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MITO E TERRITORIALIDADE: O MONUMENTO NACIONAL E A COMUNIDADE RURAL DA SERRA DA BARRIGA<br />
As famílias expressam o desejo de participar<br />
das discussões ou de serem chamadas para<br />
reuniões sobre os projetos para a localidade.<br />
Vê-se, portanto, que a população habitante<br />
tem, em sua maioria, razões e interesses<br />
diferentes do poder público e do movimento<br />
negro para a área. Para tanto,<br />
apresentam-se três razões que se propõem a<br />
explicar essa afirmação: o fato de se ter ignorado<br />
a comunidade local no processo do tombamento<br />
e de querer excluí-la permanentemente<br />
do território; o fato de ser o episódio que<br />
motivou o tombamento um fato histórico de<br />
relevância restrita a um grupo étnico específico,<br />
portanto, ser uma tradição inventada,<br />
que pretende tornar-se comum para ganhar<br />
o status de coletiva, integrante da diversidade<br />
cultural e da identidade nacionais; e o<br />
fato de o tombamento da Serra da Barriga<br />
representar um meio de comunicar o desejo<br />
latente da pessoa negra de ser reconhecida<br />
nesse processo e de deflagrar a luta pela<br />
mudança social, na busca e na ampliação de<br />
novos espaços e no combate ao racismo, ou<br />
seja, é de interesse restrito ao segmento negro.<br />
As duas primeiras explicações remetem<br />
diretamente ao ato da institucionalização do<br />
patrimônio, e das dialógicas e dos cerceamentos<br />
nascidos com ele.<br />
É interessante salientar que um tombamento<br />
não exclui um morador de seu território.<br />
No entanto, restringe o seu usufruto,<br />
de acordo com regras que visam evitar a<br />
descaracterização do bem protegido. Isso quer<br />
dizer que a permanência de uma comunidade<br />
é permitida no espaço protegido desde que<br />
atenda e/ou observe a manutenção do bem<br />
patrimonial. Isso é possível por meio de programas<br />
que a integrem ao novo sentido simbólico<br />
aplicado ao território. Para tanto, é importante<br />
analisar o sistema de representações<br />
locais, reconhecer que a comunidade também<br />
destina valor e significado próprios ao lugar,<br />
e não apenas promover a disjunção forçada<br />
entre a natureza e a cultura. Mais importante<br />
ainda é perceber que o fazer e o saber de uma<br />
comunidade, a sua tradição, a sua cultura e a<br />
sua história se instituíram primeiro que aquela<br />
tradição que se “inventou” formalmente<br />
com o tombamento.<br />
Para que o monumento tenha significado<br />
para a população local é necessário que<br />
haja, ao menos, uma interação sígnica entre<br />
as razões e os valores atribuídos pelos agentes<br />
que propuseram o tombamento e o grupo<br />
social habitante da área tombada. Feito<br />
isso, é possível que a simbologia do lugar,<br />
acionada com a transformação do território<br />
em monumento e patrimônio nacionais, encontre<br />
ou reconheça sentimentos e conhecimentos<br />
que possam ser compartilhados.<br />
A Serra da Barriga, vista como território,<br />
revela uma nova história de vida e<br />
de luta pela liberdade, e, como patrimônio,<br />
guarda uma antiga história de luta pela liberdade,<br />
esta última dimensão está envolta<br />
numa inextricável dinâmica econômica, política<br />
e social que ameaça de subsistência a<br />
sua sustentabilidade territorial.<br />
A Serra da Barriga enverga, assim,<br />
uma gama de problemáticas instituídas pelo<br />
conflito de interesses no uso do seu território<br />
e a razão principal dessa complexa teia<br />
de relações é a transformação do fenômeno<br />
histórico do Quilombo dos Palmares em um<br />
fenômeno mítico de luta social e política.<br />
*Rosa Lucia Lima<br />
da Silva Correia<br />
Mestra pelo Programa<br />
Regional de Mestrado<br />
em Desenvolvimento e<br />
Meio Ambiente da<br />
Universidade Federal de<br />
Alagoas e professora da<br />
Faculdade Alagoana de<br />
Tecnologia<br />
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