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REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DA DIÁSPORA AFRICANA<br />
no país. A partir da formulação original que<br />
procurou explicar as relações raciais modernas<br />
no Brasil (Freyre, 1933), três conseqüências<br />
têm permanecido: a nulificação do conceito<br />
de raça como uma categoria analítica válida<br />
para a análise da formação social do país; a<br />
redução do racismo a um epifenômeno das<br />
desigualdades sociais, sem motivação ou<br />
racionalidade próprias; e o descrédito do<br />
ativismo negro como uma manifestação legítima<br />
das populações afro-descendentes no país.<br />
Esses três fatores, profundamente<br />
inter-relacionados, deram origem a uma<br />
epistemologia do racismo que acontece no<br />
Brasil como algo particular e imparcial e sobre<br />
a qual somente são percebidos e levados<br />
em conta, como seus elementos formadores,<br />
os indicadores de desigualdades raciais ou<br />
as suas conseqüências.<br />
Assim, historicamente, as idéias e as<br />
teorias que formam o campo de estudo das<br />
“relações raciais” no Brasil concebem e argumentam<br />
sobre formas locais de racismo,<br />
principalmente, a partir de suas conseqüências.<br />
Para a primeira geração reconhecida –<br />
Thales de Azevedo, Gilberto Freyre, Donald<br />
Pierson e Arthur Ramos –, a base para analisar<br />
a formação racial brasileira foi seu “excepcionalismo<br />
racial” (Hanchard, 1994), negando<br />
que raça tivesse um papel relevante<br />
nas profundas divisões existentes na sociedade<br />
(atribuídas em sua maior parte à classe)<br />
e pressupondo que diferenças e conflitos<br />
raciais agudos teriam sido dissolvidos<br />
por causa da extensa miscigenação.<br />
O determinismo econômico da segunda<br />
geração, também conhecida como a “Escola<br />
de São Paulo” – representada principalmente<br />
por Roger Bastide, Fernando Henrique<br />
Cardoso, Carl Degler, Florestan Fernandes,<br />
Octavio Ianni e Charles Wagley –, utilizou uma<br />
abordagem marxista para analisar o lugar ocupado<br />
pelas pessoas negras durante o processo<br />
de industrialização brasileira. Essa linha<br />
de pensamento esteve fortemente influenciada<br />
pela noção de que a sociedade brasileira<br />
era, em sua origem, menos racista ou menos<br />
dividida pelo racismo do que em outros países<br />
(os estudos sobre o Projeto Unesco –<br />
Organização das Nações Unidas para a Educação,<br />
a Ciência e a Cultura – são exemplares<br />
a esse respeito).<br />
Assim sendo, as desigualdades raciais<br />
encontradas por esses pesquisadores foram<br />
interpretadas como uma conseqüência<br />
residual da escravidão e como um sinal de<br />
anomia entre famílias negras, uma abordagem<br />
criticada atualmente como criadora de uma<br />
síndrome de “patologia cultural” (ver Andrews;<br />
Hanchard). Essas desigualdades também estariam<br />
destinadas a desaparecer à medida que<br />
a industrialização e a urbanização modernizassem<br />
o país.<br />
A geração estruturalista do começo da<br />
década de 1970 – Carlos Hasenbalg, Peggy<br />
Lovell e Nelson do Valle Silva – encontrou<br />
evidências plenas de desigualdades raciais e<br />
formulou a hipótese de que essas ocupavam<br />
um lugar central nas relações econômicas. No<br />
entanto, como apontado por Roberto Motta<br />
(2000), os indicadores sólidos encontrados<br />
por Carlos Hasenbalg foram atribuídos aos<br />
“efeitos de sutis práticas discriminatórias e<br />
outros mecanismos racistas”, que nunca foram<br />
determinados exatamente em sua origem,<br />
características e formas de funcionamento.<br />
Esse cenário não muda radicalmente<br />
na geração contemporânea neo-freyreana de<br />
intelectuais “pós-relativistas” que dominam<br />
o campo das “relações raciais” na academia<br />
brasileira. Com pequenas<br />
variações, os<br />
mecanismos que criam<br />
as desigualdades<br />
raciais permanecem<br />
inexplicados enquanto<br />
as formas do<br />
racismo brasileiro<br />
são teorizadas em<br />
termos relativos e<br />
relacionais.<br />
Nessa corrente,<br />
o racismo no<br />
Brasil é distinto de<br />
outras formas de racismo<br />
e, portanto,<br />
deve ser interpretado<br />
como tal e também<br />
como se existisse independente<br />
de estruturas<br />
sociais locais,<br />
supranacionais ou<br />
internacionais. O racismo brasileiro também<br />
ocorreria, principalmente, como uma relação autônoma<br />
de caráter privado e mediado (e não como<br />
uma interpelação no sentido althusseriano que<br />
reflete e reproduz, em grande parte, estruturas<br />
de dominação existentes da sociedade),<br />
entre indivíduos (aqueles que praticam e<br />
aqueles que reagem à discriminação) com base<br />
na classe, cor da pele, renda, educação, emprego,<br />
e assim por diante. Logo, o racismo<br />
As idéias e as<br />
teorias que<br />
formam o campo<br />
de estudo das<br />
“relações raciais”<br />
no Brasil concebem<br />
e argumentam<br />
sobre formas locais<br />
de racismo<br />
JJAN / MAR 2007 101