28.01.2015 Views

Os nossos antepassados, de Italo Calvino, como alegoria do sujeito ...

Os nossos antepassados, de Italo Calvino, como alegoria do sujeito ...

Os nossos antepassados, de Italo Calvino, como alegoria do sujeito ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Revista <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Interdisciplinares <strong>de</strong> Italiano | Número 04 | março/2012<br />

[...] Era uma época em que a vonta<strong>de</strong> e a obstinação <strong>de</strong> existir, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar marcas, <strong>de</strong><br />

provocar atrito com tu<strong>do</strong> aquilo que existe, não era inteiramente usada, da<strong>do</strong> que<br />

muitos não faziam nada com isso – por miséria ou por ignorância ou porque tu<strong>do</strong><br />

dava certo para eles <strong>do</strong> mesmo jeito – e assim uma certa quantida<strong>de</strong> andava perdida<br />

no vazio. Podia até acontecer então que num ponto essa vonta<strong>de</strong> e consciência <strong>de</strong> si,<br />

tão diluída, se con<strong>de</strong>nsasse, formasse um coágulo, <strong>como</strong> a imperceptível partícula<br />

<strong>de</strong> água se con<strong>de</strong>nsa em flocos <strong>de</strong> nuvem, e esse emaranha<strong>do</strong>, por acaso ou por<br />

instinto, tropeçasse num nome ou numa estirpe, <strong>como</strong> então havia muitos<br />

disponíveis, numa certa patente <strong>de</strong> organização militar, num conjunto <strong>de</strong> tarefas a<br />

serem executadas e <strong>de</strong> regras estabelecidas [...] (CALVINO, 2001, p. 393).<br />

Outro personagem, Gurdulu, também é a representação da falta <strong>de</strong><br />

individualida<strong>de</strong>, ele reflete a fusão <strong>do</strong> ser com o objeto, portanto, a negação <strong>de</strong>sse<br />

mesmo ser. Isso fica muito claro quan<strong>do</strong> Gurdulu se <strong>de</strong>para com uma sopa para o jantar<br />

e grita várias vezes: “Tu<strong>do</strong> é sopa!” (CALVINO, 2001, p. 411). E diante <strong>do</strong>s gritos <strong>de</strong><br />

Gurdulu, outro personagem se questiona: “[...] mas era mais uma dúvida que um<br />

arrepio – que aquele homem que girava ali na frente sem enxergar tivesse razão e o<br />

mun<strong>do</strong> não fosse nada mais que uma imensa sopa sem forma em que tu<strong>do</strong> se <strong>de</strong>sfazia e<br />

tingia com sua substância to<strong>do</strong> o resto” (CALVINO, 2001, p. 412).<br />

A forma social mo<strong>de</strong>rna, capitalista, ten<strong>de</strong> a encarar o mun<strong>do</strong> com essa mesma<br />

indiferenciação, <strong>como</strong> uma sopa sem forma e sem qualida<strong>de</strong>s, uma vez que a<br />

quantida<strong>de</strong> é que conta, quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> riqueza tanto maiores quanto <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong><br />

senti<strong>do</strong> realmente humano. <strong>Calvino</strong> apreen<strong>de</strong>u, com sua literatura, o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

advento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno com sua razão unidimensionalmente instrumental que<br />

ten<strong>de</strong> a rechaçar a razão sensível e crítica para nos tornar armaduras <strong>de</strong> caráter <strong>como</strong><br />

Agilulfo que, no acampamento, no momento em que to<strong>do</strong>s se recolhiam para <strong>do</strong>rmir,<br />

“tentava manter-se <strong>de</strong>ita<strong>do</strong> e continuava pensan<strong>do</strong>: não os pensamentos ociosos e<br />

divagantes <strong>de</strong> quem está para pegar no sono, mas sempre raciocínios <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s e<br />

exatos” (CALVINO, 2001, p. 373).<br />

Refletir sobre o ser humano e a socieda<strong>de</strong> em diferentes épocas é “analisar a visão<br />

que a obra exprime <strong>do</strong> homem, a posição em face <strong>do</strong>s temas, através <strong>do</strong>s quais se<br />

manifestam o espírito ou a socieda<strong>de</strong>” (CÂNDIDO, 2000, p. 34), pois a literatura expressa<br />

uma visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>, ela “[...] refere-se a tu<strong>do</strong>. Não po<strong>de</strong> ser separada da política, da<br />

religião, da moral. É a expressão das opiniões <strong>do</strong>s homens sobre cada uma das coisas.<br />

Como tu<strong>do</strong> na natureza, ela é ao mesmo tempo efeito e causa. Imaginá-la <strong>como</strong><br />

fenômeno isola<strong>do</strong> é não imaginá-la” (CONSTANT cita<strong>do</strong> por TODOROV, 2009, p. 60).<br />

Estamos cada vez mais sen<strong>do</strong> obriga<strong>do</strong>s a pensar formas <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r os<br />

tempos contemporâneos que atravessam o que se po<strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> uma crise <strong>de</strong><br />

civilização, e a literatura sempre <strong>de</strong>u provas <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r sensivelmente a<br />

socieda<strong>de</strong>.<br />

20

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!