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VALORES INSTITUCIONAIS, A PRÁTICA POLICIAL MILITAR E A<br />

CIDADANIA 1 Luiz Antônio Brenner Guimarães 2<br />

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

Este ensaio pretende discutir o " a concepção de <strong>policial</strong> herói " que tem<br />

direcionado as práticas dos policiais militares brasileiros nas últimas décadas e apontar<br />

uma tendência (ou necessidade) de mudança, resultante: da busca interna de aprimoramento<br />

profissional dos institutos policiais; da necessidade dos organismos em coincidir os anseios<br />

da sociedade e a performance na prestação de serviço; e ainda do intenso questionamento<br />

público sobre a forma de agir das instituições que compõe o sistema <strong>policial</strong>, em especial a<br />

sua adequação às novas exigências decorrentes da evolução social do país.<br />

O exercício aqui proposto está sustentado na vivência do autor, decorrente de reflexões<br />

sistemáticas e pessoais dos fatos que iam se sucedendo ao longo de sua história<br />

profissional (1971 - 2000), quer lá no início da carreira como Comandante de Frações<br />

Destacadas do Batalhão de Polícia Rodoviária, quer como Chefe da Seção de Operações e<br />

Instrução do 11º BPM (Zona Norte de Porto Alegre), ou como Subcomandante do 6º BPM<br />

( Rio Grande) e do BPRv ( Porto Alegre) e, atualmente, como Comandante do 12º BPM<br />

(Caxias do Sul). Ou ainda, como instrutor, durante todo esse período, alternando<br />

participações nos Cursos de Formação da Corporação e, mais recentemente (1994-1999),<br />

do Curso Avançado de Administração Policial, o antigo Curso de Aperfeiçoamento de<br />

Oficiais, condição essencial à promoção de Major, na disciplina de Estratégia Policial<br />

Militar. Dá suporte também ao ensaio, um revisão bibliográfica sobre o assunto e o trabalho<br />

de conclusão do Curso Superior de Polícia Militar que tratou do tema referente à Polícia<br />

Militar e à proteção do cidadão, pesquisando a influência de variáveis como formação e<br />

valores organizacionais (GUIMARÃES, 1997). Seu valor é de um relato de experiências,<br />

onde o autor manifesta suas reflexões e percepções sobre a realidade vivida na Brigada<br />

Militar do Rio Grande do Sul. É a verdade do autor.<br />

Não se pretende aqui aprofundar a discussão do modelo doutrinário seguido pelas<br />

polícias brasileiras, se é o modelo francês que privilegia a defesa do Estado, ou o modelo<br />

inglês, que prioriza a defesa do cidadão. Não obstante, reconhecer que há uma interferência<br />

fundamental na maneira de ser do sistema <strong>policial</strong> na influência de um ou de outro, na<br />

construção da sua formação histórica. A defesa do Estado sempre foi o eixo orientador das<br />

políticas que comandaram os organismos policiais no Brasil. Mas isto, nesse momento, tem<br />

pouca relevância para a proposta estabelecida.<br />

O objetivo é refletir o cotidiano da prática <strong>policial</strong> e a influência que recebe cada<br />

profissional, da visão predominante no grupo a que pertence, sobre o que é ser um bom<br />

<strong>policial</strong> ou um <strong>policial</strong> de ponta. A ação e reação dos profissionais de polícia militar no seu<br />

dia a dia são influenciadas não só pelos seus valores pessoais, mas, principalmente, pelos<br />

valores organizacionais. Os quais( TAMAYO,1996) são princípios ou crenças, organizados<br />

1<br />

Ensaio publicado na Revista Unidade ( www.revista-unidade.com.br) - nº 41, Jan a Mar/2000, p.45-85.<br />

2 Integrante do Núcleo Violência Segurança e Direitos Humanos da ONG Guayi - Oficial Superior da RR Brigada Militar,<br />

(brennerguimaraes@yahoo.com.br)


hierarquicamente, relativos a tipos de estrutura ou a modelos de comportamento desejáveis<br />

que orientam a vida da empresa e estão a serviço de interesses individuais, coletivos ou<br />

mistos. Não apenas o comportamento do indivíduo é influenciado pelos valores, mas<br />

também o julgamento que ele faz do comportamento dos demais, pertinentes ao sistema<br />

organizacional.<br />

A cultura organizacional é definida (TAVARES,1993) como um conjunto de soluções<br />

observáveis, discerníveis e identificáveis, relativas à sobrevivência, manutenção e<br />

crescimento de um grupo humano delimitado, que se denomina empresa. Esse conjunto de<br />

soluções é um aglomerado de aspectos ideacionais, comportamentais e materiais. E que a<br />

cultura é o veículo de relação por excelência com o meio externo.<br />

A reflexão realizada está propositadamente desconsiderando em grande parte a<br />

influência do meio sobre à Instituição. Pois o propósito é realizar um diagnóstico do tema,<br />

independente da interferência externa recebida, contribuindo, assim, para o<br />

desenvolvimento do organismo, na visualização interna de causas e efeitos.<br />

Mas, é importante registrar, que as Polícias são resultantes do contexto social em que<br />

atuam, pois são integradas por cidadãos oriundos da própria sociedade que atendem . A<br />

discussão realizada sobre o sistema <strong>policial</strong> brasileiro tem sido, consciente ou<br />

inconscientemente, mascarada e confusa, pois a maioria dos participantes (especialistas,<br />

intelectuais, políticos, policiais e outros segmentos), ao analisar o problema, fazem um<br />

exercício perverso de exclusão das causas exógenas, retirando a Polícia do sistema maior -<br />

a sua sociedade - e, a partir daí, fazendo as relações de causa e efeito, prejudicando ou<br />

inviabilizando o encontro de soluções. Como se a inadequação do sistema <strong>policial</strong> nada<br />

tivesse em haver com a inadequação do sistema social; como se a violência, arbitrariedade<br />

e corrupção <strong>policial</strong>, não tenham relações com o que acontece no seio das comunidades.<br />

Perverso, pois isso produz diagnósticos equivocados e consequentemente soluções<br />

erradas. Fala-se, insistentemente, em construir uma nova polícia, com novos policiais.<br />

Esquece-se que essa nova polícia será composta por cidadãos brasileiros, oriundos da<br />

mesma sociedade que forneceu aqueles que constituíam os organismos, hoje tão criticados.<br />

Se não for analisada com profundidade e de forma sistêmica as causas que originaram a<br />

performance que está sendo rejeitada, quase com certeza, a nova polícia será igual ou pior<br />

do que a velha. Até porque esta avaliação parcial inviabiliza, inclusive, a percepção daquilo<br />

que está certo.<br />

No cotidiano das organizações percebe-se mensagens coletivas e dominantes sobre o<br />

comportamento ideal de cada <strong>policial</strong> durante sua ação, oriundas de um sentimento<br />

estabelecido pela maioria do grupo, servindo como bússola a uma parcela considerável dos<br />

policiais, que passam a agir na expectativa de corresponder ao modelo de herói proposto.<br />

Parece que as estruturas físicas dos estabelecimentos policiais por si só falam, transmitindo<br />

e reproduzindo o perfil considerado "ideal". Como se a cada novo dia lembrasse ao <strong>policial</strong><br />

de como deveria se comportar na atividade e que valores priorizar. Isso acontece por<br />

processos informais quase imperceptíveis, realizados através das conversações do<br />

cotidiano, comentários durante o atendimento das ocorrências, abordagens nas instruções,<br />

elogios, punições e decisões adotadas em relação a fatos ocorridos. Esse conjunto de ações<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 2


forma a cultura organizacional de uma Polícia Militar, que trás um modelo geral à<br />

Instituição, com variações de uma Fração para a outra, dentro do próprio Estado. E, com<br />

modelos culturais diferentes de um Estado para o outro.<br />

A formação dessa cultura organizacional tem tudo a ver com a postura do comando da<br />

Fração e com a classe dirigente <strong>policial</strong> que ali está estabelecida. Mas a sua reprodução<br />

diária consiste um canal bilateral, uma vez que as Praças, com freqüência, conseguem<br />

também influenciar os seus superiores , em especial os oficiais mais jovens, através de<br />

comentários em ocorrências, elogios à outros Oficiais, exaltação a supostos ídolos e<br />

manifestações de inconformidade com determinadas atitudes que consideram desconexa ao<br />

modelo desejado. Percebe-se, em muitas ocasiões, durante a execução da atividade diária,<br />

que as guarnições começam a relatar como um ou outro oficial reagiria em determinada<br />

situação, exaltando aquela prática valorizada. Ou, então, no dia a dia, durante as conversas<br />

informais, exaltam comportamentos de policiais que supostamente consideram ídolo.<br />

Muitos, graduados ou oficiais, desejosos de reconhecimento e na expectativa de serem<br />

considerados profissionais modelo, passam a reagir na perspectiva do grupo de<br />

subordinados, na falsa ilusão de se constituir um verdadeiro líder. Reproduzindo e<br />

fortalecendo assim os valores dominantes. O reverso, não só é verdadeiro, como é o vetor<br />

principal da internalização da cultura. Quando a classe dirigente (Comando), tem uma<br />

postura transparente, forte e concreta (além do discurso) sobre a concepção do que é ser<br />

um bom <strong>policial</strong>, seus subordinados, em sua maioria, tentam comportar-se dentro dessas<br />

expectativas. No entanto, não se pode esquecer que a mudança cultural é sempre complexa,<br />

difícil, demorada e dependente da vontade política dos administradores policiais-militares.<br />

Ao longo do período considerado, nas idas e vindas de uma Unidade Policial Militar<br />

para outra, percebe-se esteriótipos de bom <strong>policial</strong>, direcionando o comportamento da<br />

maioria que aspira ser considerado <strong>policial</strong> de verdade. Aqueles que agem dentro da<br />

moldura estabelecida, integram um grupo que é distinguido com uma identificação-força,<br />

as principais os "Quentuxos", ou "Quentaques". Esses processos culturais são fortalecidos,<br />

ora pelo entendimento e postura dos Oficiais que compunham a administração da Fração<br />

(estrutura de comando), ora pelos Praças ( Soldados, Cabos e Sargentos), com a aceitação<br />

passiva daqueles. Isto tanto vale para um tipo de herói <strong>policial</strong>, como para outro.<br />

2. OS POLICIAIS MILITARES E OS DEFENSORES DOS DIREITOS HUMANOS<br />

No âmbito interno das Instituições Policiais Militares sempre houve um entendimento<br />

equivocado das relações da atividade de polícia com os conceitos de direitos humanos. Não<br />

obstante, o discurso institucional defender a atuação a serviço do bem e em defesa do<br />

coletivo, a menção do tema sempre foi considerada agressiva aos interesses policiais e coisa<br />

de defesa de bandido. Em geral, os Brigadianos querem uma atuação <strong>policial</strong> alicerçada no<br />

respeito ao cidadão, e mesmo a maioria daqueles policiais que cometem atos ilegais, o<br />

fazem acreditando ou tentando acreditar que estão à serviço da sua sociedade. Inúmeras<br />

vezes percebeu-se a utilização de violência contra uma pessoa presa, empregada por<br />

policiais convictos de estarem realizando uma ação necessária e boa. Essa parece ser a<br />

primeira questão de reflexão: o juízo de valor sobre o certo e o errado, a partir de<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 3


preconceitos e estigmas, que levam à desconsideração de garantias legais e de aspectos<br />

morais em determinadas situações, com relação aos envolvidos e circunstâncias da<br />

ocorrência.<br />

Em 1997, estudo realizado nas Unidades de Policiamento de Porto Alegre, como<br />

trabalho final do Curso de Gestão e Políticas de Segurança Pública (GUIMARÃES,1990,<br />

p.80-92), com o intuito de avaliar a influência do Estado sobre a Polícia Militar na<br />

proteção do cidadão, entre outras variáveis, procurou identificar a existência de valores que<br />

privilegiassem o atendimento ao cidadão, tais como: respeito à pessoa, respeito ao<br />

servidor, preocupação em priorizar o atendimento externo ao interno, preocupação com o<br />

uso da força moderada, preocupação com a boa prestação do serviço, preocupação com as<br />

garantias legais, tratamento igualitário e justo. Os autores, ao término desta parte da<br />

pesquisa, emitiram a seguinte conclusão:<br />

"Concluí-se que a cultura, enquanto valores organizacionais, não prioriza<br />

uma polícia militar voltada à proteção ao cidadão. Pelo contrário, os valores<br />

predominantes conduzem a Instituição à serviços de governos ou de grupos.<br />

Verifica-se que as relações do servidor <strong>policial</strong> com a sociedade é conduzida<br />

pela cultura clientelista onde o que importa é a possibilidade da troca e do<br />

ganho de vantagem pessoal. As decisões e as ações, dentro desta concepção,<br />

ficam vulneráveis a influências de interesses particularizados de grupos<br />

transitórios no poder. Em outros momentos são influenciadas por grupos que<br />

representam o poder econômico e/ou as classes privilegiadas. Constata-se<br />

que ao contrário do que deveria ser uma organização <strong>policial</strong>, a atividade<br />

<strong>policial</strong> é pouco profissionalizada e muito influenciada politicamente."<br />

Isso também pode ser uma das razões de, ao longo dos anos, os Policiais Militares<br />

conviverem com um dilema que trás, em um dos extremos, o sentimento de serem<br />

cidadãos que se dedicam inteiramente ao bem estar de sua comunidade, onde todo esforço é<br />

em prol da construção de uma convivência melhor. E, no outro extremo, a constatação de<br />

que grande parte da sociedade não só não possui essa percepção, como ainda considera-os<br />

agentes externos, não seus cidadãos, emissários do mal, quando muito, um mal necessário.<br />

Sendo constatado com freqüência, nos círculos de discussões, que os policiais são tratados,<br />

por quase todos os segmentos, dentro de um consenso coletivo, "de eles", em um<br />

significado de adversários e inimigos, como seres alienígenas, não integrantes dessa<br />

sociedade.<br />

Esse sentimento encontra eco em uma declaração de Ricardo Balestreri, da Seção<br />

Brasileira da Anistia Internacional ( BALESTRERI, 1994, p.12) :<br />

" Por essa razão, algumas das realidades que tive oportunidade de<br />

vivenciar na citada viagem [Holanda], pareciam no mínimo curiosas, exóticas<br />

talvez, pelo menos inexeqüíveis em um contexto de Terceiro Mundo. Refiro-me<br />

em particular à linha de parceria que a Seção Holandensa da Anistia<br />

Internacional havia estabelecido com comandos e academias policiais e<br />

militares, no sentido de educar seus efetivos para o respeito e a promoção dos<br />

direitos humanos................<br />

............................................................<br />

Uma polícia cidadã, em uma sociedade de cidadãos! Acordos muito<br />

transparentes entre uma das mais combativas ONGs de defesa de direitos<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 4


humanos com nada menos que policiais e militares! A verdade é que a coisa<br />

soava estranha! Eu, como meus companheiros de militância, havíamo-nos<br />

acostumados a tal ponto a ver a polícia como sinônimo de violação da<br />

<strong>cidadania</strong>, que este caráter já lhe parecia haver aderido ou, quem, sabe mesmo,<br />

habitá-la de origem. Testemunhar uma outra realidade impôs-se como<br />

necessidade de mudança de paradigmas."<br />

A discussão desse dilema, - 'a dissociação entre uma Polícia que achava que estava<br />

fazendo o bem para sua sociedade, que por sua vez, em uma parcela considerável, tinha<br />

uma visão diferente' -, deve passar por uma crítica ao comportamento dos policiais e, à<br />

postura institucional da polícia na relação com a sua comunidade. Até porque, o sentimento<br />

acima é encontrado em quase todos os segmentos sociais, para os quais, os Quartéis e seus<br />

integrantes são caixas pretas intransponíveis e indecifráveis. Recentemente, em uma<br />

reunião com representantes do movimento comunitário e comunidade escolar de algumas<br />

regiões de Caxias do Sul, no interior do 12º BPM, ouviu-se a seguinte expressão - " nunca<br />

poderia imaginar que estaria à vontade no interior de um Quartel da Brigada Militar,<br />

discutindo com os PM as questões de segurança pública do meu bairro e a forma de atuação<br />

da polícia".<br />

Por muito tempo considerou-se que as questões da segurança pública eram assuntos<br />

para serem resolvidos dentro das repartições, somente por policiais, que de forma autosuficiente<br />

e prepotente pensavam saber o que era certo ou errado para o coletivo. Em torno<br />

do organismo <strong>policial</strong>-militar construiu-se um isolamento significativo, fazendo com<br />

relativa freqüência que os profissionais perdessem o sentido da realidade social,<br />

enfraquecesse sua auto avaliação, resultando policiais encerrados em si mesmos, pensando<br />

e tentando fazer justiça construída internamente. Isso limitou a interação sociedade -<br />

polícia, proporcionou que o organismo se passasse por ilustre desconhecido da sua própria<br />

comunidade, bem como facilitou o fortalecimento de crenças preconceituosas decorrentes<br />

de determinados grupos ou setores. E ainda, possibilitou o enfraquecimento do<br />

conhecimento da diversidade da sociedade, para quem, igualmente, a polícia estava<br />

constituída para servir. Já na década de noventa, quando este quadro começa a ser refletido<br />

com mais intensidade, alguns PM jocosamente concluíam que a Polícia só poderia dar<br />

certo, pois ela mesmo planejava, executava, produzia o relatório, avaliava e batia palmas.<br />

O isolamento auxiliou a criar no interior das Corporações uma área nebulosa sobre o<br />

papel da polícia moderna, idealizada nos regimes sociais-democráticos, sustentando no<br />

atendimento eqüanime de todos os segmentos. Muitas crenças foram originadas de visões<br />

estigmatizadas, conduzindo a um exercício de atividade <strong>policial</strong> com atos<br />

discriminatórios, violentos e/ou ilegais. Disso resultaram posturas que não eram imparciais,<br />

pois mudavam à medida que se alterava as condições sociais dos participantes da<br />

ocorrência, podendo-se, inclusive, afirmar que para determinados segmentos havia um<br />

tratamento diferenciado e até privilegiado. Fechados em si mesmo e despreparados, os<br />

organismos policiais foram presas fáceis à submissão da cultura do jeitinho brasileiro e da<br />

prática do " Você sabe com quem está falando" (DA MATTA, 1990).<br />

E, a comunidade, mesmo os segmentos privilegiados, por tudo isso e pelo<br />

desconhecimento e desinformação, criou o imaginário do inimigo, a partir das ações<br />

irregulares que tinha contato, mesmo que o fato pudesse ser uma exceção, dentro de um<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 5


espectro maior de ações, muitas das quais boas e necessárias. E as exceções, seguindo uma<br />

normalidade da natureza humana, tiveram maior visibilidade, influenciando com maior<br />

força a imagem da Polícia. Assim, muitos dos Policiais Militares conviveram com<br />

experiências em que, nos segmentos sociais que participavam como cidadãos, eram<br />

considerados exceções da Polícia, quando na realidade constituíam a maioria. Isso reforça a<br />

falta de uma comunicação mais intensiva e transparente da polícia com a sua comunidade,<br />

que dificultou a aproximação entre a atuação e a qualidade de oferecimento do serviço com<br />

os anseios dos seus tomadores.<br />

Este afastamento do <strong>policial</strong> da sua coletividade trás um viés histórico na formação da<br />

Polícia Militar, em decorrência da interferência norte-americana, durante o século que se<br />

encerrou, em especial, no período da Guerra Fria, quando a política externa daquele país<br />

utilizou a ajuda aos organismos policiais para controlar os países latinos americanos. E<br />

uma das estratégias utilizadas foi romper a identidade do <strong>policial</strong> com a comunidade de<br />

onde saiu e onde vivia como cidadão. Por exemplo, em muitas ocasiões, no<br />

acompanhamento de operações policiais militares de identificação e desarmamento de<br />

pessoas, pode-se observar que os PM, ao abordarem pessoas que possuem um padrão de<br />

vida idêntica a sua, convivem nos mesmos bairros, comportam-se e vestem-se da mesma<br />

maneira, e usam os mesmos tipos e linhas de transporte, as classificam de plano, por essas<br />

características, de vagabundas e marginais e as tratam de forma rude, agressiva e<br />

prepotente.<br />

Em determinado momento das conclusões de seu trabalho sobre o tema, referindose<br />

as polícias militares brasileiras, HUGGINS ( 1998, p.15/17), assim se expressou:<br />

"Essa ideologia de controle do crime 3 resulta na alienação ainda maior<br />

do <strong>policial</strong> profissionalizado no combate ao crime em relação às comunidades<br />

locais e neutraliza sua auto-identificação com os outros de classes e origem<br />

étnicas semelhante. "<br />

A utilização do termo profissionalização da polícia, na citação acima transcrita,<br />

consiste em um conceito existente na polícia americana, correspondente a uma fase que<br />

ocorreu entre os anos de um mil novecentos e trinta e um mil novecentos e oitenta, quando<br />

houve um movimento para afastar os organismos policiais de suas comunidades, em reação<br />

a um período anterior em que houve uma influência política local na polícia, muito<br />

amadorismo e corrupção. A polícia profissional, concebida como antídoto, seria<br />

essencialmente técnica, fria, afastada da comunidade e a única responsável por resolver as<br />

questões criminais (Ver KELLING, 1993 e MOORE, 1993). Portanto, não tendo nada a ver<br />

com o conceito de profissional de polícia utilizado e pregado no decorrer deste estudo e que<br />

mais adiante será melhor descrito.<br />

Analisando estudos feitos sobre o desenvolvimento histórico da polícia brasileira,<br />

constata-se que a mesma sempre esteve atrelada à segurança, não da sociedade como um<br />

todo, mais sim dos grupos hegemônicos. Assim, o trabalho da polícia era visto como<br />

3<br />

O criminoso como inimigo interno - a confusão proposital no interior dos Organismos Policiais entre<br />

criminoso comum e subversivo - As ações policiais influenciadas pela suspeita indiscriminada e sem motivos,<br />

ou melhor, a motivação vinha da condição social e/ou tendência política.<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 6


tarefa de baixo nível e impura, onde o único atributo necessário era a força, de forma que a<br />

Corporação em atividade pudesse constituir uma barreira física que garantisse a<br />

tranqüilidade dos grupos a serem protegidos e, com isso, separasse os bons dos maus.<br />

Como a atividade <strong>policial</strong> era considerada um serviço sujo, de 2ª classe, era trabalho para<br />

ser executado pelas classes inferiores, em condições precárias e com salários desprezíveis.<br />

Por muito tempo, a Instituição Policial foi desprezada pelas classes que privilegiava, e,<br />

também, por todos os outros segmentos, que a viam como instrumento de repressão e de<br />

violência daquelas.<br />

Dentro desse mesmo contexto, foi disseminada uma concepção de prevenção do crime e<br />

da violência, puramente jurídica, onde a grande solução estava em aumentar cada vez mais<br />

o número de polícias nas ruas ( aumentar as barreiras físicas) e fortalecer o encarceramento<br />

dos malfeitores. Os espaços geográficos dos bons ( classes hegemônicas) deveriam receber<br />

substancial aumento de reforços policiais, pois ali era onde tinha o que ser violando e<br />

desrespeitado e os contingentes policiais deveriam portar-se como verdadeiros cães de<br />

guarda ou leões de chácara.<br />

Essa cultura perversa criou espaço de legitimação da violência e do desrespeito à<br />

pessoa, passando o entendimento de que para determinadas situações era correto usar da<br />

agressão desnecessária, tanto física, como moral, somente não sendo aceitável se fosse<br />

contra um dos integrantes das classes boas. Thomas Holloway ( López/1995), historiador<br />

norte americano, ao estudar as raízes do atual relacionamento entre a polícia e a sociedade<br />

do Rio de Janeiro, conclui que a polícia foi uma necessidade da elite contra os miseráveis,<br />

razão pela qual a sociedade carioca fechou os olhos aos possíveis abusos de autoridade, à<br />

violência e à corrupção. Afirmou ainda, o historiador, que "esta repressão era uma<br />

necessidade da burguesia e da elite em geral, já que começava a surgir uma grande<br />

população de escravos, ex-escravos e miseráveis, que precisava ser organizada<br />

socialmente".<br />

Vista dessa forma por todos, como o império do mal e das atividades inferiores, os<br />

Institutos Policiais brasileiros, historicamente, estiveram <strong>pratica</strong>mente alijados das políticas<br />

públicas, o que os conduziu a constituírem-se em mão de obra desqualificada, organizações<br />

mal equipadas, mal treinadas e mal remuneradas. Isso forma um verdadeiro círculo vicioso 4<br />

(Fig A), que precisa ser rompido, especialmente pelo esforço dos policiais, para que a<br />

polícia ocupe o seu espaço como atividade profissional complexa e essencial à vida em<br />

comunidade. Sendo que esse círculo vicioso somente poderá ser rompido através de<br />

investimentos adequados na qualificação e valorização do profissional de polícia e na<br />

modernização da organização.<br />

4<br />

A Fig. A, consiste em uma adaptação do círculo vicioso identificado por Finegold e Soskice (1988), ao<br />

estudar a crise industrial da Inglaterra e sua baixa taxa de ensino em relação ao mundo industrializado. Ver<br />

GOLD, S/d, p.124.<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 7


Despreparo<br />

Profissional<br />

Pouco ou nenhum<br />

investimento<br />

CÍRCULO VICIOSO<br />

DA<br />

MÁ PRESTAÇÃO<br />

DO<br />

SERVIÇO POLICIAL<br />

1)Insuficiência de<br />

treinamento<br />

2) Obsolescência<br />

material<br />

1)Prestação de serviço de<br />

baixa qualidade<br />

2) Resultados insatisfatórios<br />

Figura A<br />

3. AS PERPECTIVAS DA POLÍCIA COMO ATIVIDADE PROFISSIONAL<br />

A melhoria da qualidade da prestação de serviço na área da segurança pública é uma<br />

exigência concreta decorrente da evolução da sociedade, beneficiada pela instantaneidade<br />

das comunicações e por uma maior socialização das informações. Constituí-se, assim, um<br />

campo social mais organizado e mais exigente, aumentando o nível de conhecimento de<br />

todos os segmentos. Neste contexto, as relações sociais estão cada vez mais fundamentadas<br />

na discussão, no conflito, na imposição das diferenças e na aceitação relativa da<br />

diversidade do outro. Para cumprir a sua missão social, a polícia, que trabalha<br />

essencialmente com essas relações, precisa investir na profissionalização da sua atividade e<br />

na qualificação de seu profissional.<br />

O professor Teixeira, no prefácio do livro Sociedade Global ( IANNI, 1997), destaca<br />

que a globalização tem provocado também o desenvolvimento da consciência, além do<br />

efeito de impregnação dos olhos e ouvidos, tornando a sociedade local mais participativa,<br />

mais exigente e construindo parâmetros, muitas vezes induzida pela mídia. Naquela<br />

perspectiva de que o global influencia o local e vice-versa. Além do que, a sociedade<br />

global, que apresenta um mundo cada vez mais veloz na intercomunicação e submetido aos<br />

centros controladores da mídia impressa e eletro-eletrônica, trás conseqüências como o<br />

urbanismo, o consumismo, a desigualdade e o desemprego. Aumentando os conflitos<br />

sociais, a violência, a criminalidade e o temor das pessoas, agravando as desigualdades e<br />

acirrando os antagonismos. Trazendo como tendência, o aumento das ações policiais na<br />

preservação da ordem, a ampliação do campo de atuação e da complexidade da intervenção<br />

da polícia.<br />

Nesse momento, vários desafios se estabelecem para o desenvolvimento profissional<br />

dos Institutos policiais. Esta compreensão é condição fundamental para a busca da<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 8


excelência da prestação de serviço à sociedade e, para realmente constituir-se numa<br />

atividade essencial e indispensável a uma melhor qualidade coletiva de vida.<br />

O fortalecimento da democracia abre espaço para a dicotomia liberdade e igualdade,<br />

onde a liberdade de um está limitada a do outro, com aceitação da diversidade social, para<br />

que todos os grupos possam viver com respeito recíproco no espaço geográfico, não<br />

obstante suas diferenças. O campo democrático, conceituado por TOURAINE ( 1996), é<br />

aquele em que as relações sociais negociadas levam a melhor sobre a lógica da integração<br />

do conjunto social, e em que o respeito pelas liberdades pessoais e pelas minorias<br />

equilibram o peso do poder central, sendo indispensável reconhecer o espaço democrático<br />

como um espaço de tensões e negociações entre a Unidade do Estado e a pluralidade dos<br />

atores sociais.<br />

O cotidiano urbano, onde ocorre a intervenção da polícia, consiste na base desses<br />

espaços de conflito, exigindo do <strong>policial</strong> a compreensão dessas diferenças e o equilíbrio de<br />

suas ações no encaminhamento, respeitando a todos, mesmo que no momento um dos<br />

participantes esteja classificado, pela sua conduta, como delinqüente. Isso exige um <strong>policial</strong><br />

qualificado, que possua uma maior capacidade de compreensão e de decisão em cada ato, a<br />

partir de uma reflexão sobre a ambiência em questão. Contrariando o modelo proposto até<br />

aqui, onde a palavra chave era a padronização dos procedimentos, com o mínimo de<br />

interação com as circunstâncias do atendimento. Se até aqui a metáfora utilizada era a do<br />

<strong>policial</strong>-robô, onde o Soldado somente realizava providências pré-estabelecidas pela<br />

estrutura superior, agora é vital que tenha capacidade de contextualizar cada situação.<br />

Nessa direção, MUNIZ ( 1999, p 59/61), ao estudar a cultura e o cotidiano da Polícia<br />

Militar do Estado do Rio de Janeiro, e abordar a questão da concepção da ordem, emite<br />

considerações que fortalecem o posicionamento sobre a evolução aqui exposta:<br />

" O governo liberal-democrático inverte essa concepção e as suas prioridades 5 .<br />

Neste outro mundo político, não haveria lugar para uma visão suspeitosa por<br />

parte do Estado. Isto porque os conflitos adquirem um acento positivo, podendo<br />

ser compreendidos como o dispositivo para a sociabilidade política, ou melhor,<br />

podendo ser reconhecidos como a precondição para o provimento da ordem<br />

pública. (...).<br />

É, por excelência, na vida democrática que se pode observar, por um lado a<br />

sustentação do monopólio da força pelo Estado e, por outro, a<br />

desmonopolização estatal do provimento da ordem. (....). (...), trata-se de um<br />

realinhamento necessário em virtude da inevitável ampliação do espectro da<br />

<strong>cidadania</strong>. Antes de ser uma realidade forma-legal, a ordem pública é algo<br />

construído localmente. Ela é cotidiana e comunitária, sendo, portanto o<br />

resultado de distintas expectativas em constante negociação na realidade."<br />

Para a atividade <strong>policial</strong> isso representa a necessidade de cada vez mais buscar<br />

programas de desenvolvimento profissional, que possibilitem a formação de policiais com<br />

capacidade de exercitar a reflexão crítica sobre a realidade social que está intervindo, e<br />

5<br />

Diz respeito à imposição de uma concepção de ordem emanada de cima e voltada para o atendimento<br />

prioritário das demandas por segurança do próprio Estado (MUNIZ,1999).<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 9


cientes de que a ordem pública não é uma realidade objetiva, mas uma produção social,<br />

que, portanto, não pode ser monopólio de um ator ou grupo.<br />

A difusão dos conceitos de direitos humanos e o exercício da <strong>cidadania</strong>, por outro lado,<br />

trás uma sociedade multisegmentada e cada vez mais exigente nos respeitos aos seus<br />

direitos, a partir de um movimento comunitário ativo e participativo. Exigindo do<br />

profissional de polícia uma compreensão da diversidade social que possibilite uma conduta<br />

profissional orientada por decisões imparciais, não influenciadas por preconceitos e<br />

estigmas. Por certo, isso possibilitará o tratamento mais adequada de uma das principais<br />

questões da ação do <strong>policial</strong> até aqui, a clareza da diferenciação entre violência e uso<br />

legítimo da força. A violência é amadora, desnecessária, ilegítima e ilegal. O uso da força é<br />

técnico, necessário, legítimo e legal.<br />

Durante a elaboração deste ensaio houve um episódio envolvendo Policiais Militares e<br />

populares durante a Festa dos Navegantes em Porto Alegre, flagrado pela televisão e<br />

amplamente divulgado. Ao final da festa, um grupo de pessoas tentou saquear transeuntes,<br />

em um movimento denominado de 'arrastão'. O Comando da Operação de Policiamento na<br />

festa, percebendo o movimento criminoso, reagiu, dispondo policiais no espaço da<br />

manifestação, inibindo a ação e realizando prisões. A televisão divulgou três cenas onde se<br />

caracterizou a violência <strong>policial</strong>: 1ª - Um manifestante sentando em cima do capô de uma<br />

viatura <strong>policial</strong>, sendo retirado a golpes de cassetete; 2ª - Um manifestante algemado e<br />

imobilizado, recebendo jatos de gás lacrimogênio no rosto; e, 3ª - um manifestante<br />

dominado, recebendo tapas no rosto. Após a ampla divulgação desses fatos e discussão pela<br />

mídia, pode-se perceber, pelos programas interativos realizados que a grande maioria da<br />

população, inclusive nos meios policiais, aprovavam o comportamento da polícia e ainda<br />

entendiam que era necessário a polícia assim agir. Em um debate realizado sobre o<br />

acontecido na TVCOM 6 , com votações por telefone, com a participação de 2.260 pessoas,<br />

resultou que 87% apoiaram a ação da polícia e entediam que precisava ser assim a reação;<br />

6% consideraram excesso da polícia com restrições; e, outros 7%, optaram pela violência<br />

<strong>policial</strong>.<br />

Na realidade, a discussão do episódio ocorreu somente com duas alternativas, passando<br />

à sociedade, por um lado, a percepção de que deveria haver a violência como forma da<br />

polícia se impor e evitar o aumento da ousadia dos delinqüentes; e do outro, estava a polícia<br />

frouxa, submissa à ação criminosa. Desconsiderou-se uma visão mais adequada, de que a<br />

polícia pode ser firme, agir com rigor e dentro da técnica, sem ser violenta. Para<br />

exemplificar, na primeira cena, a pessoa sentada no capô da viatura, caberia aos policiais<br />

determinar que a mesma descesse, e, em caso de não atendimento, deveriam empregar a<br />

força necessária, com a imobilização do criminoso e condução à Delegacia de Policia.<br />

Tudo isso poderia ser realizado através de uma ação firme e enérgica e no caso específico,<br />

sem a utilização do bastão <strong>policial</strong>. As três cenas mostraram procedimentos desnecessários<br />

para a polícia restabelecer a ordem, contrários à lei, condutas amadoras e que não deveriam<br />

ter apoio social.<br />

6<br />

Televisão por UHF ou Cabo, Programa Conversas Cruzadas, data de 3/2/2000<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 10


Outra questão a ser considerada nesse novo cenário corresponde a avaliação<br />

individualizada da amplitude da discricionariedade na aplicação do poder de polícia, que<br />

está cada vez mais atrelada aos princípios da realidade e da razoabilidade, além da<br />

legalidade, que já era utilizado como vetor único ou principal. 7<br />

Até hoje, o princípio que norteou a decisão <strong>policial</strong> foi o da legalidade. Os fatos tem<br />

mostrado que o <strong>policial</strong> militar não possui qualquer dificuldade para tratar das ocorrências<br />

em que a questão legal está bem definida, como a prisão de um homicida ou de um ladrão<br />

declarado. As maiores dificuldades aparecem naqueles procedimentos onde a legalidade<br />

está confusa ou difusa, como as ocorrências que envolvem as desordens, os costumes, o<br />

sossego público, as garantias legais, a convivência harmoniosa e o trânsito.<br />

A prisão por desacato, resistência ou desobediência tem sido a alternativa <strong>policial</strong> na<br />

dificuldade de administrar esses tipos de ocorrência e, em especial, a contestação dos<br />

envolvidos pelas divergências de entendimento. A vivência no policiamento rodoviário e<br />

de trânsito trás um sem números de fatos que mostram essa realidade. Quantas vezes um<br />

questionamento da validade de um radar que indicava uma velocidade de 110 Km/h , não<br />

acabou na criminalização da conduta do infrator por desacato e/ou desrespeito Mais<br />

recentemente, o noticiário televisivo brasileiro trouxe um exemplo típico, que foi a<br />

dificuldade dos PM no Estado do Rio de Janeiro de lidar com a situação de uma mulher que<br />

estava na praia com os seios descobertos (topelss), que culminou com a prisão dos<br />

contestadores (a mulher e o marido), por desrespeito ao <strong>policial</strong>.<br />

A evolução está a exigir o abandono, pelas Instituições Policiais Militares, do modelo<br />

comportamentalista de formação e desenvolvimento, onde ao <strong>policial</strong> é ensinado o que<br />

fazer, como se fosse um ato mecânico, onde as atividades a serem desenvolvidas são<br />

previsíveis, possíveis de serem enumeradas em um manual que deve rigorosamente ser<br />

seguido, sem considerar as condições circunstanciais, produzindo uma prática robotizada,<br />

caracterizada pela ausência do espaço crítico e da decisão. Passando para um modelo que<br />

desenvolva profissionais com visão crítica do seu contexto social e uma qualificação que<br />

possibilite uma adequada capacidade de decisão e de mediação de conflitos. Assim, o<br />

<strong>policial</strong> começará a considerar outros princípios na prática e na rua, onde cada caso é um<br />

caso e a incerteza é a única verdade, quais sejam a realidade e a razoabilidade, além da já<br />

utilizada legalidade.<br />

Um outro desafio é a mudança da cultura do tratamento da segurança pública, onde a<br />

concepção jurídica deve abrir espaço a uma concepção social de se fazer polícia, uma vez<br />

que a criminalidade e a violência são resultantes das condições e relações em sociedade.<br />

Os melhores resultados nessa área tem sido conseguido através do envolvimento de todos<br />

os segmentos da sociedade na discussão e implementação das soluções, de forma a serem<br />

atingidos diagnósticos mais precisos; informações qualificadas; fortalecimento dos<br />

institutos sociais como a família, escola, igreja e vizinhança; diminuição da crise moral e<br />

ética, estimulando comportamentos solidários e coletivos; fortalecimento do capital social<br />

e da organização do espaço urbano de convivência; produção de orientações de<br />

7<br />

Diogo de Figueiredo Moreira Neto, distingue três sistemas de limite do exercício da discricionariedade do<br />

poder de polícia, ou seja, os sistemas que decorram dos princípios da legalidade, da realidade e da<br />

razoabilidade. Ver LAZZARINI, 1995, p.24/25.<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 11


comportamentos seguros e inibidores de condutas anti-sociais; e formação de grupos de<br />

pressão em busca de políticas públicas apropriadas.<br />

A nova concepção exige programas de prevenção sistêmicos e holísticos, saindo do<br />

âmbito da persecução penal, constituindo-se num grande sistema de proteção social. Isso<br />

exige do profissional de polícia uma visão mais conjuntural da problemática da ordem<br />

pública e uma maior capacitação para discutir com os cidadãos e a comunidade a questão<br />

da tranqüilidade pública. Um <strong>policial</strong> que interage com a sua sociedade, recebendo<br />

informações, críticas e sugestões e transmitindo esclarecimentos e orientações. Um <strong>policial</strong><br />

capaz de desenvolver programas e estratégias mais qualitativas do que quantitativas. Um<br />

<strong>policial</strong> que assume a sua dimensão pedagógica, como pedagogo da <strong>cidadania</strong>, conforme<br />

propõe Ricardo Balestreri, da Seção da Anistia Internacional Brasileira (BALESTRERI,<br />

1994, p.16) .<br />

Por tudo isso, quase que sozinho, com profundo pesar e frustração, o autor assistiu a<br />

alteração do projeto de evolução da Brigada Militar 8 , em julho de 1997, quando uma<br />

emenda de plenário na Assembléia Legislativa Gaúcha alterou a lei complementar que<br />

estabelecia o Plano de Carreira Polícia Militar 9 , substituindo a formação superior própria,<br />

pelo bacharelado em Direito.<br />

Definir o Direito como base de formação de um Oficial de Polícia Militar foi um<br />

retrocesso, de pelo menos trinta anos, pois não é verdade que o bacharelato em ciências<br />

jurídicas é o que mais se coaduna com a atividade <strong>policial</strong>, que antes de lidar com as<br />

questões legais, lida com as relações sociais. Programas preventivos na área pública, que<br />

buscam diminuir os indicadores da criminalidade e da violência, passam por compreender o<br />

que move as reações dos atores sociais na coletividade. Não basta somente proibir e<br />

prender. Assim, volta-se à concepção jurídica de fazer polícia, quando isso há muito dá<br />

demonstração de que está esgotado e exaurido como solução.<br />

A concepção jurídica de tratar a segurança foi resultado do domínio que os militares<br />

das Forças Armadas 10 e os juristas positivistas e legalistas tiveram sobre os órgãos políticos<br />

de segurança pública no Brasil, basta ver a ocupação das Secretarias de Segurança Pública<br />

ou dos Departamentos do Ministério da Justiça que tratam do assunto, no mínimo, nos<br />

últimos quarenta anos. Os militares, orientados pelos princípios da guerra, sempre<br />

buscaram soluções para a ordem pública, no seu pressuposto básico de ocupação do campo<br />

8<br />

Projeto de modernização da Brigada Militar ver LUZ (1998)<br />

9<br />

A mudança, a partir de uma votação favorável, ocorreu por um movimento de pressão da grande maioria da<br />

Oficialidade da Brigada Militar, influenciados por uma perspectiva econômica que era a isonomia com as<br />

carreiras jurídicas, sem perceberem que isso já tinha seu desaparecimento decretado, como posteriormente<br />

ocorreu.<br />

10<br />

A militarização da segurança pública não tem nada a com a característica militar da organização <strong>policial</strong>.<br />

Representa a transposição para a área de segurança pública das concepções, valores e crenças da doutrina<br />

militar orientada para a guerra. A essa militarização ideológica da segurança pública ( Ver SILVA, 1996)<br />

esteve submetido todo o sistema <strong>policial</strong> brasileiro, inclusive as polícias civis ( Estadual e Federal). Não se<br />

trata de retirar a responsabilidade dos Policiais Militares, em especial de seus Oficiais, que não só absorveram<br />

integralmente a ideologia, como até hoje são os seus grandes reprodutores. Ainda há a predominância dos<br />

administradores policiais militares, que não vislumbram outra alternativa para a questão, senão a ocupação<br />

dos espaços e o aumento da visibilidade.<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 12


de batalha, resultando na única medida encontrada até aqui - aumentar a ocupação do<br />

espaço pela presença física. Os juristas não encontraram solução diferente, pois sempre<br />

trataram a questão somente na dimensão legal, com o aumento da ostensividade <strong>policial</strong> e<br />

rigorosas punições aos delinqüentes. Ambos desconsideraram qualquer outra abordagem,<br />

em especial a que está despontando como o melhor encaminhamento, a sociológica.<br />

Essa posição é reforçada pelo estudo de Beato Filho (1999), do Departamento de<br />

Sociologia e Antropologia da UFMG, quando entre outras afirmações, consta (p.10/11);<br />

"..., por outro lado, em relação a polícia civil, têm-se discutido que tão grave<br />

quanto à militarização de uma força, tem sido a 'advogadização' da segunda.<br />

....................................................................................................<br />

Dado este enorme poder de que dispõe o <strong>policial</strong> é ele, e não juiz, quem julga<br />

se alguém ingressa ou não no sistema - que alguns identificam a origem de<br />

alguns dos males endêmicos de nossas organizações policiais tais como a<br />

corrupção e a tortura. Elas seriam decorrentes da deformação da atividade<br />

<strong>policial</strong>, que passa a exercer atividades típicas da instrução criminal, e não<br />

mais de polícia."<br />

O novo cenário está exigindo um profissional com formação específica e com<br />

conhecimento próprio, não se identificando com nenhum dos cursos hoje existentes. O<br />

profissional de polícia deve resultar da simbiose do conhecimento de técnicas e práticas<br />

policiais, com conteúdos afins existentes nas áreas do direito, administração, sociologia,<br />

psicologia, pedagogia, filosofia, informática, comunicação social, relações públicas e<br />

outras. Desenvolvendo um <strong>policial</strong> com uma visão multidisciplinar da sua atividade no<br />

âmbito da segurança pública, capacitado a construir estratégias qualificadas, operações<br />

táticas apropriadas e técnicas apuradas e modernas. Mas, sobretudo, um <strong>policial</strong> que tenha<br />

uma formação de polícia.<br />

4. O PERFIL PROFISSIONAL - UMA ESCOLHA<br />

Esses desafios e a necessidade de responder os anseios sociais estão exigindo das<br />

Instituições Policiais brasileiras uma nova compreensão do perfil de seu profissional, o qual<br />

é diretamente influenciado pelos valores organizacionais <strong>pratica</strong>dos, as crenças existentes e<br />

aceitas no dia-a-dia. Para fins didáticos, dois modelos básicos podem ser considerados, um<br />

vinculado a metáfora do super-herói e outro a do profissional, sendo que o primeiro, que<br />

trás uma visão individualista, parcial e pontual da atividade é o que até hoje domina o<br />

imaginário da maioria dos policiais. Cada um poderia ser descrito pelas características<br />

abaixo:<br />

O POLICIAL SUPER-HERÓI<br />

Amador<br />

Violento<br />

Ações descontroladas<br />

Postura individualista<br />

Concentra-se no bandido<br />

Valente inconseqüente<br />

O POLICIAL PROFISSIONAL<br />

Técnico<br />

Uso da força necessária<br />

Ações estudadas<br />

Postura Coletiva<br />

Concentra-se no cidadão e na vítima<br />

Corajoso responsável<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 13


Prioriza a rapidez<br />

Justiceiro Social<br />

Prioriza a segurança<br />

Prestador de serviço social<br />

Analisando a trajetória da polícia brasileira dos últimos quarenta anos percebe-se que<br />

houve, predominantemente, um modelo de bom <strong>policial</strong>, a partir da valentia e da coragem<br />

inconseqüente, estimulando a violência contra os maus da sociedade. O herói <strong>policial</strong> tem<br />

sido materializado por homens corajosos, capazes de ações agressivas e violentas contra os<br />

delinqüentes. Na realidade, é a apologia da violência contra a violência e a transformação<br />

do <strong>policial</strong> em justiceiro social. Dentro dessa ótica, ao final dos anos cinqüenta,<br />

principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, foram criados Grupos Especiais, com o<br />

objetivo de caçar bandidos, por todos e quaisquer meios necessários. Essa prática não<br />

resolveu os problemas, e transformou-se numa das causas da criminalidade e da violência,<br />

produzindo os esquadrões da morte e os grupos de justiceiros.<br />

A declaração de um <strong>policial</strong> da PM de São Paulo retrata bem a situação, em uma<br />

dissertação que mereceu menção honrosa, em concurso realizado por aquela Polícia Militar<br />

e outras entidades, cujo tema era a frase do líder pacifista Ghandi - "A não violência nunca<br />

deve ser usada como um escudo para a covardia":<br />

"Sou do tempo que nos quartéis ensinava-se a combater distúrbios civis com<br />

baioneta calada. Sou do tempo que um bom <strong>policial</strong> devia ter em sua bolsa um<br />

revólver frio sem registro. Sou do tempo que um <strong>policial</strong> era admirado por suas<br />

'derrubadas'. Os mais violentos eram chamados para compor guarnições com<br />

oficiais e graduados. Tenho hoje 48 anos de idade. Estou no crepúsculo de uma<br />

carreira em que vi muita coisa e sairei sem nunca ter sido sequer indiciado no<br />

artigo 129 ( lesões corporais). Quem não me conhece pode pensar que fui um<br />

frouxo, na gíria <strong>policial</strong>, um 'mijão'. Mas digo que não, pois ostento com muito<br />

orgulho a Láurea de Valor Militar em 4º Grau, em trabalho nas ruas. Fiz da<br />

Polícia Militar a minha profissão e não meu emprego." ( Veja, 27/Jan/99, p.91)<br />

Esse modelo de herói <strong>policial</strong> habita também o imaginário da maioria da sociedade,<br />

pelo menos é possível observar na convivência com os diversos segmentos sociais, quando<br />

nas conversações informais, exaltam policiais valentes e justiceiros, que vingam os bons,<br />

aplicando corretivos físicos nos maus - verdadeiros super-heróis, dimensionando o<br />

problema somente para a definição em que pessoa é aceita ou não a violência <strong>policial</strong>.<br />

Essa concepção dominante trás como características ações que priorizam a emoção,<br />

onde os preconceitos e os estigmas possuem campo fértil, conduzindo à violência, à prática<br />

amadora e à atos descontrolados. Percebe-se que as intervenções em ocorrências policiais e<br />

as prisões de pessoas são realizadas com pouca ou nenhuma técnica, muitas vezes, com<br />

ações descuidadas e desproporcionais à situação criada, cujos resultados são imprevisíveis,<br />

trazendo com freqüência conseqüências desnecessárias tanto ao <strong>policial</strong>, como às demais<br />

pessoas envolvidas. Atirar a esmo; investir sem proteção e sem controle de situação; exporse<br />

a perigo, descuidando-se das regras de segurança; privilegiar a prisão do criminoso com<br />

grande risco para os demais participantes; entre outras, tem sido ações amadoras e danosas.<br />

Em regra, realizadas em nome de uma valentia, na busca de reconhecimento e notoriedade,<br />

que trás mais prejuízos do que benefícios.<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 14


Inúmeros exemplos poderiam ser citados, como uma perseguição ao ladrão que havia<br />

furtado uma motocicleta pelas ruas de uma cidade do interior do Estado, sem que houvesse<br />

preocupação com as regras de segurança no trânsito e que, em um determinado momento, o<br />

ladrão dobrou em um cruzamento, via de mão única, no sentido da contramão, a guarnição<br />

<strong>policial</strong>, sem nenhuma precaução fez a mesma operação, proporcionando uma colisão<br />

frontal com uma camioneta conduzida por uma pessoa de sessentas anos, que veio a falecer<br />

no local, em decorrência de um ataque do coração, provavelmente de susto, sendo que o<br />

delinqüente fugiu. Ou outra, em que a guarnição que cercava uma residência onde havia<br />

dois delinqüentes entendeu de não esperar reforço, o momento mais adequado e a situação<br />

mais favorável e, resolveu, sem nenhuma cautela, entrar atirando na residência, resultando<br />

em um <strong>policial</strong> ferido, outro morto, uma vítima ferida e a fuga dos dois criminosos. Ou<br />

uma outra ocorrência, uma perseguição a pé, em uma área movimentada de Porto Alegre a<br />

dois assaltantes de uma Joalheria. A guarnição efetuava disparos de armas de fogo com o<br />

intuito de prender ou parar os delinqüentes, sem nenhuma preocupação com as centenas de<br />

pessoas que naquele local estavam caminhando, como se a única coisa aceitável fosse a<br />

prisão, resultando na morte de uma adolescente, com um tiro disparado por um dos<br />

policiais e a fuga dos assaltantes.<br />

Situações como essas não são a maioria, mas são freqüentes e muitos desses erros não<br />

aparecem, pois não resultam em danos, muitos ainda dão certo e os incidentes não<br />

produzem conseqüências visíveis, os tiros não acertam nos inocentes e os delinqüentes são<br />

presos ou quase presos. Mas o resultado é casual, como caminhar no fio da navalha. Podese<br />

cair para qualquer lado. E quando "nada de errado acontece", a avaliação superficial<br />

pode criar o entendimento de que foi realizada uma excelente atuação dos policiais. São os<br />

procedimentos amadores que aumentam a probabilidade do risco transformar-se em perigo<br />

e produzir vítimas. Parte significativa das situações de perigo que os policiais passam são<br />

causadas pela não observância da técnica.<br />

Esta visão amadora de resolver a ocorrência <strong>policial</strong> é agravada pela falta de<br />

compreensão dos policiais de que a prisão ou não dos criminosos, em um ou outro<br />

momento, enquanto análise individual, não influencia na diminuição da probabilidade das<br />

pessoas serem vítimas das condutas criminosas. E, esta percepção pontual, induz o <strong>policial</strong><br />

a descartar como alternativa técnica de solução da ocorrência, a fuga dos delinqüentes,<br />

mesmo que as circunstâncias ambientais apontem nessa direção. A percepção correta é a de<br />

que o resultado do conjunto das ocorrências atendidas é que pode interferir na repetição de<br />

comportamentos criminosos.<br />

Desde o final da década de oitenta, uma parcela dos integrantes das organizações<br />

policiais estão propondo o aprofundamento dessa discussão, especialmente a troca do<br />

modelo <strong>policial</strong>, identificado com a metáfora do super-herói, por um outro modelo bem<br />

mais profissional, vinculado à imagem de bons prestadores de serviços a sua comunidade.<br />

O novo modelo privilegia ações estudadas e técnicas, preocupa-se com as condições<br />

de segurança e bem estar do cidadão e da vítima, estabelecendo segundo plano ao<br />

criminoso, em contraponto ao anterior, que se caracterizava por ações descontroladas e<br />

amadoras. A ânsia de resolver a qualquer custo a ocorrência, priorizando a prisão do<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 15


delinqüente em detrimento das vítimas, tem produzido o uso desnecessário de armas,<br />

excessos de velocidades, danos a inocentes e baixas policiais.<br />

Outra característica emergente corresponde a uma postura de atuação coletiva, que se<br />

vale dos demais companheiros e dos recursos à disposição, realizando cercos,<br />

acompanhamentos monitorados, abordagens cautelosas e seguras, com o necessário apoio.<br />

Uma postura que pára, avalia a situação e, somente continua, a partir de condutas técnicas e<br />

seguras, devidamente apoiadas. Contrária à postura individualista, que acha que deve<br />

resolver tudo sozinho, considerando desonra pedir ajuda. A postura coletiva é controlada e<br />

racional, a postura individualista é emocional e desequilibrada. Sendo que, em muitas<br />

vezes, representa perigo para os próprios policiais e os demais cidadãos que não estão<br />

envolvidos na ocorrência.<br />

O profissional de polícia preocupa-se com o cidadão e as vítimas, considerando mais<br />

importante atender as pessoas agredidas do que prender o criminoso. De que adiante<br />

prender um ladrão, se na execução da prisão, sua vítima ou outro inocente, for ferido ou<br />

morto Assim, a prisão do criminoso é uma questão secundária, sendo prioritário<br />

restabelecer a ordem e o equilíbrio emocional dos vitimados, do que prender. Ao intervir<br />

em uma ocorrência, o <strong>policial</strong> deve ter presente que seu objetivo é garantir o direito e a<br />

integridade das pessoas e depois, então, efetuar a prisão dos criminosos. Quantas e quantas<br />

ocorrências, que em decorrência de ações individuais inconseqüentes, como as<br />

perseguições inseguras ou o uso desnecessário de arma de fogo, originaram destruição e<br />

mortes de inocentes, inclusive de policiais, sem que os delinqüentes fossem presos, ficando<br />

a ação <strong>policial</strong> muito mais danosa do que a ação criminosa, tendo sido melhor se a polícia<br />

não interviesse.<br />

A coragem continua a ser um valor distinguido, mas desde que realizada com<br />

responsabilidade. Houve, equivocadamente, uma exaltação de atos de valentia que não<br />

eram acompanhados por ações que mediam as alternativas possíveis e, por isso, com<br />

freqüência ocorria, sustentada no desejo de ser herói, colocando em risco a vida do próprio<br />

<strong>policial</strong>, dos demais companheiros, das vítimas e pessoas alheias à ocorrência. Inclusive,<br />

em muitas ocasiões, o <strong>policial</strong> passava a ser mais uma pessoa a ser atendida e/ou resgatada.<br />

Nessa mesma linha estão as ações policiais onde deve existir equilíbrio entre a rapidez<br />

e a segurança. O amador desconsidera a sua segurança e dá todo o valor para a rapidez da<br />

ação ou reação. O profissional age rápido, dentro da técnica, de acordo com o seu preparo,<br />

mas em nenhum momento desconsidera a segurança. Por exemplo, em uma perseguição<br />

<strong>policial</strong>, a preocupação primeira é com a garantia de conseguir terminá-la, ficando a prisão<br />

do criminoso por conta de uma ação técnica adequada e segura. Até por que, a experiência<br />

tem mostrado que em muitas ocorrências desse tipo, além de não ter sido possível prender o<br />

perseguido, ainda causou-se danos à polícia, pela conduta insegura imprimida.<br />

O profissional de polícia militar, por fim, é um prestador de serviço, que tem<br />

preocupação da excelência do atendimento de forma igualitária, tratando todos atenciosa e<br />

educadamente, respeitando e reconhecendo as diferenças e a diversidade social, as garantias<br />

e os direitos individuais e a dignidade das pessoas. E, principalmente, as suas limitações<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 16


como ser humano, tendo bem claro que não é o salvador da pátria e nem o vingador da<br />

sociedade, em circunstância alguma.<br />

Outra questão a ser resolvida é a desorganização estrutural dos Institutos Policiais<br />

Brasileiros, decorrentes da sua própria desqualificação como profissionais em polícia, que<br />

somente estão em condições de enfrentar e atender situações pontuais. E, não trataram, até<br />

aqui, a segurança pública com uma proposta conjuntural. Isso tem levado a avaliação da<br />

performance do <strong>policial</strong> pelas suas intervenções em ocorrências "propriamente policiais",<br />

pelos tiros que realiza, pelas perseguições que empreendem e pelo número de pessoas que<br />

prende, mesmo que tudo isso seja feito da forma mais amadora possível. Além de criar um<br />

processo coletivo de justificação quando os "erros" acontecem.<br />

Ora, nesse entendimento, sempre se falou da dificuldade de avaliar o <strong>policial</strong> na sua<br />

prestação de serviço pelos crimes que evitou e que não aconteceram pela sua presença ou<br />

atuação. Ou seja, a visão pontual quer avaliar o PM ou pelas ocorrências atendidas ou,<br />

então, pelas ocorrências não acontecidas em razão de sua presença. E, chega-se a uma<br />

conclusão, que a atuação pontual e individualizada de um <strong>policial</strong> ou guarnição, em um<br />

determinado espaço ou horário, em nenhum momento, evita o acontecimento do crime. O<br />

crime que não ocorreu por que uma guarnição <strong>policial</strong> estava naquele local, ocorrerá, em<br />

outra hora, no mesmo local ou, em outro local.<br />

A polícia necessita tratar a questão de forma conjuntural, diminuindo a incidência de<br />

crime nos espaços considerados, dentro de uma metodologia de resolução de problemas em<br />

rede. Propondo soluções para as verdadeiras causas da criminalidade e da violência,<br />

trabalhando as situações facilitadoras ao crime e implementando procedimentos que<br />

rompam o círculo vicioso dos delitos 11 . Nessa postura, a Polícia não deve preocupar-se<br />

com a possibilidade da Casa de A ou B ser arrombada, pois isso, na visão pontual, é uma<br />

questão privada. Mas preocupar-se em diminuir a probabilidade de todos os moradores do<br />

espaço considerado serem vitimados pelo delito, isso sim, é uma questão pública. Isso é, a<br />

Polícia deve trabalhar com os indicadores e buscar diminuí-los na comunidade atendida.<br />

Dessa forma, o <strong>policial</strong> deve compreender que a sua atuação somente tem razão de ser<br />

em sintonia com os demais colegas e com os programas preventivos executados. Um ato<br />

isolado e desgarrado nada representará, e a prisão ou fuga de um ladrão, em um<br />

determinado momento, não é questão de vida ou morte, quando outros estão sendo<br />

flagrados e presos. Passa a valer a forma como o profissional de <strong>policial</strong> realiza sua<br />

prestação de serviço, as interações com os seus diversos públicos, as informações que<br />

recebe, as orientações que passa, a conduta técnica e coletiva de atuação, o cerco bem feito,<br />

a prisão com moderada utilização da força, a identificação de situações criminosas, o<br />

11<br />

A criminalidade possuí um círculo vicioso, em geral movimentado por uma motivação específica (como o<br />

lucro para os crimes patrimoniais), com a participação de vários atores. A incidência de um determinado<br />

crime sempre tem o ponto inicial e o final. Por exemplo, nos arrombamentos de residência, o ponto inicial<br />

consiste na área do delito acontecido, o final, no momento em que o objeto furtado é comercializado. Não<br />

havendo ações de prevenções nas duas pontas, pouco se conseguirá, na empreitada de diminuir o número de<br />

arrombamentos no comunidade considerada. Ressalta-se que a própria comunidade vitimada é a compradora<br />

do objeto proveniente do delito, realimentando o círculo vicioso. Assim como os crimes ocorrem a partir de<br />

situações favoráveis, que se eliminadas, contribuem para diminuir a incidência de repetição. Ver<br />

GUIMARÃES, 1998.<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 17


econhecimento, a confiança e credibilidade da comunidade em que atua. Em síntese, passa<br />

a valer uma visão coletiva de trabalho.<br />

Há uma necessidade de que essas características não sejam somente um discurso, mas<br />

que se transformem em prática, de forma que os valores institucionais as privilegie no<br />

cotidiano da ação <strong>policial</strong>. A experiência tem mostrado que nos ambientes<br />

predominantemente amadores, sobressai-se com maior facilidade os preconceitos e os<br />

estigmas, criando espaços institucionais de aceitação da violência e da injustiça,<br />

questionando-se assim, não as agressões, mas sim, somente o seu lugar, ou contra quem<br />

foram <strong>pratica</strong>das. Muitas vezes, procura-se justificar atos de violência <strong>policial</strong>, pela<br />

condição de delinqüente do agredido. Se esse espaço não for eliminado, a violência<br />

encontrará campo fértil, pois sua legitimação somente depende do juízo de cada <strong>policial</strong><br />

(GUIMARÃES, 1997).<br />

5. AS NOVAS HABILIDADES DA PROFISSÃO POLÍCIA<br />

A evolução para um novo modelo de herói <strong>policial</strong> e a mudança de concepção de se<br />

fazer polícia, trás como conseqüência a necessidade de reavaliar as habilidades necessárias<br />

para o exercício da profissão. A atividade <strong>policial</strong> tratada erroneamente até aqui, como<br />

simples e singela, pelas forças que construíram as políticas de segurança pública, precisa<br />

ser considerada complexa e executada por "profissionais" qualificados, em especial, pelo<br />

nível da resposta que a sociedade está a exigir e a esperar.<br />

Na visão ultrapassada, a polícia nada mais é do que barreiras físicas, guardas robôs,<br />

espantalhos vivos, a garantir a tranqüilidade dos espaços dos bons cidadãos, pois a questão<br />

somente se restringia a ocupação de espaço, proteção localizada, visibilidade de policiais e<br />

prisões de malfeitores, sem que houvesse necessidade de realização de qualquer trabalho<br />

mais qualificado. Vendo dessa forma , para ser um <strong>policial</strong> brasileiro, somente precisava<br />

qualidades como: coragem, força, submissão, conduta motora e reações automatizadas.<br />

Qualidades essas que também foram identificadas por Muniz ( 1999, p.187/8), ao<br />

estudar o cotidiano da Polícia Militar do Rio de Janeiro, quando diz "..., a tarefa de 'tirar<br />

polícia' evoca traços de personalidade muito valorizados entre os PM como a sagacidade, a<br />

coragem, a ousadia, a intuição, a destreza e a obstinação".<br />

O professor Ludwig ( 1998), ao final de uma pesquisa que realizou sobre o ensino<br />

militar brasileiro, do qual as Polícias Militares até a Constituição de 1988 receberam forte<br />

influência e subordinação, apontou algumas conclusões interessantes, como:<br />

" ... o processo ensino-aprendizagem da oficialidade brasileira, das três armas, está<br />

voltado para a tarefa de forjar um tipo de profissional, isto é, o aplicador da<br />

violência, adequado ao jogo de forças típico da sociedade brasileira (p.8)";<br />

" ... o ensino militar, hoje agrega um conjunto de atividades capaz de solidificar no<br />

cadete a ideologia dominante.......... Por meio dessas atividades, o aluno assimila os<br />

valores de obediência, submissão, dependência, paternalismo, assiduidade,<br />

pontualidade, racionalidade e meritocracia. (p.23)";<br />

" No caso militar, a imagem de uma conduta eminentemente motora, cujo processo<br />

educativo tem grande peso, parece não constituir novidade, pois faz parte do<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 18


pensamento de muitos oficiais que o comportamento do soldado deve ser<br />

basicamente reflexo. Eles ainda continuam pensando que num teatro de operações a<br />

tarefa de refletir cabe somente ao comandante ( p. 37).";<br />

" Faz parte da doutrina militar de muitos países, particularmente dos denominados,<br />

subdesenvolvidos ou periféricos, a idéia da centralização do poder. Essa concepção,<br />

levada ao extremo, tende a sustentar o ponto de vista de que os militares não devem<br />

ser preparados para pensar, refletir, criticar e sim para executar ordens e cumprir<br />

missões sem questionar (p. 59)."<br />

Isso contribui para limitar o espectro da atividade e, antes de tratar de um novo rol de<br />

habilidades do <strong>policial</strong>, precisa-se retomar a amplitude do desenvolvimento da atividade de<br />

polícia, que possui uma dimensão técnica, correspondente a execução das atividades no<br />

cotidiano, - a ação. E, uma dimensão estratégica/tática, referente a administração dos<br />

recursos disponíveis e dos programas adequados, - o comando <strong>policial</strong>.<br />

Fazer polícia, ao contrário de que muitos apregoam, não consiste somente na colocação<br />

intuitiva de pessoas nas vias públicas. Há uma outra dimensão, tão ou mais importante que<br />

esta, fundamentada no pensamento estratégico, no planejamento das operações táticas e na<br />

otimização dos recursos humanos e materiais. A atividade <strong>policial</strong>, assim como as demais<br />

atividades humanas que tratam de uma necessidade social, no caso a segurança pública,<br />

possui um nível técnico, seus escalões inferiores na Polícia Militar - Soldados a Sargentos<br />

e um nível superior, os administradores policiais, os Oficiais. Cada nível, com atribuições<br />

específicas e essenciais na execução da profissão. O primeiro, necessita de conhecimento<br />

correspondente ao ensino secundário e os aperfeiçoamentos pós decorrente. O segundo,<br />

precisa do ensino superior, da pós-graduação, do mestrado e doutorado. Da mesma forma<br />

que a saúde é exercida por auxiliares de enfermagem, enfermeiros e médicos, ou, a<br />

construção civil, por operários, mestres de obras e engenheiros.<br />

Essa observação é necessária pela predominância no âmbito <strong>policial</strong> e na discussão do<br />

tema polícia do "culto ao operacional", que somente considera importante ou essencial, na<br />

polícia ostensiva, o serviço cotidiano de rua, reconhecendo como dispensáveis os demais.<br />

Como se a atividade de linha de uma Instituição ou empresa prestadora de serviço, mesmo<br />

que público, pudesse prescindir da atividade de apoio. Ou, como se a execução técnica<br />

cotidiana, enquanto busca de resultados conjunturais e sistêmicos, pudesse obter êxito<br />

dissociada de diagnósticos profundos, estratégias inteligentes, administração eficiente e<br />

operações táticas eficazes.<br />

Esse entendimento não é isolado, tem relativo lastro na sociedade, como pode-se ver<br />

nas conclusões existente em uma tese aprovada na XV Conferência Nacional da Ordem dos<br />

Advogados do Brasil, em Foz do Iguaçu, Paraná, em setembro de 1994, que diz: " A<br />

exceção dos crimes passionais, é sabido que a forma mais eficaz de evitar a ação<br />

criminosa é assegurar a presença da polícia. Assim, o policiamento ostensivo deve ser<br />

exercido por meio da presença de policiais, se não em todos os lugares e em todas as<br />

horas, como seria o ideal, ao menos onde e quando a incidência da criminalidade for<br />

maior."<br />

Mas foi intramuros que a exaltação ao <strong>policial</strong> operacional produziu-se e reproduziu-se<br />

com muita intensidade. A partir de um falso prestígio daquele profissional que está nas<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 19


uas, bem visível, de preferência correndo atrás de delinqüentes, como se fosse o único<br />

elemento importante e necessário para a polícia prestar seus serviços. Falso, por que<br />

somente habitou os discursos, no concreto, não era o mais privilegiado, nem na distinção de<br />

tratamento, nem no reforço de qualificação, na ascendência da carreira ou, no recebimento<br />

dos melhores recursos. Isso perpassa policiais em todos os níveis hierárquicos. Não raras<br />

vezes encontra-se oficiais superiores, abandonando suas atribuições dentro dos níveis de<br />

decisão da administração <strong>policial</strong>, para tornar-se um "Tenente Coronel ou Coronel<br />

Operacional", em cima de justificativas como; "eu não sou oficial de gabinete, eu sou<br />

operacional, não perco tempo com planos e estudos desnecessários, lá na rua que eu sou<br />

bom". E a planificação da estratégia, da tática e da administração, ficando em segundo<br />

plano, quando não abandonada.<br />

Outro exemplo disso, percebe-se nos oficiais mais modernos (Tenentes) que em médias<br />

e grandes cidades concorrem as escalas de Oficial de Serviço Externo, com o objetivo de<br />

coordenar e garantir a otimização dos recursos empregados, apoiar quando necessário e<br />

corrigir erros no andamento das ocorrências e do serviço. Com freqüência, encontra-se<br />

esses Tenentes envolvidos em ocorrência, desempenhando a atividade de uma guarnição,<br />

como um maestro que resolve tocar um instrumento, abandonando a coordenação de sua<br />

orquestra e permitindo que cada músico toque de acordo com os seus interesses,<br />

contribuindo para a desarmonia do conjunto.<br />

Isso, na realidade, decorre do entendimento de que a atividade <strong>policial</strong> prescinda de<br />

trabalhos qualitativos e programas sistêmicos. Essa visão mecânica da atividade trouxe<br />

como decorrência a perspectiva generalizada de ações intuitivas e reativas aos<br />

acontecimentos do cotidiano "propriamente <strong>policial</strong>"- os crimes, as prisões, as operações.<br />

Sem que houvesse uma maior preocupação com procedimentos racionais, mais elaborados<br />

e planejados, resultado de adequados estudos do conjunto dos problemas no espaço<br />

considerado. Ou seja, ações desorientadas e desorganizadas, ocorrendo ao sabor dos<br />

acontecimentos e das influências, sem o controle das relações de causa e efeito.<br />

O professor Luiz Eduardo Soares (1996), do ISER/RJ e hoje Subsecretário de<br />

Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, tratando o tema polícia e inteligência,<br />

destaca isso como assunto crucial, afirmando: "não temos polícia para valer e temos<br />

polícia em excesso, na contramão". Em outro momento, o mesmo mestre, faz um alerta aos<br />

formuladores de políticas públicas para considerarem que: " talvez a principal<br />

conseqüência, se deixarmos de lado o que pesquisas anteriores revelaram, como a<br />

centralidade da questão do tráfico de armas e drogas, fosse o reconhecimento de que o<br />

tipo de criminalidade em expansão, capaz de captar recursos para investimentos criminais<br />

crescentemente perigosos, sobretudo em armamento, exige sofisticação técnica, formação<br />

de equipes, divisão de trabalho complexa, especializações, acesso a informações e meios<br />

contemporâneos de comunicação, organização de estruturas interestaduais e<br />

supranacionais de recepção e comercialização de mercadorias roubadas ou furtadas".<br />

O novo desafio retoma a importância das duas dimensões do exercício da polícia,<br />

exigindo em todas as instâncias profissionais competentes, ora como técnicos, ora como<br />

administradores policiais e conduz ao entendimento de que mais efetivo do que ver um<br />

<strong>policial</strong> aqui ou acolá, será a qualidade dos programas elaborados que determinam sua<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 20


colocação naquele espaço e naquele tempo, sua forma de atuação, que considerem causas<br />

verdadeiras, reais e ações sistêmicas.<br />

Assim, fazer polícia exige novas habilidades pela sua complexidade e pelo seu objeto<br />

- as relações sociais, em um ambiente cada vez mais democrático, onde o <strong>policial</strong> tem que<br />

contextualizar a sua intervenção. Ressalta-se que os policiais militares, no nível técnico,<br />

tem o maior poder discricionário, ficando a seu encargo a aplicação das leis menos precisas,<br />

mais ambíguas, ou cuja imposição é mais sensível, onde a disponibilidade de recursos são<br />

escassas. Como, com muita felicidade descreveu MUNIZ ( 1999, p.127):<br />

" Se considerarmos que o balcão de atendimento da polícia ostensiva é<br />

capilarizado, individualizado e ambulante, sendo concretamente exercido em<br />

cada esquina ou rua da cidade por um <strong>policial</strong> ou por uma pequena guarnição<br />

móvel, o amadorismo dos procedimentos de interação tende a confinar a ação<br />

de polícia ostensiva ao limitado universo do bom senso e da boa vontade<br />

individual e ao perigoso mundo dos preconceitos sociais".<br />

Entre as novas habilidades destaca-se: iniciativa; capacidade de diálogo, de decisão e<br />

de reflexão crítica; qualificação técnica apurada; inteligência emocional e visão abrangente.<br />

Habilidades essas que devem estar presentes em todos os níveis hierárquicos e de decisão,<br />

em consonância com a exigência de atribuições de cada um.<br />

O professor Pedro Aguirre, Doutor em Sociologia das Organizações, da Universidade<br />

Federal de Santa Maria, em 1997, em uma conferência para Comandantes de Unidades da<br />

Brigada Militar, na Academia de Polícia Militar, sobre o título "A Organização e o<br />

Profissional do Ano 2000 frente as exigências da globalização", manifestou que os<br />

organismos públicos e privados para desenvolverem suas atividades, na Era do<br />

Conhecimento, deverão criar e estimular o monitoramento gerencial, trabalhar com<br />

indicadores eficazes, automatizar e informatizar processos e produtos e desenvolverem a<br />

capacidade de fazer a leitura das mudanças conjunturais. O respeitável palestrante ainda<br />

listou as seguintes características necessárias para o profissional: integração total com o<br />

mundo, conhecimento de informática, visão globalizada, interação com a natureza,<br />

capacidade de privilegiar assessoramento talentoso e uma vida social atomizada.<br />

As situações tensas, com interesses conflitantes e a variedade de características que<br />

diferenciam cada ação, tornam inviável a continuação de uma postura <strong>policial</strong> mecânica, de<br />

repetir procedimentos pré-determinados, sustentada de um modelo de padronização e<br />

rotinização. Torna-se necessário aumentar os espaços de decisão de cada <strong>policial</strong>,<br />

possibilitando-o a adotar procedimentos diferenciados dos roteiros estabelecidos, de acordo<br />

com as peculiaridades que se apresentam. E, para isto acontecer, o melhor caminho passa<br />

por investimentos concretos na qualificação, aumentando o conhecimento profissional e<br />

geral, através de um modelo contingencial de formação, que privilegie o desenvolvimento<br />

da reflexão crítica e uma visão sistêmica da segurança pública, além de aprofundar os<br />

fundamentos da polícia.<br />

Outro ponto importante é a busca do equilíbrio na ação do profissional da razão e da<br />

emoção, através do desenvolvimento da inteligência emocional. Mais do que nunca, é atual<br />

a inquirição filosófica de Aristóteles sobre a virtude, caráter e uma vida justa. Para quem o<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 21


problema não estava na emocionalidade, mas na adequação da emoção e a sua<br />

manifestação. A polícia lida com relações sociais, com a participação de atores sociais, com<br />

os mais diversos interesses e visões de mundo. A atividade <strong>policial</strong>, por mais que se possa<br />

tentar engessá-la, na hora da interação, depende muito da subjetividade do agente. Para<br />

isso, é importante que o servidor possua capacidade de por de lado seu enfoque pessoal e<br />

impulsos autocêntricos, abrindo-se para ouvir de fato e entender a perspectiva de outra<br />

pessoa, o que quebra estereótipos tendenciosos, gerando a tolerância e aceitação das<br />

diferenças. GOLEMAN (1995, p.302), autor dessa teoria, afirma que "essas aptidões<br />

[autodisciplina e empatia] são cada mais exigidas em nossa cada vez mais pluralística<br />

sociedade, permitindo que as pessoas vivam juntas em respeito mútuo e criando a<br />

possibilidade do discurso público produtivo. São artes básicas da democracia". Na prática<br />

<strong>policial</strong> parece clara a importância do domínio do emocional nas atuações. No <strong>policial</strong>,<br />

deverão ser desenvolvidos os talentos emocionais propugnados pelo autor acima (p.276):<br />

autoconsciência; identificar, expressar e controlar sentimentos; controle de impulso e<br />

adiamento de satisfação; e, controlar tensão e ansiedade. Aprendendo a tomar melhores<br />

decisões emocionais, controlando primeiro o impulso para agir, depois identificando ações<br />

alternativas e suas conseqüências antes de agir. Além de agregar as aptidões interpessoais<br />

como: ler indícios sociais e emocionais, ouvir, ser capaz de resistir a influências negativas,<br />

entender as perspectivas dos outros e compreender qual o comportamento é aceitável numa<br />

situação. Quantas vezes, os fatos históricos, exemplificam atuações policiais desastrosas,<br />

em decorrência do agir por impulso e/ou influenciado pelo preconceito e estigmas.<br />

Um espaço maior para decidir, criar e ter iniciativa não representa uma situação de<br />

descontrole e de caos onde cada um faça o que quer. A desconcentração da polícia, onde<br />

todos os níveis possuem, ao atuar, o poder de polícia, trás a necessidade de existir uma<br />

bússola que oriente as ações de cada servidor, de forma a garantir que o mesmo atue dentro<br />

dos princípios estabelecidos. Essa bússola delimita o espaço de decisão, podendo ser<br />

construída através da transparência e visibilidade das orientações, dos valores institucionais<br />

declarados, da ética, da moral, do escopo jurídico e das normas e diretrizes estabelecidas. É<br />

preciso também, para dar guarida a essa nova visão, redimensionar a avaliação sobre as<br />

decisões de cada indivíduo, que deve considerar os espaços delimitados e aceitar os<br />

julgamentos que originaram procedimentos, a partir de juízo de valor no interior desses<br />

espaços, mesmo que haja discordância de entendimento em outra instância. Nesse contexto,<br />

ganham importância vital os procedimentos administrativos de apuração de desvios e os<br />

mecanismos de responsabilização, que devem ser efetivos, ágeis e oportunizar ampla<br />

defesa.<br />

A avaliação dos serviços prestados e das condutas dos policiais deve ser fortalecida<br />

através de instrumentos como fiscalizações, indicadores de atuação e de resultado e<br />

levantamento de opiniões dos tomadores do serviço. Outra ferramenta importante é o<br />

fortalecimento dos canais de comunicação entre a polícia e a comunidade, através de uma<br />

interação efetiva, onde possibilite um espaço de discussão de críticas, sugestões e<br />

orientações. Além da transparência das investigações sobre qualquer denúncia ou<br />

conhecimento de irregularidade e das responsabilizações ocorridas.<br />

O modelo disciplinar atual, caracterizado por uma relação rígida e unilateral do<br />

superior para o subordinado, extremamente centralizador e burocrático, <strong>pratica</strong>mente<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 22


inviabilizando o espaço de discussão e questionamento, deve ser redimensionado. A<br />

concentração das decisões nos níveis mais elevados do canal hierárquico, a inflexibilidade<br />

da comunicação e a padronização dos procedimentos funcionaram como compensação ao<br />

amadorismo da polícia e ao despreparo dos policiais, em ambiente em que a atividade<br />

<strong>policial</strong> estava limitada a presença mecânica e a prisão de criminosos . Assim, até aqui, a<br />

prevalência foi de pressupostos como: "ordem superior é inquestionável", " prioridade dos<br />

interesses internos" e " as Praças não contribuem na elaboração do saber <strong>policial</strong>".<br />

Esse método foi utilizado, em outro momentos e outros contextos, para atender<br />

dificuldades semelhantes, correspondente ao despreparo e desqualificação das pessoas,<br />

como pode-se verificar no registro histórico realizado por HOBSBAWN (1994, p.372):<br />

"Como Napoleão e seu chefe do estado-maior tivera outrora de compensar as<br />

deficiências técnicas de seus marechais, essencialmente oficiais combatentes não<br />

formados, promovidos das fileiras, também todas as decisões eram cada vez mais<br />

concentradas no ápice do sistema soviético. A supercentralização do Gosplan<br />

compensava a escassez de administradores. A desvantagem desse procedimento foi<br />

uma enorme burocratização do aparato econômico e também de outras partes do<br />

sistema."<br />

A nova ordem, com policiais mais especializados, exigirá um espaço de discussão mais<br />

democrático, onde todos os servidores participam como profissionais, posicionando-se,<br />

solicitando esclarecimentos, sugerindo alternativas que considera mais adequada em razão<br />

da sua experiência e conhecimento, apresentando contribuições qualificadas. Além do que,<br />

o profissional para realizar com competência sua atribuição precisa compreender<br />

adequadamente sua missão ou tarefa ordenada. Em síntese, é necessário que o <strong>policial</strong><br />

interaja ativamente com o andamento do conjunto da sua atividade. Para isso, o canal<br />

hierárquico deverá ser flexibilizado, através da criação no cotidiano de espaços de<br />

discussões formais e informais, tornando rotina reuniões para discutir as questões do<br />

trabalho, onde a diversidade e as diferenças não só são aceitas, como percebidas dentro da<br />

normalidade e o canal de comunicação passe a ser bilateral. O valor que equilibrará a<br />

disciplina será o respeito mútuo e o reconhecimento dos limites do poder decisório de cada<br />

participante, de acordo com os aspectos legais e os morais.<br />

Necessário se faz que não haja confusão entre o fortalecimento de espaços<br />

democráticos de discussão e a competência de decidir. A discussão democrática permite a<br />

participação de todos, a visibilidade das alternativas, dos aspectos positivos e negativos de<br />

cada procedimento ou programa a ser implementado. A partir daí, a decisão é sempre<br />

pessoal e intransferível daquele que a lei estabelecer como competente para tal, nos limites<br />

descritos. Não existe possibilidade, em uma atividade como a <strong>policial</strong>, de democratizar a<br />

decisão. Em muitos casos, poderá o responsável pela decisão valer-se do entendimento da<br />

maioria no espaço democrático de discussão. Mas, aquele que decidir precisa ter a<br />

competência legal e assumir a responsabilidade decorrente, para que, se for o caso,<br />

responda na esfera administrativa, penal e cível.<br />

A flexibilização da disciplina passa também por reverter o enfoque da prioridade dos<br />

interesses internos, que cria uma prática onde o <strong>policial</strong> deixa o cidadão tomador do serviço<br />

em segundo plano, trazendo como conseqüência a despreocupação com a qualidade do<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 23


serviço prestado. Isto é, entre um compromisso estabelecido pela demanda interna, como<br />

falar com um superior para prestar esclarecimento e o atendimento de uma pessoa que<br />

solicita um serviço, em regra, o <strong>policial</strong> atenderá o superior, deixando a pessoa esperando,<br />

sem nenhuma preocupação de gerar uma satisfação no seu cliente. Para ele, a única coisa<br />

que interessa é realizar aquilo que poderá lhe trazer transtornos, dentro da prática da relação<br />

disciplinar. Aliás, esse problema não é privilégio do organismo <strong>policial</strong>. As empresas<br />

privadas prestadoras de serviço enfrentam dificuldades semelhantes e estão implementando,<br />

como solução, a Teoria da Inversão da Pirâmide Organizacional, onde o cliente está no topo<br />

e a alta administração na base.<br />

Ken Blanchard ( apud HESSELBEIN, 1996, p.99), em ensaio intitulado "Virando ao<br />

contrário a pirâmide organizacional ", destaca a importância do cliente, na prestação do<br />

serviço, estar no topo da organização e a alta administração na base. Justifica esta posição<br />

dizendo que quando o servidor pensa que trabalha para a pessoa acima dele na organização<br />

- o chefe - admite que seu trabalho consiste em atendê-lo e aos seus caprichos e vontades.<br />

E, nessa concepção, quando o empregado tem que escolher entre atender à necessidade de<br />

um cliente e agradar o chefe, a escolha recai sobre o chefe, porque na organização<br />

hierárquica típica, o futuro do servidor depende de sua habilidade política para cima na<br />

hierarquia.<br />

O terceiro pressuposto da relação disciplinar a ser revisto, a partir do investimento na<br />

qualificação técnica do <strong>policial</strong>, corresponde no seu reconhecimento e na sua aceitação<br />

como profissional, não só capacitado, mas sim essencial, na construção do saber <strong>policial</strong>. A<br />

relação até então empreendida também era unilateral, onde os níveis inferiores, somente<br />

recebiam do sistema instruções sobre os procedimentos técnicos a serem executados. A<br />

base da pirâmide era condicionada ao comportamento passivo, com pouca possibilidade de<br />

manifestação e contribuição, dentro de uma abordagem comportamentalista, onde todos os<br />

problemas tem soluções prontas e propostas acabadas (GUIMARÃES, 1997,p.76/9).<br />

Na área empresarial, a moderna ciência da administração está realizando uma<br />

revolução da aprendizagem das organizações de serviço, buscando metodologias que<br />

possibilitem que a empresa adquira uma cultura do aprender com a sua prática diária e com<br />

os fatos que estão acontecendo, estimulando a participação reflexiva e criativa dos seus<br />

integrantes, no encontro de soluções a problemas do cotidiano, bem como formas de<br />

socializar as técnicas desenvolvidas por um ou mais profissionais, em decorrência dos<br />

desafios ocorridos na execução das atividades.<br />

Gold ( p.119), no livro Repensando a Empresa, destaca a necessidade de um novo<br />

paradigma gerencial, envolvendo uma transição das organizações tradicionais, baseadas nos<br />

recursos, para organizações baseadas na criação do conhecimento, que passa a ser a fonte<br />

de inovações contínuas, de competitividade e de sobrevivência final. E, que numa<br />

economia na qual a única certeza é a incerteza, a única fonte segura de vantagem<br />

competitiva duradoura é o conhecimento. Alertando, no entanto, que não basta que algumas<br />

pessoas se tornem mais inteligentes através do acúmulo de informações, pois a criação do<br />

conhecimento requer uma integração do saber e do fazer, de forma que as idéias possam<br />

ser testadas, as capacidades humanas ampliadas e as novas técnicas descobertas no<br />

exercício da prática diária socializada.<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 24


Essa realidade encaixa-se perfeitamente nas exigências da atividade <strong>policial</strong>, com a sua<br />

quantidade imensurável de situações que se apresentam a cada nova ocorrência que é<br />

atendida ou operação realizada, exigindo que o indivíduo, não só tenha capacidade de<br />

exercer um maior espaço de decisão, como também, lhe sejam ampliados os canais de<br />

comunicação, para que possa relatar as informações e observações obtidas no transcorrer de<br />

seu serviço, as novas situações e as soluções encontradas para resolvê-las.<br />

A falta desse espaço foi reconhecido por MUNIZ ( 1999, p.150), como a criação de<br />

uma brecha, pelo próprio organismo <strong>policial</strong>, para o reflorescimento do exercício<br />

inaceitável do poder da polícia, uma vez que a própria Instituição parece duvidar do<br />

emprego qualificado do poder de polícia por seus integrantes, através da prática de<br />

minimizar os espaços individuais de escolha pelo reforço desmensurado dos expedientes<br />

disciplinares. Alerta também a autora que o olhar suspeitoso e punitivo projetado sobre os<br />

policiais tem como contrapartida a administração cotidiana do segredo, como estratégia de<br />

sobrevivência no interior da força. Na seqüência, registra a seguinte constatação: " É<br />

possível estimar que uma parte expressiva das preciosas informações qualitativas sobre<br />

pessoas, problemas, eventos e locais, que poderiam orientar políticas efetivas de<br />

prevenção, e que normalmente são mapeadas pelos policiais em suas rondas, não é<br />

irrigada para dentro da corporação e sequer se converte em registros e notificações".<br />

A flexibilização das relações disciplinares, baseada no fortalecimento da qualificação<br />

profissional, a partir de um espaço mais democrático de participação e de interação entre os<br />

integrantes dos níveis hierárquicos, onde a contextualização represente a normalidade,<br />

corresponde a uma exigência imperiosa de melhoria da qualidade do serviço <strong>policial</strong>. Não<br />

representa, como pode-se pensar, no enfraquecimento da disciplina, mas sim, no seu<br />

redimensionamento, onde o alicerce principal de sustentação estará no mérito profissional,<br />

na postura ética e na responsabilidade funcional.<br />

DESAULNIERS ( 1998, P.8/14) manifesta que as mutações que vêm ocorrendo no<br />

mundo da formação e na sociedade em geral, em que a instauração da competência é uma<br />

das suas principais condições, deriva-se, em grande medida, das transformações que se<br />

desencadeiam a partir do mundo do trabalho. A nova ordem depende do desenvolvimento<br />

de todas as capacidades do trabalhador, enquanto ser integral. Já, STOOBANTS<br />

(DESAUNIERS, 1998, P. 24) mostra que o saber-ser, o saber-viver e outros saberes<br />

sociais, não se revelam somente na indústria, mas também na construção civil, na<br />

agricultura, do mesmo modo que, em outras áreas, as 'regras de artes' tendem a repercutir<br />

no modo de profissionalização dos policiais e dos professores. Alertando ainda, que cada<br />

vez mais e em numerosos setores, a qualificação social (saber-ser) tende a proceder a<br />

qualificação propriamente técnica. Para o estudioso (p.90/1), o novo perfil do profissional<br />

será constituído de três componentes característicos: um saber do processo, o<br />

conhecimento do procedimento técnico; um saber de especialização, capacidade para<br />

formalizar e transmitir uma análise ou constatação; e, um saber de gestão, que designa a<br />

capacidade para administrar uma situação, através do aumento de seu espectro de<br />

conhecimentos, integração de normas de trabalho distintas e condições de diálogo com<br />

pessoas diferentes. O que, para ele, era " tudo o que aparentemente o trabalhador não era<br />

obrigado a fazer antes".<br />

Valores Policiais, a prática <strong>policial</strong> e a <strong>cidadania</strong>. 25


Há dois anos atrás, ao realizar aula inaugural do Curso Avançado de Administração<br />

Policial, na Academia de Polícia Militar em Porto Alegre, o Cel RR Jerônimo Santos<br />

Braga, ex - Comandante da Brigada Militar e Diretor da FAMECOS/PUC-RS, fez um<br />

alerta, que merece reflexão, de que as Instituições somente são permanentes enquanto<br />

importantes e necessárias para as sociedades onde prestam seus serviços. Todas as<br />

organizações tem sua hora da verdade. Para a Polícia Militar, essa hora está representada no<br />

ato individual do servidor na prestação de serviço a cada cidadão. Na realidade, a imagem<br />

da Corporação é construída na soma das intervenções individuais, quer na resposta a uma<br />

ligação telefônica, no esclarecimento de uma informação, ou ainda, no encaminhamento de<br />

uma ocorrência <strong>policial</strong>.<br />

Um ganho complementar, neste contexto, consiste em aumentar os espaços de<br />

participação e interação, o que contribui para minimizar a violência <strong>policial</strong>. Segundo<br />

estudo da psicóloga SPANIER AMADOR (1999), a violência <strong>policial</strong> constitui parte dos<br />

mecanismos de defesa, exercido coletivamente pelos policiais, para continuar trabalhando<br />

no limite do equilíbrio psíquico. O uso desse mecanismo de defesa é decorrente de pressões<br />

e desafios que impõe rigorosos limites à expressão da subjetividade dos policiais no<br />

trabalho, oferecendo-lhes escassas possibilidades para encaminhar seu sofrimento de forma<br />

criativa. Entre as soluções apontadas, a Mestra em Psicologia Social e da Personalidade<br />

aponta ( p.134/5): " É preciso criar espaços no trabalho para circulação da palavra,<br />

tornando possível transformar a organização do trabalho e os mecanismos defensivos,<br />

utilizados pelos policiais e permitindo que a repetição perpetrada pela violência seja<br />

substituída pela efetiva criação no trabalho, que configura o genuíno contexto da<br />

<strong>cidadania</strong>".<br />

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Cada vez mais, deve haver um esforço dos organismos policiais de profissionalisar a<br />

atividade e investir na qualificação do seu profissional. Especialmente, através de um<br />

programa de desenvolvimento de recursos humanos com capacidade de intregar-se ao<br />

exercício da reflexão crítica, da percepção e análise do contexto, ultrapassando as fronteiras<br />

do seu mundo e de sua organização, participando efetivamente da realidade social.<br />

A sociedade brasileira tem discutido o seu sistema <strong>policial</strong>, e com freqüência, surgem<br />

proposta de construir uma nova polícia. De alguns, por que querem uma polícia que resolva<br />

o problema da criminalidade. Outros, por que querem uma polícia melhor prestadora de<br />

serviço. Uma nova polícia não resolverá o problema da criminalidade, pois trabalha com as<br />

conseqüências e não com as causas. E a melhoria na prestação do serviço, independente do<br />

modelo <strong>policial</strong> escolhido, único ou múltiplo, militar ou civil, pois, qualquer que seja a<br />

escolha, não terá grandes possibilidades de êxito se não for acompanhada de investimentos<br />

adequados na qualificação e valorização do <strong>policial</strong> e na modernização da polícia.<br />

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