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REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DA DIÁSPORA AFRICANA cultural/nacional não pode ser feita, de acordo com Paul Gilroy, sem que se desenvolva uma nova perspectiva sobre aquela formação como um todo. Essa formulação parece sugerir que a Diáspora Africana, como campo de estudo e projeto político, irá mudar e ampliar seus sentidos e repertório de experiências à medida que refine suas ferramentas teóricas e metodológicas aplicadas à combinação de vários processos locais de formação racial, racialização, resistência e contestação. No entanto, ao analisar experiências localizadas, a teoria e a metodologia da Diáspora Africana também procuram ultrapassar especificidades de maneira a evitar os paradigmas dominantes que determinam o estudo das populações negras em outras disciplinas. Desse modo, os trabalhos de Paul Gilroy (1993) e Cedric Robinson (2000), por exemplo, embora articulem visões e projetos diaspóricos africanos distintos, criticam e vão além das “narrativas uniformes de deslocamento, dominação e processos de construção nacional centrados na expansão européia e no surgimento do capitalismo racial” (Patterson; Kelley, 2000). Os mesmo autores apontam para o fato de que Paul Gilroy e Cedric Robinson se engajam em uma compreensão dialética do sistema transatlântico como um processo que ajudou a : [...] forjar o conceito de África e criar uma identidade “africana”, mas também [...] o mesmo processo foi central para a formação de uma identidade européia/”branca” no Novo Mundo […] Portanto, assim como a Europa inventou a África e o Novo Mundo, não podemos compreender a invenção da Europa e do Novo Mundo sem a África e os povos africanos. No seu trabalho sobre o Brasil, Kim Butler (1998) parece ter se baseado parcialmente em tal perspectiva crítica ao aplicar uma teoria e uma metodologia de estudos diaspóricos comparados e estruturados em cinco dimensões de pesquisa diaspórica: razões para e condições de dispersão; relação com o “lugar de origem” (entendido como a África); relação com o país de origem; inter-relações com as comunidades da diáspora; e estudos comparativos de diferentes diásporas. A preocupação central de Kim Butler, no entanto, é com uma estrutura que permita a definição de um determinado grupo ou a formação como uma diáspora (em vez de um enclave étnico ou uma comunidade imigrante), além das possibilidades de análise comparativa. Essa estrutura ainda sugere que seja levado em consideração que comunidades diaspóricas também contribuem e participam na construção de outras diásporas, e que comunidades diaspóricas africanas, em particular, não deveriam ter suas formações examinadas apenas com relação aos temas da escravidão e da raça. Outras contribuições Alguns outros autores têm feito contribuições para a formação da teoria e da metodologia da Diáspora Africana. Entre os trabalhos já mencionados, o influente conceito do “Atlântico Negro” (Black Atlantic), de Paul Gilroy, sugere uma unidade original de análise sobre a qual a movimentação e as trocas de pessoas e mercadorias têm ocorrido por séculos (esse conceito tem sido criticado com base no fato de que os “sujeitos negros” que Paul Gilroy escolhe como material para sua elaboração teórica são, em sua maioria, intelectuais e artistas negros norteamericanos com habilidade de se locomover na parte norte do Oceano Atlântico). A principal contribuição do trabalho de Cedric Robinson é a caracterização de uma tradição radical negra (black radical tradition) que teria emanado da África e sido adaptada e reconstruída por meio das lutas de resistência negra no Novo Mundo (esse conceito tem sido criticado por sua noção de agência baseada principalmente em estereótipos masculinos). Os trabalhos de Stuart Hall (1990), David Scott (1999) e Edwards (2001) movemse em direção a uma noção mais globalizada de Diáspora Africana, que se distingue de uma “fundação antropológica verificável” (Edwards) e articula a idéia de diáspora como “disputas corporificadas (embodied disputes) entre populações negras através do globo sobre o próprio significado de ‘África’, da escravidão e do termo ‘identidade negra’” (ver Scott, 1999; Edwards, 2001). Nessa estrutura de análise global, a noção de articulação de Stuart Hall é utilizada para eliminar questões sobre continuidade cultural. Por último, Gordon (2003), Mark Anderson (2003) e outros intelectuais associados à Escola de Austin utilizam-se de uma estrutura teórica e metodológica ESPAÇO ABERTO JAN / MAR 2007 99

ESPAÇO ABERTO ESPAÇO ABERTO eminentemente transnacional e que combina um amplo leque de questões interdisciplinares e conceituais (as noções de interpelação racial e autodeterminação racial, teoria crítica de raça, formação racial) e abordagens posicionadas (interseccionalidade e feminismo negro, antropologia ativista). Raízes, rotas e conhecimento A teoria e a metodologia dos estudos da Diáspora Africana consolidam um movimento crítico, iniciado na década de 1960, em estudos antropológicos em âmbito mundial. Como parte dessa agenda revisionista, preocupada com debates teóricos no interior da disciplina, antropólogos e antropólogas questionavam, em muitos outros aspectos, sua própria participação nas disputas políticas pela definição de cânones. Desde então, tem-se criticado a etnografia, principal ferramenta da antropologia, como parte de um amplo processo de reinventar a antropologia. Debates têm tratado de uma variedade de temas, como as posições distintas entre pesquisadores (outsiders) de uma dada comunidade e pesquisados (insiders) dessa mesma comunidade; perspectivas feministas; o papel do que se convencionou chamar de antropólogos nativos; a “nova” antropologia de meados da década de 1970; noções de hierarquia, lugar e voz na teoria antropológica; trabalho de campo e antropologia reflexiva. Embora esses sejam apenas alguns dos temas em questão, não foi até a publicação de Decolonizing anthropology: moving forward toward and anthropology for liberation (Descolonizando a antropologia: avançando em direção a uma antropologia da libertação) – organizado por Faye Harrison e publicado originalmente em 1991 – que uma crítica completa da antropologia foi articulada por antropólogos(as) não-brancos(as) sobre o seu lugar na disciplina e suas práticas de pesquisa em comunidades não-brancas. Embora ainda estivessem influenciados pelo conceito de “antropólogo nativo”, um dos objetivos principais do livro era “re-avaliar e, possivelmente, transcender as limitações da antropologia crítica e radical que emergiu dos debates e das experimentações das duas últimas décadas” (Harrison, 1991). Transcender essas críticas à antropologia significou, entre outros pontos, articular uma posição política sobre a marginalização e o silenciamento passado e presente de intelectuais não-brancos(as) e trazer à tona a importância de ter as vozes e os trabalhos desses(as) pesquisadores(as) engajados(as) na criação de novos paradigmas que pudessem transformar a antropologia “de uma tradição intelectual do Ocidente em uma disciplina que abrace as tradições intelectuais críticas e documente as experiências dos povos do Terceiro Mundo” (Moses, 1997). Os pontos de contato entre os projetos políticos dessa publicação e aquele articulado pelos estudos da Diáspora Africana (além da óbvia e forte presença da antropologia nessa última) têm clara base teórica. Conforme argumentado por Faye Harrison (1991), a trajetória teórica do livro foi baseada em quatro elementos principais: a economia política neomarxista; experimentações em análises etnográficas interpretativas e reflexivas; um feminismo que sublinha o impacto de raça e classe sobre gênero; e as tradições de pesquisas de acadêmicos(as) negros(as) radicais, assim como de outros e outras intelectuais do Terceiro Mundo, que reconhecem as conexões entre raça e outras formas insidiosas de diferença, notadamente classe e gênero. Tais elementos teóricos estão muito próximo dos argumentos formulados por autores como Herman Bennet, Paul Gilroy, Gordon, Michael Hanchard e Robin Kelley, em suas pesquisas e em seus textos com base em um arcabouço referenciado na teoria e na metodologia da Diáspora Africana. Convergências políticas são visíveis na compreensão em comum sobre a importância de desafiar os cânones ocidentais que regulam as ciências sociais e disciplinas como história, antropologia, sociologia e ciência política. Ainda mais importante, o que Faye Harrison (1991) define como “disputas políticas pela definição de cânones” aparece como uma tarefa predominante das pesquisas na área de Estudos da Diáspora Africana, que procura re-avaliar a história moderna a partir de uma perspectiva africana diaspórica. Estudos no Brasil Problemas similares no processo de produção do conhecimento se repetem, com características peculiares, no estudo das populações negras no Brasil, delineados tanto pela inserção da academia local no cenário internacional como pelo papel central que a tradição de estudos da “questão racial” adquire 100 DEMOCRACIA VIVA Nº 34

ESPAÇO<br />

ABERTO<br />

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eminentemente transnacional e que combina<br />

um amplo leque de questões interdisciplinares<br />

e conceituais (as noções de interpelação racial<br />

e autodeterminação racial, teoria crítica<br />

de raça, formação racial) e abordagens<br />

posicionadas (interseccionalidade e feminismo<br />

negro, antropologia ativista).<br />

Raízes, rotas e conhecimento<br />

A teoria e a metodologia dos estudos da<br />

Diáspora Africana consolidam um movimento<br />

crítico, iniciado na década de 1960, em estudos<br />

antropológicos em âmbito mundial.<br />

Como parte dessa agenda revisionista, preocupada<br />

com debates teóricos no interior da<br />

disciplina, antropólogos e antropólogas questionavam,<br />

em muitos outros aspectos, sua<br />

própria participação nas disputas políticas<br />

pela definição de cânones.<br />

Desde então, tem-se criticado a<br />

etnografia, principal ferramenta da antropologia,<br />

como parte de um amplo processo de<br />

reinventar a antropologia. Debates têm tratado<br />

de uma variedade de temas, como as posições<br />

distintas entre pesquisadores<br />

(outsiders) de uma dada comunidade e<br />

pesquisados (insiders) dessa mesma comunidade;<br />

perspectivas feministas; o papel do<br />

que se convencionou chamar de antropólogos<br />

nativos; a “nova” antropologia de meados<br />

da década de 1970; noções de hierarquia,<br />

lugar e voz na teoria antropológica; trabalho<br />

de campo e antropologia reflexiva.<br />

Embora esses sejam apenas alguns dos<br />

temas em questão, não foi até a publicação de<br />

Decolonizing anthropology: moving forward<br />

toward and anthropology for liberation<br />

(Descolonizando a antropologia: avançando<br />

em direção a uma antropologia da libertação)<br />

– organizado por Faye Harrison e publicado<br />

originalmente em 1991 – que uma crítica<br />

completa da antropologia foi articulada por<br />

antropólogos(as) não-brancos(as) sobre o seu<br />

lugar na disciplina e suas práticas de pesquisa<br />

em comunidades não-brancas. Embora ainda<br />

estivessem influenciados pelo conceito de “antropólogo<br />

nativo”, um dos objetivos principais<br />

do livro era “re-avaliar e, possivelmente,<br />

transcender as limitações da antropologia crítica<br />

e radical que emergiu dos debates e das<br />

experimentações das duas últimas décadas”<br />

(Harrison, 1991).<br />

Transcender essas críticas à antropologia<br />

significou, entre outros pontos, articular<br />

uma posição política sobre a marginalização<br />

e o silenciamento passado e presente de intelectuais<br />

não-brancos(as) e trazer à tona a importância<br />

de ter as vozes e os trabalhos<br />

desses(as) pesquisadores(as) engajados(as)<br />

na criação de novos paradigmas que pudessem<br />

transformar a antropologia “de uma tradição<br />

intelectual do Ocidente em uma disciplina<br />

que abrace as tradições intelectuais<br />

críticas e documente as experiências dos povos<br />

do Terceiro Mundo” (Moses, 1997).<br />

Os pontos de contato entre os projetos<br />

políticos dessa publicação e aquele articulado<br />

pelos estudos da Diáspora Africana<br />

(além da óbvia e forte presença da antropologia<br />

nessa última) têm clara base teórica. Conforme<br />

argumentado por Faye Harrison (1991),<br />

a trajetória teórica do livro foi baseada em<br />

quatro elementos principais: a economia política<br />

neomarxista; experimentações em análises<br />

etnográficas interpretativas e reflexivas;<br />

um feminismo que sublinha o impacto de raça<br />

e classe sobre gênero; e as tradições de pesquisas<br />

de acadêmicos(as) negros(as) radicais,<br />

assim como de outros e outras intelectuais<br />

do Terceiro Mundo, que reconhecem as conexões<br />

entre raça e outras formas insidiosas<br />

de diferença, notadamente classe e gênero.<br />

Tais elementos teóricos estão muito<br />

próximo dos argumentos formulados por autores<br />

como Herman Bennet, Paul Gilroy,<br />

Gordon, Michael Hanchard e Robin Kelley,<br />

em suas pesquisas e em seus textos com base<br />

em um arcabouço referenciado na teoria e na<br />

metodologia da Diáspora Africana. Convergências<br />

políticas são visíveis na compreensão<br />

em comum sobre a importância de desafiar<br />

os cânones ocidentais que regulam as<br />

ciências sociais e disciplinas como história,<br />

antropologia, sociologia e ciência política.<br />

Ainda mais importante, o que Faye Harrison<br />

(1991) define como “disputas políticas pela<br />

definição de cânones” aparece como uma tarefa<br />

predominante das pesquisas na área de<br />

Estudos da Diáspora Africana, que procura<br />

re-avaliar a história moderna a partir de uma<br />

perspectiva africana diaspórica.<br />

Estudos no Brasil<br />

Problemas similares no processo de produção<br />

do conhecimento se repetem, com características<br />

peculiares, no estudo das populações<br />

negras no Brasil, delineados tanto pela<br />

inserção da academia local no cenário internacional<br />

como pelo papel central que a tradição<br />

de estudos da “questão racial” adquire<br />

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