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ESPAÇO ABERTO<br />
Rosa Lucia Lima da Silva Correia* 1<br />
Mito<br />
e <strong>territorialidade</strong>:<br />
o monumento nacional<br />
e a comunidade rural<br />
da Serra da Barriga<br />
A instalação do primeiro engenho de açúcar em território alagoano aconteceu por volta de<br />
1 Este artigo foi baseado na<br />
dissertação de mestrado que,<br />
sob a orientação da professora<br />
PaulaYone Stroh, foi apresentada<br />
ao Programa Regional<br />
de Mestrado em Desenvolvimento<br />
e Meio Ambiente da<br />
Universidade Federal de<br />
Alagoas, em junho de 2005.<br />
1542 e ocasionou a entrada e a fixação em terras brasileiras de muitos negros e negras escravizados<br />
na África. Foi a atividade agrícola dos africanos nos engenhos que permitiu a dilatação<br />
territorial e a formação dos primeiros núcleos de povoamento da capitania de Pernambuco.<br />
Foram, também, as tentativas de controlar e destruir as revoltas e as sublevações dos negros<br />
na luta pela liberdade que possibilitou a exploração da região interiorana da mata.<br />
88 DEMOCRACIA VIVA Nº 34
ABERTO<br />
Graças a essas expedições e à resistência<br />
dos negros palmarinos, a região no entorno<br />
do rio Mundaú foi transformada numa<br />
das áreas mais prósperas da capitania. A<br />
caça aos escravos e às escravas fugidos<br />
ocasionou a descoberta de novas e melhores<br />
terras para a expansão da monocultura<br />
da cana-de-açúcar.<br />
O Quilombo dos Palmares e a saga<br />
travada no cume da Serra da Barriga, sede<br />
do quilombo, segundo os historiadores<br />
João José Reis e Flávio Gomes (1996), representaram<br />
o primeiro grande movimento<br />
de resistência à escravidão naquele que foi<br />
o maior quilombo brasileiro. Palmares foi<br />
assim chamado por estar incrustado numa<br />
floresta de palmáceas e por valer-se dessa<br />
espécie vegetal para suprir suas necessidades<br />
de alimentação, moradia e segurança.<br />
Foi instituído na capitania de Pernambuco,<br />
no século XVII, e administrado por<br />
Zumbi dos Palmares de 1678 a 1694, data<br />
da expedição que destruiu a fortaleza. No<br />
entanto, alguns historiadores dizem que o<br />
agrupamento ainda sobreviveu até 1740,<br />
bem depois da morte de Zumbi, que ocorreu<br />
em 1695.<br />
O Quilombo dos Palmares, paralelamente<br />
à invasão holandesa e à luta pela restauração<br />
do domínio lusitano, principalmente<br />
entre 1630 e 1645, pôs em xeque a economia<br />
açucareira e a vida nos engenhos e nos povoados<br />
que o circundavam. Foi um assentamento<br />
humano com dimensões político-administrativa,<br />
econômica, cultural, psicossocial<br />
e tecnológica, que, segundo Edison Carneiro<br />
(1947), formou-se com a mistura de negros<br />
e negras oriundos de distintos grupos<br />
africanos. Porém, configurava uma sociedade<br />
que admitia também a presença de indivíduos<br />
brancos, mulatos, índios e caboclos<br />
descontentes, marginalizados ou foragidos<br />
das malhas do sistema colonial e do poder<br />
patriarcal, organizados contra uma sociedade<br />
branca e exclusivista.<br />
Palmares representava<br />
uma ameaça<br />
à sociedade colonial<br />
porque a sua<br />
simples existência<br />
negava a ordem escravocrata,<br />
causava<br />
medo e desgaste aos<br />
valores sociais, econômicos<br />
e culturais<br />
da sociedade latifundiário-escravista,<br />
como afirma Clóvis<br />
Moura (2001).<br />
De acordo<br />
com Nina Rodrigues<br />
(1982) e Décio Freitas<br />
(1984), embora a<br />
estrutura cultural e<br />
econômica do Quilombo<br />
dos Palmares<br />
pareça e seja retratada<br />
como o avesso da<br />
sociedade colonial,<br />
suas organizações<br />
política e social apresentavam<br />
muitas semelhanças<br />
com a<br />
vida da colônia. Nessa<br />
perspectiva, Manuel<br />
Correia de Andrade<br />
(2001) afirma<br />
que os quilombos,<br />
na realidade, não foram<br />
modelos de radicalismo<br />
com relação<br />
à ordem colonial ou modelos de<br />
sociedade construída com base numa democracia<br />
social, já que neles permaneciam os<br />
hábitos africanos de poligamia, a dominação<br />
masculina e, especialmente, a escravidão. Os<br />
escravos e escravas do quilombo eram um<br />
segmento formado pelos negros e pelas negras<br />
aprisionados nas senzalas pelos<br />
quilombolas livres.<br />
O Quilombo dos<br />
Palmares,<br />
paralelamente à<br />
invasão holandesa<br />
e à luta pela<br />
restauração do<br />
domínio lusitano,<br />
principalmente<br />
entre 1630 e<br />
1645, pôs em<br />
xeque a economia<br />
açucareira e a vida<br />
nos engenhos e<br />
nos povoados que<br />
o circundavam<br />
JAN / MAR 2007 89
ESPAÇO<br />
ABERTO<br />
ESPAÇO ABERTO<br />
A reconstrução<br />
política nacional,<br />
na década de 70,<br />
acenou com um<br />
espaço mais<br />
amplo de ação<br />
dos movimentos<br />
sociais e de<br />
politização<br />
geral da<br />
sociedade.<br />
Nesse período,<br />
os grupos<br />
negros se<br />
reorganizaram<br />
No entanto, o que se ressalta – e que<br />
talvez seja o mais importante no estudo de<br />
Palmares – é a sua representação, principalmente,<br />
para a população escrava, que antes<br />
trabalhava até a exaustão nas lavouras de<br />
cana-de-açúcar, sofrendo todos os tipos de<br />
agruras, maus-tratos e atos contra a dignidade<br />
humana. A quilombagem era uma reação<br />
que respondia à altura a violência do<br />
aparelho escravista. Por esse motivo, Clóvis<br />
Moura diz ser importante<br />
analisar o<br />
fenômeno “como<br />
um continuum de<br />
desgaste permanente<br />
às forças sociais,<br />
culturais, políticas<br />
e econômicas<br />
da escravidão e<br />
dos seus valores”<br />
(2001, p. 108). Para<br />
ele, a escravidão<br />
guarda o cerne da<br />
revolta, da contradição<br />
geradora da violência<br />
e das manifestações<br />
contra os<br />
agentes opressores.<br />
O núcleo de resistência<br />
central dessa<br />
ruptura é o quilombo,<br />
como unidade<br />
organizacional, e a<br />
quilombagem, como<br />
processo de protesto<br />
radical.<br />
O movimento<br />
da quilombagem<br />
não representa apenas<br />
a capacidade<br />
humana de rebelarse<br />
de forma organizada<br />
contra a opressão,<br />
mas também a<br />
capacidade de provocar<br />
uma mudança,<br />
uma transformação<br />
de determinada realidade. É nesse sentido que<br />
o Quilombo dos Palmares se tornou um fenômeno<br />
histórico de luta pela liberdade e pelos<br />
direitos sociais dos negros e de outros indivíduos<br />
oprimidos e excluídos.<br />
Experiências do passado como essa<br />
– representantes da saga de um personagem<br />
histórico que proporciona uma ruptura<br />
com um determinado modo de vida e instaura<br />
uma nova realidade, especialmente diante<br />
de uma situação de tolhimento ou de<br />
usurpação de algo indispensável à vida –,<br />
favorecem ou estimulam o desejo coletivo<br />
pela mudança. Elas atuam como um exemplo<br />
social, um modelo a ser seguido no caminho<br />
para a mudança ansiada, um mito.<br />
Enquanto a mudança não ocorre, a luta perdura<br />
e o mito, que representa o sonho e a<br />
esperança, continua vivo e assume um novo<br />
e original contexto sociopolítico.<br />
Isso explica porque o Quilombo dos<br />
Palmares e a data de morte de Zumbi, o dia<br />
20 de novembro, apresentam-se atualmente<br />
como um símbolo de luta do povo negro pelo<br />
alargamento da sua cidadania. Essa luta traz<br />
à tona os referidos fato e personagem históricos<br />
como modelos sociais de organização<br />
política e de comportamento. Nessa perspectiva,<br />
assumem um significado mítico. É, então,<br />
o 20 de novembro, e não o 13 de maio –<br />
dia da assinatura da Lei Áurea pela princesa<br />
Isabel e data oficial da libertação de escravos<br />
e escravas –, o marco histórico da resistência<br />
pela liberdade e o símbolo do anseio<br />
pela implantação de uma democracia social e<br />
plurirracial no Brasil. Essa luta, a princípio<br />
étnica, também tem sentido para qualquer outro<br />
cidadão ou cidadã brasileira que veja na<br />
imagem de Palmares uma representação de<br />
alternativa democrática.<br />
O historiador Sávio de Almeida considera<br />
que os quilombos, em especial o dos<br />
Palmares, são exemplos para a luta por uma<br />
existência (social, política, cultural, econômica<br />
e psicológica) digna e em defesa dos<br />
direitos sociais por inaugurar “um sentido<br />
de Brasil, até hoje válido” (apud MOURA,<br />
2001, p. 97). Assim, Zumbi e o Quilombo<br />
dos Palmares se transformaram em símbolos<br />
de valores míticos e ideológicos que<br />
impulsionam a luta, ou pelo menos a idéia<br />
dela, para criar possibilidades ou caminhos<br />
alternativos à exclusão social, em especial<br />
a do segmento negro.<br />
Enfim, o tombamento<br />
A reconstrução política nacional, na década<br />
de 1970, acenou com um espaço mais<br />
amplo de ação dos movimentos sociais e de<br />
politização geral da sociedade. Nesse período,<br />
os grupos negros se reorganizaram,<br />
associando-se num movimento mais amplo e<br />
fortemente coadunado. A força social do movimento<br />
negro fez-se a partir de dois núcleos<br />
90 DEMOCRACIA VIVA Nº 34
MITO E TERRITORIALIDADE: O MONUMENTO NACIONAL E A COMUNIDADE RURAL DA SERRA DA BARRIGA<br />
básicos: primeiro, a partir da solidariedade<br />
entre todos os grupos negros nacionais; segundo,<br />
por meio dos atores externos,<br />
cooptados pela sensibilidade com a causa<br />
e pelo fato de muitos ativistas negros tornarem-se<br />
pesquisadores e intelectuais da<br />
causa anti-racista, o que fez a luta negra<br />
mais forte e ativa.<br />
Além disso, fatos dessa época renovaram<br />
as forças militantes negras: novas<br />
discussões em torno da cultura nacional,<br />
reavivando concepções, como a de<br />
Mário de Andrade, e trazendo novas definições<br />
sobre cultura e patrimônio; a criação<br />
do Ministério da Cultura, incorporando<br />
o sistema Secretaria de Patrimônio<br />
Histórico e Artístico Nacional (Sphan)/Pró-<br />
Memória; a redemocratização, que garantiu<br />
espaços de expressão às minorias; a presença<br />
de grandes ativistas e militantes<br />
negros no governo, atuando direta e indiretamente<br />
no processo de tombamento da<br />
Serra da Barriga (como Olympio Serra, da<br />
Fundação Pró-Memória, Carlos Moura, assessor<br />
do ministro da Cultura e o deputado<br />
federal Abdias Nascimento).<br />
No final da década de 1970, Olympio<br />
Serra, ativista e pesquisador negro, juntamente<br />
com diversas entidades civis, iniciou<br />
uma campanha pela preservação e pelo tombamento<br />
da Serra da Barriga. O objetivo da<br />
campanha era a incorporação do sujeito negro<br />
na história oficial da nação com base<br />
em um ideário de igualdade social e racial,<br />
de conquista dos direitos sociais dos negros<br />
e das negras e de identidade pluriétnica<br />
e multicultural da nação brasileira. Como a<br />
corroborar com a situação, o governo promoveu<br />
ações direcionadas aos saberes e fazeres<br />
– históricos e/ou religiosos, e até bens<br />
de cunho ecológico – das culturas<br />
ameríndias e negras, na busca do conhecimento<br />
da identidade e da cultura autenticamente<br />
nacional.<br />
A conquista de um bem patrimonial<br />
baseado num feito heróico de um sujeito<br />
não-branco, inspirado na luta contra um sistema<br />
político e econômico opressor, simboliza<br />
a ruptura com os padrões de uma<br />
historiografia marcada por relatos e crônicas<br />
sobre a vida e os feitos de ricos senhores<br />
e senhoras brancos. Nesses textos, contava-se<br />
a história do país como a de uma<br />
nação pacífica, sem grandes conflitos, composta<br />
por um povo ordeiro e hegemônico.<br />
Essa era uma estratégia para fazer desaparecerem<br />
as contradições e os conflitos decorrentes<br />
das diferenças raciais e, sobretudo,<br />
da desigualdade social do país.<br />
Nesse entendimento, a instituição<br />
do tombamento da Serra da Barriga e sua<br />
ascensão a um monumento nacional inscrevem-se<br />
não só como perspectivas de reorientação<br />
do curso da história oficial, mas<br />
como espaço público<br />
de celebração da<br />
nação, não importando<br />
“se a situação<br />
ou o fato, realmente,<br />
remetem-se ao que se<br />
quer sacralizar, o que<br />
importa é que a simbolização<br />
seja eficaz<br />
e a situação ou o fato<br />
sejam vistos e percebidos<br />
como tendo realmente<br />
ocorrido”<br />
(KERSTEN, 2000,<br />
p. 49).<br />
Tratava-se,<br />
então, de reatualizar<br />
ou reinventar o passado<br />
para fortalecer<br />
a identidade negra e<br />
continuar a luta pela<br />
mudança social por<br />
parte do movimento<br />
negro; de reforçar<br />
os laços sentimentais,<br />
culturais, sociais<br />
e históricos<br />
homogeneizadores<br />
e apassivadores da<br />
nação pela incorporação<br />
da etnia e da<br />
cultura negra no conhecimento<br />
oficial<br />
sobre a civilização<br />
brasileira; de aproveitar<br />
o momento<br />
para fazer especulação<br />
política e econômica<br />
da área a ser<br />
tombada com a<br />
construção de um parque-memorial a Zumbi<br />
dos Palmares por parte do Estado.<br />
A Serra da Barriga passa, assim, da<br />
condição de território à categoria de<br />
semióforo nacional, algo que tem o poder<br />
de trazer à tona um fato vivido por meio de<br />
um fator do tempo presente; algo que é capaz<br />
de relacionar o visível e o invisível no<br />
Contava-se a<br />
história do país<br />
como a de uma<br />
nação pacífica,<br />
sem grandes<br />
conflitos,<br />
composta por um<br />
povo ordeiro e<br />
hegemônico. Era<br />
uma estratégia<br />
para fazer<br />
desaparecerem as<br />
contradições e os<br />
conflitos<br />
decorrentes das<br />
diferenças raciais<br />
JJAN / MAR 2007 91
ESPAÇO<br />
ABERTO<br />
tempo e no espaço e dar-lhes uma existência<br />
real e identitária. O lugar do semióforo<br />
é público, no qual “toda a sociedade possa<br />
comunicar-se celebrando algo comum a<br />
todos”, conservando “o sentimento de comunhão<br />
e unidade” nacionais (CHAUI,<br />
2000, p. 12-13). A Serra da Barriga assume<br />
a posição de um signo consensual, intrinsecamente<br />
relacionado à história da formação<br />
da nação,<br />
recebendo, portanto,<br />
a marca de patrimônio<br />
nacional.<br />
Para garantir<br />
a posse da União e,<br />
por conseguinte,<br />
do segmento negro<br />
ao bem patrimonial,<br />
a sociedade civil<br />
negra organizada<br />
– representada<br />
localmente pela<br />
Associação Cultural<br />
Zumbi e em âmbito<br />
nacional pelo<br />
Conselho do Memorial<br />
Zumbi – e<br />
algumas entidades<br />
públicas, como a<br />
Universidade Federal<br />
de Alagoas, o<br />
governo do estado<br />
de Alagoas, a prefeitura<br />
de União<br />
dos Palmares, a<br />
prefeitura de Maceió<br />
e o Instituto<br />
Histórico de Alagoas,<br />
uniram-se<br />
para realizar a<br />
(re)tomada da Serra<br />
da Barriga. O ato<br />
correspondeu a<br />
uma conjugação<br />
de esforços para<br />
implantação do<br />
Projeto Zumbi – Parque Histórico Nacional<br />
de Zumbi, que pretendia a construção<br />
de um grande memorial a Zumbi dos Palmares,<br />
e para a efetivação do tombamento<br />
da Serra da Barriga.<br />
Foram elaborados planos de preservação,<br />
de restauração e de uso da área do<br />
futuro Parque Histórico Nacional Zumbi e<br />
solicitado oficialmente o tombamento da<br />
Serra da Barriga ao Ministério da Cultura.<br />
O remodelado<br />
projeto, hoje<br />
denominado<br />
Memorial Zumbi,<br />
pretende,<br />
sobretudo, alçar o<br />
local no qual fora<br />
instalado o<br />
quilombo como<br />
pólo de atração<br />
turística e cultural<br />
de Alagoas, com a<br />
implantação de um<br />
museu vivo no platô<br />
da Serra da Barriga<br />
Assim, em 20 de novembro de 1985, o então<br />
ministro da Cultura, Aluísio Pimenta,<br />
homologou o tombamento de uma área de<br />
283 hectares na Serra da Barriga, localizada<br />
no município de União dos Palmares.<br />
Três anos depois, em 21 de março de 1988,<br />
a Serra da Barriga foi declarada monumento<br />
nacional – em obediência ao artigo 1º<br />
do Decreto 95.855/88.<br />
Conflito no território do monumento<br />
Em 1998, o governador recém-eleito do estado<br />
de Alagoas fez um novo resgate mítico<br />
do líder Zumbi no cenário político local. O<br />
político cunhou como bandeira do seu governo<br />
os slogans “Alagoas, terra da liberdade”<br />
e “Alagoas, terra de Zumbi dos Palmares”.<br />
Zumbi e o Quilombo dos Palmares<br />
foram estampados com dois propósitos:<br />
criar uma analogia do novo governo, que<br />
fez promessas de atender às demandas das<br />
minorias sociais do estado, com a suposta<br />
democracia social vivida no quilombo; e<br />
estabelecer uma sobreposição da imagem<br />
do herói negro à imagem de uma sociedade<br />
com valores e representações historicamente<br />
construídos pela aristocracia rural<br />
alagoana.<br />
Em 2001, o mesmo governador fez<br />
mais um resgate do antigo projeto de construção<br />
do monumento em memória a Zumbi<br />
dos Palmares (Projeto Zumbi). Diferente da<br />
proposta original, que pretendia instituir um<br />
plano de inclusão social e política do sujeito<br />
negro por ações de reconhecimento e valorização<br />
da cultura afrodescendente, o remodelado<br />
projeto, hoje denominado Memorial<br />
Zumbi, pretende, sobretudo, alçar o local no<br />
qual fora instalado o quilombo como pólo de<br />
atração turística e cultural de Alagoas, com<br />
a implantação de um museu vivo no platô da<br />
Serra da Barriga.<br />
O Memorial Zumbi prevê a construção<br />
de uma arquitetura semelhante à encontrada<br />
na época do quilombo, organizada em círculos<br />
e constituída por cãs e cercas de barro,<br />
madeira e palha. O museu pretende realizar<br />
feiras e shows artístico-culturais e promover<br />
uma rota ecológica pelas encostas e remanescentes<br />
da Mata Atlântica.<br />
O propósito central é fazer a “recuperação<br />
[simbólica] do patrimônio histórico e<br />
estimular a ampliação das fontes de renda<br />
da comunidade local” por meio do etnoecoturismo,<br />
explorando a paisagística cons-<br />
92 DEMOCRACIA VIVA Nº 34
MITO E TERRITORIALIDADE: O MONUMENTO NACIONAL E A COMUNIDADE RURAL DA SERRA DA BARRIGA<br />
tituição serrana e aproveitando o potencial<br />
imaterial, histórico e cultural guardado no lugar<br />
(ESTADO DE ALAGOAS, 2004).<br />
As ações do Memorial Zumbi,<br />
estabelecidas sob a orientação da Fundação<br />
Cultural Palmares, órgão responsável pela<br />
gestão do bem patrimonial, e executadas pela<br />
prefeitura de União dos Palmares e pelo governo<br />
do estado, impediram o avanço de todas<br />
as atividades agrícolas e de criação animal<br />
e a manutenção de algumas roças na área<br />
tombada, consideradas de negativo impacto<br />
ambiental por causa da forma rústica de manejo<br />
do solo. Ato digno e compreensível, salvo<br />
se o próprio poder público não insistisse<br />
em realizar a festa em comemoração ao Dia<br />
Nacional da Consciência Negra, em 20 de novembro,<br />
que reúne de 10 mil a 15 mil pessoas<br />
e gera centenas de quilos de lixo que se espalham<br />
pela área de preservação, no mesmo<br />
local onde proclamou os impedimentos ao<br />
cotidiano da comunidade lá residente. Tal<br />
medida alargou o antigo conflito entre os<br />
moradores do lugar e as três instâncias do<br />
governo envolvidas no projeto. As desavenças<br />
entre esses atores existe há 25 anos,<br />
quando do tombamento da Serra, que foi interpretado<br />
pelo movimento negro como reintegração<br />
de posse do lugar aos seus legítimos<br />
donos, os negros e as negras deste país,<br />
e pela comunidade local como usurpação do<br />
bem provedor do sustento familiar e<br />
mantenedor da sua história de vida.<br />
As roças e as plantações existentes<br />
dentro e no entorno da área tombada da Serra<br />
da Barriga constituem exploração econômica<br />
do bem patrimonial, de modo que são<br />
incompatíveis com a preservação do interesse<br />
histórico, artístico e paisagístico da área.<br />
Efetuado o tombamento, o bem torna-se<br />
inalienável, passível de intervenção estatal<br />
na propriedade ou na posse lá existente,<br />
condicionando e limitando o seu uso, de forma<br />
que “sem prévia autorização do Serviço<br />
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,<br />
não se poderá, na vizinhança de coisa<br />
tombada, fazer construção que impeça ou<br />
reduza a visibilidade [...] sob pena de ser<br />
mandado destruir a obra ou retirar o objeto’’<br />
(DIAS, [s.d], p.9).<br />
No entanto, a construção do museu<br />
temático com fins lucrativos também alterará<br />
negativamente o ambiente e o ecossistema<br />
locais. A esse respeito, as instâncias do<br />
próprio poder público entram em desacordo:<br />
a Fundação Cultural Palmares apóia a idéia<br />
de remoção das famílias de moradores do<br />
local; alguns técnicos do Iphan não têm certeza<br />
dos benefícios do museu; o governo do<br />
estado prevê a utilização da mão-de-obra<br />
dessas pessoas no projeto como guias e<br />
artesãos, afirmando contribuir para a geração<br />
de renda e o desenvolvimento econômico<br />
da região.<br />
O conflito toma proporções complexas<br />
porque grande parcela dos moradores<br />
do local resiste tanto à saída como à permanência<br />
com mudanças<br />
e restrições<br />
às suas atividades<br />
tradicionais referentes<br />
ao trato da<br />
terra, especialmente<br />
os mais velhos.<br />
Retrato da<br />
comunidade<br />
O território da Serra<br />
da Barriga, por ser<br />
um bem patrimonial<br />
e habitat de uma<br />
comunidade que enfrenta<br />
graves problemas<br />
com a carência<br />
de serviços<br />
públicos essenciais<br />
– afastada que está<br />
da área urbana por<br />
uma distância de<br />
quase 9 quilômetros<br />
– é, ao mesmo tempo,<br />
um lócus de<br />
produção simbólica<br />
e cultural nacional e<br />
de construção social<br />
e cultural local. Do<br />
total de famílias, 19<br />
residem na área<br />
tombada, ao lado<br />
das propriedades<br />
de grande e de médio<br />
porte. Elas integram<br />
um estrato social<br />
de posseiros e de ocupantes de terra<br />
pública e vivem em distintas condições de<br />
uso e de ocupação da área: posseiros que<br />
moram fora e plantam dentro da área tombada;<br />
posseiros que moram e plantam dentro<br />
da área tombada; ocupantes que moram<br />
fora e plantam dentro da área tombada; ocupantes<br />
que moram dentro da área tombada e<br />
As roças e<br />
plantações<br />
existentes dentro e<br />
no entorno da área<br />
tombada<br />
constituem<br />
exploração<br />
econômica do bem<br />
patrimonial, de<br />
modo que são<br />
incompatíveis com<br />
a preservação do<br />
interesse histórico,<br />
artístico e<br />
paisagístico da área<br />
ESPAÇO<br />
ABERTO<br />
JAN / MAR 2007 93
ESPAÇO<br />
ABERTO<br />
Entrevistas<br />
realizadas antes<br />
do início das<br />
obras do<br />
Memorial Zumbi<br />
com os(as)<br />
moradores(as) da<br />
Serra da Barriga<br />
indicam que não<br />
há identificação<br />
da comunidade<br />
com a simbologia<br />
histórica do lugar<br />
não plantam nada, mas trabalham nas terras<br />
de outrem, total ou parcialmente situadas<br />
na área tombada.<br />
Grande parte dos moradores da Serra<br />
da Barriga reside no local há mais de 20<br />
anos, antes mesmo de a Serra da Barriga<br />
ser tombada, em 1985. No entanto, dentro<br />
da área tombada, o maior número de famílias<br />
habita o lugar entre 10 e 20 anos. São<br />
famílias constituídas<br />
por filhas ou<br />
filhos de moradores<br />
antigos ou famílias<br />
migrantes<br />
de outras localidades,<br />
que vieram<br />
para o local em<br />
busca de terra. Todos,<br />
no entanto, tinham<br />
ouvido falar<br />
do tombamento e<br />
das restrições ao<br />
cultivo e à criação<br />
de animais à época<br />
de sua instalação.<br />
Segundo eles e<br />
elas, as informações<br />
eram vagas,<br />
boatos que ainda<br />
hoje não entendem<br />
muito bem. O pouco<br />
conhecimento<br />
que têm dessas<br />
restrições não anulou<br />
as perspectivas<br />
de estabelecimento<br />
de uma nova vida<br />
no lugar, seja trabalhando<br />
para donos<br />
de fazendas ou<br />
sítios da circunvizinhança,<br />
seja com<br />
a possibilidade de estabelecer e trabalhar<br />
na sua própria roça, especialmente para<br />
aqueles oriundos de lugares com terras menos<br />
férteis ou de uma vida miserável na periferia<br />
de alguma outra cidade dos estados<br />
de Alagoas ou Pernambuco.<br />
A população da Serra da Barriga não<br />
é remanescente do antigo Quilombo dos Palmares<br />
e suas necessidades não se identificam<br />
com as prioridades do projeto governamental<br />
e nem com o ideal do movimento negro<br />
para a área. Logo, ela não recebe auxílio estatal,<br />
tal como outras comunidades<br />
quilombolas de Alagoas, e tampouco a restauração<br />
da proposta de implantação do<br />
Memorial Zumbi no platô da Serra da Barriga<br />
lhe traz certeza de benefícios.<br />
Entrevistas realizadas antes do início<br />
das obras do Memorial Zumbi com os(as)<br />
moradores(as) da Serra da Barriga indicam que<br />
não há identificação da comunidade com a<br />
simbologia histórica do lugar. Quatro fatores<br />
interferem decisivamente nessa relação de<br />
alteridade: falta de políticas de comunicação<br />
que possibilitem o acesso a informações sobre<br />
os significados históricos e étnico-culturais<br />
atribuídos à área; alijamento da população<br />
local no processo de tombamento e de<br />
construção do Memorial Zumbi, sem que lhe<br />
seja dada a oportunidade de ser partícipe na<br />
gestão e na manutenção do monumento que<br />
fica em seu território; percepção de que o<br />
monumento do herói negro Zumbi dos Palmares<br />
representa um obstáculo à sobrevivência<br />
material, já que o tombamento cerceou a<br />
liberdade de cultivo da terra; o fato de que a<br />
história de Zumbi e a instituição do tombamento<br />
não se inscrevem como fato histórico<br />
e ato cultural socialmente.<br />
Assim, a identidade social da comunidade<br />
reside, incipiente e instavelmente, na sua<br />
relação de identificação com o território e na<br />
relação de alteridade que estabelece com o<br />
monumento. Segundo Stuart Hall (2000), uma<br />
identidade social apenas consegue se afirmar<br />
por meio da exclusão de algo, da repressão<br />
daquilo que a ameaça e no interior do jogo de<br />
poder e de interesse. Em verdade, os dois últimos<br />
fatores de não-identificação da comunidade<br />
com os significados do símbolo de<br />
Zumbi estão intimamente entrelaçados com<br />
as frustrações e com as promessas, reiteradamente<br />
acenadas e formais, de desenvolvimento<br />
e melhorias locais há 25 anos. Essa incredulidade<br />
se agrava com o alijamento da<br />
comunidade no processo de gestão da área<br />
tombada e com o constrangimento causado<br />
pelas festas em comemoração ao Dia Nacional<br />
da Consciência Negra, quando os visitantes<br />
chegam ao território depredando as roças,<br />
invadindo os quintais, produzindo um<br />
intenso barulho e um grande volume de lixo<br />
nas portas das casas.<br />
As expectativas da comunidade diante<br />
da construção do memorial giram em torno<br />
do acesso aos serviços públicos essenciais,<br />
a novas oportunidades e à participação na<br />
gestão da área. Essas aspirações, em sua<br />
maioria, são índices da pouca atuação do poder<br />
público na garantia dos direitos cidadãos.<br />
94 DEMOCRACIA VIVA Nº 34<br />
ESPAÇO
MITO E TERRITORIALIDADE: O MONUMENTO NACIONAL E A COMUNIDADE RURAL DA SERRA DA BARRIGA<br />
As famílias expressam o desejo de participar<br />
das discussões ou de serem chamadas para<br />
reuniões sobre os projetos para a localidade.<br />
Vê-se, portanto, que a população habitante<br />
tem, em sua maioria, razões e interesses<br />
diferentes do poder público e do movimento<br />
negro para a área. Para tanto,<br />
apresentam-se três razões que se propõem a<br />
explicar essa afirmação: o fato de se ter ignorado<br />
a comunidade local no processo do tombamento<br />
e de querer excluí-la permanentemente<br />
do território; o fato de ser o episódio que<br />
motivou o tombamento um fato histórico de<br />
relevância restrita a um grupo étnico específico,<br />
portanto, ser uma tradição inventada,<br />
que pretende tornar-se comum para ganhar<br />
o status de coletiva, integrante da diversidade<br />
cultural e da identidade nacionais; e o<br />
fato de o tombamento da Serra da Barriga<br />
representar um meio de comunicar o desejo<br />
latente da pessoa negra de ser reconhecida<br />
nesse processo e de deflagrar a luta pela<br />
mudança social, na busca e na ampliação de<br />
novos espaços e no combate ao racismo, ou<br />
seja, é de interesse restrito ao segmento negro.<br />
As duas primeiras explicações remetem<br />
diretamente ao ato da institucionalização do<br />
patrimônio, e das dialógicas e dos cerceamentos<br />
nascidos com ele.<br />
É interessante salientar que um tombamento<br />
não exclui um morador de seu território.<br />
No entanto, restringe o seu usufruto,<br />
de acordo com regras que visam evitar a<br />
descaracterização do bem protegido. Isso quer<br />
dizer que a permanência de uma comunidade<br />
é permitida no espaço protegido desde que<br />
atenda e/ou observe a manutenção do bem<br />
patrimonial. Isso é possível por meio de programas<br />
que a integrem ao novo sentido simbólico<br />
aplicado ao território. Para tanto, é importante<br />
analisar o sistema de representações<br />
locais, reconhecer que a comunidade também<br />
destina valor e significado próprios ao lugar,<br />
e não apenas promover a disjunção forçada<br />
entre a natureza e a cultura. Mais importante<br />
ainda é perceber que o fazer e o saber de uma<br />
comunidade, a sua tradição, a sua cultura e a<br />
sua história se instituíram primeiro que aquela<br />
tradição que se “inventou” formalmente<br />
com o tombamento.<br />
Para que o monumento tenha significado<br />
para a população local é necessário que<br />
haja, ao menos, uma interação sígnica entre<br />
as razões e os valores atribuídos pelos agentes<br />
que propuseram o tombamento e o grupo<br />
social habitante da área tombada. Feito<br />
isso, é possível que a simbologia do lugar,<br />
acionada com a transformação do território<br />
em monumento e patrimônio nacionais, encontre<br />
ou reconheça sentimentos e conhecimentos<br />
que possam ser compartilhados.<br />
A Serra da Barriga, vista como território,<br />
revela uma nova história de vida e<br />
de luta pela liberdade, e, como patrimônio,<br />
guarda uma antiga história de luta pela liberdade,<br />
esta última dimensão está envolta<br />
numa inextricável dinâmica econômica, política<br />
e social que ameaça de subsistência a<br />
sua sustentabilidade territorial.<br />
A Serra da Barriga enverga, assim,<br />
uma gama de problemáticas instituídas pelo<br />
conflito de interesses no uso do seu território<br />
e a razão principal dessa complexa teia<br />
de relações é a transformação do fenômeno<br />
histórico do Quilombo dos Palmares em um<br />
fenômeno mítico de luta social e política.<br />
*Rosa Lucia Lima<br />
da Silva Correia<br />
Mestra pelo Programa<br />
Regional de Mestrado<br />
em Desenvolvimento e<br />
Meio Ambiente da<br />
Universidade Federal de<br />
Alagoas e professora da<br />
Faculdade Alagoana de<br />
Tecnologia<br />
REFERÊNCIAS<br />
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MOURA, Clóvis (org). Os quilombos na dinâmica social do Brasil.<br />
Maceió: Edufal, 2001.<br />
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Brasiliense, 1947.<br />
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária.<br />
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.<br />
DIAS, Joelson. Parecer: “A situação fundiária dos imóveis em<br />
área tombada da Serra da Barriga”. Brasília, [s.d] (arquivos do<br />
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFAL).<br />
ELIADE, Myrcea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.<br />
ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares – subsídios para a<br />
sua história. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre:<br />
Companhia Editora Nacional, 1938.<br />
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Palmares. Disponível em: Acesso em 6<br />
de maio de 2004.<br />
FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. 5 ed. Porto<br />
Alegre: Mercado Aberto, 1984.<br />
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade. In: SILVA, Tomaz Tadeu<br />
da. Identidade e diferença. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p. 103-133.<br />
KERSTEN, Márcia Scholz de Andrade. Os rituais do<br />
tombamento e a escrita da história – bens tombados no Paraná<br />
entre 1938-1990. Curitiba: Editora da UFPR, 2000.<br />
MOURA, Clóvis (org). Os quilombos na dinâmica social do<br />
Brasil. Maceió: Edufal, 2001.<br />
MUNANGA, Kabengele (org). História do negro no Brasil: o negro<br />
na sociedade brasileira – resistência, participação, contribuição.<br />
Brasília: Fundação Cultural Palmares/MinC, CNPq, 2004.<br />
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por<br />
um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1996.<br />
RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. 6 ed. São<br />
Paulo: Nacional; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982.<br />
ABERTOJAN / MAR 2007 95
ESPAÇO ABERTO<br />
Athayde Motta *1<br />
Reflexões sobre<br />
a teoria da<br />
Diáspora<br />
Africana<br />
1 Agradeço pela orientação<br />
dos professores João Costa<br />
Vargas e Edmund T. Gordon,<br />
do Programa de Pós-Graduação<br />
em Estudos da Diáspora<br />
Africana, na Universidade do<br />
Texas, em Austin, EUA, durante<br />
a realização deste artigo.<br />
Agradeço também à récemdoutora<br />
Jacqueline Pólvora e<br />
as doutorandas Sonia Beatriz<br />
dos Santos e Raquel de Souza<br />
pela convivência nesse programa<br />
e pelas inteligentes<br />
discussões sobre a experiência<br />
negra no Brasil e as formas<br />
de luta de homens e<br />
mulheres negros(as) contra a<br />
infame opressão racial em<br />
nosso país.<br />
A proposta deste texto é discutir uma série de questões e problemas no estudo do ativismo<br />
negro contemporâneo no Brasil, especialmente as análises sobre a emergência de novos atores<br />
e novas agendas políticas. A questão central no debate científico e na sociedade civil pode ser<br />
analisada a partir de duas perspectivas: a contradição flagrante entre as atividades e os impactos<br />
das organizações negras contemporâneas na arena pública, por um lado, e as noções dominantes<br />
sobre a capacidade de organização política dos(as) negros(as) e o entendimento sobre<br />
a conformação racial brasileira, por outro – especialmente nas formas como essa pré-define<br />
termos como “identidade negra” e “política racial”. Essa contradição, visível em análises articuladas<br />
por intelectuais e formadores(as) de opinião localizados(as) em campos distintos, revela,<br />
em primeiro lugar, o cenário particularmente complexo no qual as organizações negras operam.<br />
Tal cenário também dificulta a percepção de mudanças nos movimentos sociais negros.<br />
96 DEMOCRACIA VIVA Nº 34
ABERTO<br />
Para além da análise de conjuntura imediata<br />
desse cenário político, as formas e o alcance<br />
da contradição apontada iluminam profundas<br />
divergências teóricas e políticas sobre o estudo<br />
da experiência negra no Brasil. Neste<br />
texto, será discutido como o paradigma analítico<br />
criado a partir da teoria da Diáspora Africana<br />
possibilita novas interpretações, não somente<br />
sobre a experiência negra no Brasil, mas<br />
também sobre a capacidade de organização<br />
política de homens negros e mulheres negras<br />
em uma sociedade particularmente contrária<br />
e resistente a tais manifestações.<br />
Teorias e suas conseqüências<br />
Como uma abordagem distinta para o estudo<br />
das populações negras e a constituição<br />
da “negritude” como um terreno particular<br />
que justapõe, simultaneamente, o processo<br />
que forma “outros” racializados, suas experiências<br />
e o processo subjetivo de formação<br />
de identidades, a teoria e a metodologia<br />
dos estudos da Diáspora Africana<br />
estão, em sua maior parte, ancoradas em um<br />
projeto intelectual de engajamento político<br />
que tenta re-situar criticamente o lugar da<br />
África, dos(as) africanos(as) e de seus descendentes<br />
na formação do Ocidente (West).<br />
Tal engajamento tem requerido contínuos<br />
esforços teóricos para lidar com a ampla<br />
dispersão em escala mundial de populações<br />
negras a partir de um “lugar de origem”, e<br />
com os múltiplos aspectos de suas experiências<br />
dentro e fora da África.<br />
Em termos históricos e epistemológicos,<br />
o “Ocidente” é um conceito fundamental<br />
no desenho da teoria e da metodologia<br />
contemporâneas da Diáspora<br />
Africana. Colin Palmer (1999) estabelece<br />
cinco grandes correntes diaspóricas vindas<br />
da África (que ocorreram em diferentes períodos<br />
e por razões distintas), mas considera<br />
que o início da Diáspora Africana “moderna”<br />
se dá no século XV, associado ao<br />
projeto colonial europeu de expansão que<br />
patrocinou a escravização de africanos e<br />
africanas ao redor do mundo.<br />
Esse momento histórico (que se estendeu<br />
por quatro séculos) foi expressão e característica<br />
fundamentais da formação do Ocidente,<br />
da ascensão<br />
dos períodos do<br />
Renascimento e do<br />
Iluminismo na Europa<br />
e do início da modernidade.<br />
Combinados,<br />
esses elementos<br />
articulam um discurso<br />
(de fato, uma<br />
ontologia particular)<br />
sobre a África e o(a)<br />
negro(a) como sujeitos<br />
centrais dos<br />
contradiscursos, ou<br />
contra-argumentos,<br />
continuamente produzidos<br />
pela teoria e<br />
pela metodologia da<br />
Diáspora Africana.<br />
Esses contraargumentos<br />
(de fato,<br />
ontologias alternativas)<br />
sobre a África e<br />
o(a) negro(a) – e que<br />
podem ser encontrados<br />
já no século<br />
XVI, nas reflexões de escritores e ativistas<br />
negros como Juan Latino; no século XVIII,<br />
com Ottobah Cuagano e Olaudah Equiano; e<br />
no século XIX, com Jose Manuel Valdes –<br />
tiveram um momento definitivo no trabalho<br />
do intelectual afro-americano William Edward<br />
B. Du Bois, em 1903, cujo conceito de “dupla<br />
consciência” (double consciousness) antecipou<br />
muitas das questões mais relevantes nos<br />
estudos da Diáspora Africana.<br />
Nesse conceito, William Du Bois articula<br />
o conflito vindo da dualidade (twoness) do<br />
“negro americano”, que é, ao mesmo tempo,<br />
A teoria da<br />
Diáspora Africana<br />
está ancorada<br />
em um projeto<br />
de engajamento<br />
político que tenta<br />
re-situar<br />
criticamente<br />
o lugar da África<br />
JAN / MAR 2007 97
ESPAÇO<br />
ABERTO<br />
As histórias dos<br />
povos negros<br />
no Novo Mundo<br />
não são apenas<br />
uma função do<br />
que esses povos<br />
foram capazes<br />
de (re)criar<br />
americano e o “outro negro”, identidades que<br />
não podem ser completamente amalgamadas em<br />
seu corpo e em sua mente. Tal conceito – que<br />
expressa sentimentos contraditórios de<br />
pertencimento e alienação e forja um senso de<br />
história em comum com a África e seus descendentes<br />
– foi posteriormente interpretado por<br />
Paul Gilroy (1993)<br />
como sendo não somente<br />
“o ponto-devista<br />
distinto dos negros<br />
americanos,<br />
mas também a experiência<br />
das populações<br />
pós-escravas<br />
em geral”.<br />
Essa dimensão<br />
fundamental<br />
da experiência da<br />
Diáspora Africana<br />
foi menosprezada<br />
durante boa parte<br />
do século XX,<br />
quando as ciências<br />
sociais estiveram<br />
entretidas com o<br />
debate sobre “sobrevivências<br />
versus transformações”<br />
com relação<br />
à presença dos povos<br />
africanos no Novo Mundo dentro do<br />
contexto do comércio de escravos e escravas<br />
no Atlântico. Nesse período, a literatura<br />
estava preocupada, principalmente, em<br />
mapear as raízes das várias culturas de descendência<br />
africana nas Américas e mensurar<br />
o quão próximo essas estavam das manifestações<br />
originais.<br />
Limites e africanidades<br />
Embora tenha sido importante para o amadurecimento<br />
da Diáspora Africana como um<br />
conceito e uma disciplina, o desenvolvimento<br />
de reflexões posteriores por autores como<br />
Mark Anderson, Edmund T. Gordon, Paul<br />
Gilroy e Stuart Hall aponta para os limites de<br />
uma noção hegeliana de Estado-nação, seu<br />
lugar central nos cânones ocidentais e o lugar<br />
do sujeito negro vindo da África no interior<br />
desse Estado.<br />
Assim, pode se inferir que as histórias<br />
dos povos negros no Novo Mundo, como<br />
parte do empreendimento colonialista, e em<br />
outros lugares, após esse momento, não são<br />
apenas uma função de suas retenções africanas<br />
e do que esses povos foram capazes de<br />
(re)criar a partir de uma origem africana, mas<br />
também do quanto suas africanidades tornaram-se<br />
“uma parte integral da formação do<br />
mundo moderno como o conhecemos”<br />
(Patterson; Kelley, 2000).<br />
Essa concepção talvez tenha, em sua<br />
origem, uma outra distinção hegeliana entre o<br />
africano, como um tipo cultural, e o “negro”<br />
ou o sujeito negro, como um ser racializado.<br />
Conforme argumentado de maneira eloqüente<br />
por Cedric Robinson (2000), tais idéias se<br />
reverteram para a própria África e causaram<br />
sua redução, em termos raciais, e sua<br />
homogeneização no mapa-múndi.<br />
Em virtude dessas historiografia e<br />
genealogia, os conteúdos principais da teoria<br />
e da metodologia da Diáspora Africana<br />
procuram dar atenção especial à construção<br />
e à reprodução de identidades diaspóricas,<br />
ou à criação de uma consciência diaspórica,<br />
na qual uma diáspora negra multilocalizada<br />
pode significar também a conjunção de identidade,<br />
processos e práticas políticas.<br />
Isso não significa superação de formações<br />
nacionais com a imposição de uma<br />
identidade essencial africana. Pelo contrário,<br />
significa compreender que “noções transnacionais<br />
de negritude são dialogicamente produzidas<br />
entre africanos e populações afrodescendentes<br />
em nível mundial” (Gordon), o<br />
que pode iluminar a experiência negra em distintas<br />
formações nacionais/raciais dentro e<br />
fora da África.<br />
Para Michael Gomez, africanista que<br />
mapeou as expressões da vida social e cultural<br />
africanas no tempo e no espaço em<br />
ambos os lados do Atlântico, isso pode levar<br />
a uma concepção negra de raça ou a<br />
“uma identidade coletiva que considera os<br />
descendentes de africanos como uma comunidade”,<br />
ainda que não um grupo único e<br />
unificado (Gomez, 1998). Paul Gilroy vê essa<br />
formação como uma rede intricada de conexões<br />
culturais e políticas que estabelecem<br />
um tipo de ligação entre pessoas negras de<br />
locais diferentes.<br />
Assim, como uma formação “transnacional,<br />
multilingüística e dispersa” (Gordon),<br />
a Diáspora Africana está sendo continuamente<br />
constituída. Tal processo parece ser posto<br />
em movimento não apenas pela permanente<br />
dispersão dos povos africanos, mas<br />
também pelo fato de que a tarefa de teorizar<br />
sobre culturas negras em qualquer formação<br />
98 DEMOCRACIA VIVA Nº 34
REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DA DIÁSPORA AFRICANA<br />
cultural/nacional não pode ser feita, de acordo<br />
com Paul Gilroy, sem que se desenvolva<br />
uma nova perspectiva sobre aquela formação<br />
como um todo.<br />
Essa formulação parece sugerir que a<br />
Diáspora Africana, como campo de estudo e<br />
projeto político, irá mudar e ampliar seus sentidos<br />
e repertório de experiências à medida<br />
que refine suas ferramentas teóricas e<br />
metodológicas aplicadas à combinação de<br />
vários processos locais de formação racial,<br />
racialização, resistência e contestação.<br />
No entanto, ao analisar experiências<br />
localizadas, a teoria e a metodologia da<br />
Diáspora Africana também procuram ultrapassar<br />
especificidades de maneira a evitar os<br />
paradigmas dominantes que determinam o<br />
estudo das populações negras em outras disciplinas.<br />
Desse modo, os trabalhos de Paul<br />
Gilroy (1993) e Cedric Robinson (2000), por<br />
exemplo, embora articulem visões e projetos<br />
diaspóricos africanos distintos, criticam e vão<br />
além das “narrativas uniformes de deslocamento,<br />
dominação e processos de construção<br />
nacional centrados na expansão européia<br />
e no surgimento do capitalismo racial”<br />
(Patterson; Kelley, 2000). Os mesmo autores<br />
apontam para o fato de que Paul Gilroy e<br />
Cedric Robinson se engajam em uma compreensão<br />
dialética do sistema transatlântico<br />
como um processo que ajudou a :<br />
[...] forjar o conceito de África e criar<br />
uma identidade “africana”, mas também<br />
[...] o mesmo processo foi central<br />
para a formação de uma identidade<br />
européia/”branca” no Novo Mundo<br />
[…] Portanto, assim como a Europa<br />
inventou a África e o Novo Mundo, não<br />
podemos compreender a invenção da<br />
Europa e do Novo Mundo sem a África<br />
e os povos africanos.<br />
No seu trabalho sobre o Brasil, Kim<br />
Butler (1998) parece ter se baseado parcialmente<br />
em tal perspectiva crítica ao aplicar uma teoria<br />
e uma metodologia de estudos diaspóricos<br />
comparados e estruturados em cinco dimensões<br />
de pesquisa diaspórica: razões para e<br />
condições de dispersão; relação com o “lugar<br />
de origem” (entendido como a África); relação<br />
com o país de origem; inter-relações com as<br />
comunidades da diáspora; e estudos comparativos<br />
de diferentes diásporas.<br />
A preocupação central de Kim Butler,<br />
no entanto, é com uma estrutura que permita<br />
a definição de um determinado grupo ou a<br />
formação como uma diáspora (em vez de um<br />
enclave étnico ou uma comunidade imigrante),<br />
além das possibilidades de análise comparativa.<br />
Essa estrutura ainda sugere que seja<br />
levado em consideração que comunidades<br />
diaspóricas também contribuem e participam<br />
na construção de outras diásporas, e que comunidades<br />
diaspóricas africanas, em particular,<br />
não deveriam ter suas formações examinadas<br />
apenas com relação aos temas da<br />
escravidão e da raça.<br />
Outras contribuições<br />
Alguns outros autores têm feito contribuições<br />
para a formação da teoria e da metodologia<br />
da Diáspora Africana. Entre os trabalhos<br />
já mencionados, o influente conceito<br />
do “Atlântico Negro” (Black Atlantic), de<br />
Paul Gilroy, sugere uma unidade original de<br />
análise sobre a qual a movimentação e as<br />
trocas de pessoas e mercadorias têm ocorrido<br />
por séculos (esse conceito tem sido criticado<br />
com base no fato de que os “sujeitos<br />
negros” que Paul Gilroy escolhe como material<br />
para sua elaboração teórica são, em sua<br />
maioria, intelectuais e artistas negros norteamericanos<br />
com habilidade de se locomover<br />
na parte norte do Oceano Atlântico).<br />
A principal contribuição do trabalho<br />
de Cedric Robinson é a caracterização de uma<br />
tradição radical negra (black radical<br />
tradition) que teria emanado da África e sido<br />
adaptada e reconstruída por meio das lutas<br />
de resistência negra no Novo Mundo (esse<br />
conceito tem sido criticado por sua noção de<br />
agência baseada principalmente em estereótipos<br />
masculinos).<br />
Os trabalhos de Stuart Hall (1990),<br />
David Scott (1999) e Edwards (2001) movemse<br />
em direção a uma noção mais globalizada<br />
de Diáspora Africana, que se distingue de uma<br />
“fundação antropológica verificável”<br />
(Edwards) e articula a idéia de diáspora como<br />
“disputas corporificadas (embodied disputes)<br />
entre populações negras através do globo<br />
sobre o próprio significado de ‘África’, da escravidão<br />
e do termo ‘identidade negra’” (ver<br />
Scott, 1999; Edwards, 2001).<br />
Nessa estrutura de análise global, a<br />
noção de articulação de Stuart Hall é utilizada<br />
para eliminar questões sobre continuidade<br />
cultural. Por último, Gordon (2003),<br />
Mark Anderson (2003) e outros intelectuais<br />
associados à Escola de Austin utilizam-se<br />
de uma estrutura teórica e metodológica<br />
ESPAÇO<br />
ABERTO<br />
JAN / MAR 2007 99
ESPAÇO<br />
ABERTO<br />
ESPAÇO ABERTO<br />
eminentemente transnacional e que combina<br />
um amplo leque de questões interdisciplinares<br />
e conceituais (as noções de interpelação racial<br />
e autodeterminação racial, teoria crítica<br />
de raça, formação racial) e abordagens<br />
posicionadas (interseccionalidade e feminismo<br />
negro, antropologia ativista).<br />
Raízes, rotas e conhecimento<br />
A teoria e a metodologia dos estudos da<br />
Diáspora Africana consolidam um movimento<br />
crítico, iniciado na década de 1960, em estudos<br />
antropológicos em âmbito mundial.<br />
Como parte dessa agenda revisionista, preocupada<br />
com debates teóricos no interior da<br />
disciplina, antropólogos e antropólogas questionavam,<br />
em muitos outros aspectos, sua<br />
própria participação nas disputas políticas<br />
pela definição de cânones.<br />
Desde então, tem-se criticado a<br />
etnografia, principal ferramenta da antropologia,<br />
como parte de um amplo processo de<br />
reinventar a antropologia. Debates têm tratado<br />
de uma variedade de temas, como as posições<br />
distintas entre pesquisadores<br />
(outsiders) de uma dada comunidade e<br />
pesquisados (insiders) dessa mesma comunidade;<br />
perspectivas feministas; o papel do<br />
que se convencionou chamar de antropólogos<br />
nativos; a “nova” antropologia de meados<br />
da década de 1970; noções de hierarquia,<br />
lugar e voz na teoria antropológica; trabalho<br />
de campo e antropologia reflexiva.<br />
Embora esses sejam apenas alguns dos<br />
temas em questão, não foi até a publicação de<br />
Decolonizing anthropology: moving forward<br />
toward and anthropology for liberation<br />
(Descolonizando a antropologia: avançando<br />
em direção a uma antropologia da libertação)<br />
– organizado por Faye Harrison e publicado<br />
originalmente em 1991 – que uma crítica<br />
completa da antropologia foi articulada por<br />
antropólogos(as) não-brancos(as) sobre o seu<br />
lugar na disciplina e suas práticas de pesquisa<br />
em comunidades não-brancas. Embora ainda<br />
estivessem influenciados pelo conceito de “antropólogo<br />
nativo”, um dos objetivos principais<br />
do livro era “re-avaliar e, possivelmente,<br />
transcender as limitações da antropologia crítica<br />
e radical que emergiu dos debates e das<br />
experimentações das duas últimas décadas”<br />
(Harrison, 1991).<br />
Transcender essas críticas à antropologia<br />
significou, entre outros pontos, articular<br />
uma posição política sobre a marginalização<br />
e o silenciamento passado e presente de intelectuais<br />
não-brancos(as) e trazer à tona a importância<br />
de ter as vozes e os trabalhos<br />
desses(as) pesquisadores(as) engajados(as)<br />
na criação de novos paradigmas que pudessem<br />
transformar a antropologia “de uma tradição<br />
intelectual do Ocidente em uma disciplina<br />
que abrace as tradições intelectuais<br />
críticas e documente as experiências dos povos<br />
do Terceiro Mundo” (Moses, 1997).<br />
Os pontos de contato entre os projetos<br />
políticos dessa publicação e aquele articulado<br />
pelos estudos da Diáspora Africana<br />
(além da óbvia e forte presença da antropologia<br />
nessa última) têm clara base teórica. Conforme<br />
argumentado por Faye Harrison (1991),<br />
a trajetória teórica do livro foi baseada em<br />
quatro elementos principais: a economia política<br />
neomarxista; experimentações em análises<br />
etnográficas interpretativas e reflexivas;<br />
um feminismo que sublinha o impacto de raça<br />
e classe sobre gênero; e as tradições de pesquisas<br />
de acadêmicos(as) negros(as) radicais,<br />
assim como de outros e outras intelectuais<br />
do Terceiro Mundo, que reconhecem as conexões<br />
entre raça e outras formas insidiosas<br />
de diferença, notadamente classe e gênero.<br />
Tais elementos teóricos estão muito<br />
próximo dos argumentos formulados por autores<br />
como Herman Bennet, Paul Gilroy,<br />
Gordon, Michael Hanchard e Robin Kelley,<br />
em suas pesquisas e em seus textos com base<br />
em um arcabouço referenciado na teoria e na<br />
metodologia da Diáspora Africana. Convergências<br />
políticas são visíveis na compreensão<br />
em comum sobre a importância de desafiar<br />
os cânones ocidentais que regulam as<br />
ciências sociais e disciplinas como história,<br />
antropologia, sociologia e ciência política.<br />
Ainda mais importante, o que Faye Harrison<br />
(1991) define como “disputas políticas pela<br />
definição de cânones” aparece como uma tarefa<br />
predominante das pesquisas na área de<br />
Estudos da Diáspora Africana, que procura<br />
re-avaliar a história moderna a partir de uma<br />
perspectiva africana diaspórica.<br />
Estudos no Brasil<br />
Problemas similares no processo de produção<br />
do conhecimento se repetem, com características<br />
peculiares, no estudo das populações<br />
negras no Brasil, delineados tanto pela<br />
inserção da academia local no cenário internacional<br />
como pelo papel central que a tradição<br />
de estudos da “questão racial” adquire<br />
100 DEMOCRACIA VIVA Nº 34
REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DA DIÁSPORA AFRICANA<br />
no país. A partir da formulação original que<br />
procurou explicar as relações raciais modernas<br />
no Brasil (Freyre, 1933), três conseqüências<br />
têm permanecido: a nulificação do conceito<br />
de raça como uma categoria analítica válida<br />
para a análise da formação social do país; a<br />
redução do racismo a um epifenômeno das<br />
desigualdades sociais, sem motivação ou<br />
racionalidade próprias; e o descrédito do<br />
ativismo negro como uma manifestação legítima<br />
das populações afro-descendentes no país.<br />
Esses três fatores, profundamente<br />
inter-relacionados, deram origem a uma<br />
epistemologia do racismo que acontece no<br />
Brasil como algo particular e imparcial e sobre<br />
a qual somente são percebidos e levados<br />
em conta, como seus elementos formadores,<br />
os indicadores de desigualdades raciais ou<br />
as suas conseqüências.<br />
Assim, historicamente, as idéias e as<br />
teorias que formam o campo de estudo das<br />
“relações raciais” no Brasil concebem e argumentam<br />
sobre formas locais de racismo,<br />
principalmente, a partir de suas conseqüências.<br />
Para a primeira geração reconhecida –<br />
Thales de Azevedo, Gilberto Freyre, Donald<br />
Pierson e Arthur Ramos –, a base para analisar<br />
a formação racial brasileira foi seu “excepcionalismo<br />
racial” (Hanchard, 1994), negando<br />
que raça tivesse um papel relevante<br />
nas profundas divisões existentes na sociedade<br />
(atribuídas em sua maior parte à classe)<br />
e pressupondo que diferenças e conflitos<br />
raciais agudos teriam sido dissolvidos<br />
por causa da extensa miscigenação.<br />
O determinismo econômico da segunda<br />
geração, também conhecida como a “Escola<br />
de São Paulo” – representada principalmente<br />
por Roger Bastide, Fernando Henrique<br />
Cardoso, Carl Degler, Florestan Fernandes,<br />
Octavio Ianni e Charles Wagley –, utilizou uma<br />
abordagem marxista para analisar o lugar ocupado<br />
pelas pessoas negras durante o processo<br />
de industrialização brasileira. Essa linha<br />
de pensamento esteve fortemente influenciada<br />
pela noção de que a sociedade brasileira<br />
era, em sua origem, menos racista ou menos<br />
dividida pelo racismo do que em outros países<br />
(os estudos sobre o Projeto Unesco –<br />
Organização das Nações Unidas para a Educação,<br />
a Ciência e a Cultura – são exemplares<br />
a esse respeito).<br />
Assim sendo, as desigualdades raciais<br />
encontradas por esses pesquisadores foram<br />
interpretadas como uma conseqüência<br />
residual da escravidão e como um sinal de<br />
anomia entre famílias negras, uma abordagem<br />
criticada atualmente como criadora de uma<br />
síndrome de “patologia cultural” (ver Andrews;<br />
Hanchard). Essas desigualdades também estariam<br />
destinadas a desaparecer à medida que<br />
a industrialização e a urbanização modernizassem<br />
o país.<br />
A geração estruturalista do começo da<br />
década de 1970 – Carlos Hasenbalg, Peggy<br />
Lovell e Nelson do Valle Silva – encontrou<br />
evidências plenas de desigualdades raciais e<br />
formulou a hipótese de que essas ocupavam<br />
um lugar central nas relações econômicas. No<br />
entanto, como apontado por Roberto Motta<br />
(2000), os indicadores sólidos encontrados<br />
por Carlos Hasenbalg foram atribuídos aos<br />
“efeitos de sutis práticas discriminatórias e<br />
outros mecanismos racistas”, que nunca foram<br />
determinados exatamente em sua origem,<br />
características e formas de funcionamento.<br />
Esse cenário não muda radicalmente<br />
na geração contemporânea neo-freyreana de<br />
intelectuais “pós-relativistas” que dominam<br />
o campo das “relações raciais” na academia<br />
brasileira. Com pequenas<br />
variações, os<br />
mecanismos que criam<br />
as desigualdades<br />
raciais permanecem<br />
inexplicados enquanto<br />
as formas do<br />
racismo brasileiro<br />
são teorizadas em<br />
termos relativos e<br />
relacionais.<br />
Nessa corrente,<br />
o racismo no<br />
Brasil é distinto de<br />
outras formas de racismo<br />
e, portanto,<br />
deve ser interpretado<br />
como tal e também<br />
como se existisse independente<br />
de estruturas<br />
sociais locais,<br />
supranacionais ou<br />
internacionais. O racismo brasileiro também<br />
ocorreria, principalmente, como uma relação autônoma<br />
de caráter privado e mediado (e não como<br />
uma interpelação no sentido althusseriano que<br />
reflete e reproduz, em grande parte, estruturas<br />
de dominação existentes da sociedade),<br />
entre indivíduos (aqueles que praticam e<br />
aqueles que reagem à discriminação) com base<br />
na classe, cor da pele, renda, educação, emprego,<br />
e assim por diante. Logo, o racismo<br />
As idéias e as<br />
teorias que<br />
formam o campo<br />
de estudo das<br />
“relações raciais”<br />
no Brasil concebem<br />
e argumentam<br />
sobre formas locais<br />
de racismo<br />
JJAN / MAR 2007 101
ESPAÇO<br />
ABERTO<br />
* Athayde Motta<br />
Mestre em Políticas<br />
Públicas e mestre em<br />
Antropologia pela<br />
Universidade do Texas,<br />
em Austin, e<br />
doutorando em<br />
Antropologia no<br />
Programa de Estudos da<br />
Diáspora Africana, na<br />
mesma universidade,<br />
onde pesquisa sobre<br />
ONGs negras no Brasil<br />
athayde@ibase.br<br />
brasileiro ocorreria nas relações pessoais, mas<br />
não seria parte determinante das relações sociais<br />
brasileiras.<br />
O resultado é não só uma análise que<br />
não consegue conectar as causas (ou agentes)<br />
e as conseqüências do racismo, mas uma<br />
prática acadêmica que dá justificativa teórica<br />
à existência de “percepções raciais” (Grin,<br />
2001) distintas. Isso tem tido o efeito prático<br />
de reduzir, a priori, as possíveis formas de interpretação<br />
das desigualdades raciais brasileiras.<br />
A limitação teórica evidente é que os<br />
indicadores demográficos da desigualdade<br />
racial tornam-se a “causa” do racismo, em vez<br />
de estímulo à investigação criteriosa e inovadora<br />
sobre esse fenômeno. Segundo o<br />
brasilianista Thomas Skidmore (2001), essas<br />
“percepções raciais” distintas, que ele nomeia<br />
como sendo uma “realidade estatística” e uma<br />
“realidade anedótica”, criam um problema teórico<br />
cuja solução está além dos instrumentos<br />
analíticos disponíveis no campo de estudo<br />
das “relações raciais”.<br />
Essa contradição não-resolvida também<br />
afeta sobremaneira não apenas a organização<br />
política dos negros(as) brasileiros(as), mas o<br />
arcabouço teórico utilizado para estudar experiências<br />
de ativismo negro. Perguntas óbvias<br />
sobre as experiências históricas dos vários movimentos<br />
sociais negros no Brasil permanecem<br />
sem resposta. Quais são as dificuldades<br />
para organizar estratégias e protestos anti-racistas<br />
em um país onde o discurso oficial nega<br />
categoricamente a existência do racismo Como<br />
se organizar politicamente a partir da<br />
constatação dos efeitos do racismo sobre os<br />
negros(as) brasileiros(as) quando tal hipótese<br />
é violentamente refutada Como indivíduos e<br />
movimentos negros conectam o racismo cotidiano<br />
que sofrem à ideologia racial dominante<br />
que nega sua existência e o atribui a outras<br />
causas Tais perguntas não são apenas retóricas,<br />
mas sugerem que o estudo dos movimentos<br />
sociais negros no Brasil tem isolado essas<br />
manifestações das condições políticas e ideológicas<br />
peculiares que impactam negativamente<br />
sua existência.<br />
Por essa complexa situação, é clara a<br />
necessidade de conduzir pesquisas sobre o<br />
ativismo negro que sejam críticas, inovadoras<br />
e capazes de escapar das armadilhas e dos limites<br />
teóricos e metodológicos colocados pela<br />
teoria vigente na academia brasileira. Com base<br />
na teoria e metodologia da Diáspora Africana,<br />
trabalhos de autores como Michael Hanchard<br />
(1994) e Kim Butler (1998) – e a reação despropositada<br />
que geraram – são exemplos do<br />
quão complexas são as estruturas de raça,<br />
racialização e racismo no Brasil. Apesar de tais<br />
dificuldades, esses trabalhos revelam a emergência<br />
de identidades e subjetividades negras<br />
com claros indícios de agência e capacidade<br />
intelectual inovadores. Mais pesquisas comparativas<br />
sob a perspectiva da Diáspora Africana<br />
podem nos levar, finalmente, a produzir<br />
trabalhos inovadores e necessários sobre os<br />
impactos da miscigenação e da mestiçagem<br />
sobre a identidade política dos negros(as)<br />
brasileiros(as). Dessa forma, atingiremos uma<br />
perspectiva mais balanceada e realista sobre<br />
as experiências, os sucessos e os limites do<br />
ativismo negro brasileiro.<br />
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