. Este é apenas um trecho do que ouvi da<br />

história de uma mulher asmática. A asma, em si, me diria o quê O que eu poderia<br />

fazer por uma pessoa com asma, além dos medicamentos específicos para o quadro<br />

A asma, neste caso, é uma história, mas incompleta.<br />

Uma outra história mais ilustrativa disso se refere a uma paciente que me disse:<br />

“... tenho medo de mudanças, acabo deixando as coisas ficarem como estão, mesmo<br />

que não me agradem, mesmo que eu não esteja feliz, tenho medo de mudanças pois<br />

sempre acho que será para pior, não consigo me imaginar promovendo uma mudança<br />

na minha vida, mesmo pensando que seria para melhor e acabar sendo para pior,<br />

então fico nessa situação tão ruim tanto no trabalho quanto em casa”. Neste caso, o<br />

que a paciente apresentava era um quadro de mialgia, que se concentrava nas pernas.<br />

Pelas dores, era impedida de executar alguns movimentos, ou pelo menos os dificultava.<br />

Há um nexo entre o quadro emocional com o clínico, pois, para quem não<br />

consegue fazer movimentos de mudanças em sua vida, mesmo quando está infeliz,<br />

Conrado Mariano<br />

211


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

212<br />

pode-se entender que os músculos não responderão de forma adequada aos movimentos<br />

solicitados.<br />

O corpo fala! Este último relato mostra como se pode ouvir o que ele nos diz e o<br />

relato de quem conta sua história apenas confirma e modaliza aquilo que está sendo<br />

dito pelos sintomas. Contar uma história, para nós, não se restringe a algo pontual,<br />

a apenas um período de uma vida, mas ao que aquela determinada pessoa teve de<br />

experiências ao logo de todo o período de vida até aquele momento. As emoções se<br />

repetem ao logo de nossas vidas, são elas que refletem nossa essência, são elas que<br />

nos identificam e são elas que permitem que tenhamos consciência de quem somos e<br />

como somos, do que gostamos, do que não gostamos, do que nos entristece, do que<br />

nos alegra. Do que nos dá raiva ou não. Enfim, são as nossas emoções que permitem<br />

que possamos nos conhecer. Elas permitem, assim, que possamos ser os atores principais<br />

de nossas vidas, que possamos ser, então, contadores de nossas próprias histórias.<br />

Leituras Inspiradoras<br />

u Éthique à Nicomaque. Aristóteles. Trad. et presentation par Richard Bodéüs. Flammarion,<br />

2004.<br />

u De l`âme. Aristóteles. Traduit par E. Barbotin. Belles Lettres, 2002.<br />

u La connaissance de la vie. George Canguilhem. Librarie Philosophique J. Vrin, 1975.<br />

u Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. George Canguilhem. Edições 70, 1977.


:prosa final<br />

213


As águas da memória<br />

e os guardadores da<br />

corrente de histórias<br />

o


[Maria de Lourdes Soares]<br />

1. Memória de Mnemosyne<br />

Musa ensina-me o canto / Venerável e antigo<br />

Sophia de Mello Breyner Andresen<br />

Palavras cantadas. Na mitologia grega, Mnemosyne, irmã de Cronos (Tempo) e<br />

Okeanós (Rio-Oceano), é a deusa da recordação vivificadora. São as Musas, filhas de<br />

Mnemosyne e Zeus, que concedem ao aedo (poeta-cantor) o dom de cantar a Verdade<br />

(Aletheia, desvelamento), oposta ao Esquecimento (Lethe). Inflamado pelas Musas, o<br />

aedo transmite o conhecimento do que foi, é e será. Engendrando a memória coletiva<br />

através das gerações, as palavras cantadas (Musas) são, portanto, inseparáveis da<br />

memória (Mnemosyne).<br />

Por parte de Zeus pai, as Musas adquirem qualidades que lhes permitem acordar<br />

nos homens certas propriedades da memória. Não a memória absoluta, como<br />

a do personagem de Jorge Luís Borges, do conto “Funes, o memorioso”: incapaz de<br />

selecionar, pensar e esquecer, Funes acumula incessantemente memórias, “como um<br />

despejadouro de lixo”. Não o esquecimento total, como, até certo ponto, o do protagonista<br />

de Amnésia (Memento, do latim “Lembra-te”, no significativo título original),<br />

filme de Cristopher Nolan: Leonard não consegue guardar acontecimentos recentes<br />

e por isso fotografa pessoas que considera importantes e tatua em sua pele dados<br />

(faz-se corpo-livro com vários “memento”), na tentativa de posteriormente conseguir<br />

215


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

216<br />

estabelecer nexos e reconstituir sua história. Tanto a memória prodigiosa de Funes<br />

quanto a memória volátil de Leonard são distúrbios decorrentes de forte traumatismo.<br />

Ambas as formas de totalidade são igualmente funestas para a identidade do<br />

indivíduo e da sociedade.<br />

O pesadelo da iminente amnésia coletiva pode ser gerado por imposição de governos<br />

totalitários, como em Fahrenheit 451, de François Truffaut (adaptação cinematográfica<br />

do romance homônimo, de Ray Bradbury), em que o pensamento crítico é proibido<br />

e os materiais escritos incinerados (o título refere-se à temperatura em que o<br />

papel entra em combustão). Guy Montag, um dos bombeiros encarregados de queimar<br />

livros, furta alguns para ler, e fica seduzido. Refugia-se, com outros dissidentes, na<br />

terra dos homens-livro, cada um deles identificado com o nome do livro que conserva<br />

“tatuado” na memória.<br />

A memória-dom conferida por Mnemosyne através das Musas conjuga harmoniosamente<br />

memória e não-memória: é seletiva, reflexiva, capaz de discernir o que se<br />

deve presentificar pela rememoração ou entregar ao esquecimento (lesmosyne), “para<br />

oblívio de males e pausa de aflições” (Hesíodo). A boa memória, portanto, implica<br />

seleção, esquecimento e pausa. Poesia e sabedoria bebem em Lethes e Mnemosyne,<br />

fontes de lembrar e esquecer. Nessa dialética, pulsa a vida.<br />

O Canto, a memória, o tempo. Ao invocarem a manifestação dessas forças<br />

numinosas, Camões (século XVI) e Sophia (século XX) reafirmam que as Musas são<br />

o princípio do Canto, inaugurando e alentando o sopro poético. Camões invoca<br />

Calíope, Musa da epopeia, para cantar “aqueles que por obras valerosas / se vão da<br />

lei da Morte libertando”. Sophia reinventa e celebra na sua moderna lírica a memória<br />

fulgurante da Grécia antiga.<br />

Se na sociedade moderna a memória não mais conserva o sentido originário,<br />

que permitia o conhecimento em êxtase e vidência, o poeta recita-a, recorda-a (recordar,<br />

trazer de novo ao coração) e, assim, preserva-a e lega-a ao futuro. Lançado<br />

num mundo dessacralizado, o poeta-cantor de nosso tempo – “tempo de indigência”<br />

(Hölderlin), “tempo dividido” (Sophia), de “homens partidos” (Drummond) – abre


passagens para o poético, luta contra a opressão e o adverso olvido, faz-se porta-voz<br />

dos “silenciosos lábios”: “eu vengo hablar por vuestra boca muerta” (Neruda). Mesmo<br />

vivendo em tempos não-heroicos, insiste em salvaguardar seu “sentimento do mundo”<br />

e repassar a outras mãos, para a plenitude do que há-de vir, o fio da memória que<br />

atravessa a corrente de tempos: “Guardei-me para a epopeia / que jamais escreverei<br />

(...) recolhei meu pobre acervo, / alongai meu sentimento” (Drummond).<br />

2. Guardiões da memória, cerzidores da túnica inconsútil<br />

Não se pode perder, no deserto dos tempos,<br />

uma só gota da água irisada que, nômades,<br />

passamos do côncavo de uma para outra mão.<br />

Ecléa Bosi<br />

Gente da palavra. Antigos aedos e rapsodos gregos (rápthein áoidén, aqueles que<br />

sabem costurar cantos), assim como os griots da África de nossos dias, são garantes<br />

da permanência da memória em sociedades fundadas sobre a tradição oral, em que<br />

contar histórias não é um evento à parte, mas algo constitutivo do próprio cotidiano.<br />

Com razão Alex Haley dirá: “quando um griot morre é como se toda uma biblioteca<br />

tivesse sido arrasada pelo fogo”.<br />

Guardiã das tradições orais, a cantadora-contadora Clarissa Pinkola Estés (autora<br />

de O dom das histórias e Mulheres que correm com os lobos) nasceu da confluência de duas<br />

linhagens: a das contadoras húngaras (mesenmondók) e a das latinas (cuentistas). Segundo<br />

o legado de que Clarissa descende, “acredita-se que as histórias são escritas como<br />

uma leve tatuagem na pele de quem as viveu”. Essa espécie de “escrita levíssima” faz<br />

lembrar as tatuagens dos griots, pergaminhos de palavras andantes, de aldeia em aldeia.<br />

As arquetípicas narradoras velhas e sábias são transportadas para os textos impressos<br />

da cultura letrada (nas maternas figuras de criadas, amas ou avós, como a Mamãe<br />

Gansa), que ficcionam a voz carinhosa da contadora e a memória de uma origem<br />

Maria de Lourdes Soares<br />

217


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

218<br />

ligada ao contexto da oralidade. Na verdade, relato oral e escrito se entrelaçam e retroalimentam:<br />

“a linguagem conduz da boca para a página e vice-versa, e a ‘oratura’, ou<br />

a literatura oral, no Ocidente não existiu de modo isolado desde os tempos homéricos”<br />

(Marina Warner). Às duas categorias de narradores postuladas e associadas por<br />

Walter Benjamin – a do camponês sedentário, que recolhe o saber do passado, e a do<br />

marinheiro comerciante, que traz o saber das terras distantes –, Marina Warner acrescenta<br />

a da fiandeira, “mulher madura com sua roca”, que se tornou “ícone genérico<br />

da narrativa nas capas de coleções de fadas a partir de Charles Perrault”.<br />

A esta linhagem pertencem também D. Benta e Tia Nastácia (Monteiro Lobato),<br />

inseparáveis repositórios do saber erudito e popular, respectivamente. Outra figura<br />

que remete às maternais contadoras de histórias e também às antigas deusas da fecundidade<br />

é a mulher de saia imensa, toda cheia de bolsos, que canta e conta histórias,<br />

“espiando papeizinhos, como que lê a sorte de soslaio”: “dos bolsos vai tirando<br />

papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história para ser contada,<br />

de fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por<br />

arte de bruxaria. E assim ela vai ressuscitando os esquecidos e os mortos; e das profundidades<br />

desta saia vão brotando as andanças e os amores do bicho humano, que<br />

vai vivendo, que dizendo vai” (Eduardo Galeano).<br />

Contadores conhecem bem o seu ofício e, não raro, também escrevem lindamente.<br />

O contador – afirma Galeano – é alguém prenhe, “grávido de gente. Gente que sai<br />

por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o<br />

narrador, o que conta a memória, coletiva, está todo brotado de pessoinhas”. Cada<br />

contador – lembra Clarissa – sabe que “contar ou ouvir histórias deriva da energia<br />

de uma altíssima coluna de seres humanos interligados através do tempo e do espaço,<br />

sofisticadamente trajados com farrapos, mantos ou com a nudez da sua época, e repletos<br />

a ponto de transbordarem de vida ainda sendo viva. Se existe uma única fonte das<br />

histórias e um espírito das histórias, ela está nessa longa corrente de seres humanos”.<br />

Narrar, tecer, curar. Walter Benjamin, no artigo “Narrar e curar”, a propósito<br />

da extraordinária força de cura das mãos e da voz de uma mulher que contava histó-


ias junto ao leito do filho enfermo, conjectura: “toda doença não seria curável, contanto<br />

que se deixasse levar suficientemente longe – até a embocadura – pela corrente<br />

da narrativa” E conclui: “O acaricial desenha um leito para essa corrente”.<br />

Por sua vez, como educador e terapeuta de crianças gravemente perturbadas, cuja<br />

tarefa principal foi restaurar um significado na vida delas, Bruno Betelheim destacou,<br />

do conjunto da literatura infantil, os contos de fadas, por proporcionarem “as<br />

experiências na vida infantil mais adequadas para promover sua capacidade de encontrar<br />

sentido na vida”, ajudando a criança a lidar com a “perplexidade existencial”.<br />

Segundo o psicanalista, “o prazer que experimentamos quando nos permitimos ser<br />

susceptíveis a um conto de fadas, o encantamento que sentimos não vêm do significado<br />

psicológico de um conto (embora isto contribua para tal), mas das suas qualidades<br />

literárias – o próprio conto como uma obra de arte”, “uma forma artística única”.<br />

Nesse sentido, parafraseando Walter Benjamin, a arte pode ser terapêutica (ou revolucionária,<br />

pedagógica etc.) mas, enquanto arte, sem jamais abrir mão do valor estético.<br />

Clarissa Estés, contadora/cantadora e terapeuta junguiana, considera que as histórias<br />

“são bálsamos medicinais”, medicamentos que “fortificam o indivíduo e a comunidade”,<br />

amenizam “velhas cicatrizes” e dão “alívio a antigas feridas”, conferindo “movimento<br />

à nossa vida interior”: “o ofício de contar histórias” e “o ofício de ocupar as<br />

mãos” possibilitam a “criação de algo, e esse algo é a alma. Sempre que alimentamos<br />

a alma, garantimos a expansão”.<br />

A tecelã das narrativas. Xerazade, a célebre contadora de histórias que abre e<br />

fecha as Mil e uma noites, ao contar histórias para o sultão Xariar, cura-lhe a ferida interior,<br />

alimenta-lhe o espírito. Ao tecer, noite após noite, sua sedutora rede de histórias<br />

encadeadas, Xerazade literal e simbolicamente vence a morte. Narra para não morrer.<br />

Narra para que as histórias não morram. Salva, assim, a sua história e as mil e uma que<br />

transporta e entretece, por encaixe, no fluxo da narrativa, sempre aberto a mais uma<br />

– bela e vertiginosa metáfora do infinito. A teia-tecido entrelaça passado e presente,<br />

memória e imaginação, e envolve a todos – a contadora, a irmã Dinazarda, as outras<br />

jovens do reino, o sultão, o povo –, criando um imaginário comum em expansão. Na<br />

Maria de Lourdes Soares<br />

219


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

220<br />

voz e nos gestos da contadora dotada de prodigiosa – mas seletiva memória (na medida<br />

em que escolhe as histórias do seu imenso acervo, recorre a estratégias e organiza<br />

a estrutura segundo sofisticadas técnicas) – vibram e ecoam muitas outras vozes. Ao<br />

evocá-las, de viva voz, a tecelã das narrativas a elas acrescenta a própria voz. Vozes que<br />

repercutem nos nossos dias, graças às versões e traduções da obra (Antoine Galland,<br />

E. Lane, R. Burton, J. Mardrus, Ferreira Gullar, Mamede Jarouche...) e às ficções que<br />

revisitam essa bela tapeçaria, como Vozes do deserto de Nélida Piñon.<br />

A astuciosa contadora – também excelente poeta e leitora, conforme a tradução de<br />

Galland – oferece a Xariar a arte de contar histórias, o prazer do ficcional. E o sultão<br />

deixa-se seduzir, acolhe esse dom, exercitando, noite a noite, a arte de ouvir. Como<br />

Xerazade, o contador é também, em príncipio, um grande ouvinte/leitor. Dotado<br />

de escuta atenta, precisa encontrar ouvidos disponíveis para acolher o legado de sua<br />

memória. Este é precisamente o humano desejo do androide Roy, líder dos Nexus<br />

6, em Blade Runner de Ridley Scott. Com seu breve tempo de vida prestes a expirar,<br />

o último dos replicantes narra sua experiência a Deckard, seu caçador (também ele<br />

caça), a quem acabara de salvar da morte. Salva, assim, a sua narrativa e, através dela, a<br />

possibilidade de permanecer vivo na memória de Deckard e de seus futuros ouvintes:<br />

“Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto de<br />

Orion. Vi a luz do sol cintilar no escuro, na Comporta Tannhausen. Todos estes<br />

momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva”.<br />

Narrar, cerzir: um dos cognomes de Riobaldo, personagem-narrador de Grande<br />

Sertão: Veredas de Guimarães Rosa é justamente Cerzidor, ao entretecer, por arte de<br />

seu criador, diversos fios/vertentes que convergem para a caudalosa narrativa/rio<br />

de uma memória que transcende a vivência particular e regional – a travessia do<br />

“homem humano”. As grandes contadoras são hábeis fiandeiras, cerzindo, através do<br />

fio das histórias, o corpo e a alma, em cuja cisão reside a grande ferida do humano.<br />

“Seremos incólumes se não separarmos o corpo e a alma”, afirma Maria Gabriela<br />

Llansol, escritora portuguesa que cerze imagens em seus textos, insistindo em refazer<br />

a túnica inconsútil, em buscar o fulgor que nos foi roubado.


A sageza do contador não consiste apenas em transmitir a sua experiência, nadando<br />

contra a corrente de “uma geral configuração traumática da modernidade” que<br />

quase emudeceu os narradores, mas também na capacidade de ser um elo na milenar<br />

corrente de experiência humana formada pelas histórias. Em cada contador vive uma<br />

Xerazade, “que imagina uma nova história em cada história que está contando” (Benjamin).<br />

Ou um Homero. No filme As asas do desejo de Wim Wenders “há um velho<br />

que se chama Homero e anda no mundo a contar histórias. Ele é o garante de uma<br />

experiência imemorial que se transmite. Num universo dominado pela celeridade da<br />

informação, é preciso recuperar o sentido da sageza e da experiência que apenas as<br />

histórias são capazes de dar. Histórias para adormecer, histórias para comer a sopa<br />

até o fim, histórias para seduzir. Alguma coisa decisiva sobrevive em nós através desse<br />

regresso do prazer do ficcional” (Eduardo Prado Coelho). Para que o círculo mágico<br />

da palavra se faça, refaça e propague. De mão em mão, de voz em voz, por dom e<br />

graça da arte de contar, ouvir e recontar. Na dialética entre tradição e inovação, permanência<br />

e mudança, sem a qual o templo das Musas (Museu) não será casa móvel,<br />

água viva, lugar de criação e disseminação, onde o conhecimento adquirido, ao ser<br />

rememorado, possibilite estabelecer nexos com o conhecimento novo. No canto alongado<br />

(Drummond). Na “continuação inventada” (Guimarães Rosa).<br />

Maria de Lourdes Soares<br />

221


&<br />

o


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De quem são essas vozes<br />

o


Affonso Romano de Sant’Anna, poeta, ensaísta e cronista<br />

com mais de cinquenta obras publicadas. Ministrou cursos na Universidade<br />

de Köln (Alemanha), Universidade do Texas (EUA), Universidade de Aarhus<br />

(Dinamarca), Universidade Nova (Portugal) e Universidade de Aix-en-Provence<br />

(França). Dirigiu o departamento de Letras da PUC-Rio. Presidiu a Biblioteca<br />

Nacional (1991-1996) possibilitando a criação do Sistema Nacional de Bibliotecas,<br />

do Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler), exportando a literatura<br />

brasileira e modernizando a instituição. Foi cronista do Jornal do Brasil e d’O<br />

Globo. Atualmente, escreve para O Estado de Minas e Correio Brasiliense.<br />

225<br />

Almir Mota, contador de histórias e autor de 16 livros de literatura infantil,<br />

incluindo temas ligados ao folclore e às paisagens históricas do Ceará. É idealizador<br />

e coordenador geral da Feira do Livro Infantil de Fortaleza. Ganhador<br />

do II Concurso Literatura para todos do MEC (2008). Idealizador do Bolsa de<br />

Letrinhas selecionada pela Bolsa Funarte de Circulação Literária 2010.


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

226<br />

Ana Luísa Lacombe, atriz desde 1980 e contadora de histórias desde<br />

2002, pesquisa a linguagem da narração de histórias associando-a ao teatro. Ganhou<br />

vários prêmios com estes trabalhos. É curadora do projeto “Sipurim – Hora<br />

da História” e do Café literário do Centro da Cultura Judaica e uma das fundadoras<br />

do Centro de Referência do Teatro para Infância que promove encontros e<br />

eventos para refletir sobre esta arte.<br />

AnaLu Palma, mestre em Teatro pela UNI-RIO — Universidade do Rio<br />

de Janeiro. Pesquisa meios acessíveis e adaptações na literatura e no teatro para<br />

que pessoas com deficiência visual estejam capacitadas a produzir e consumir<br />

estas artes. Coordena o Projeto Livro Falado através da Oficina de Capacitação de<br />

Ledores, da criação de audiotecas e da Coleção Voz da Academia.<br />

Augusto Pessôa, ator, cenógrafo, figurinista, arte educador, escritor,<br />

dramaturgo e contador de histórias. Bacharelado em Artes Cênicas (Habilitação<br />

em Interpretação e Habilitação em Cenografia) pela UNI-RIO — Universidade do<br />

Rio de Janeiro.<br />

Bia Bedran, mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense,<br />

professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, graduada em<br />

Musicoterapia e Educação Artística, cantora, compositora, contadora de histórias


e escritora. Apresentou os programas “Canta-Conto” e o “Lá vem História”, na<br />

TVBrasil/RJ e na TVCultura/São Paulo. Escreveu dez livros, gravou oito CDs e<br />

lançou dois DVDs gravados ao vivo. Nos últimos anos, viaja pelo Brasil participando<br />

de eventos culturais e congressos, levando seus espetáculos para diversos<br />

palcos em teatros, escolas e praças públicas.<br />

Carlos Aldemir Farias, antropólogo e professor; mestre em<br />

Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; doutorando em<br />

Ciências Sociais pela PUC-SP; pesquisador permanente do Grupo de Estudos da<br />

Complexidade – Grecom/UFRN.<br />

Carlos Eduardo Klimick Pereira, doutor em Letras<br />

(PUC-Rio), mestre em Design (PUC-Rio). Possui 17 anos de experiência com a<br />

criação de RPGs, sendo um dos pioneiros no Brasil na sua aplicação para fins<br />

educacionais. Atualmente trabalha em diversos projetos educacionais e é consultor<br />

lúdico-pedagógico da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio.<br />

De quem são essas vozes<br />

227<br />

Célia Linhares, graduada pela Universidade Federal do Maranhão,<br />

onde iniciou a docência universitária. Obteve o mestrado em Filosofia e Sociologia<br />

da Educação em Michigan State University/USA, doutora em Filosofia<br />

da Educação pela Universidade Nacional de Buenos Aires e pós-doutorado em


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

Política Educacional na Universidade Complutense de Madri e na Universidade<br />

de Londres. Professora Emérita da Universidade Federal Fluminense.<br />

Cléo Busatto, escritora e narradora oral de histórias. Mestre em Teoria<br />

Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora transdisciplinar/Cetrans.<br />

Em 2002 publicou seu primeiro livro infantil, Dorminhoco e não<br />

parou mais. Seguiram-se Contos e encantos dos 4 cantos do mundo (2003); Coleção<br />

Criança Segura, 3 volumes (2004); Pedro e o Cruzeiro do Sul (2006); Paiquerê, o paraíso<br />

dos Kaingang (2009); O florista e a gata (2010); Histórias de quem conta histórias<br />

(2010). Suas obras fazem parte de programas de leitura e catálogos internacionais<br />

como o Bologna Children’s Book Fair.<br />

228<br />

Conrado Mariano formou-se em medicina em 1978, iniciou os estudos<br />

em Homeopatia em 1985, tem graduação e mestrado em Filosofia. Atualmente doutorando<br />

em História da Ciência na PUC-SP, dedica-se a estudar as Ciências da Vida.<br />

Cristiano Mota Mendes, músico e compositor. Trabalha com<br />

teatro e leituras dramatizadas. Coordenador do Programa de Apoio à Produção<br />

de Documentários Etnográficos da Associação dos Amigos do Museu Edson Carneiro,<br />

do Rio de Janeiro.


Daniele Ramalho, atriz, contadora de histórias, pesquisadora e produtora<br />

cultural. Formada em artes cênicas com bacharelado em interpretação pela<br />

UNI-RIO — Universidade do Rio de Janeiro. Pesquisa literatura, cultura popular<br />

e indígena brasileiras, desenvolvendo programações e projetos sobre os temas,<br />

além de conteúdo para programas de televisão. Narrou mitos para o Canal Futura.<br />

Escreveu artigo sobre mitologia indígena e corporalidade para a revista do Instituto<br />

de Performance da Universidade de Nova Iorque. Narrou mitos na programação<br />

do Ano do Brasil na França. Atualmente escreve roteiros com temas indígenas para<br />

programas veiculados nas TV Brasil e TV Cultura. É curadora do África Diversa:<br />

Encontro de Cultura Afro-Brasileira.<br />

Edmilson Santini, ator, autor, cordelista, desenvolve, no Teatro Em<br />

Cordel, um repertório de histórias, em que se abordam diversos temas. Paralelo<br />

a isso, toca o projeto Oficinas de Criação e Recriação de Histórias em Cordel.<br />

De quem são essas vozes<br />

229<br />

Edvânia Braz Teixeira Rodrigues, licenciada e especialista<br />

em Educação Física, pela Escola Superior de Educação Física de Goiás (ESE-<br />

FEGO), mestre em Educação Escolar Brasileira pela Universidade Federal de Goiás<br />

(UFG). Professora assistente do CEPAE/UFG, Integrante/Coordenadora do Grupo<br />

Gwaya — Contadores de Histórias da UFG. Atualmente é Superintendente de Desenvolvimento<br />

e Avaliação da Secretaria de Estado da Educação de Goiás, também coordena<br />

o Projeto de Incentivo à Leitura da Rede Estadual de Educação em Goiás.


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

230<br />

Eliane Bettocchi Godinho, doutora em Design pela PUC-<br />

Rio, atua como consultora da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio e docente<br />

de pós-graduação lato sensu no Depto. de Artes e Design da PUC-Rio. Coordena<br />

projeto de formação de professores de Ensino Médio com apoio da Faperj. Realiza<br />

pesquisas teóricas e aplicadas em Design e Formação do Leitor. Professora da graduação<br />

em Design da UniFOA — Centro Universitário de Volta Redonda. Atua como<br />

profissional de Design Gráfico e Ilustração, com ênfase em jogos narrativos, comunicação<br />

e semiótica.<br />

Fernando Goldman, doutorando em Políticas Públicas, Estratégias<br />

e Desenvolvimento no IE/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Engenheiro<br />

Eletricista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Engenharia<br />

de Produção, pela Universidade Federal Fluminense. Possui ainda Especialização<br />

em Gestão Empresarial pela Fundação Getulio Vargas. Desde 2007 é Presidente da<br />

Sociedade Brasileira de Gestão do Conhecimento — RJ. É engenheiro de FURNAS<br />

Centrais Elétricas SA.<br />

Gilka Girardello, professora da Universidade Federal de Santa<br />

Catarina, coordenadora da Oficina Permanente de Narração de Histórias da<br />

UFSC e contadora de histórias da Biblioteca Barca dos Livros, em Florianópolis.


Grupo Morandubetá de Contadores de Histórias tem a seguinte formação<br />

desde 1991:<br />

Benita Prieto, engenheira eletrônica, atriz, especialista em Literatura<br />

Infantil e Juvenil pela Universidade Federal Fluminense e em Leitura: Teoria e<br />

Práticas pela UniverCidade. Contadora de histórias com mais de 2000 apresentações<br />

pelo Brasil e exterior. Escritora. Produtora cultural e idealizadora de eventos<br />

de Literatura e Leitura, podendo destacar o Simpósio Internacional de Contadores<br />

de Histórias. É presidente da Prieto Produções Artísticas e do Instituto Conta<br />

Brasil. Coordenadora da Red Internacional de Cuentacuentos.<br />

Celso Sisto, escritor, ilustrador, contador de histórias, crítico de Literatura,<br />

especialista em Literatura Infantil e Juvenil pela Universidade Federal<br />

do Rio de Janeiro, mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de<br />

Santa Catarina e doutorando em Teoria da Literatura pela PUC-RS. Tem mais<br />

de cinquenta livros publicados para crianças e jovens e é responsável pela formação<br />

de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país. Já<br />

recebeu vários prêmios, dentre eles o prêmio de autor revelação (1994) e ilustrador<br />

revelação (1999) da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.<br />

Idealizador, coordenador e diretor artístico dos Seminários de Contadores de<br />

Histórias da Feira do Livro de Porto Alegre e da Jornada Nacional de Literatura<br />

de Passo Fundo.<br />

De quem são essas vozes<br />

231


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

232<br />

Eliana Yunes, criadora do Programa Nacional de Incentivo à Leitura<br />

(Proler) da Fundação Biblioteca Nacional. É uma das pesquisadoras mais renomadas<br />

sobre temas de Leitura na América Latina, onde seu discurso teve uma imensa<br />

recepção, principalmente no México e Colômbia. Doutorou-se em Letras e Linguística<br />

pela Pontifícia Universidade Católica, PUC-Rio, e pela Universidade de<br />

Málaga, Espanha. Também é ensaísta, crítica e pesquisadora de temas relacionados<br />

com a Formação de Leitores, Infância e Cultura. É assessora da UNESCO para<br />

Políticas de Leitura, Coordenadora adjunta da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-<br />

Rio, Consultora do CERLALC e do PNLL. Tem artigos e livros publicados tanto no<br />

Brasil como em outras partes do mundo, com ênfase no tema Leitura, bem como<br />

em Teoria Literária, Literatura Comparada e trabalhos interdisciplinares.<br />

Lúcia Fidalgo, escritora, contadora de histórias, bibliotecária, professora<br />

universitária e mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense.<br />

Iniciou seu trabalho com a literatura infantil em 1989, na Fundação Nacional do<br />

Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). À convite de Eliana Yunes, passou a integrar a primeira<br />

equipe do Programa Nacional de Leitura (Proler), desenvolvendo oficinas<br />

de contadores de histórias em todo o país. Como autora, conquistou o prêmio<br />

de Autora Revelação pela FNLIJ, com o livro Menino bom. Publicou mais de vinte<br />

livros de literatura infantil e juvenil, além de artigos para revistas especializadas.<br />

José Mauro Brant, ator que participou em mais de setenta produções<br />

teatrais, dentre elas O Púcaro Búlgaro — Romance em cena de Aderbal Freire Filho.<br />

Desde 1993 pesquisa a linguagem dos contadores de histórias. Criou e produziu


diversos espetáculos sobre temas literários como: Contos, Cantos e Acalantos (que<br />

lhe valeu os prêmios TIM de Música e Rival Petrobras pelo CD homônimo) e<br />

Federico García Lorca – pequeno poema infinito que lhe valeu uma indicação para o<br />

prêmio Shell 2007 e teve o seu roteiro, parceria de Brant com o diretor Antonio<br />

Gilberto, publicado pela Imprensa Oficial, de São Paulo.<br />

Júlio Diniz, doutor em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, com Pós-Doutorado<br />

em Literatura Comparada pela Universidad de Salamanca, Espanha. É<br />

diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio e professor associado na Área de<br />

Estudos de Literatura. Realiza consultorias e coordena projetos para instituições<br />

públicas e privadas, ONGs e empresas (Ministério da Cultura, Ministério da Educação,<br />

Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e de Cultura, Rede Globo,<br />

Petrobras, Ampla e Leia Brasil). Publicou inúmeros artigos, ensaios e livros no<br />

Brasil e no exterior. Foi membro do Conselho Estadual de Cultura do Rio de<br />

Janeiro (2004-2006) e é pesquisador do CNPq.<br />

De quem são essas vozes<br />

233<br />

Kika Freyre, contadora de histórias, psicóloga, arteterapeuta. Mestre em<br />

Sociologia da Saúde pela Universidade do Minho, Braga (Portugal) e doutoranda<br />

em Antropologia de Iberoamérica, na Universidade de Salamanca (Espanha). Pesquisadora<br />

da Faculdade de Ciências Médicas da UPE – Universidade de Pernambuco,<br />

no programa ‘A Arte na Medicina às vezes cura, de vez em quando alivia,<br />

mas sempre consola’.


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

234<br />

Lene Nunes, estudou teatro no Tablado, fez curso de contadores de histórias<br />

com Gregório Filho, Miza Carvalho e Lorena Best. Tem grande atuação no Bairro<br />

da Maré do Rio de Janeiro como contadora de histórias no Museu da Maré, instituição<br />

pioneira no Brasil na preservação de memória das comunidades e na biblioteca<br />

municipal Jorge Amado da lona cultural Herbert Vianna. Coordena projeto de<br />

incentivo a leitura para crianças de seis a treze anos na biblioteca Elias José.<br />

Lodenir Karnopp, professora adjunta da Universidade Federal do Rio<br />

Grande do Sul, no Departamento de Estudos Especializados e no Programa de<br />

Pós-Graduação em Educação (FACED/ UFRGS). Possui graduação em Letras, mestrado<br />

e doutorado em Linguística e Letras (PUC - RS). Desenvolve pesquisas no<br />

campo dos Estudos Culturais em Educação e na área de Linguística, com ênfase<br />

em Línguas de Sinais e educação de surdos. É bolsista do Conselho Nacional de<br />

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Produtividade em Pesquisa 2, CNPq).<br />

Marcio Allemand, jornalista, roteirista, diretor de institucionais<br />

e documentários. Compartilha histórias, poesias e palavras no seu blog http://<br />

euseicozinhar.blogspot.com.<br />

Maria de Lourdes Soares, mestre e doutora em Letras (PUC-<br />

RJ). Professora de Literatura Portuguesa e Literatura Infantil e Juvenil (Univer-


sidade Federal do Rio de Janeiro). Especialista em teoria e práticas da leitura.<br />

Colaborou no Proler. Autora de Descobertas e Encontros , B.I. das Fadas e Bruxas, B.I.<br />

do Saci , B. I. da Iara, do Boto e de Iemanjá, B. I. do Pão no Brasil e Livro dos Acalantos.<br />

Maria Helena Ribeiro, professora alfabetizadora durante 12 anos;<br />

gerente de projetos e programas educacionais e culturais; produtora cultural; consultora<br />

para implantação de programas e projetos. Pedagoga; especialista em educação<br />

da Prefeitura do Rio de Janeiro (aposentada); com especialização em Didática da<br />

Comunicação e em Técnicas de Projetos; promotora de leitura desde 1989.<br />

Nanci Gonçalves da Nóbrega, pós-graduada em Literatura<br />

Infantil, Arteterapia e doutora em Ciência da Informação. É professora adjunta<br />

da Universidade Federal Fluminense, atuando na Graduação e Pós-Graduação<br />

do Departamento de Ciência da Informação e na Pós-Graduação do Instituto de<br />

Letras. Professora Visitante de inúmeras instituições, onde conversa sobre bibliotecas<br />

para crianças, narrativas e leitura – suas grandes paixões.<br />

De quem são essas vozes<br />

235<br />

Paulo Siqueira, diretor artístico da Ópera Prima, dirigiu vários documentários,<br />

entre os quais Histórias de 2006. Dirigiu também várias peças publicitárias.<br />

Autor de Cajuínas, um romance, é atualmente coordenador da Óficina,<br />

oficina de cinema.


Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />

236<br />

Regina Machado, graduada em Ciências Sociais pela USP, mestre em<br />

Educational Theatre na New York University, professora Livre Docente da Eca<br />

USP, escritora, pesquisadora de narrativas de tradição oral, artista educadora e<br />

contadora de histórias. Criadora e coordenadora do Encontro Internacional de<br />

Contadores de Histórias BOCA DO CÉU.<br />

Rogério Andrade Barbosa, professor, escritor e contador<br />

de histórias. Publicou mais de setenta livros para crianças e jovens. Prêmio da<br />

Academia Brasileira de Letras em Literatura Infanto-Juvenil em 2005.<br />

Rosana Mont’Alverne, mineira de Três Corações. Bacharela<br />

em Direito e mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. É<br />

fundadora do Instituto Cultural Aletria, em Belo Horizonte, MG, que é escola<br />

de formação e aperfeiçoamento de contadores de histórias, editora de literatura<br />

infantil e juvenil, produtora cultural e portal na internet www.aletria.com.br.


Deixe a sua voz no site www.simposiodecontadores.com.br<br />

e se desejar baixe gratuitamente a versão digitalizada do livro.<br />

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Esta obra — idealizada e organizada por Benita Prieto e composta<br />

por Marcos Corrêa — foi impressa, durante a primavera de 2011,<br />

nas oficinas gráficas da Edigráfica, sobre papel Pólen Bold 120g<br />

para o miolo e Duo Design 250g para capa.<br />

As tipografias utilizadas foram Goudy Old Style T,<br />

Goudy catalog SC, Dalliance roman, Dalliance Flourishes &<br />

Hoefler Text Fleurons.<br />

A presente edição teve a tiragem limitada inicial de 1500<br />

exemplares dos quais os primeiros foram numerados de 001 a 500<br />

e presenteados aos participantes do Simpósio Internacional de<br />

Contadores de Histórias nas comemorações de sua 10ª edição.


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