Lendo as ondas do âMovimento de Acesso à Justiçaâ: epistemologia ...
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<strong>Len<strong>do</strong></strong> <strong>as</strong> ond<strong>as</strong> <strong>do</strong> “Movimento <strong>de</strong> <strong>Acesso</strong><br />
à Justiça”: <strong>epistemologia</strong> versus meto<strong>do</strong>logia*<br />
Kim Economi<strong>de</strong>s**<br />
Introdução<br />
E<br />
STA ANÁLISE, inevitavelmente, é influenciada por experiênci<strong>as</strong> pessoais<br />
<strong>de</strong>rivad<strong>as</strong> <strong>de</strong> uma odisséia que começou, há mais <strong>de</strong> 20 anos,<br />
quan<strong>do</strong>, na condição <strong>de</strong> jovem pesquisa<strong>do</strong>r, trabalhei com o professor<br />
Mauro Cappelletti, principal mestre <strong>de</strong> direito compara<strong>do</strong> da Itália, no<br />
famoso Projeto <strong>de</strong> <strong>Acesso</strong> à Justiça <strong>de</strong> Florença. 1 Quem estiver familiariza<strong>do</strong><br />
com o Projeto <strong>de</strong> Florença, além <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r, imediatamente, o significa<strong>do</strong><br />
da referência a “ond<strong>as</strong>” no título <strong>de</strong>ste artigo, perceberá também a<br />
dura<strong>do</strong>ura contribuição que aquele trabalho, único em nível verda<strong>de</strong>iramente<br />
mundial, trouxe para o conhecimento e a compreensão <strong>do</strong>s tem<strong>as</strong> da justiça<br />
e cidadania.<br />
Há pouco mais <strong>de</strong> 10 anos, <strong>de</strong>senvolvi e co-dirigi com geógrafos um projeto<br />
interdisciplinar (Access to Justice in Rural Britain Project — Projeto <strong>de</strong> <strong>Acesso</strong><br />
à Justiça na Grã-Bretanha Rural), 2 examinan<strong>do</strong> o acesso à justiça em comunida<strong>de</strong>s<br />
rurais — no su<strong>do</strong>este da Inglaterra, particularmente — a partir <strong>de</strong> uma<br />
* Esta é a versão revista <strong>de</strong> trabalho apresenta<strong>do</strong> no seminário internacional Justiça e Cidadania,<br />
realiza<strong>do</strong> nos di<strong>as</strong> 10 e 11 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1997, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Tradução <strong>de</strong><br />
Paulo Martins Garchet.<br />
** Professor <strong>do</strong> Departamento <strong>de</strong> Direito, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Exeter, Inglaterra.<br />
1 Mauro Cappelletti & Bryant Garth (eds.), Access to justice (Milan, Alphenaan<strong>de</strong>nrijn, Giuffrè/<br />
Sijthoff and Noordhoff, 1978/79). Uma versão resumida foi publicada no Br<strong>as</strong>il: <strong>Acesso</strong> à justiça<br />
(Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1988). Ver também Eliane Junqueira, <strong>Acesso</strong> à justiça — um<br />
olhar retrospectivo. Estu<strong>do</strong>s Históricos. Rio <strong>de</strong> Janeiro (18), 1996.<br />
2 Access to Justice in Rural Britain Project (AJRBP); projeto financia<strong>do</strong> pelo ESRC: 1984-1987:<br />
E00232054. Ver, a esse respeito, Mark Blacksell, Kim Economi<strong>de</strong>s & Charles Watkins, Justice<br />
outsi<strong>de</strong> the city: access to legal services in rural are<strong>as</strong> (Lon<strong>do</strong>n, Longman, 1991).
62 CIDADANIA, JUSTIÇA E VIOLÊNCIA<br />
investigação empírica sobre a distribuição e o trabalho <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong>s (inclusive<br />
<strong>de</strong> paralegais) e sobre <strong>as</strong> necessida<strong>de</strong>s (ou contatos) jurídic<strong>as</strong> <strong>do</strong>s habitantes <strong>de</strong><br />
três remot<strong>as</strong> paróqui<strong>as</strong> rurais. Três estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> controle foram encomenda<strong>do</strong>s<br />
em outr<strong>as</strong> partes <strong>do</strong> Reino Uni<strong>do</strong> — Escócia, País <strong>de</strong> Gales e E<strong>as</strong>t Anglia —<br />
para verificar os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s em noss<strong>as</strong> pesquis<strong>as</strong> no su<strong>do</strong>este da Inglaterra.<br />
3 Este projeto estabeleceu a importância <strong>de</strong> se olhar tanto o la<strong>do</strong> da oferta<br />
quanto o la<strong>do</strong> da <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> serviços jurídicos, ao mesmo tempo em que evi<strong>de</strong>nciou<br />
a complexa relação existente entre estes <strong>do</strong>is pólos.<br />
Um trabalho, que <strong>de</strong>senvolvi mais recentemente sobre acesso à justiça,<br />
volta a investigação, po<strong>de</strong>-se dizer, para <strong>de</strong>ntro, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> o campo da oferta<br />
<strong>do</strong>s serviços jurídicos para concentrar-se no campo da ética legal. Esta nova<br />
perspectiva analítica <strong>de</strong>riva <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que consi<strong>de</strong>ro que a essência <strong>do</strong> problema<br />
não está mais limitada ao acesso <strong>do</strong>s cidadãos à justiça, m<strong>as</strong> que inclui<br />
também o acesso <strong>do</strong>s próprios advoga<strong>do</strong>s à justiça. De fato, em minha<br />
opinião, o acesso <strong>do</strong>s cidadãos à justiça é inútil sem o acesso <strong>do</strong>s opera<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> direito à justiça.<br />
As observações a seguir, b<strong>as</strong>ead<strong>as</strong> n<strong>as</strong> experiênci<strong>as</strong> anteriormente mencionad<strong>as</strong>,<br />
por um la<strong>do</strong>, enfocam mais o tema <strong>do</strong> acesso à justiça <strong>do</strong> que o da cidadania<br />
e, por outro la<strong>do</strong>, utilizam mais os insights e <strong>as</strong> meto<strong>do</strong>logi<strong>as</strong> <strong>do</strong> sociólogo<br />
<strong>do</strong> direito <strong>do</strong> que os <strong>do</strong> cientista político. Seria presunção oferecer conselhos<br />
sobre cidadania para uma platéia br<strong>as</strong>ileira, especialmente consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong><br />
que boa parte da minha experiência origina-se num país que ainda não tem<br />
uma constituição escrita, não tem uma Carta <strong>de</strong> Direitos e não tem tradição<br />
<strong>de</strong> republicanismo. Como a característica da Constituição britânica, ainda que<br />
<strong>de</strong>clinante, continua sen<strong>do</strong> a monarquia constitucional, seria justo dizer que<br />
sou mais um “súdito” <strong>do</strong> que um “cidadão”, razão pela qual creio não estar<br />
suficientemente qualifica<strong>do</strong> para falar <strong>de</strong> cidadania como tal. Dessa forma, em<br />
vez <strong>de</strong> analisar <strong>as</strong> garanti<strong>as</strong> fundamentais <strong>do</strong> constitucionalismo (embora tenha<br />
<strong>de</strong> admitir que há algum<strong>as</strong> conexões muito importantes a serem feit<strong>as</strong> entre<br />
os tem<strong>as</strong> <strong>do</strong> acesso à justiça, constitucionalismo e cidadania como se vê,<br />
por exemplo, no “direito <strong>de</strong> ação”), 4 prefiro situar minh<strong>as</strong> observações num<br />
nível teórico intermediário que examine <strong>de</strong>terminantes prátic<strong>as</strong>, e não <strong>de</strong>finições<br />
abstrat<strong>as</strong>, <strong>de</strong> cidadania, exploran<strong>do</strong> algum<strong>as</strong> d<strong>as</strong> experiênci<strong>as</strong> pragmátic<strong>as</strong><br />
e lições <strong>de</strong> política gerad<strong>as</strong> pel<strong>as</strong> pesquis<strong>as</strong> que investigaram, em termos<br />
quantitativos, o acesso <strong>do</strong>s cidadãos ao sistema legal.<br />
Para tanto, du<strong>as</strong> áre<strong>as</strong> principais <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>rad<strong>as</strong>. A primeira refere-se<br />
à natureza <strong>do</strong> problema <strong>do</strong> acesso à justiça, incluin<strong>do</strong> os <strong>as</strong>pectos meto<strong>do</strong>lógicos<br />
que cercam os estu<strong>do</strong>s sobre a questão da mobilização da lei pelos cidadãos.<br />
Nessa perspectiva, gostaria <strong>de</strong> incluir o tema d<strong>as</strong> polític<strong>as</strong> que visam à<br />
3<br />
Kim Economi<strong>de</strong>s & Mark Blacksell, Access to justice in rural Britain: final report. Anglo American<br />
Law Review, 16(353), 1987.<br />
4 Mauro Cappelletti & William Cohen, Comparative constitutional law; c<strong>as</strong>es and materials (Charlottesville,<br />
Bobbs-Merrill, 1979. cap. 6).
KIM ECONOMIDES 63<br />
reforma da lei e <strong>do</strong>s serviços jurídicos com o intuito <strong>de</strong> melhorar o acesso a estes<br />
serviços. A segunda área relaciona-se com <strong>as</strong> <strong>de</strong>finições contemporâne<strong>as</strong> <strong>de</strong><br />
justiça, ou seja, com o problema epistemológico <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir a que realmente<br />
queremos dar acesso aos cidadãos. <strong>Acesso</strong> a quê O principal argumento aqui<br />
refere-se à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se fazer uma conversão <strong>de</strong> justiça civil para justiça cívica.<br />
5 É importante lembrar que os direitos sociais e políticos <strong>de</strong> Marshall são,<br />
na prática, freqüentemente media<strong>do</strong>s e implementa<strong>do</strong>s pelo mo<strong>de</strong>rno Welfare<br />
State e que os conflitos sobre concessão <strong>de</strong> direitos são, invariavelmente, expressos<br />
por meios jurídicos. Em outros termos, a afirmação <strong>de</strong> tais direitos está relacionada<br />
muito <strong>de</strong> perto com o trabalho <strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s, ainda que estes optem<br />
por não reconhecer este fato. Po<strong>de</strong> mostrar-se necessário, portanto, que nos<br />
af<strong>as</strong>temos <strong>de</strong> uma aplicação rígida da cl<strong>as</strong>sificação <strong>de</strong> Marshall que, embora útil<br />
para compreen<strong>de</strong>r o escopo <strong>do</strong> problema, provavelmente nos <strong>de</strong>sviaria <strong>de</strong> importantes<br />
conexões que existem, ou que talvez existam, no nível da prática.<br />
Como po<strong>de</strong>m, ou <strong>de</strong>vem, os advoga<strong>do</strong>s, por intermédio <strong>de</strong> processos legais, ir<br />
além da representação <strong>de</strong> pleitos civis individuais para articular direitos mais coletivos<br />
— políticos, civis ou, até mesmo, sociais e econômicos<br />
Na conclusão, objetivo enfatizar que não <strong>de</strong>vemos nos confinar neste<br />
nível macropolítico, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> apen<strong>as</strong> <strong>as</strong> aplicações e significa<strong>do</strong>s da justiça<br />
distributiva ou corretiva, termos geralmente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s no senti<strong>do</strong> aristotélico.<br />
Ao contrário, é hora <strong>de</strong> examinar também, no nível micro, <strong>as</strong> compreensões<br />
particulares <strong>de</strong> justiça alcançad<strong>as</strong> por membros individuais da profissão<br />
jurídica: o movimento contemporâneo <strong>de</strong> acesso à justiça precisa voltar sua<br />
atenção para o novo tema da ética profissional. Isso não significa que <strong>de</strong>vemos<br />
optar entre est<strong>as</strong> abordagens, m<strong>as</strong> que, ao contrário, <strong>de</strong> algum mo<strong>do</strong><br />
precisamos criar, sustentar e equilibrar em nossa análise <strong>do</strong> acesso à justiça<br />
uma nova síntese entre os níveis macro e micro.<br />
Meto<strong>do</strong>logia<br />
Voltan<strong>do</strong>-nos agora para a meto<strong>do</strong>logia, creio ser razoável dizer que,<br />
após 20 anos <strong>de</strong> intensa pesquisa sócio-jurídica e comparada, já compreen<strong>de</strong>mos<br />
os contornos gerais da natureza <strong>do</strong> problema <strong>do</strong> acesso à justiça, ainda<br />
que, necessário admitir, <strong>as</strong> soluções prátic<strong>as</strong>, efetiv<strong>as</strong>, para este problema permaneçam<br />
in<strong>de</strong>finid<strong>as</strong>. 6 Formula<strong>do</strong>res <strong>de</strong> política <strong>de</strong> diferentes governos e sistem<strong>as</strong><br />
jurídicos, permanentemente engaja<strong>do</strong>s em experimentos locais volta<strong>do</strong>s<br />
5 David Trubek & Louise Trubek, Civic justice through civil justice: a new approach to public<br />
interest advocacy in the United States, in Mauro Cappelletti & Bryant Garth (eds.), op. cit.<br />
6 Ver Marc Galanter, Why the “haves” come out ahead: speculation on the limits of legal<br />
change. Law & Society Review, 9(95), 1974. Ver também Russell Smith & Sally Lloyd-Bostock,<br />
Why people go to Law: an annotated bibliography of social science research (Oxford, Centre for<br />
Socio-Legal Studies, 1990) e o Windsor Yearbook of Access to Justice (Windsor, Ontario, Faculty<br />
of Law, University of Windsor, 1981).
64 CIDADANIA, JUSTIÇA E VIOLÊNCIA<br />
para a busca <strong>de</strong> soluções mais promissor<strong>as</strong>, introduzem reforma após reforma,<br />
na esperança <strong>de</strong> reduzir o custo da justiça sem minar, simultaneamente, sua<br />
acessibilida<strong>de</strong>. A evolução <strong>de</strong>ss<strong>as</strong> reform<strong>as</strong> <strong>de</strong> acesso à justiça é, em boa parte,<br />
um fenômeno intercultural intimamente liga<strong>do</strong> tanto às transformações n<strong>as</strong> economi<strong>as</strong><br />
globais e nos Esta<strong>do</strong>s-nação, especialmente à crise <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno Welfare<br />
State, quanto — <strong>de</strong> forma particularmente interessante — às modificações d<strong>as</strong><br />
fronteir<strong>as</strong> profissionais. Meu objetivo aqui é, simplesmente, sumariar alguns <strong>do</strong>s<br />
mais importantes insights oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pesquis<strong>as</strong> <strong>de</strong>senvolvid<strong>as</strong> na Europa e na<br />
América <strong>do</strong> Norte, que po<strong>de</strong>m trazer lições úteis para os observa<strong>do</strong>res br<strong>as</strong>ileiros.<br />
Ainda que est<strong>as</strong> lições, que surgiram em diferentes contextos sociais, políticos<br />
e econômicos, <strong>de</strong>vam ser tratad<strong>as</strong> com cuida<strong>do</strong>, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scartar a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que ess<strong>as</strong> experiênci<strong>as</strong> possam vir a ser relevantes para futur<strong>as</strong><br />
reform<strong>as</strong> br<strong>as</strong>ileir<strong>as</strong> ou, vice-versa, que experiênci<strong>as</strong> e perspectiv<strong>as</strong> br<strong>as</strong>ileir<strong>as</strong><br />
atuais possam contribuir na busca pela justiça em outros lugares.<br />
A chave para se enten<strong>de</strong>r a natureza <strong>do</strong> acesso aos serviços jurídicos é<br />
perceber o problema em termos tridimensionais, a partir da compreensão simultânea<br />
<strong>de</strong> três elementos: a) a natureza da <strong>de</strong>manda <strong>do</strong>s serviços jurídicos;<br />
b) a natureza da oferta <strong>de</strong>sses serviços jurídicos; e c) a natureza <strong>do</strong> problema<br />
jurídico que os clientes possam <strong>de</strong>sejar trazer ao fórum da justiça. Não <strong>de</strong>vemos<br />
nos esquecer <strong>de</strong> que, na prática, existe uma inter-relação muito próxima<br />
entre est<strong>as</strong> três variáveis. Ousan<strong>do</strong> comentar a f<strong>as</strong>cinante pesquisa empírica realizada<br />
pelo CPDOC-FGV/Iser, 7 eu diria que a investigação parece ter, até o presente<br />
momento, enfatiza<strong>do</strong> muito a natureza da <strong>de</strong>manda por justiça/serviços<br />
jurídicos, em prejuízo da análise sobre a natureza da oferta <strong>de</strong>sses serviços.<br />
Esta tendência <strong>de</strong> analisar a <strong>de</strong>manda pelos serviços jurídicos está presente<br />
em du<strong>as</strong> tradições <strong>de</strong> pesquisa na área da sociologia <strong>do</strong> direito. De um la<strong>do</strong>,<br />
os primeiros estu<strong>do</strong>s sobre “necessida<strong>de</strong>s jurídic<strong>as</strong> não atendid<strong>as</strong>” (unmet<br />
legal needs), como se tornaram conheci<strong>do</strong>s, procuraram quantificar objetivamente<br />
ess<strong>as</strong> necessida<strong>de</strong>s. 8 De outro, vários estu<strong>do</strong>s foram realiza<strong>do</strong>s em diversos<br />
sistem<strong>as</strong> legais sobre a atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> público em geral — pesquis<strong>as</strong> sobre “conhecimento<br />
e opinião sobre a justiça” (Knowledge and opinion about law, ou “estu<strong>do</strong>s<br />
KOL”) —, sen<strong>do</strong> o mais famoso dirigi<strong>do</strong> por Adam Podgorecki, um<br />
7 Lei, justiça e cidadania: direitos, vitimização e cultura política na Região Metropolitana <strong>do</strong> Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro (Rio <strong>de</strong> Janeiro, CPDOC-FGV/Iser, 1997).<br />
8 F. Marks, Some research perspectives for looking at legal need and legal services <strong>de</strong>livery<br />
systems: old forms or new Law & Society Review, 11(191), 1977; Philip Lewis, Unmet legal<br />
needs, in Pauline Morris et alii, Social needs and legal action ([Lon<strong>do</strong>n] Martin Robertson<br />
[1973]); Barbara Curran, The legal needs of the public: the final report of a national survey (Chicago,<br />
Joint American Bar Association/American Bar Foundation Study, 1977); Michael C<strong>as</strong>s<br />
& Ronald Sackville, Legal needs of the poor; study for the Australian Government Commission<br />
of Inquiry into Poverty (Canberra, Government Publishing Service, 1975); Kees Schuyt et alii.<br />
De weg naar het recht (Deventer, Kluwer, 1976). A versão em inglês — The road to Law — foi<br />
publicada no European Yearbook in Law and Sociology (The Hague, M. Nijhoff, 1977).
KIM ECONOMIDES 65<br />
sociólogo <strong>do</strong> direito polonês que investigou a atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> público em geral a respeito<br />
da justiça. 9 Com o benefício da visão retrospectiva, alguns <strong>de</strong>sses estu<strong>do</strong>s<br />
parecem-nos agora um tanto limita<strong>do</strong>s em seus objetivos, pois <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar<br />
os complexos processos que influem na <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> recorrer ao sistema judiciário.<br />
Menos <strong>do</strong> que por ignorância ou falta <strong>de</strong> meios econômicos, o não<br />
acesso à justiça po<strong>de</strong> muit<strong>as</strong> vezes ser conseqüência <strong>de</strong> opção, sen<strong>do</strong> atualmente<br />
questionável, à luz <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate sobre os mecanismos para se evitarem disput<strong>as</strong>,<br />
a presunção <strong>de</strong> que a maioria da população <strong>de</strong>seja ou precisa <strong>de</strong> acesso ao<br />
sistema judiciário. 10 Algum<strong>as</strong> d<strong>as</strong> primeir<strong>as</strong> pesquis<strong>as</strong>, portanto, revelaram um<br />
entendimento pouco sofistica<strong>do</strong> d<strong>as</strong> característic<strong>as</strong> <strong>do</strong>s clientes e <strong>do</strong>s serviços jurídicos<br />
que, supostamente, seriam procura<strong>do</strong>s, enquanto outr<strong>as</strong> <strong>de</strong>ram uma ênf<strong>as</strong>e<br />
talvez exagerada a uma explicação econômica grosseira — a pobreza —<br />
para o uso, ou não uso, <strong>de</strong> serviços jurídicos.<br />
Nos anos 60, um importante trabalho <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<br />
por Carlin e Howard, ao revelar que, em muitos c<strong>as</strong>os, os pobres tinham efetivamente<br />
acesso à justiça, especialmente quan<strong>do</strong> recebiam auxílio para <strong>as</strong>sistência<br />
jurídica, pôs em xeque a explicação econômica <strong>do</strong>minante para a falta<br />
<strong>de</strong> acesso à justiça. 11 Este estu<strong>do</strong> foi ainda <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância porque<br />
i<strong>de</strong>ntificou quatro estágios cruciais pelos quais os cidadãos têm <strong>de</strong> p<strong>as</strong>sar antes<br />
<strong>de</strong> ingressarem <strong>de</strong> fato nos tribunais:<br />
“A falta <strong>de</strong> recursos econômicos representa apen<strong>as</strong> um <strong>do</strong>s elementos <strong>de</strong> um<br />
processo social complexo que leva um indivíduo a procurar e obter representação<br />
jurídica. Pelo menos quatro estágios estão envolvi<strong>do</strong>s: 1) a consciência,<br />
ou o reconhecimento <strong>de</strong> que <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> problema é um problema jurídico;<br />
2) a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> iniciar ação judicial para solucioná-lo; 3) a procura <strong>de</strong><br />
um advoga<strong>do</strong>; e, 4) a sua contratação efetiva.” 12<br />
Também naquele momento, começou a se tornar evi<strong>de</strong>nte que os ricos<br />
e <strong>as</strong> instituições optavam, freqüentemente, pela não utilização <strong>do</strong> Judiciário,<br />
resolven<strong>do</strong> su<strong>as</strong> disput<strong>as</strong> por meios mais priva<strong>do</strong>s ou informais. 13 Apesar<br />
9 Adam Podgorecki et alii, Knowledge and opinion about law (Lon<strong>do</strong>n, M. Robertson, 1973). Ver<br />
também M. Cain & K. Kulcsar (eds.), Disputes and the law (Budapest, Aka<strong>de</strong>miai Kiato, 1983).<br />
10 William Felstiner, Influences of social organisation on dispute processing. Law & Society<br />
Review, 9(63), 1974. Ver também o <strong>de</strong>bate entre Felstiner e Danzig & Lowy, Law & Society<br />
Review, 9(675, 695), 1975; e Robert Kid<strong>de</strong>r, The end of the road Problems in the analysis of<br />
disputes. Law & Society Review, 15(717), 1980/81.<br />
11 J. Carlin & J. Howard, Legal representation and cl<strong>as</strong>s justice. Ucla Law Review, 32(717),<br />
1980/81.<br />
12 Ibid., p. 423.<br />
13 Stewart Macaulay, Non-contractual relations in business: a preliminary study. American Sociological<br />
Review, 18(55), 1963; e Lawyers and consumer protection laws. Law & Society Review,<br />
14(115), 1979.
66 CIDADANIA, JUSTIÇA E VIOLÊNCIA<br />
<strong>de</strong>ssa tendência em direção à justiça informal não ser nova, a <strong>de</strong>scoberta e a<br />
pesquisa sobre este tema pela aca<strong>de</strong>mia são recentes, como exemplifica a investigação<br />
sobre a arbitragem comercial na Inglaterra <strong>do</strong> século XIX <strong>de</strong>senvolvida<br />
há menos <strong>de</strong> du<strong>as</strong> décad<strong>as</strong>. 14<br />
Conforme po<strong>de</strong> ser observa<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s esses primeiros estu<strong>do</strong>s enfocavam<br />
qu<strong>as</strong>e exclusivamente <strong>as</strong> característic<strong>as</strong> <strong>do</strong>s clientes — ou clientes em potencial<br />
— que <strong>de</strong>sejavam fazer uso <strong>do</strong>s serviços jurídicos. Gradualmente, contu<strong>do</strong>,<br />
surgiu uma maior sofisticação meto<strong>do</strong>lógica, à medida que os pesquisa<strong>do</strong>res<br />
começaram a enten<strong>de</strong>r e contemplar a relevância <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminad<strong>as</strong><br />
barreir<strong>as</strong> para o acesso à justiça, principalmente <strong>as</strong> barreir<strong>as</strong> <strong>de</strong> caráter psicológico,<br />
com especial <strong>de</strong>staque para o me<strong>do</strong> que <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> sentem em relação<br />
aos advoga<strong>do</strong>s e ao sistema judiciário. 15 Em outr<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, o pensamento<br />
acadêmico sobre o acesso à justiça começou a transcen<strong>de</strong>r <strong>as</strong> perspectiv<strong>as</strong><br />
econômic<strong>as</strong>, surgin<strong>do</strong> nov<strong>as</strong> meto<strong>do</strong>logi<strong>as</strong> que enfocavam outros obstáculos<br />
no caminho da justiça. O meu próprio trabalho no Reino Uni<strong>do</strong>, conduzi<strong>do</strong><br />
com geógrafos, expôs a barreira da distância física ao acesso aos serviços jurídicos.<br />
16 É óbvio que esta distância representa um problema grave em qualquer<br />
região rural remota e, em especial, imagino, no Br<strong>as</strong>il, que é o quinto<br />
maior país <strong>do</strong> globo, com al<strong>de</strong>i<strong>as</strong> indígen<strong>as</strong> localizad<strong>as</strong> em espaços ainda inexplora<strong>do</strong>s<br />
e, portanto, af<strong>as</strong>tad<strong>as</strong> <strong>do</strong> or<strong>de</strong>namento positivo br<strong>as</strong>ileiro em termos<br />
geográficos e culturais. No entanto, apesar <strong>de</strong> o acesso à justiça ter, certamente,<br />
uma significativa dimensão geográfica, a maioria <strong>do</strong>s primeiros estu<strong>do</strong>s sobre<br />
<strong>as</strong> “necessida<strong>de</strong>s jurídic<strong>as</strong>” <strong>de</strong>scui<strong>do</strong>u completamente <strong>de</strong>sse <strong>as</strong>pecto.<br />
Em um <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s clássicos <strong>do</strong> movimento norte-americano,<br />
“Direito e socieda<strong>de</strong>”, Marc Galanter <strong>de</strong>senvolveu uma estrutura analítica<br />
mais rigorosa e abrangente, chaman<strong>do</strong> a atenção para a importante distinção<br />
entre o que <strong>de</strong>nominou Repeat Players (RPs — joga<strong>do</strong>res habituais) e One<br />
Shotters (OSs — joga<strong>do</strong>res oc<strong>as</strong>ionais). 17 Em sua análise, Galanter contrapôs<br />
os RPs, organizações ou <strong>de</strong>mandantes comerciais com experiência regular <strong>do</strong><br />
sistema judiciário, capazes <strong>de</strong> posicioná-lo estrategicamente, aos OSs, invariavelmente<br />
consumi<strong>do</strong>res individuais com pouca, ou nenhuma, experiência regular<br />
da justiça e <strong>do</strong>s serviços jurídicos. A estes claramente faltava “competência<br />
legal” (algo mais <strong>do</strong> que o mero controle <strong>do</strong>s recursos econômicos),<br />
14 R. Ferguson, The adjudication of commercial disputes and the legal system in mo<strong>de</strong>rn England.<br />
British Journal of Law and Society, 7(141), 1980.<br />
15 Para um resumo <strong>do</strong>s obstáculos econômicos (custos da justiça), sociais (distância social) e<br />
culturais (temor <strong>de</strong> represáli<strong>as</strong>) que afetam o acesso à justiça, ver Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos,<br />
Introdução à sociologia da administração da justiça, in José Eduar<strong>do</strong> Faria (org.), Direito<br />
e justiça: a função social <strong>do</strong> Judiciário (São Paulo, Ática, 1988).<br />
16 Mark Blacksell, Kim Economi<strong>de</strong>s & Charles Watkins, op. cit. Ver também Kim Economi<strong>de</strong>s,<br />
Law and geography: new frontiers, in Philip A. Thom<strong>as</strong> (ed.), Legal frontiers (Al<strong>de</strong>rshot,<br />
Dartmouth, 1996).<br />
17 Marc Galanter, op. cit.
KIM ECONOMIDES 67<br />
ou seja, a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicar compreensão estratégica, ou know-how tático,<br />
<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a administrar o sistema judiciário para <strong>as</strong>segurar vantagens <strong>de</strong><br />
longo prazo. 18<br />
Embora muitos <strong>de</strong>sses primeiros estu<strong>do</strong>s tivessem explica<strong>do</strong> o uso e o<br />
não uso <strong>do</strong>s serviços jurídicos (e o acesso ao sistema, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais amplo)<br />
com referência via <strong>de</strong> regra às atitu<strong>de</strong>s, recursos e abordagens <strong>de</strong> clientes individuais,<br />
<strong>de</strong>senvolveu-se nos anos 70 uma importante vertente alternativa<br />
que veio a ser conhecida como Teoria da Organização Social. 19 Mayhew e<br />
Reiss, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, conduziram um relevante estu<strong>do</strong> da população <strong>de</strong><br />
Michigan, chaman<strong>do</strong> a atenção não tanto sobre os clientes, m<strong>as</strong> sobre a oferta<br />
na equação advoga<strong>do</strong>-cliente, ou seja, sobre a natureza <strong>do</strong>s serviços jurídicos<br />
ofereci<strong>do</strong>s. Em termos gerais, apren<strong>de</strong>u-se que, para compreen<strong>de</strong>r como<br />
os cidadãos acessam os serviços jurídicos, é necessário efetivamente enten<strong>de</strong>r<br />
a natureza <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s, su<strong>as</strong> atitu<strong>de</strong>s e o estilo <strong>de</strong> serviços que<br />
oferecem, pois, habitualmente, os advoga<strong>do</strong>s aten<strong>de</strong>m a categori<strong>as</strong> particulares<br />
<strong>de</strong> clientes (os gran<strong>de</strong>s escritórios d<strong>as</strong> cida<strong>de</strong>s invariavelmente servem a<br />
clientes corporativos), enquanto os pobres recebem <strong>as</strong>sistência <strong>de</strong> <strong>de</strong>fensores<br />
públicos, atuantes na justiça criminal ou n<strong>as</strong> var<strong>as</strong> <strong>de</strong> famíli<strong>as</strong>. Se, em tod<strong>as</strong><br />
ess<strong>as</strong> categori<strong>as</strong> tradicionais <strong>de</strong> disput<strong>as</strong>, os clientes po<strong>de</strong>m ter — e têm —<br />
acesso à justiça, como explica Schuyt, sociólogo <strong>do</strong> direito holandês, restam<br />
importantes espaços vazios na oferta:<br />
“Os advoga<strong>do</strong>s aten<strong>de</strong>m aos indivíduos primordialmente em c<strong>as</strong>os <strong>de</strong> divórcio;<br />
não os aten<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> maneira relevante, em seus conflitos com os governos<br />
ou com <strong>as</strong> organizações. Eles servem, preferencialmente, às corporações<br />
e às gran<strong>de</strong>s organizações.” 20<br />
A natureza e o estilo <strong>do</strong>s serviços jurídicos ofereci<strong>do</strong>s são, portanto, fatores<br />
cruciais que influenciam, quan<strong>do</strong> não <strong>de</strong>terminam, a mobilização da lei. 21<br />
Como a oferta <strong>de</strong> serviços jurídicos não é controlada apen<strong>as</strong> pelos<br />
profissionais priva<strong>do</strong>s, existem substanciais oportunida<strong>de</strong>s para os governos,<br />
locais ou centrais, ampliarem o escopo <strong>do</strong>s serviços jurídicos estatais <strong>de</strong><br />
18 Ver também Mark Blacksell et alii, op. cit., cap. 6, que acrescentou outra dimensão ao tema,<br />
ao mostrar que a “competência legal” não é simplesmente uma característica individual,<br />
<strong>de</strong>terminante da <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> acesso <strong>do</strong> cliente. Também são importantes a família próxima<br />
e a malha social que cerca um indivíduo: <strong>as</strong> competênci<strong>as</strong> e experiênci<strong>as</strong> mais ampl<strong>as</strong>,<br />
<strong>de</strong> amigos e parentes, com o sistema legal constituem elementos essenciais na <strong>de</strong>terminação<br />
da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um indivíduo mobilizar a lei e o sistema judiciário.<br />
19 Leon Mayhew & Albert Reiss, The social organisation of legal contacts. American Sociological<br />
Review, 34(309), 1969; Leon Mayhew, Institutions of legal representation: civil justice and<br />
the public. Law & Society Review, 9(401), 1975.<br />
20 Kees Schuyt, op. cit., p. 111 (versão em inglês).<br />
21 Erhard Blankenburg, Mobilisation and the law. Government and Policy, 2(461), 1984.
68 CIDADANIA, JUSTIÇA E VIOLÊNCIA<br />
mo<strong>do</strong> a preencher os espaços vazios <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s pelo merca<strong>do</strong>. Se o governo<br />
apoiar ativamente, por exemplo, os serviços jurídicos preventivos, não se limitan<strong>do</strong><br />
a financiar o trabalho <strong>de</strong> profissionais priva<strong>do</strong>s por intermédio <strong>de</strong><br />
planos <strong>de</strong> <strong>as</strong>sistência jurídica, m<strong>as</strong> investin<strong>do</strong> diretamente também no trabalho<br />
<strong>do</strong>s tribunais e nos serviços extrajudiciais e paralegais, o resulta<strong>do</strong> inevitável<br />
será a melhoria <strong>do</strong> acesso <strong>do</strong>s cidadãos à justiça. Por conseguinte,<br />
c<strong>as</strong>o serviços jurídicos estatais, na forma <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> aconselhamento ou<br />
<strong>de</strong> justiça, sejam estabeleci<strong>do</strong>s em comunida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> <strong>as</strong> necessida<strong>de</strong>s sejam<br />
particularmente agud<strong>as</strong> — no contexto br<strong>as</strong>ileiro isto po<strong>de</strong>ria ocorrer<br />
<strong>de</strong>ntro d<strong>as</strong> favel<strong>as</strong>, por exemplo —, tais serviços preventivos po<strong>de</strong>riam ter<br />
um efeito impactante em termos <strong>de</strong> estímulo à <strong>de</strong>manda (e uso) <strong>do</strong>s serviços<br />
judiciais. 22 No entanto, existem po<strong>de</strong>rosos <strong>de</strong>sestímulos para que qualquer<br />
governo contemple um investimento <strong>de</strong>sse tipo: em primeiro lugar, o<br />
governo corre o risco <strong>de</strong> ser parte na mesma ação legal que financia; em<br />
segun<strong>do</strong>, ao estimular o litígio colocan<strong>do</strong> à disposição procedimentos informais<br />
e juiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pequen<strong>as</strong> caus<strong>as</strong>, po<strong>de</strong>m-se exacerbar os problem<strong>as</strong> gerais<br />
<strong>de</strong> congestionamento (e custos) <strong>do</strong>s tribunais <strong>do</strong> sistema judiciário mais<br />
amplo; em terceiro, investir diretamente no ataque às caus<strong>as</strong> da pobreza e<br />
d<strong>as</strong> injustiç<strong>as</strong> po<strong>de</strong> ser uma estratégia mais eficiente <strong>de</strong> <strong>as</strong>segurar “justiça”<br />
<strong>do</strong> que a <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong>s e remédios jurídicos. Apesar <strong>de</strong>sses<br />
problem<strong>as</strong>, consi<strong>de</strong>ro que os serviços jurídicos preventivos po<strong>de</strong>m agir como<br />
um ímã, atrain<strong>do</strong> problem<strong>as</strong> legais, enquanto, inversamente, os serviços tradicionais<br />
b<strong>as</strong>ea<strong>do</strong>s no merca<strong>do</strong> — em que os advoga<strong>do</strong>s abrigam-se em áre<strong>as</strong><br />
urban<strong>as</strong> centrais, por trás <strong>de</strong> port<strong>as</strong> e ternos formais, distantes d<strong>as</strong> comunida<strong>de</strong>s<br />
locais — apen<strong>as</strong> reforçam <strong>as</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, repelin<strong>do</strong><br />
serviços jurídicos não lucrativos. A <strong>as</strong>sistência jurídica está, portanto, repleta<br />
<strong>de</strong> para<strong>do</strong>xos e contradições. 23<br />
A terceira dimensão da oferta <strong>de</strong> serviços jurídicos, relativa à influência<br />
<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> problema jurídico como variável importante na <strong>de</strong>terminação<br />
<strong>do</strong> acesso à justiça, também vem sen<strong>do</strong> mais bem compreendida atualmente.<br />
Como indica Schuyt, existe claramente uma v<strong>as</strong>ta gama <strong>de</strong> disput<strong>as</strong> malservid<strong>as</strong><br />
por to<strong>do</strong>s os ramos da profissão jurídica (seja o cliente rico ou pobre),<br />
porque o processo <strong>de</strong> julgamento individualiza artificialmente conflitos que, na<br />
realida<strong>de</strong>, se referem a grupos ou interesses públicos mais amplos. O processo<br />
judiciário ainda não parece estar aparelha<strong>do</strong> para representar reclamações<br />
22 Celso Campilongo, <strong>Acesso</strong> à justiça e form<strong>as</strong> alternativ<strong>as</strong> <strong>de</strong> resolução <strong>de</strong> conflitos: serviços<br />
jurídicos em São Bernar<strong>do</strong> <strong>do</strong> Campo. Revista Forense, 315(3), 1991. Ver também Boaventura<br />
<strong>de</strong> Sousa Santos, The law of the oppressed: the construction and reproduction of legality<br />
in P<strong>as</strong>argada. Law & Society Review, 12(5), 1977.<br />
23 Richard Abel, The para<strong>do</strong>xes of legal aid, in Jeremy Cooper & Rajeev Dhavan (eds.),<br />
Public interest law (Oxford, Blackwell, 1987).
KIM ECONOMIDES 69<br />
em gran<strong>de</strong> escala que tenham conseqüênci<strong>as</strong> polític<strong>as</strong> ou econômic<strong>as</strong> significativ<strong>as</strong><br />
para a socieda<strong>de</strong> como um to<strong>do</strong>. 24 Os direitos relativos ao meio ambiente<br />
— ou “direitos metaindividuais” —, por exemplo, que transcen<strong>de</strong>m os<br />
interesses <strong>de</strong> qualquer indivíduo em particular afetan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os cidadãos,<br />
não são freqüentemente bem representa<strong>do</strong>s, quer pelos prove<strong>do</strong>res <strong>de</strong> serviços<br />
jurídicos, quer pelos grupos particulares <strong>de</strong> clientes que preten<strong>de</strong>m representar<br />
a cl<strong>as</strong>se mais ampla.<br />
Para concluir esta análise, gostaria <strong>de</strong> chamar a atenção para a interação<br />
entre <strong>as</strong> três variáveis acima e fazer du<strong>as</strong> observações <strong>de</strong> caráter geral.<br />
Em primeiro lugar, o problema <strong>de</strong> acesso à justiça não é simplesmente um<br />
problema <strong>de</strong> opção individual <strong>do</strong> cidadão: <strong>as</strong> responsabilida<strong>de</strong>s pela garantia<br />
<strong>de</strong> que tal acesso seja <strong>as</strong>segura<strong>do</strong> a grupos excluí<strong>do</strong>s recaem tanto no governo,<br />
quanto nos organismos profissionais. Em segun<strong>do</strong>, como a <strong>de</strong>pendência<br />
<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> muit<strong>as</strong> maneir<strong>as</strong>, perpetuar espaços vazios na oferta <strong>de</strong><br />
serviços jurídicos, não apen<strong>as</strong> em termos <strong>de</strong> áre<strong>as</strong> <strong>do</strong> direito, m<strong>as</strong> também <strong>de</strong><br />
áre<strong>as</strong> geográfic<strong>as</strong>, é preciso uma ação <strong>de</strong>terminada <strong>do</strong> governo e d<strong>as</strong> profissões<br />
jurídic<strong>as</strong> (ambos agin<strong>do</strong> em consonância) para que tais espaços vazios sejam<br />
um dia preenchi<strong>do</strong>s.<br />
Epistemologia<br />
Nesta terceira parte, preten<strong>do</strong> analisar mais <strong>de</strong> perto a natureza, o papel<br />
e <strong>as</strong> responsabilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s principais formula<strong>do</strong>res <strong>de</strong> política no interior<br />
<strong>do</strong> governo e d<strong>as</strong> profissões ligad<strong>as</strong> ao sistema jurídico no provimento da estrutura<br />
<strong>de</strong>ntro da qual po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>senvolvid<strong>as</strong> reform<strong>as</strong> visan<strong>do</strong> ao acesso à<br />
justiça. Algum<strong>as</strong> questões preliminares po<strong>de</strong>m ser produtivamente colocad<strong>as</strong><br />
neste ponto: <strong>de</strong> quem é o “acesso à justiça” <strong>de</strong> que estamos falan<strong>do</strong> Por que,<br />
governo e profissionais, <strong>de</strong>veriam se incomodar com nosso tema <strong>de</strong> “acesso à<br />
justiça” Que conseqüênci<strong>as</strong> po<strong>de</strong>m advir da falta <strong>de</strong> acesso<br />
Uma resposta imediata a est<strong>as</strong> pergunt<strong>as</strong> relaciona-se à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
legitimação <strong>do</strong> governo e d<strong>as</strong> profissões jurídic<strong>as</strong>, cuja credibilida<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong><br />
não a própria sobrevivência, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a retórica que cerca os direitos<br />
e os i<strong>de</strong>ais profissionais seja, em certo ponto, materializada na prática. O acesso<br />
à justiça está, portanto, vincula<strong>do</strong> aos tem<strong>as</strong> <strong>de</strong> cidadania e constitucionalismo,<br />
apoian<strong>do</strong> e reforçan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> direito, o qual, como observa Roberto<br />
Mangabeira Unger, “…é a alma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno. O estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema<br />
legal leva-nos diretamente aos problem<strong>as</strong> centrais encara<strong>do</strong>s pela própria<br />
24 Abram Chayes, The role of the judge in public law litigation. Harvard Law Review, 89<br />
(1.281), 1976.
70 CIDADANIA, JUSTIÇA E VIOLÊNCIA<br />
socieda<strong>de</strong>”. 25 Em outr<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, a legitimida<strong>de</strong> política e a legitimida<strong>de</strong> profissional<br />
estariam em jogo se houvesse uma persistente e generalizada negação<br />
<strong>de</strong> acesso a serviços jurídicos, sejam os forneci<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong>, sejam os<br />
presta<strong>do</strong>s por profissionais priva<strong>do</strong>s.<br />
Em muitos países da Europa Oci<strong>de</strong>ntal — e na Grã-Bretanha, em particular<br />
—, nem a principal força motriz por trás d<strong>as</strong> atuais reform<strong>as</strong> <strong>de</strong> “acesso”<br />
é um <strong>de</strong>sejo altruístico <strong>de</strong> valorizar a cidadania, nem tais reform<strong>as</strong> representam<br />
uma reação a uma crise <strong>de</strong> confiança nos i<strong>de</strong>ais profissionais ou políticos,<br />
embora elementos <strong>de</strong> amb<strong>as</strong> estejam claramente presentes. Ao contrário,<br />
a principal <strong>de</strong>terminante da política governamental parece ser a busca <strong>de</strong> novos<br />
meios <strong>de</strong> reduzir os custos da oferta <strong>de</strong> serviços jurídicos que, na maioria<br />
<strong>do</strong>s países, vêm crescen<strong>do</strong> <strong>de</strong>scontroladamente. 26 Na Inglaterra e no País <strong>de</strong><br />
Gales, por exemplo, a conta da <strong>as</strong>sistência jurídica tem aumenta<strong>do</strong> exponencialmente<br />
e, apesar <strong>do</strong>s sinais <strong>de</strong> que alguma disciplina começa a ser imposta<br />
a esses custos <strong>as</strong>cen<strong>de</strong>ntes, continua a carrear volumes maciços <strong>de</strong> dinheiro<br />
público para os profissionais priva<strong>do</strong>s. 27 As tendênci<strong>as</strong> atuais em direção a<br />
serviços jurídicos alternativos, justiça informal, resolução alternativa <strong>de</strong> conflitos<br />
(alternative dispute resolution — ADR) e acertos condicionais <strong>de</strong> honorários<br />
<strong>de</strong>vem ser vist<strong>as</strong> como tentativ<strong>as</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar, reduzir ou distribuir os custos <strong>de</strong><br />
c<strong>as</strong>os legais onerosos, através da experimentação <strong>de</strong> novos meios <strong>de</strong> processamento,<br />
administração e financiamento <strong>de</strong> disput<strong>as</strong>. Qualquer melhoria subseqüente<br />
<strong>do</strong> acesso <strong>do</strong>s cidadãos (ou <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> política/profissional) é<br />
um efeito colateral, positivo, m<strong>as</strong> secundário. Se o objetivo primordial d<strong>as</strong> reform<strong>as</strong><br />
<strong>de</strong> acesso for, verda<strong>de</strong>iramente, reduzir o ônus financeiro <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />
será que est<strong>as</strong> reform<strong>as</strong> estão, no final, con<strong>de</strong>nad<strong>as</strong> ao frac<strong>as</strong>so ou são irrelevantes<br />
para a busca <strong>de</strong> concepções mais profund<strong>as</strong> (ou mesmo mais pragmátic<strong>as</strong>)<br />
<strong>de</strong> justiça<br />
Neste ponto, po<strong>de</strong> ser instrutivo lembrar o Projeto <strong>de</strong> <strong>Acesso</strong> à Justiça<br />
<strong>de</strong> Florença e a filosofia subjacente então advogada <strong>de</strong> “tornar efetivos os direitos”.<br />
28 A teoria política liberal que inspirava este projeto e que, acredito,<br />
25 Roberto Mangabeira Unger, O direito na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna (Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização Br<strong>as</strong>ileira,<br />
1979. p. 202).<br />
26 Erhard Blankenburg, Comparing legal aid schemes in Europe. Civil Justice Quarterly,<br />
11(106), 1992. Para uma análise da política <strong>do</strong>s serviços legais, ver também Kim Economi<strong>de</strong>s<br />
& Bryant Garth, The <strong>de</strong>termination of legal services policy in the United King<strong>do</strong>m and<br />
the United States of America. Government and Policy, 2(371), 1984.<br />
27 As <strong>de</strong>spes<strong>as</strong> com <strong>as</strong>sistência jurídica, no Reino Uni<strong>do</strong>, têm cresci<strong>do</strong> nos últimos anos a<br />
uma taxa que tem si<strong>do</strong> o <strong>do</strong>bro da taxa <strong>de</strong> inflação anual, embora haja sinais <strong>de</strong> que a política<br />
governamental esteja agora começan<strong>do</strong> a exercer algum controle sobre esses custos. Estima-se<br />
que, atualmente, cerca <strong>de</strong> 30% <strong>do</strong>s ingressos totais da Or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s e 15%<br />
d<strong>as</strong> receit<strong>as</strong> <strong>do</strong>s próprios advoga<strong>do</strong>s provenham <strong>de</strong> <strong>as</strong>sistência jurídica. Ver ainda Roger Smith,<br />
Justice: redressing the balance (Lon<strong>do</strong>n, Legal Action Group, 1997).<br />
28 Mauro Cappelletti & Bryant Garth (eds.), op. cit.
KIM ECONOMIDES 71<br />
continua válida até hoje, era <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar a ênf<strong>as</strong>e, <strong>do</strong>s direitos formais, para a<br />
justiça substantiva. A análise <strong>de</strong> Cappelletti da revisão judiciária contemporânea<br />
refere-se ao continuum evolutivo que liga a Revolução Francesa, a Declaração<br />
<strong>do</strong>s Direitos <strong>do</strong> Homem d<strong>as</strong> Nações Unid<strong>as</strong> e o internacionalismo <strong>do</strong><br />
movimento pelos direitos humanos (particularmente durante o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
pós-guerra) e que abraça, finalmente, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> direitos humanos<br />
regionais. 29 No entanto, o <strong>de</strong>safio atual não é alargar os direitos — ou<br />
elaborar <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> direitos (por mais importantes que est<strong>as</strong> sejam para<br />
os advoga<strong>do</strong>s constitucionalist<strong>as</strong> e para o simbolismo político) —, m<strong>as</strong> encontrar<br />
meios e recursos para tornar, tanto “efetivos”, quanto “coativos”, os direitos<br />
que os cidadãos já têm. Somente por meio da aplicação <strong>de</strong> rigorosos<br />
procedimentos acadêmicos à natureza, ao escopo e ao papel <strong>do</strong>s sistem<strong>as</strong> judiciais<br />
civis no provimento <strong>do</strong>s direitos abstratos freqüentemente exalta<strong>do</strong>s na<br />
retórica legal será possível expor a <strong>de</strong>ficiência e a hipocrisia que cercam o<br />
discurso constitucional. Essa perspectiva, essencialmente “inglesa”, enfatiza os<br />
meios pragmáticos para melhorar e promover a acessibilida<strong>de</strong> ao sistema legal<br />
e judiciário, em vez <strong>de</strong> dar expressão legal a um “direito <strong>de</strong> ação” constitucional.<br />
A estrutura analítica <strong>do</strong> Projeto <strong>de</strong> <strong>Acesso</strong> à Justiça <strong>de</strong> Florença foi <strong>de</strong>senvolvida<br />
em torno da metáfora <strong>de</strong> três ond<strong>as</strong>: a primeira refere-se à <strong>as</strong>sistência<br />
jurídica, ou judicare; 30 a segunda traduz-se pela justiça <strong>de</strong> interesse público<br />
(a articulação da representação <strong>de</strong> direitos coletivos mediante ações <strong>de</strong><br />
cl<strong>as</strong>se e <strong>de</strong> interesse público); e, a terceira, conhecida hoje como “abordagem<br />
<strong>de</strong> acesso à justiça”, inclui a justiça informal, o <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> c<strong>as</strong>os <strong>de</strong> competência<br />
<strong>do</strong> sistema formal legal e a simplificação da lei. 31 Estes últimos tem<strong>as</strong>,<br />
<strong>as</strong>socia<strong>do</strong>s à terceira onda, estão atualmente muito em voga na Inglaterra,<br />
em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> uma investigação sobre o sistema judiciário civil<br />
conduzida por lor<strong>de</strong> Woolf, questionan<strong>do</strong> os princípios básicos <strong>do</strong> processo civil<br />
inglês com vist<strong>as</strong> a melhorar e reduzir os crescentes g<strong>as</strong>tos <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong><br />
justiça civil. 32<br />
M<strong>as</strong> est<strong>as</strong> reform<strong>as</strong> da “terceira onda” promovem o “acesso à justiça”<br />
ou o “acesso à paz” Na minha opinião, a resolução <strong>de</strong> disput<strong>as</strong> não po<strong>de</strong> ser<br />
necessariamente equiparada ao acesso à justiça, pois existe o perigo <strong>de</strong> se-<br />
29 Mauro Cappelletti, Judicial review in the contemporary world (Charlottesville, Bobbs-Merrill,<br />
1971). Um resumo <strong>de</strong>sta análise po<strong>de</strong> ser também encontra<strong>do</strong> em Mauro Cappelletti &<br />
William Cohen, op. cit., cap. 1.<br />
30 Para uma análise <strong>do</strong> judicare, ver Mauro Cappelletti & James Gordley, Legal aid: mo<strong>de</strong>rn<br />
themes and variations. Stanford Law Review, 24(347), 1972.<br />
31 Mauro Cappelletti & Bryant Garth (eds.), op. cit.<br />
32 Para informação sobre os <strong>de</strong>senvolvimentos recentes, ver o seguinte website: http://www.law.<br />
warwick.ac.uk/woolf/
72 CIDADANIA, JUSTIÇA E VIOLÊNCIA<br />
rem oferecid<strong>as</strong> aos cidadãos soluções pacífic<strong>as</strong>, possivelmente até soluções<br />
com <strong>as</strong> quais possam ficar extremamente contentes e felizes, que, no entanto,<br />
permanecem aquém <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> p<strong>as</strong>sível <strong>de</strong> ser obti<strong>do</strong> c<strong>as</strong>o os direitos legais<br />
fossem exerci<strong>do</strong>s por intermédio <strong>do</strong> sistema judiciário formal. Há, portanto,<br />
um perigo real nessa ubíqua tendência para o informalismo judicial, atualmente<br />
em voga, <strong>de</strong> se negar muito <strong>do</strong>s valores, da importância e da significação<br />
histórica <strong>do</strong> formalismo da justiça. 33 Talvez a metáfora d<strong>as</strong> “ond<strong>as</strong>” seja<br />
simplista, m<strong>as</strong> serve para i<strong>de</strong>ntificar f<strong>as</strong>es cruciais <strong>do</strong>s <strong>de</strong>senvolvimentos, intelectual<br />
e político, produzi<strong>do</strong>s por este importante movimento global <strong>de</strong> acesso<br />
à justiça.<br />
Uma quarta onda<br />
Nesta conclusão, parto da observação <strong>de</strong> Mangabeira Unger — “[é]<br />
possível, <strong>as</strong>sim, explicar uma experiência básica e comum na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna<br />
que, <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, seria incompreensível: a sensação <strong>de</strong> estar-se ro<strong>de</strong>a<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> injustiça, ao mesmo tempo em que não se sabe on<strong>de</strong> a justiça está.<br />
Esta situação é o la<strong>do</strong> mais político daquele sentimento mais geral <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong><br />
e até mesmo <strong>de</strong> absur<strong>do</strong> que gradualmente penetra a consciência <strong>de</strong><br />
to<strong>do</strong>s os grupos” 34 — para i<strong>de</strong>ntificar uma quarta, e talvez última, onda <strong>do</strong><br />
movimento <strong>de</strong> acesso à justiça: o acesso <strong>do</strong>s opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> direito (inclusive<br />
<strong>do</strong>s que trabalham no sistema judicial) à justiça.<br />
Dentro da consciência da profissão jurídica existe um para<strong>do</strong>xo curioso,<br />
qu<strong>as</strong>e invisível: como os advoga<strong>do</strong>s, que diariamente administram justiça,<br />
percebem e têm, eles mesmos, “acesso à justiça” A experiência quotidiana<br />
<strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s e a proximida<strong>de</strong> da Justiça cegam a profissão jurídica em relação<br />
a concepções mais profund<strong>as</strong> <strong>de</strong> justiça (interna ou social) e, conseqüentemente,<br />
fazem com que a profissão ignore a relação entre justiça civil e justiça<br />
cívica. Nossa “quarta onda” expõe <strong>as</strong> dimensões ética e política da administração<br />
da justiça e, <strong>as</strong>sim, indica importantes e novos <strong>de</strong>safios tanto para a<br />
responsabilida<strong>de</strong> profissional como para o ensino jurídico. 35<br />
O problema atual não é, simplesmente, medir o acesso <strong>do</strong>s cidadãos à<br />
justiça, lançan<strong>do</strong> mão, por exemplo, <strong>do</strong> mapeamento <strong>de</strong> espaços na oferta<br />
<strong>do</strong>s serviços jurídicos, m<strong>as</strong>, antes, abrir nov<strong>as</strong> perspectiv<strong>as</strong> na <strong>de</strong>finição da<br />
33 Richard Abel (ed.), The politics of informal justice (New York, Aca<strong>de</strong>mic Press, 1982); Conservative<br />
conflict and the reproduction of capitalism: the role of informal justice. International<br />
Journal of the Sociology of Law, 9(245), 1981.<br />
34 Roberto Mangabeira Unger, op. cit., p. 186.<br />
35 Kim Economi<strong>de</strong>s (ed.). Ethical challenges to legal education and conduct (Oxford, Hart,<br />
1998).
KIM ECONOMIDES 73<br />
própria justiça. Dessa forma, proponho uma mudança importante, p<strong>as</strong>san<strong>do</strong><br />
d<strong>as</strong> questões meto<strong>do</strong>lógic<strong>as</strong> para <strong>as</strong> epistemológic<strong>as</strong> ou, colocan<strong>do</strong> <strong>de</strong> outra<br />
maneira, redirecionan<strong>do</strong> nossa atenção, <strong>de</strong>svian<strong>do</strong>-nos <strong>do</strong> acesso para olharmos<br />
para a justiça com novos olhos. A que tipo <strong>de</strong> “justiça” os cidadãos <strong>de</strong>vem<br />
<strong>as</strong>pirar Em vez <strong>de</strong> nos concentrarmos no la<strong>do</strong> da <strong>de</strong>manda, <strong>de</strong>vemos<br />
consi<strong>de</strong>rar mais cuida<strong>do</strong>samente o acesso <strong>do</strong>s cidadãos à justiça <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da<br />
oferta, analisan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is níveis distintos: primeiro, o acesso <strong>do</strong>s cidadãos ao ensino<br />
<strong>do</strong> direito e ao ingresso n<strong>as</strong> profissões jurídic<strong>as</strong>; segun<strong>do</strong>, uma vez qualifica<strong>do</strong>s,<br />
o acesso <strong>do</strong>s opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> direito à justiça. Ten<strong>do</strong> venci<strong>do</strong> <strong>as</strong> barreir<strong>as</strong><br />
para admissão aos tribunais e às carreir<strong>as</strong> jurídic<strong>as</strong>, como o cidadão po<strong>de</strong><br />
se <strong>as</strong>segurar <strong>de</strong> que tanto juízes quanto advoga<strong>do</strong>s estejam equipa<strong>do</strong>s para fazer<br />
“justiça”<br />
O primeiro tema, portanto, é relativo ao acesso à educação jurídica:<br />
quem po<strong>de</strong> se qualificar como advoga<strong>do</strong> ou juiz Quem tem acesso às faculda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> direito Uma vez que <strong>as</strong> faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> direito são, invariavelmente,<br />
<strong>as</strong> guardiãs <strong>do</strong>s portões <strong>de</strong> acesso à carreira jurídica, torna-se preciso enten<strong>de</strong>r<br />
quem tem acesso a el<strong>as</strong> e em que b<strong>as</strong>es. É a admissão governada,<br />
primariamente, segun<strong>do</strong> princípios <strong>de</strong> nepotismo ou <strong>de</strong> mérito Os governos,<br />
os organismos profissionais e os advoga<strong>do</strong>s individualmente precisam<br />
esforçar-se para promover positivamente o acesso à profissão legal <strong>de</strong> mulheres,<br />
minori<strong>as</strong> em <strong>de</strong>svantagem e outros grupos que sejam social ou historicamente<br />
excluí<strong>do</strong>s 36 A partir <strong>de</strong>ssa perspectiva, o acesso <strong>do</strong>s cidadãos<br />
br<strong>as</strong>ileiros à carreira jurídica <strong>de</strong>veria ser olha<strong>do</strong> como uma importante dimensão,<br />
até mesmo uma precondição, para a questão <strong>do</strong> acesso <strong>do</strong>s cidadãos<br />
à justiça.<br />
O segun<strong>do</strong> tema, mais difícil, refere-se à questão <strong>de</strong> como garantir que,<br />
uma vez <strong>de</strong>ntro da carreira, tanto advoga<strong>do</strong>s quanto juízes tenham acesso à<br />
justiça. Este tema levanta, por sua vez, questões étic<strong>as</strong> referentes às responsabilida<strong>de</strong>s<br />
mais ampl<strong>as</strong> da participação d<strong>as</strong> faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> direito e <strong>do</strong>s organismos<br />
profissionais não apen<strong>as</strong> no controle da admissão às carreir<strong>as</strong> jurídic<strong>as</strong>,<br />
m<strong>as</strong> também na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> padrões mínimos <strong>de</strong> profissionalização. Estes <strong>as</strong>suntos<br />
estão presentes na maioria <strong>do</strong>s sistem<strong>as</strong> legais mo<strong>de</strong>rnos, to<strong>do</strong>s lutan<strong>do</strong><br />
com a conciliação <strong>de</strong> tensões entre a manutenção da qualida<strong>de</strong> da justiça<br />
e <strong>de</strong> seu acesso. Visan<strong>do</strong> a analisar mais profundamente estes dilem<strong>as</strong> éticos,<br />
<strong>de</strong>senvolvo atualmente um estu<strong>do</strong> comparativo <strong>do</strong> ensino da ética legal (que<br />
36 Rajeev Dhavan et alii (eds.), Access to legal education and the legal profession (Lon<strong>do</strong>n,<br />
Butterworths, 1989). Ver também Sheila Dziobon, The feminization of the Judiciary in England<br />
and Wales. Trabalho apresenta<strong>do</strong> no seminário internacional A Mulher na Magistratura,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, ago. 1996; Eliane Junqueira et alii. Juízes: retrato em preto e branco (Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro, LetraCapital, 1997).
74 CIDADANIA, JUSTIÇA E VIOLÊNCIA<br />
inclui uma excelente contribuição <strong>do</strong> Br<strong>as</strong>il) 37 e promovo o lançamento <strong>de</strong><br />
um novo periódico interdisciplinar internacional intitula<strong>do</strong> Legal Ethics. 38<br />
Antes <strong>de</strong> se respon<strong>de</strong>r a<strong>de</strong>quadamente a qualquer <strong>de</strong>st<strong>as</strong> du<strong>as</strong> questões,<br />
é necessário enten<strong>de</strong>r melhor o papel e <strong>as</strong> responsabilida<strong>de</strong>s d<strong>as</strong> faculda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> direito na formação <strong>do</strong> caráter profissional <strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s. Em muit<strong>as</strong><br />
socieda<strong>de</strong>s, parece haver um cinismo dissemina<strong>do</strong> acerca da lei, <strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s<br />
e da justiça, às vezes encoraja<strong>do</strong> pelo que acontece <strong>de</strong>ntro d<strong>as</strong> faculda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> direito: 39 a lei é percebida como fora <strong>de</strong> alcance (e, freqüentemente,<br />
está mesmo); a justiça é uma utopia distante e, portanto, um i<strong>de</strong>al inatingível;<br />
e os advoga<strong>do</strong>s são objeto <strong>de</strong> humor cínico, em vez <strong>de</strong> merecerem a fé, a<br />
confiança e o respeito <strong>do</strong> público. 40 A ética legal é vista como um para<strong>do</strong>xo e<br />
a relação entre os advoga<strong>do</strong>s e a justiça é, quan<strong>do</strong> muito, altamente problemática.<br />
Serão os advoga<strong>do</strong>s vistos em toda parte (no Br<strong>as</strong>il, inclusive) como<br />
primordialmente motiva<strong>do</strong>s pela busca <strong>do</strong> lucro, e não pelo seu compromisso<br />
com a justiça e a prática ética C<strong>as</strong>o positivo, será isto uma conseqüência da<br />
educação jurídica geralmente se concentrar em análises <strong>do</strong>utrinári<strong>as</strong>, em vez<br />
<strong>de</strong> contextuais, e en<strong>do</strong>ssar uma forte tradição positivista que separa rigidamente<br />
a lei da moral<br />
As respost<strong>as</strong> a tais pergunt<strong>as</strong> po<strong>de</strong>m se tornar mais clar<strong>as</strong> mediante um<br />
exame cultural cruza<strong>do</strong> da dimensão macro (relativa à distribuição <strong>do</strong> recurso<br />
à lei) e da dimensão micro (relativa à responsabilida<strong>de</strong> profissional). Um<br />
ponto <strong>de</strong> partida váli<strong>do</strong> seria avaliar <strong>as</strong> <strong>de</strong>clarações referentes às responsabilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s acolhid<strong>as</strong> em seus estatutos <strong>de</strong> cl<strong>as</strong>se e no código <strong>de</strong><br />
ética profissional, que <strong>de</strong>vem ser examina<strong>do</strong>s com vist<strong>as</strong> a se verificar até que<br />
ponto promovem e sustentam a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s, o profissionalismo<br />
humanitário e os direitos humanos. Talvez estes instrumentos normativos<br />
silenciem sobre estes valores, preferin<strong>do</strong> enfocar o controle da conduta profissional<br />
e não a erradicação da injustiça. Os valores profissionais, como a competência<br />
técnica, precisam ser comunica<strong>do</strong>s e p<strong>as</strong>sa<strong>do</strong>s à próxima geração <strong>de</strong><br />
advoga<strong>do</strong>s. Embora muit<strong>as</strong> escol<strong>as</strong> <strong>de</strong> direito lecionem disciplin<strong>as</strong> no campo<br />
<strong>do</strong>s direitos humanos, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> dar qualquer status mais eleva<strong>do</strong> a esta matéria,<br />
igualan<strong>do</strong>-a a vári<strong>as</strong> outr<strong>as</strong>. Em minha opinião, os direitos humanos <strong>de</strong>veriam<br />
receber um status especial no currículo <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à sua importância capital,<br />
tanto para a cidadania, quanto para a profissionalização <strong>do</strong> futuro opera<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> direito. A<strong>de</strong>mais, os advoga<strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>rnos <strong>do</strong>s vários países <strong>de</strong>veriam<br />
37 Ver Eliane Junqueira, The teaching of legal ethics... in the “Tropiques”, in Kim Economi<strong>de</strong>s<br />
(ed.), Ethical challenges...<br />
38 Legal Ethics é publica<strong>do</strong> por Hart, Oxford.<br />
39 Kim Economi<strong>de</strong>s, Cynical legal studies, in Jeremy Cooper & Louise Trubek (eds.), Educating<br />
for justice: social values and legal education (Brookfield, Ashgate, 1997).<br />
40 Thom<strong>as</strong> Overton, Lawyers, light bulbs and <strong>de</strong>ad snakes: the lawyer joke <strong>as</strong> societal text.<br />
Ucla. Law Review, 42(1.069), 1995.
KIM ECONOMIDES 75<br />
seguir o exemplo br<strong>as</strong>ileiro a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> um equivalente ao juramento <strong>de</strong> Hipócrates<br />
<strong>do</strong>s médicos. 41 Sem dúvida, é necessária, no momento, uma discussão<br />
abrangente <strong>do</strong>s valores fundamentais que <strong>de</strong>veriam governar os opera<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> direito, on<strong>de</strong> quer que escolham exercer sua profissão. Os direitos humanos<br />
certamente precisam tornar-se uma parte mais central da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> profissional<br />
<strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s e merecem, por conseguinte, um lugar mais <strong>de</strong>staca<strong>do</strong><br />
no currículo d<strong>as</strong> faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> direito <strong>do</strong> futuro. 42<br />
Os pesquisa<strong>do</strong>res br<strong>as</strong>ileiros no campo <strong>do</strong> acesso à justiça po<strong>de</strong>m, portanto,<br />
consi<strong>de</strong>rar alguns <strong>do</strong>s tem<strong>as</strong> anteriores, gera<strong>do</strong>s pela experiência internacional<br />
na oferta <strong>de</strong> serviços jurídicos. As distint<strong>as</strong> dimensões <strong>do</strong> acesso à<br />
justiça <strong>de</strong>vem ser aproximad<strong>as</strong> em algum momento para se verificar se <strong>as</strong> percepções<br />
e expectativ<strong>as</strong> <strong>do</strong>s que respon<strong>de</strong>ram à pesquisa <strong>do</strong> CPDOC-FGV/Iser<br />
no Rio <strong>de</strong> Janeiro se alterariam substancialmente após, por exemplo, a introdução<br />
<strong>de</strong> serviços jurídicos radicalmente novos para cuidar d<strong>as</strong> necessida<strong>de</strong>s<br />
legais <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res d<strong>as</strong> favel<strong>as</strong>. Estaria o público br<strong>as</strong>ileiro pronto a pagar<br />
por tais serviços e, c<strong>as</strong>o contrário, quem <strong>de</strong>veria <strong>as</strong>sumir a “conta” <strong>de</strong>stes direitos<br />
(bill of rights) 43 Não seria o momento <strong>de</strong> começarmos, agora, a abrir<br />
um novo <strong>de</strong>bate no interior d<strong>as</strong>, ou particular às, <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> justiça, que<br />
conformam e <strong>de</strong>terminam <strong>as</strong> priorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sses serviços presta<strong>do</strong>s pelos setores<br />
público e priva<strong>do</strong> da profissão jurídica Quais <strong>as</strong> responsabilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s<br />
br<strong>as</strong>ileiros para com os grupos socialmente excluí<strong>do</strong>s Para po<strong>de</strong>rmos<br />
abordar tais questões sistematicamente, a próxima f<strong>as</strong>e da pesquisa não<br />
<strong>de</strong>veria examinar mais <strong>de</strong>talhadamente o la<strong>do</strong> da oferta, analisan<strong>do</strong> quem fornece<br />
os serviços jurídicos, e como Até que ponto a oferta po<strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r à<br />
<strong>de</strong>manda latente por serviços legais<br />
41 Os advoga<strong>do</strong>s br<strong>as</strong>ileiros prestam <strong>do</strong>is compromissos. O primeiro, na cerimônia <strong>de</strong> formatura,<br />
tem os seguintes termos: “Prometo no exercício d<strong>as</strong> funções <strong>do</strong> meu grau, respeitar<br />
sempre os princípios da honestida<strong>de</strong>, patrocinan<strong>do</strong> o direito, realizan<strong>do</strong> a justiça, preservan<strong>do</strong><br />
os bons costumes, e nunca faltar à causa da humanida<strong>de</strong>”. O segun<strong>do</strong>, na cerimônia<br />
<strong>de</strong> recebimento da carteira <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong>, é requisito para a inscrição como advoga<strong>do</strong> e<br />
está previsto no art. 8º, VII <strong>do</strong> Estatuto da Advocacia e da Or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Br<strong>as</strong>il<br />
(Lei nº 8.906/94) e no art. 20 <strong>do</strong> Regulamento Geral <strong>do</strong> Estatuto, aprova<strong>do</strong> também em<br />
1994: “Prometo exercer a advocacia com dignida<strong>de</strong> e in<strong>de</strong>pendência, observar a ética, os<br />
<strong>de</strong>veres e prerrogativ<strong>as</strong> profissionais e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a Constituição, a or<strong>de</strong>m jurídica <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>mocrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação d<strong>as</strong> leis, a rápida administração<br />
da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e d<strong>as</strong> instituições jurídic<strong>as</strong>”. No entanto, até<br />
que ponto, em um contexto <strong>de</strong> cynical legal studies (CYLSs), marca<strong>do</strong> pela retórica jurídica,<br />
corre-se o risco <strong>de</strong>, fazen<strong>do</strong>-se aqui um jogo <strong>de</strong> palavr<strong>as</strong>, transformar o juramento <strong>de</strong> Hipócrates<br />
em um juramento hipócrita A este respeito, ver José Eduar<strong>do</strong> Faria, Retórica política<br />
e i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong>mocrática: a legitimação <strong>do</strong> discurso jurídico liberal (Rio <strong>de</strong> Janeiro, Graal, 1984.<br />
cap. 6).<br />
42 Sobre este tema, ver o Programa Nacional <strong>de</strong> Direitos Humanos, elabora<strong>do</strong> no governo<br />
Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so (Br<strong>as</strong>ília, Ministério da Cultura, 1996).<br />
43 N. <strong>do</strong> T.: Per<strong>de</strong>-se na tradução o jogo <strong>de</strong> palavr<strong>as</strong> <strong>do</strong> autor que utilizou, bill of rights, em<br />
que bill tanto po<strong>de</strong> ser conta, nota, quanto lei.
76 CIDADANIA, JUSTIÇA E VIOLÊNCIA<br />
A responsabilida<strong>de</strong> pela promoção e ampliação <strong>do</strong> acesso à educação<br />
jurídica, à lei e à justiça po<strong>de</strong> vir a ser mais um projeto <strong>de</strong> colaboração <strong>do</strong>s<br />
cursos <strong>de</strong> direito com o governo e os organismos profissionais. Quais são <strong>as</strong><br />
responsabilida<strong>de</strong>s d<strong>as</strong> faculda<strong>de</strong>s em equipar os futuros advoga<strong>do</strong>s para aten<strong>de</strong>rem<br />
às necessida<strong>de</strong>s legais <strong>do</strong> público, não apen<strong>as</strong> inculcan<strong>do</strong> conhecimento,<br />
em termos <strong>do</strong> ensino <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> e <strong>do</strong> ofício legais, m<strong>as</strong> comunican<strong>do</strong> algo<br />
<strong>do</strong> valor e <strong>do</strong> potencial da lei em termos <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> transformar <strong>as</strong> relações<br />
sociais e melhorar a condição humana Será que um compromisso formal<br />
é suficiente para garantir uma responsabilida<strong>de</strong> ética <strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s Para<br />
respon<strong>de</strong>r a esta pergunta, seria importante analisar como os futuros advoga<strong>do</strong>s<br />
interpretam este compromisso e como <strong>as</strong> faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> direito atuam para<br />
elevar o grau <strong>de</strong> conscientização a respeito da responsabilida<strong>de</strong> profissional. 44<br />
Os organismos profissionais, como a Or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Br<strong>as</strong>il,<br />
também têm responsabilida<strong>de</strong>s e um papel a representar no direcionamento<br />
<strong>do</strong>s serviços jurídicos para o preenchimento <strong>do</strong>s espaços que o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixa<br />
a <strong>de</strong>scoberto. Até que ponto os organismos profissionais po<strong>de</strong>m contribuir<br />
para formar um novo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> serviço jurídico, substituin<strong>do</strong> a motivação <strong>do</strong><br />
lucro que <strong>do</strong>mina tantos sistem<strong>as</strong> legais Encontramos no Br<strong>as</strong>il, como acontece<br />
em muitos outros sistem<strong>as</strong> jurídicos, o dissemina<strong>do</strong> cinismo corrosivo — ou<br />
“jeitinho” — que precisa ser combati<strong>do</strong>, já que fornece uma b<strong>as</strong>e ina<strong>de</strong>quada<br />
para a prática da lei e <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> disput<strong>as</strong> na socieda<strong>de</strong> br<strong>as</strong>ileira 45<br />
Finalizan<strong>do</strong>, apesar da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceber <strong>as</strong> três — ou, agora,<br />
quatro — ond<strong>as</strong> <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> acesso à justiça como complementares e<br />
dirigid<strong>as</strong> para objetivos essencialmente progressivos, <strong>de</strong>vemos reconhecer também<br />
que est<strong>as</strong> ond<strong>as</strong> po<strong>de</strong>m, algum<strong>as</strong> vezes, colidir, entrar em conflito e, mesmo,<br />
contradizer um<strong>as</strong> às outr<strong>as</strong>. 46 Afinal, como observa outro autor italiano,<br />
Italo Calvino, ao discorrer, em seu romance Palomar, sobre a “leitura” <strong>de</strong> uma<br />
onda a partir da perspectiva <strong>do</strong>s penh<strong>as</strong>cos que se <strong>de</strong>bruçam sobre uma baía:<br />
“…não se po<strong>de</strong> observar uma onda sem levar em conta os <strong>as</strong>pectos complexos<br />
que concorrem para formá-la e aqueles, também complexos, a que ela dá<br />
ensejo”. 47<br />
44 Ver, Eliane Junqueira, The teaching of legal ethics...<br />
45 K. Rosenn, The jeito: Brazil’s institutional byp<strong>as</strong>s of the formal legal system and its <strong>de</strong>velopmental<br />
implications. American Journal of Comparative Law, 19(514), 1971.<br />
46 Lewis observa que a metáfora <strong>de</strong> “ond<strong>as</strong>” ou “tendênci<strong>as</strong>” não é totalmente satisfatória,<br />
“...não apen<strong>as</strong> porque os jurist<strong>as</strong> <strong>de</strong> direito compara<strong>do</strong> presumem que <strong>as</strong> mudanç<strong>as</strong> aten<strong>de</strong>m<br />
a necessida<strong>de</strong>s similares, m<strong>as</strong> porque presumem também que só apresentamos resulta<strong>do</strong>s<br />
positivos porque mostramos a existência <strong>de</strong> países aparentemente similares, quan<strong>do</strong>, na<br />
verda<strong>de</strong>, isto é apen<strong>as</strong> o início d<strong>as</strong> indagações sobre <strong>as</strong> circunstânci<strong>as</strong> subjacentes a ess<strong>as</strong> similarida<strong>de</strong>s”.<br />
Richard Abel & Philip Lewis (eds.), Lawyers in society: comparative theories<br />
(Berkeley, University of California Press, 1989. p. 71).<br />
47 Italo Calvino, Palomar (São Paulo, Companhia d<strong>as</strong> Letr<strong>as</strong>, 1994. p. 8).