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Bestia da Stile - Culturgest

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<strong>Bestia</strong> <strong>da</strong> <strong>Stile</strong><br />

(Besta de Estilo)<br />

de Pier Paolo Pasolini


teatro de quinta-feira a sábado, 18, 19 e 20 de maio de 2006<br />

21h30 · Grande Auditório · Duração 2h30 · Espectáculo em italiano, com legen<strong>da</strong>s em português<br />

Com Marco Foschi (Jan), Stefania Troise (Irmã), Cinzia Spanò (Mãe), Marco Cacciola (Pai), Enrico Roccaforte<br />

(Karel), Annibale Pavone (Novomeský), Giuseppe Lanino (Jovem Combatente <strong>da</strong> Resistência), Marco Cacciola<br />

(O Capital), Giuseppe Massa (A Revolução), Marco Cacciola, Giuseppe Lanino, Marco Martini, Giuseppe Massa,<br />

Giuseppe Papa, Annibale Pavone, Mauro Pescio, Giovanni Prisco, Enrico Roccaforte, Cinzia Spanò, Stefania<br />

Troise (Coro) Figurinos Cristina Da Rold Desenho de Luzes Giorgio Cervesi Ripa Som Franco Visioli Realização<br />

Cénica Clelio Alfinito Fotos Alessandro Giuliano Assessora de Imprensa Roberta Rem Assistente de<br />

Encenação Tommaso Tuzzoli Encenação de grupo orienta<strong>da</strong> por Antonio Latella<br />

Uma co-produção Nuovo Teatro Nuovo (Teatro Stabile di Innovazione, Nápoles), Teatro Stabile dell’Umbria,<br />

Bienal de Veneza<br />

Apoio Instituto Italiano de Cultura<br />

Estreia a 22 de Setembro de 2004 na Bienal de Veneza, 36º Festival Internacional de Teatro<br />

O texto, numa tradução de Clara Rowland, está publicado na colecção Livrinhos de Teatro, numa edição<br />

Artistas Unidos/<strong>Culturgest</strong>/Livros Cotovia. Tradução e publicação realiza<strong>da</strong>s no âmbito do Atelier Européen<br />

de la Traduction/Scène Nationale d’Orléans com o apoio <strong>da</strong> União Europeia – Comissão de Educação e Cultura<br />

– Programa Cultura 2000.<br />

© Alessandro Giuliano


O espectáculo<br />

<strong>Bestia</strong> <strong>da</strong> <strong>Stile</strong> um texto não texto. Uma<br />

obra teatral que percorrendo-as destrói<br />

to<strong>da</strong>s as regras e formas <strong>da</strong> escrita teatral.<br />

Uma espécie de biografia, de testamento,<br />

onde o próprio Pasolini se desenha em<br />

primeiro plano, contando uma história e<br />

revelando-se nesta não história habita<strong>da</strong><br />

por um universo de mortos, que viu, na<br />

Primavera de Praga, o fim do Comunismo.<br />

Não há personagens mas apenas fantasmas,<br />

e a palavra toma forma só através <strong>da</strong>s<br />

recor<strong>da</strong>ções e <strong>da</strong> morte.<br />

Os versos são vectores de palavras, de<br />

uma intimi<strong>da</strong>de – os versos não podem ser<br />

reproduzidos, só podem ser repetidos para<br />

todos os que com a sua própria presença<br />

celebram o rito teatral: actores e espectadores.<br />

A palavra deve nascer, chegar à luz, e<br />

de ca<strong>da</strong> vez deve ser dita pela primeira vez.<br />

A ESSÊNCIA.<br />

A dificul<strong>da</strong>de de fazer teatro, este teatro,<br />

está à vista de todos.<br />

Os versos, como a própria palavra sugere,<br />

devem ir na direcção [“verso”, em italiano]<br />

de quem escuta. Um teatro para ouvir,<br />

talvez seja essa a fórmula. Uma pura confissão.<br />

A encenação é partilha<strong>da</strong> com os meus<br />

amigos-actores. A encenação é a comunhão<br />

necessária para a pesquisa. A encenação é<br />

de todos porque em todos nós há este ficar<br />

nu, para tentar chegar ao esqueleto, renunciando<br />

aos ouropéis, às superestruturas.<br />

Um teatro fora do pano de boca para tentar<br />

que seja partilhado com os convi<strong>da</strong>dos<br />

que virão para ouvir. Um funeral <strong>da</strong> poesia,<br />

que vê na própria poesia, e na caverna<br />

atrás do pano de boca, uma possibili<strong>da</strong>de<br />

de ressurreição. Uma ressurreição que não<br />

é apenas do espírito, mas está no homem e<br />

no seu ser pungente. Sempre.<br />

UMA MISSA laica – UM CONCERTO à luz do<br />

dia – Teatro não teatro – Os actores chamados<br />

a ser palavra – plena. Numa total nudez<br />

de encenação – O conceito do actor/autor<br />

não é apenas um conceito, e sim uma ideia<br />

de teatro.<br />

O texto de Pier Paolo Pasolini é uma<br />

obra de arte que quebra to<strong>da</strong>s as regras e<br />

convenções, to<strong>da</strong>s as formas e estilos, sem<br />

deixar de ser uma viagem pelos estilos para<br />

encontrar a essência, a nudez do corpo na<br />

própria palavra.<br />

Um único olhar não é suficiente para<br />

contar <strong>Bestia</strong> <strong>da</strong> <strong>Stile</strong>, é preciso que o olhar<br />

seja de todos os que contam, porque só<br />

assim pode haver uma comunhão cultural<br />

com os espectadores.<br />

Por vezes, na obsessão de procurar, o<br />

medo de encontrar o na<strong>da</strong> é grande, mas é<br />

precisamente este medo que aju<strong>da</strong> a aceitar<br />

a derrota, porque na derrota não está a<br />

morte, a derrota é a outra possibili<strong>da</strong>de. De<br />

ca<strong>da</strong> vez que há uma derrota há um renascimento.<br />

<strong>Bestia</strong> <strong>da</strong> <strong>Stile</strong> de novo vi<strong>da</strong> e poesia.<br />

Outro renascimento, um novo encontro,<br />

um ENAMORAMENTO. Um novo amor para<br />

viver, para contar, para alimentar. Uma<br />

nova estra<strong>da</strong> a seguir, um pensamento,<br />

uma ideia, um apontamento...<br />

Para um hino ao teatro <strong>da</strong> palavra.<br />

SAGRADO – Rito – Poético. Necessário e difícil,<br />

o único que é, como afirma o próprio<br />

Pasolini, um teatro democrático.<br />

Antonio Latella


O autor<br />

Pier Paolo Pasolini nasceu a 5 de Março de<br />

1922 em Bolonha. Filho de um militar, seguiu<br />

o pai nas mu<strong>da</strong>nças dele, mas frequentou<br />

o liceu e a facul<strong>da</strong>de em Bolonha, onde<br />

teve como mestres Contini e Longhi e como<br />

amigos Leonetti e Roversi, até à licenciatura,<br />

em 1945, sobre a linguagem de Pascoli.<br />

Passava os Verões em Casarsa, na região do<br />

Friuli, ci<strong>da</strong>de de origem <strong>da</strong> mãe. Aí se refugiou<br />

depois do 8 de Setembro de 1943, para<br />

fugir à incorporação no exército. Compôs<br />

os primeiros poemas em dialecto friulano,<br />

Poesie a Casarsa (1942), publicados mais<br />

tarde junto de outros textos friulanos em La<br />

Meglio Gioventù (1958). Em 1945 soube que<br />

o irmão mais novo Guido tinha sido morto<br />

num conflito entre dois grupos de partigiani<br />

com ideias políticas diferentes. Em 1947<br />

inscreveu-se no Partido Comunista. Depois<br />

de ter encontrado trabalho como professor,<br />

numa aldeia perto de Casarsa, foi despedido<br />

e a seguir expulso do PCI por um obscuro<br />

episódio de homossexuali<strong>da</strong>de que causou<br />

um processo por corrupção de menores.<br />

Esse foi o primeiro de uma lista muito compri<strong>da</strong><br />

de processos (mais de 30) que deram<br />

a Pasolini a consciência <strong>da</strong> sua diversi<strong>da</strong>de<br />

e marcaram o seu destino (e até o seu papel<br />

público, que ele próprio criou) de marginalizado<br />

e rebelde.<br />

Devido ao escân<strong>da</strong>lo, em 1949 teve de<br />

deixar Casarsa, com a mãe (a relação com<br />

o pai já estava estraga<strong>da</strong>), e mudou-se<br />

para Roma, vivendo primeiro numa borgata<br />

(bairro de periferia) e ganhando a vi<strong>da</strong><br />

com explicações e ensino em escolas particulares.<br />

A descoberta do mundo do subproletariado<br />

romano inspirou-lhe – para<br />

além de poemas contidos em Le Cenere di<br />

Gramsci (1957) e La Religione del mio Tempo<br />

(1961), escritos depois de L’Usignolo della<br />

Chiesa Católica (1943 – 1949, ou seja antes<br />

de Le Cenere di Gramsci) – sobretudo os<br />

romances Ragazzi di Vita (1955) e Una Vita<br />

Violenta (1959), que provocaram grande<br />

escân<strong>da</strong>lo, mas asseguraram-lhe o primeiro<br />

êxito literário. Com os antigos colegas<br />

<strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de Leonetti e Roversi fundou e<br />

dirigiu entre 1955 e 1959 a revista Officina,<br />

que contou com Fortini, Volponi e outros<br />

importantes estudiosos e críticos militantes<br />

como colaboradores.<br />

Começou entretanto a sua activi<strong>da</strong>de<br />

no mundo cinematográfico: colaborou em<br />

alguns guiões (entre as quais As Noites<br />

de Cabíria de Federico Fellini), e a partir<br />

de 1961 realizou filmes como Accattone,<br />

Uccellacci e Uccellini, Il Vangelo Secondo<br />

Matteo, Edipo Re, Medea, Il Decameron, Salò<br />

o le 120 Giornate di Sodoma. Muitos desses<br />

filmes provocaram escân<strong>da</strong>lo e custaram<br />

ao seu realizador outros processos.<br />

Nos anos sessenta publicou Il Sogno di<br />

Una Cosa (escrito em 1949), mais poemas<br />

(Poesia in Forma di Rosa, 1964, Trasumanar<br />

e Organizzar, 1971), e foi muito activo como<br />

crítico militante em vários diários e revistas<br />

(entre outras, dirigiu com Moravia e Carocci<br />

a Nuovi Argomenti), activi<strong>da</strong>de que, depois<br />

<strong>da</strong> colecção Passione e Ideologia, deu vi<strong>da</strong><br />

a muitas publicações, parcialmente póstumas:<br />

Empirismo Eretico (1972), Scritti Corsari<br />

(1975), Descrizioni di Descrizioni (1979).<br />

A sua produção teatral conta seis tragédias,<br />

cinco delas escritas em 1966: Calderón,<br />

Affabulazione, Pilade, Porcile, Orgia e <strong>Bestia</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>Stile</strong>.<br />

Pier Paolo Pasolini morreu assassinado<br />

num campo em Ostia em circunstâncias<br />

misteriosas em 1975.


Como numa violenta sequência de Accattone<br />

Pier Paolo Pasolini não tinha previsto a<br />

própria morte, mas o modo desapie<strong>da</strong>do<br />

e atroz, sim. Dizia, de facto, e escreveu-o<br />

mesmo, que a pie<strong>da</strong>de morrera. Entendia<br />

a pie<strong>da</strong>de no sentido <strong>da</strong> relação religiosa<br />

com o real, isto é, o contrário de impie<strong>da</strong>de,<br />

a impie<strong>da</strong>de que ele via triunfar no hedonismo<br />

de massa. Disse que previra o modo;<br />

acrescentarei que tinha mesmo previsto o<br />

lugar. Estive no lugar onde foi assassinado<br />

e reconheci-o como se já o tivesse visto<br />

outras vezes: ele já o descrevera, quer nos<br />

seus dois romances Ragazzi di Vita e Una<br />

Vita Violenta, quer no seu primeiro filme<br />

Accattone.<br />

O lugar encontra-se em Ostia, nos terrenos<br />

vagos nas margens do povoado, nas<br />

imediações do hidróscalo. Cheguei a Ostia<br />

pela auto-estra<strong>da</strong> apinha<strong>da</strong> de carros impacientes<br />

e casuais de domingo. Depois enveredei<br />

por um longo e anónimo carreiro, ladeado<br />

de plátanos entre as casas anónimas<br />

de um anónimo bairro moderno. No fim do<br />

carreiro havia uma praça corta<strong>da</strong> por umas<br />

obras; depois o carreiro continuava mas<br />

agora já não havia casas, mas sim terrenos<br />

poeirentos e areniços, pontilhados de barracas<br />

e cortados por arame farpado. Não<br />

era um belo dia. O céu ventoso, velado e pálido,<br />

assemelhava-se à paisagem. Um vento<br />

quente e brando levantava serpentes de pó<br />

nas bermas <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>. Finalmente vimos<br />

alguns carros e grupos de pessoas parados<br />

nos dois lados <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>; foi então que parámos<br />

e descemos.<br />

O lugar onde se dera o delito encontrava-se<br />

no interior de um <strong>da</strong>queles recintos<br />

poeirentos, entre barracas espalha<strong>da</strong>s assimetricamente<br />

aqui e ali, e ain<strong>da</strong> mais desabita<strong>da</strong>s<br />

ou porque ain<strong>da</strong> em construção<br />

ou porque abandona<strong>da</strong>s. Um local próprio<br />

do terceiro mundo, de uma periferia do<br />

Médio Oriente, de um subúrbio africano e<br />

asiático. Pasolini foi morto numa clareira,<br />

diante de um cancelo escancarado pintado<br />

cor de rosa, para lá do qual se via uma barraca<br />

de um só quarto, de tijolos de cimento<br />

cinzento, sem reboco nem reforços. O seu<br />

corpo foi encontrado nessa clareira, a poucos<br />

metros do cancelo, precisamente onde<br />

ain<strong>da</strong> agora se podia ver um pe<strong>da</strong>ço de pó e<br />

areia, talvez para ali deitado para esconder<br />

o sangue.<br />

Pasolini fora atingido brutalmente com<br />

uma tábua arranca<strong>da</strong> àquele cancelo; talvez<br />

a tábua tivesse já sido desprega<strong>da</strong> e estava<br />

ali por terra, de modo que o assassino<br />

mais não teve que fazer do que apanhá-la.<br />

Segundo as aparências Pasolini teria sido<br />

agredido depois de uma altercação, lutou<br />

contra o assassino e libertou-se dele, pensando<br />

que tinha resolvido a briga; voltou<br />

costas e dirigiu-se para o carro. Mas o assassino,<br />

sem que ele disso se desse conta,<br />

foi atrás dele, atingiu-o com a tabueta,<br />

deitou-o por terra, atingiu-o ain<strong>da</strong> mais vezes<br />

sobre o corpo e sobre a cara, enquanto<br />

Pasolini estava portanto ain<strong>da</strong> vivo, e atropelou-o<br />

com o carro em marcha atrás. Esta<br />

reconstituição explica, em minha opinião,<br />

como é que um homem muito robusto,<br />

como Pasolini, pôde ser morto por um adolescente,<br />

mesmo enquanto presa num rapto.<br />

Doutra maneira, é preciso pensar num<br />

delito de grupo, político ou de outra natureza.<br />

Aliás, os motivos <strong>da</strong> agressão podem ser<br />

muitos e não os conhecemos. Mas a morte<br />

de Pasolini, na reali<strong>da</strong>de psicológica que é<br />

a única que conta, foi certamente provoca<strong>da</strong><br />

pelo ódio do assassino para consigo próprio<br />

e pela sua identificação com Pasolini<br />

no momento do delito. Matando Pasolini<br />

o assassino quis punir-se; o homicídio foi<br />

portanto uma espécie de suicídio dissociado<br />

e objectivo.<br />

Estes pormenores do delito, que para<br />

mim são os mais prováveis e verosímeis,<br />

talvez venham a ser alterados pelo


inquérito <strong>da</strong> polícia, mas o que nenhum<br />

inquérito poderá mu<strong>da</strong>r é o ar de violência<br />

secreta que emanava do local. Que era<br />

violento precisamente porque esquálido,<br />

violento porque miserável, violento porque<br />

desesperado. Ora esqualidez, miséria<br />

e desespero são, por sua vez, os efeitos de<br />

uma violência precedente e generaliza<strong>da</strong>,<br />

<strong>da</strong> qual decorre depois, com lógica inflexível,<br />

a violência de que foi vítima Pasolini.<br />

Naquele lugar, em suma, a violência era caseira<br />

e no momento do encontro impôs-se<br />

ao assassino. O rapaz que o matou foi na<br />

reali<strong>da</strong>de plagiado pelo próprio lugar em<br />

que cometeu o delito.<br />

Porque é que me detenho e insisto tanto<br />

na violência Porque o assassino falou<br />

de legítima defesa, acrescentando assim<br />

à violência homici<strong>da</strong> a violência de uma<br />

justificação que to<strong>da</strong> a parte reprimi<strong>da</strong> e<br />

intimamente violenta deste país está pronta<br />

para avalizar. Na reali<strong>da</strong>de, Pasolini era<br />

inimigo <strong>da</strong> violência não só por temperamento,<br />

pois era um homem meigo, doce e<br />

gentil e eminentemente dotado <strong>da</strong>quela<br />

pie<strong>da</strong>de cujo desaparecimento lamentava,<br />

mas também e sobretudo porque a descoberta<br />

<strong>da</strong> nova violência massifica<strong>da</strong> estava<br />

no centro <strong>da</strong>s suas mais profun<strong>da</strong>s preocupações<br />

culturais e políticas. Pasolini fizera<br />

ultimamente a descoberta impressionante<br />

<strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de de massa como alienação<br />

total e automatismo irresistível. Esta<br />

descoberta não fora repentina e completa:<br />

infelizmente fora gradual e incompleta. De<br />

certo modo, Pasolini, mesmo afirmando<br />

a existência <strong>da</strong> violência em massa, não<br />

acreditava totalmente, ou pelo menos<br />

suficientemente, nela para a evitar e dela<br />

se precaver.<br />

Ele reconstruíra os traços ain<strong>da</strong> enevoados<br />

e informes <strong>da</strong> violência de massa por<br />

certo modo de falar, de vestir, de se comportar;<br />

mas nunca a vira em cheio, límpi<strong>da</strong><br />

e precisa. Adivinhara-a como se adivinha<br />

uma figura na noite; mas era para ele uma<br />

violência ain<strong>da</strong> não de todo sofri<strong>da</strong> e conheci<strong>da</strong>.<br />

Rimbaud, num famoso poema, diz ter<br />

adivinhado a madruga<strong>da</strong> em cem indícios<br />

sem porém a ver inteiramente “com o seu<br />

corpo imenso”, até ao fim. Para a violência,<br />

com Pasolini, aconteceu como a Rimbaud,<br />

para a madruga<strong>da</strong>. Entreviu-lhe “o corpo<br />

imenso” apenas no último momento, quando<br />

já era demasiado tarde. Rimbaud diz que<br />

imediatamente depois de ter descoberto<br />

a madruga<strong>da</strong> caiu num sono profundo:<br />

“Quando acordou, era meio-dia”. Pasolini<br />

viu a violência de massa na cara uma só vez,<br />

inteira e terrível. Tudo para ele foi portanto<br />

obscuri<strong>da</strong>de, sem mais um acor<strong>da</strong>r.<br />

Alberto Moravia<br />

In Pier Paolo Pasolini – Últimos Escritos,<br />

Fora do Texto (Trad. Manuel Braga <strong>da</strong> Cruz)


O teatro de Pasolini em Portugal<br />

O teatro de Pier Paolo Pasolini foi revelado<br />

em Portugal por Mário Feliciano, que<br />

encenou no Centro de Arte Moderna <strong>da</strong><br />

Fun<strong>da</strong>ção Gulbenkian, em 1985, Pílades (em<br />

tradução feita em conjunto com Luiza Neto<br />

Jorge), com Alexandra Lencastre, Alexandre<br />

Sousa, António Capelo, Fernan<strong>da</strong> Neves,<br />

Fernando José Oliveira, Guilherme Filipe,<br />

João Cabral, João Grosso, João Romão, Júlia<br />

Correia, Luísa Cruz, Manuela de Freitas,<br />

Maria Amélia Matta e Mário Feliciano, cenário<br />

de Carlos Amado, figurinos de Rosa<br />

Ramos, música e direcção musical de<br />

Constança Capdeville (interpreta<strong>da</strong> por<br />

Olga Prats, António Sousa Dias e Nuno<br />

Bastos), desenho de luzes de Orlando Worm<br />

e colaboração dramatúrgica de José Gabriel<br />

Trin<strong>da</strong>de dos Santos.<br />

Mário Feliciano encenou ain<strong>da</strong> em<br />

1987 no Teatro do Gymnásio Calderón (em<br />

tradução feita em conjunto com António<br />

Barahona), com António Fonseca, Bibi<br />

Perestrelo, Carmen Santos, Fernando<br />

Cardoso, Fernando José Oliveira, Gisela<br />

Cañamero, João Cabral, João Coutinho,<br />

Jorge Sequerra, Júlia Correia, Luísa Cruz,<br />

Marques D’Arede, Mário Feliciano, Nestor<br />

de Sousa, Pedro Arrabaça, Teresa Mónica<br />

e Vera Mónica Alves, cenografia de José<br />

João Freitas, figurinos de José Gonçalves,<br />

música de Lluis Llach e desenho de luzes de<br />

Orlando Worm.<br />

Orgia foi estrea<strong>da</strong> numa encenação de<br />

Celso Cleto no Teatro Politeama em 1999,<br />

com interpretação de Ângelo Torres, Daniel<br />

Martinho e Mafal<strong>da</strong> Vilhena, dramaturgia<br />

de Luís Zafalo e realização plástica de Luís<br />

Santos. Orgia foi ain<strong>da</strong> encena<strong>da</strong> por João<br />

Grosso no Teatro Nacional D. Maria II, com<br />

apresentações em 2005 e 2006, tradução<br />

de José Lima, interpretação de João Grosso,<br />

Luísa Cruz e Kjersti Kaasa, cenografia de Rui<br />

Alexandre, figurinos de Dino Alves, música<br />

de Stefano Zorzanello e desenho de luz de<br />

José Nuno Lima. Já em 2006, Pedro Marques<br />

encenou, traduziu e fez o desenho de luz<br />

para este texto, que teve interpretação de<br />

José Airosa, Sylvie Rocha e Sofia Correia,<br />

cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves<br />

e apoio vocal de Rui Baeta, numa co-produção<br />

A&M, Artistas Unidos e <strong>Culturgest</strong><br />

(estreia em Fevereiro no Teatro Viriato em<br />

Viseu, apresentações na <strong>Culturgest</strong> em<br />

Março e Abril).<br />

Afabulação estreou no Teatro do Bairro<br />

Alto em 1999, com tradução de Maria<br />

Jorge Vilar de Figueiredo, encenação de<br />

Luís Miguel Cintra, cenário e figurinos de<br />

Cristina Reis, interpretação de António<br />

Pedro Cerdeira, Glicínia Quartin, José<br />

Manuel Mendes, Luís Lucas, Luís Miguel<br />

Cintra, Rita Durão e Rita Loureiro.<br />

Para além destes espectáculos em português,<br />

foram apresenta<strong>da</strong>s em Portugal<br />

produções estrangeiras de Orgia (1992,<br />

Auditório Nacional Carlos Alberto, encenação<br />

de Sara Molina) e Pocilga (2000,<br />

Pequeno Auditório do CCB, encenação de<br />

Stanislas Nordey), bem como o espectáculo<br />

A História do Sol<strong>da</strong>do, de Pasolini, Sergio<br />

Citti e Giulio Paradisi (1996, <strong>Culturgest</strong>, encenação<br />

de Gigi Dall’Aglio, Giorgio Barberio<br />

Corsetti e Mario Martone).


O texto<br />

Nota introdutória para a publicação <strong>da</strong> peça<br />

Escrevi esta peça entre 1965 e 1974, entre<br />

revisões contínuas e, o que é mais importante,<br />

entre contínuas actualizações: tratase,<br />

efectivamente, de uma autobiografia.<br />

Assim, à medi<strong>da</strong> que o tempo ia passando,<br />

e deixava a obra inédita por causa <strong>da</strong>s revisões<br />

contínuas – ia passando também a minha<br />

vi<strong>da</strong>, tornando necessárias também as<br />

contínuas actualizações. No verão de 1974<br />

decidi parar. Parar com as actualizações,<br />

mas não com as revisões (razão pela qual<br />

a obra ficou ain<strong>da</strong> durante mais de um ano<br />

inédita: fechando-se assim a déca<strong>da</strong> 1965-<br />

75). No verão de 1974 escrevi praticamente<br />

todo o longo apêndice. Que o leitor, se preferir,<br />

pode não ler. A obra termina com as<br />

palavras “ébrio de erva e de trevas”. Depois,<br />

no apêndice, estão ain<strong>da</strong> coisas importantes<br />

(para mim), mas o “fim” (cuja ressonância<br />

no silêncio do “fim” é normalmente o<br />

estilema mais belo <strong>da</strong> obra) está ali.<br />

A Itália é um país que se torna ca<strong>da</strong><br />

vez mais estúpido e mais ignorante.<br />

Cultivam-se retóricas ca<strong>da</strong> vez mais insuportáveis.<br />

Não existe, de resto, pior conformismo<br />

que o <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>: sobretudo, é<br />

natural, quando é apropriado também pela<br />

direita. O teatro italiano, neste contexto<br />

(em que o protesto é oficiali<strong>da</strong>de), encontra-se<br />

certamente no nível cultural mais<br />

baixo. O velho teatro tradicional está ca<strong>da</strong><br />

vez mais repugnante. O teatro novo – que<br />

não representa mais do que o lento apodrecimento<br />

do modelo do Living Theatre<br />

(excepção feita para Carmelo Bene, autónomo<br />

e original) – conseguiu tornar-se tão<br />

repugnante quanto o teatro tradicional.<br />

É o pior <strong>da</strong> nova vanguar<strong>da</strong> e de 68. Sim,<br />

ain<strong>da</strong> estamos nesse ponto: tendo além<br />

disso o vómito <strong>da</strong> restauração rastejante.<br />

O conformismo de esquer<strong>da</strong>. Quanto ao antigo<br />

apoiante <strong>da</strong> República Social Italiana<br />

Marco Foschi © Alessandro Giuliano<br />

Dario Fo, não se pode imaginar na<strong>da</strong> pior<br />

do que os seus textos escritos. A sua dimensão<br />

audiovisual e os seus mil espectadores<br />

(ain<strong>da</strong> que sejam de carne e osso), é<br />

evidente que não me interessam. O resto,<br />

Strehler, Ronconi, Visconti, é gestuali<strong>da</strong>de<br />

pura, matéria para magazines.<br />

Num quadro deste género, é natural que<br />

o meu teatro nem chegue a ser percebido.<br />

Facto que (confesso-o) me provoca uma<br />

indignação impotente, <strong>da</strong>do que os Pilatos<br />

(os críticos literários) me remetem para<br />

os Herodes (os críticos de teatro) numa<br />

Jerusalém <strong>da</strong> qual desejo que não fique pedra<br />

sobre pedra.<br />

Pier Paolo Pasolini<br />

(Trad. Clara Rowland)


O título e o nome do protagonista<br />

Durante vários anos, Pasolini oscilou entre<br />

dois títulos para a peça: O Poeta Checo e<br />

Poesia (na sequência de Orgia). A viragem<br />

em direcção ao título actual, provavelmente<br />

construído sobre a expressão bestia<br />

<strong>da</strong> soma ou <strong>da</strong> tiro (besta de carga ou de<br />

tiro), pode observar-se numa conversa que<br />

Pasolini manteve com Adriano Aprà e Luigi<br />

Faccini em Dezembro de 1966, publica<strong>da</strong><br />

como “Dialogo I” em Cinema e Film, a. 1, n. 1,<br />

Inverno 1966-67 (depois, com alterações,<br />

em Empirismo Herege): aí, respondendo aos<br />

dois críticos que colocam a hipótese de as<br />

suas teorias cinematográficas estarem liga<strong>da</strong>s<br />

à sua poética, Pasolini afirma: “Vocês<br />

são loucos. É muito desagradável, sabem,<br />

para um autor, ouvir-se sempre considerar<br />

uma ‘besta de estilo’”.<br />

A atribuição do nome Jan ao “poeta checo”<br />

é posterior a 19 de Janeiro de 1969, <strong>da</strong>ta<br />

<strong>da</strong> auto-imolação em Praga do estu<strong>da</strong>nte<br />

Jan Palach, que se incendiou como forma<br />

de protesto contra a ocupação soviética <strong>da</strong><br />

Checoslováquia.<br />

Besta de Estilo<br />

Besta de Estilo, tragédia em nove episódios,<br />

começa, no final dos anos 30, com a apresentação<br />

do jovem de vinte anos Jan, masturbando-se<br />

junto ao rio que banha a aldeia boémia<br />

de Semice (primeiro episódio). Através deste<br />

acto se manifesta o amor de Jan à poesia e ao<br />

povo: e é justamente o partido do povo que<br />

ele decide tomar, tendo para isso de aceitar<br />

a identificação populista do Estado e <strong>da</strong><br />

Religião com o Bem, porque o povo não suspeita<br />

que exista na<strong>da</strong> para lá destes elementos<br />

(segundo episódio). No terceiro, Jan está<br />

bem disposto e fala de poesia; no final, o amigo<br />

Karel dá-lhe a notícia de que os alemães<br />

invadiram a Checoslováquia. Primavera de<br />

44, na montanha, no meio dos resistentes:<br />

Karel foi enforcado e, sob a forma de Espírito,<br />

anuncia a Jan a deportação e a morte dos seus<br />

pais num lager, enquanto a irmã é a amante<br />

de todos os sol<strong>da</strong>dos alemães. No quinto episódio,<br />

voltamos a encontrar Jan, poeta que,<br />

interrogando-se sobre o estilo, decide adoptar<br />

o estranhamento formalista. O poeta amigo<br />

Novomeský profetiza-lhe um futuro de sucesso.<br />

No sexto episódio, estamos em Praga,<br />

depois <strong>da</strong> libertação do país e do fim <strong>da</strong> guerra.<br />

Através <strong>da</strong> técnica formalista do skaz, Jan<br />

consegue captar e representar a língua dos<br />

seus “falantes” que, enquanto subproletários,<br />

provocam escân<strong>da</strong>lo. Novomeský explica<br />

que a poesia de Jan se baseia na reali<strong>da</strong>de,<br />

ao passo que ele próprio escolhe a via do comunismo<br />

e do exílio, em vez <strong>da</strong> gratificação<br />

literária a que aspira Jan. No sétimo episódio,<br />

Jan está em Moscovo para ser agraciado com<br />

o Prémio Estaline. Seguido por dois cadáveres<br />

de judeus, surge o Espírito <strong>da</strong> Mãe, que se<br />

lança num longo monólogo sob a aparência<br />

de Mãe Terra em oposição à civilização. No oitavo<br />

episódio, somos informados de que, em<br />

Praga, uma manifestação estu<strong>da</strong>ntil contesta<br />

os intelectuais do regime, entre os quais o<br />

próprio Jan. O poeta volta à sua aldeia, onde<br />

a Irmã lhe confessa que a ele deve a descoberta<br />

do sexo, revelando-lhe que Jan e Irmã<br />

são o desdobramento de uma única pessoa.<br />

Aparece agora a Sombra do Pai para profetizar<br />

a invasão de Praga pelos tanques soviéticos<br />

em 1968. A tragédia conclui com a discussão,<br />

em quadras rima<strong>da</strong>s, entre Capital e<br />

Revolução, que disputam Jan, como no episódio<br />

<strong>da</strong>ntesco de Buonconte <strong>da</strong> Montefeltro.<br />

No fim, vence a Revolução, mas apenas graças<br />

à concessão do Capital.<br />

A trama aqui conta<strong>da</strong> é a <strong>da</strong> última versão<br />

(incompleta, sobretudo em algumas falas de<br />

Jan), com exclusão do Apêndice escrito depois:<br />

é evidente que a referência à invasão<br />

dos tanques soviéticos, tal como o discurso<br />

explícito acerca do ano de 68 de Calderón,


provêm de posteriores acrescentos e correcções.<br />

Deste período posterior é também a<br />

escolha do nome do protagonista, que lembra<br />

Jan Palach, o estu<strong>da</strong>nte de Praga que, em<br />

Janeiro de 1969, se suici<strong>da</strong> publicamente pelo<br />

fogo, em protesto contra a invasão soviética.<br />

O ponto de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra é a reflexão<br />

inicia<strong>da</strong> durante uma viagem a Praga em<br />

65, em que Pasolini encontra os intelectuais<br />

checoslovacos e discute com eles o papel<br />

do intelectual e a questão <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />

do escritor. Naquela ocasião, o autor tinha<br />

já delineado claramente alguns dos elementos<br />

fun<strong>da</strong>mentais de Besta de Estilo:<br />

Um meu protagonista poderia ser um poeta<br />

checo.<br />

(...) agradeço a Janácek<br />

pela sua obra<br />

em que se reconhece o amor que se faz no<br />

meio <strong>da</strong>s moitas<br />

com as calças desabotoa<strong>da</strong>s, e as folhas<br />

húmi<strong>da</strong>s contra as coxas (...)<br />

e ao poeta Novomenský pelos seus olhos<br />

virgens.<br />

“Da versi introduttivi al ‘Rio della Grana’”,<br />

Vie nuove, 11 de Fevereiro de 1965<br />

Besta de Estilo é a mais anómala <strong>da</strong>s tragédias<br />

de Pasolini, não só pela duração <strong>da</strong> composição,<br />

de 1966 a 1975, num contínuo trabalho<br />

de acumulação de materiais que revela<br />

um impulso interior maior do que nas outras<br />

cinco, mas também pelo seu valor autobiográfico.<br />

A obra conta efectivamente o percurso<br />

de um homem que parte <strong>da</strong> decisão<br />

de ser poeta em virtude de uma sua sensuali<strong>da</strong>de<br />

“diversa”, aqui simboliza<strong>da</strong> pela masturbação<br />

no canavial, e de um amor à sua<br />

própria terra rural, e que passa depois pela<br />

consciência política, chegando finalmente à<br />

definição do estilo, ao escân<strong>da</strong>lo <strong>da</strong> Heresia<br />

e à consagração pela cultura oficial. (...)<br />

A primeira versão de Besta de Estilo fornece<br />

algumas indicações importantes para<br />

a encenação, que posteriormente desaparecem<br />

na versão final:<br />

O palco deve ser reduzido às dimensões do teatro<br />

de fantoches (dois ou três metros por dois).<br />

O Episódio (aldeia boémia). Ao fundo, uma<br />

pequena tribuna compra<strong>da</strong> num antiquário,<br />

medieval, carunchosa: o coro é constituído<br />

por uma só pessoa senta<strong>da</strong> ao centro, com os<br />

cabelos como os camponeses usam sempre.<br />

A ideia de uma redução <strong>da</strong>s dimensões do<br />

palco, que realça seguramente a palavra<br />

mas também o corpo dos actores e os pormenores<br />

do espaço, faz explicitamente<br />

lembrar a paixão pelos fantoches sicilianos<br />

que, poucos anos antes, teriam representado<br />

Santa Joana dos Matadouros e, no ano<br />

seguinte, seriam finalmente protagonistas<br />

<strong>da</strong> curta metragem Che cosa sono le nuvole.<br />

O cui<strong>da</strong>do posto nos objectos descritos<br />

e nos figurinos está em correspondência<br />

com a carga provocatória que as pequenas<br />

dimensões agudizam, como a indicação de<br />

que a cena <strong>da</strong> masturbação aconteça por<br />

trás de uma trave, ficando, porém, visíveis<br />

a cabeça e um joelho de Jan, ou que os dois<br />

cadáveres de judeus sejam “realistamente<br />

horrendos e, se possível, nus”.<br />

Tal como as outras três tragédias de<br />

1966, Besta de Estilo recolhe as reflexões<br />

metateatrais de Pasolini. Por exemplo, no<br />

sexto episódio, com a chega<strong>da</strong> imprevista<br />

<strong>da</strong> dimensão pública do poeta e com a explosão<br />

do escân<strong>da</strong>lo, a estrutura dramatúrgica<br />

ressente-se de algum desequilíbrio<br />

que paradoxalmente é tornado visível através<br />

de uma <strong>da</strong>s mais tradicionais técnicas<br />

<strong>da</strong> tragédia: o monólogo. O acontecimento<br />

é sublinhado pelo coro:<br />

E este acto <strong>da</strong> tragédia, então,<br />

só pode consistir em dois monólogos:<br />

o monólogo dos operários,<br />

e o monólogo do poeta<br />

– um depois do outro.


O aparente equilíbrio <strong>da</strong>do pela distância<br />

entre a poesia e a socie<strong>da</strong>de através do duplo<br />

monólogo é interrompido pela chega<strong>da</strong><br />

de um novo elemento:<br />

CORO<br />

(...) que acontece<br />

Na entropia<br />

gerou-se alguma coisa que não monologa<br />

Chega de facto Novomeský – ei-lo aqui<br />

trazido pelo destino.<br />

NOVOMESKÝ<br />

Jan, não estou aqui para uma discussão literária.<br />

Estou aqui como no apêndice de uma tragédia.<br />

Quase como se o autor, distraído,<br />

depois de ter escrito o seu Episódio,<br />

se recor<strong>da</strong>sse de alguma coisa essencial,<br />

e em duas palavras, ou numa co<strong>da</strong>, se quisesse<br />

safar.<br />

A estrutura <strong>da</strong> tragédia vacila, portanto,<br />

através <strong>da</strong> exposição dos seus próprios mecanismos:<br />

o autor intervém de repente, pela<br />

boca <strong>da</strong>s suas personagens, revelando a sua<br />

existência e os seus processos criativos. (...)<br />

Este particular uso <strong>da</strong> incursão metateatral<br />

será, alguns anos depois, reforçado<br />

pela transformação dos apontamentos<br />

dispersos reunidos para esta tragédia num<br />

ver<strong>da</strong>deiro Apêndice, que mu<strong>da</strong>rá completamente<br />

de sentido o alcance dramatúrgico<br />

<strong>da</strong> obra, pondo em crise a sua elaboração.<br />

Mas o pôr em crise <strong>da</strong> obra está já em<br />

acção no interior <strong>da</strong> própria obra: depois <strong>da</strong><br />

denúncia do processo de escrita no sexto<br />

episódio, por exemplo, o sétimo apresenta<br />

mesmo marcas de desagregação <strong>da</strong> palavra<br />

trágica através do monólogo do Espírito <strong>da</strong><br />

Mãe, que preludia a maceração linguística<br />

<strong>da</strong> trilogia que Testori iniciará em 1972, com<br />

L’Ambleto. Monólogo, portanto, invulgar<br />

num âmbito formalmente trágico, mais em<br />

consonância com contextos irreverentes e<br />

com uma intencionali<strong>da</strong>de análoga à que,<br />

no Manifesto para um novo teatro, Pasolini<br />

descobrirá na língua de Carmelo Bene:<br />

“Palavra teatral que dessacraliza e, para dizer<br />

tudo, se suja ela própria com mer<strong>da</strong>.” O<br />

sexto e o sétimo episódios comprometem<br />

irremediavelmente a estrutura <strong>da</strong> tragédia<br />

até à conclusão que, embora recuperando<br />

um mecanismo clássico como o do deus<br />

ex machina incarnado pela Irmã, dilui a<br />

obra no simbolismo com o pequeno diálogo<br />

<strong>da</strong>ntesco entre Revolução e Capital.<br />

Simbolismo esse que, aliás, se esboça já<br />

no segundo episódio, no qual aparecem<br />

em cena personagens alegóricas, numa espécie<br />

de revisitação do Sonho <strong>da</strong> Noite de<br />

Valpurgis do Fausto de Goethe, referido explicitamente<br />

em vários passos <strong>da</strong> obra.<br />

Besta de Estilo começa, portanto, como<br />

apêndice dos dramas do eu e do autobiografismo,<br />

procura afirmar-se como tragédia,<br />

vai desembocar no simbolismo, e, por<br />

fim, ser-lhe-á acrescentado um Apêndice<br />

que modificará ulteriormente a sua identi<strong>da</strong>de.<br />

Todo o desenvolvimento <strong>da</strong> obra<br />

mostra assim, se ain<strong>da</strong> fosse necessário,<br />

a sua anomalia, deslocando o objecto <strong>da</strong><br />

representação <strong>da</strong> classe burguesa, comum<br />

às outras tragédias de ambientação contemporânea,<br />

para a classe intelectual. Com<br />

Besta de Estilo, em suma, Pasolini não põe<br />

no centro <strong>da</strong> tragédia um pai que mata o<br />

filho [Afabulação], nem um suici<strong>da</strong> por diversi<strong>da</strong>de<br />

[Orgia], nem Julian amante dos<br />

porcos [Pocilga], nem Rosaura à procura<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de [Calderón], quatro burgueses<br />

que vivem a tragédia de serem burgueses,<br />

nem sequer Pílades, personificação do<br />

escân<strong>da</strong>lo perante a evolução burguesa <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de. No centro está o poeta, ou seja,<br />

autobiograficamente, o próprio Pasolini, e<br />

esta não pode ser uma tragédia, mas o testemunho<br />

“em directo” de um intelectual.<br />

A história de Jan é fácil de ler precisamente<br />

com esta chave, embora seja redutor e,<br />

em conclusão, errado limitarmo-nos a uma<br />

leitura literal, em paralelo com a vi<strong>da</strong> de<br />

Pasolini. O autor estu<strong>da</strong> na sua personagem


Jan as correspondências consigo mesmo e<br />

as possíveis consequências que enfrenta.<br />

Besta de Estilo é, na reali<strong>da</strong>de, uma tragédia<br />

sobre a tragédia de ser escritor (poeta,<br />

intelectual) na socie<strong>da</strong>de actual e não um<br />

superficial “travestir-se de ‘poeta checo’”.<br />

O Espírito <strong>da</strong> Mãe surge no ponto culminante<br />

desta reflexão, interrompendo, com<br />

uns bons doze versos de pura vocali<strong>da</strong>de<br />

(“Aaaaaaaaaaaaaaah! Aaaaaaaaaaaaaaah!”),<br />

o monólogo de Jan e destruindo, com uma<br />

língua desconjunta<strong>da</strong> nas palavras e na<br />

dicção, a “linguagem / artificial” do protagonista.<br />

Com esta desagregação expressiva<br />

desencadea<strong>da</strong> pela mãe-terra começa a<br />

ver<strong>da</strong>deira reflexão de Pasolini sobre a condição<br />

actual do poeta, com uma única consequência<br />

possível: a retira<strong>da</strong> de Jan ao tornar-se<br />

“besta de estilo”, e depois o regresso<br />

à terra donde partira, o seu distanciamento<br />

dos novos acontecimentos sociais (de 68), a<br />

possibili<strong>da</strong>de de uma instrumentalização<br />

ideológica pelo Capital ou pela Revolução.<br />

O regresso comporta também o restabelecimento<br />

<strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de primordial <strong>da</strong> pessoa:<br />

se o protagonista se desdobrou virtualmente<br />

no início <strong>da</strong> história em Jan, destinado<br />

à glória na capital, e a Irmã, destina<strong>da</strong><br />

à vergonha na terra natal, agora essa<br />

“dissociação” é ultrapassa<strong>da</strong> pela reunião<br />

<strong>da</strong>s duas partes, que, na primeira versão,<br />

acontecia até com um amplexo incestuoso<br />

num cemitério, evocando cena análoga em<br />

Pílades (aliás explicitamente mencionado<br />

através <strong>da</strong>s referências às Euménides que<br />

voltam a ser Fúrias).<br />

Stefano Casi<br />

I teatri di Pasolini, ed. Ubulibri, 2004<br />

(Trad. Ana Campos)


Pasolini segundo Antonio Latella<br />

Antonio Latella é um actor e encenador<br />

napolitano de trinta e seis anos. Em 2001<br />

ganhou o prémio especial UBU para o projecto<br />

“Shakespeare e mais além”, a 11ª edição<br />

do prémio dedicado a Luca Coppola e<br />

a Giancarlo Prati e o prémio Girulà de dramaturgia.<br />

Encenou os espectáculos Agatha<br />

de Marguerite Duras (1998), Otelo, Macbeth,<br />

Romeu e Julieta e Hamlet de Shakespeare<br />

(1999-2001), Alta Vigilância e Os Negros<br />

de Jean Genet (2001-2002), um estudo<br />

sobre Ricardo III de Shakespeare (2002),<br />

Querelle, a partir de Jean Genet (2002), I<br />

Trionfi de Giovanni Testori (2003), Noite de<br />

Reis, A Tempestade e A Fera Amansa<strong>da</strong> de<br />

Shakespeare (2003). Em 2002 iniciou a sua<br />

aclama<strong>da</strong> trilogia pasoliniana com Pílades,<br />

a que se seguiu Pocilga em 2003 e Besta de<br />

Estilo em 2004.<br />

(…) Desde os tempos em que era jovem actor<br />

sempre li PPP, a sua urgência causoume<br />

sempre dor, mal-estar, medo… decidi<br />

enfrentá-lo como encenador só quando<br />

encontrei os meus companheiros de vi<strong>da</strong><br />

(os meus amigos actores). Olhando para<br />

eles dia após dia percebi que os seus corpos<br />

finitos tendiam sempre para aquela<br />

infinitude, aquela urgência necessária para<br />

enfrentar o poeta. PPP precisa de ser comido,<br />

digerido, defecado, vomitado, não pode<br />

ser enfrentado apenas intelectualmente,<br />

os seus versos morreriam antes de ser ditos<br />

e não haveria troca com os espectadores,<br />

não haveria nenhuma comunhão com as<br />

suas proféticas palavras. Os textos escolhidos<br />

com o grupo delineiam um rito cultural<br />

ideal com os espectadores. O primeiro foi<br />

Pílades, e foi o próprio Pílades a sugerir-nos<br />

os outros dois. Demasia<strong>da</strong>s as perguntas<br />

sem resposta. Ca<strong>da</strong> peça de Pasolini é, mas<br />

é como se ca<strong>da</strong> texto existisse graças aos<br />

outros, como se fossem actos de um único<br />

grande texto. Os três espectáculos diferenciam-se<br />

sobretudo pela mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

ritual com os espectadores hóspedes; se as<br />

palavras são o pão de que nos devemos alimentar,<br />

o pão é servido de forma diferente,<br />

mas de ca<strong>da</strong> vez o pão continua a ser o alimento<br />

necessário para fazer ou para compreender<br />

ou para sofrer uma “revolução”.<br />

Em Pílades as palavras estão em cima <strong>da</strong><br />

mesa, todos as podem comer; em Pocilga as<br />

palavras são devora<strong>da</strong>s pelo protagonista<br />

que vai ser devorado por um porco que por<br />

sua vez será devorado (uma metáfora que<br />

indica a revolução a partir do interior do<br />

corpo <strong>da</strong> burguesia, a partir <strong>da</strong> família). Em<br />

Besta de Estilo os espectadores servem de<br />

espelho aos actores e vice-versa, numa relação<br />

de íntima e priva<strong>da</strong> comunhão. Besta<br />

de Estilo é o espectáculo que mais permanece<br />

ligado ao Manifesto para um novo teatro,<br />

não podia ser senão assim, <strong>da</strong>do que é<br />

um texto diário, um texto biografia.(…)<br />

Antonio Latella<br />

[Excerto de depoimento a publicar no “dossier<br />

Pasolini” do nº 16 <strong>da</strong> Revista Artistas Unidos,<br />

Trad. Clara Rowland]


Pílades<br />

Aconteceu-me ver outros espectáculos,<br />

por exemplo o Pílades dirigido por Antonio<br />

Latella que era belo, gostei do espectáculo,<br />

posso dizer que achei bons alguns actores e<br />

ninguém sabe melhor do que eu que, quando<br />

um actor é bom, há um bom encenador<br />

por trás dele. No entanto, esse Pílades era<br />

totalmente diferente do meu. Em especial,<br />

a mim ser-me-ia difícil imaginar um Pílades<br />

em que não estivesse presente o tom elegíaco<br />

do texto: Pílades dá a impressão de ser<br />

uma história <strong>da</strong> adolescência, uma história<br />

de tormento e de maldição. Mas o espectáculo<br />

de Latella é interessante e gostei dele<br />

porque, assumindo a forma de um debate,<br />

tornando-se uma coisa totalmente oposta,<br />

que eu não poderia fazer, resultava muito<br />

bem.<br />

Luca Ronconi<br />

“Introdução em forma de apontamentos” in<br />

Stefano Casi, I teatri di Pasolini, Ubulibri, 2004<br />

(Trad. Ana Campos)<br />

Pocilga<br />

Antonio Latella persegue a organização<br />

<strong>da</strong>s suas geometrias à conquista do teatro<br />

europeu. Com a segun<strong>da</strong> proposta do seu<br />

“tríptico Pasolini”, enfrentando o incómodo<br />

Pocilga, ei-lo que se confronta agora<br />

com outros novos encenadores estrangeiros<br />

na segun<strong>da</strong> edição do “Young Director<br />

Project” lançado em Salzburgo, aprovado<br />

triunfalmente por um público difícil. Conta<br />

a história <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de enigmática do<br />

jovem Julian, atraído desde rapaz pelo fascínio<br />

dos porcos, enquanto recusa o poder<br />

industrial <strong>da</strong> rica família alemã a que pertence,<br />

descrita por Pasolini citando Brecht<br />

e Grosz, enquanto Latella segue inspirações<br />

pictóricas mais recentes para impor<br />

aos seus fiéis actores, de Danilo Nigrelli<br />

e Cinzia Spanò a Marco Foschi e Rosario<br />

Tedesco, cruéis máscaras de látex e gestos<br />

grotescos sobre as linhas entre as luzes<br />

rosa. O rapaz resiste com o silêncio à tentativa<br />

de englobamento do sistema, e por<br />

fim entrega-se de certa forma à natureza,<br />

deixando-se engolir pela vagina <strong>da</strong> enorme<br />

porca rosa do seu desejo. Então surge como<br />

um selo trágico um sexteto de fantasmas<br />

de Espinoza, que traçam um juízo histórico-filosófico<br />

sobre os factos na forma de<br />

um miserere, enquanto se revela o sentido<br />

do sacrifício: a família que devora o porco<br />

cumpre o gesto decisivo e antropofágico de<br />

se alimentar <strong>da</strong>s carnes do seu descendente<br />

e vítima, e assim consagra-lhe o gesto<br />

escan<strong>da</strong>loso, reconduzindo-o ao ciclo natural.<br />

Mas nesta altura serão os camponeses<br />

e os imigrantes a reivindicar a revolta<br />

dele, e cabe-nos a nós assinalar a simples<br />

ver<strong>da</strong>de expositiva de Annibale Pavone,<br />

que é o seu intérprete. (...) Para além disso<br />

mostra-se num país de língua alemã uma<br />

Alemanha de 67 relutante em enterrar memórias<br />

nazis, usa<strong>da</strong> pelo autor para se referir<br />

ao nosso país: e o final revela a alusão<br />

quando, sobre as ruínas do Moinho Branco<br />

representado, soa o hino <strong>da</strong> Forza Italia.<br />

Franco Quadri<br />

La Repubblica, 10 de Agosto de 2003


A trilogia pasoliniana<br />

de Antonio Latella<br />

Pílades, Pocilga e Besta de Estilo de Pier<br />

Paolo Pasolini são os três textos do último<br />

desafio teatral de Antonio Latella e dos seus<br />

actores para quem a aposta é sempre mais<br />

alta até tocarem, no último espectáculo, os<br />

limites <strong>da</strong> própria natureza do teatro.<br />

Com Pílades Latella encontra-se frente<br />

a “uma assembleia cultural aberta”, como<br />

o próprio encenador a define, propondo de<br />

novo o primeiro parlamento <strong>da</strong> história, o<br />

<strong>da</strong> criação <strong>da</strong> democracia, numa fusão em<br />

cena de actores e espectadores. O público<br />

está sentado no palco em forma semi-circular<br />

com o olhar voltado para a plateia<br />

imediatamente oculta<strong>da</strong> pelo fechamento<br />

<strong>da</strong> cortina. Portanto, aqui estamos... ninguém<br />

pode agora perturbar a mente dos<br />

espectadores curiosos que, fechados na<br />

cena como numa esfera, estão agora prontos<br />

para o seu papel de juizes e ci<strong>da</strong>dãos.<br />

Estamos num tribunal e portanto prontos<br />

a alinhar por um lado ou por outro. Será que<br />

Orestes com o culto <strong>da</strong> deusa Atena está a<br />

efabular sobre o regresso <strong>da</strong>s Euménides,<br />

as benignas<br />

ORESTES<br />

Um Deus iluminou-me (...)<br />

Não conheceu a espera dentro <strong>da</strong>s vísceras,<br />

como um bezerro ou um cão: não saiu esbracejando<br />

<strong>da</strong> escuridão do bicho-mãe para a luz.<br />

(...) Nenhuma recor<strong>da</strong>ção de carne impotente<br />

guardou ela, portanto, dentro de si.<br />

Recor<strong>da</strong>ções, não as tem:<br />

apenas conhece a reali<strong>da</strong>de.<br />

Pílades<br />

Ou será Pílades “ele, o obediente, / o silencioso,<br />

o discreto, / o tímido, Pílades, o que<br />

nasceu para ser amigo” quem depois de<br />

solidão, incerteza e reflexão avança com<br />

o seu exército pronto para a sua utópica<br />

revolução<br />

PÍLADES<br />

Morreu, em ti, o encanto do poder.<br />

E um outro encanto nasce, o do tempo.<br />

Agora que estou prestes a conquistar-te<br />

(...) sinto que nunca te amei<br />

com tão incurável amor.<br />

Pílades<br />

O espectáculo conquista pela sua simplici<strong>da</strong>de<br />

– uma mesa e cadeiras –, e pela força<br />

impressionante e comovente do Pílades interpretado<br />

por Marco Foschi e pelo au<strong>da</strong>z<br />

Orestes de Rosario Tedesco.<br />

Latella dirige-se para uma leitura muito<br />

pasoliniana e pela força exclusiva <strong>da</strong> palavra,<br />

soberana sobre tudo e todos, e pela situação<br />

de pari<strong>da</strong>de que se cria em cena entre<br />

actores e espectadores. Se com Pílades<br />

Latella tinha despojado a sua leitura de ren<strong>da</strong>s<br />

e brocados, fazendo, como o próprio<br />

declara, “um Hino ao teatro <strong>da</strong> palavra (...)<br />

necessário e difícil, o único que é, como afirma<br />

o próprio Pasolini, um teatro democrático”,<br />

com Pocilga o encenador aproxima-se<br />

do que Pasolini no Manifesto para um novo<br />

teatro definia como “teatro <strong>da</strong> conversa e<br />

do grito”. É um evidente exagero que quer<br />

sublinhar a substancial distância quer entre<br />

os dois textos (Pocilga é seguramente o<br />

texto mais burguês de Pasolini, o que mais<br />

se distancia em forma e conteúdo do seu<br />

teatro <strong>da</strong> palavra), quer entre os dois espectáculos.<br />

Se Pílades era de facto contado<br />

em voz baixa mas com grande força verbal,<br />

Pocilga é pelo contrário gritado na sua extravagância<br />

de cenários e figurinos: uma<br />

casinha transparente é a viven<strong>da</strong> de Julian


(Annibale Pavone) e dois porcos antropomorfos<br />

os seus pais (Cinzia Spanò e Marco<br />

Foschi) vestidos de rosa, com máscaras<br />

monstruosas como a de Rosario Tedesco,<br />

genial intérprete de Herdhitze, amigo dos<br />

negócios dúbios do pai de Julian.<br />

Se Pocilga – como diz Latella – é “um bisturi<br />

que corta o corpo doente de uma burguesia<br />

infecta<strong>da</strong> com o cancro do poder”, Julian é<br />

o único, o diferente que consegue escapar<br />

a esta máquina de tortura. Julian, como o<br />

hóspede de Teorema do mesmo Pasolini,<br />

vive numa graça anti-burguesa e vital (caracteriza<strong>da</strong><br />

pela sua prática sodomita) mas<br />

que o levará bem depressa à morte.<br />

JULIAN<br />

Que coisa imensa e curiosa o meu amor.<br />

Não posso dizer-te quem amo; mas não é isso<br />

que interessa. Nunca<br />

o objecto <strong>da</strong> paixão amorosa foi tão ínfimo<br />

(para não dizer pior). O que conta<br />

são os seus fenómenos (...)<br />

Os fenómenos que este amor produz em<br />

mim<br />

podem resumir-se num só: uma graça,<br />

que, embora como uma peste, me atingiu.<br />

Pocilga<br />

O desafio cumpre-se a 22 de Setembro de<br />

2004 quando, na 36ª Bienal de Veneza, começa<br />

o último espectáculo <strong>da</strong> trilogia pasoliniana,<br />

Besta de Estilo, com encenação<br />

de grupo orienta<strong>da</strong> por Antonio Latella.<br />

Besta de Estilo é a última etapa dentro<br />

deste longo e intenso percurso, provavelmente<br />

a mais difícil mas também a mais<br />

característica para <strong>da</strong>r sentido à viagem<br />

completa de Pasolini até nós, espectadores<br />

doravante inevitavelmente contagiados.<br />

Porque provavelmente uma só pessoa<br />

nem talvez uma viva e sincera colaboração<br />

bastam para pôr a nu uma vi<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong><br />

menos a de Pier Paolo Pasolini, conta<strong>da</strong><br />

por detrás <strong>da</strong>s experiências do jovem poeta<br />

checo Jan (é explícita a referência a<br />

Jan Palach, estu<strong>da</strong>nte que se imolou em<br />

protesto contra a ocupação soviética <strong>da</strong><br />

Checoslováquia). Besta de Estilo é portanto<br />

uma autobiografia e é o próprio texto o<br />

pressuposto <strong>da</strong> montagem de Latella. Uma<br />

encenação que não põe em cena um ver<strong>da</strong>deiro<br />

e autêntico texto dramático mas<br />

uma vi<strong>da</strong> em verso conta<strong>da</strong> entre intimi<strong>da</strong>de<br />

e história, sendo Besta de Estilo – como<br />

diz Latella – o “não-representável porque é<br />

já na sua não-estrutura uma obra de arte.”<br />

Esta não-estrutura do texto leva portanto<br />

à impossibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> representação: <strong>da</strong>í<br />

portanto que o teatro e os actores não possam<br />

continuar a existir com as suas formas<br />

habituais, o palco dá lugar a um espaço<br />

virgem preenchido por um rio de palavras<br />

que são a vi<strong>da</strong> de um homem enquanto<br />

os actores se tornam conscientes portavozes<br />

desta vi<strong>da</strong>. O próprio Marco Foschi,<br />

na sua sacra e humana interpretação do<br />

protagonista Jan, não pode ser um actor<br />

que representa mas um homem que fala<br />

intimamente de outro homem, carregando<br />

consigo um fardo de paixões e desilusões<br />

contagiosas. A dimensão teatral desvanece-se<br />

de súbito de modo decidido, claro e<br />

consciente. Os actores estão em fila, vestidos<br />

com um fraque vermelho e negro sob<br />

luzes cruamente brancas que inevitavelmente<br />

conduzem o espectador para uma<br />

relação directa e sem enganos com a cena.<br />

A ficção do teatro desaparece e em certos<br />

momentos está-se tão fortemente envolvido<br />

que se quer participar directamente no<br />

que está a acontecer: acompanhando com<br />

palmas, enquanto se ouvem as melancólicas<br />

notas de Gracias a la vi<strong>da</strong> de Violeta<br />

Parra ou Brigante se more, canto popular,<br />

ou respondendo aos actores que parecem<br />

acusar-nos ou elogiar-nos.


Uma leitura emocionante e comovente,<br />

uma tentativa de representar uma vi<strong>da</strong><br />

dolorosa, dramática mas sempre e por isso<br />

mesmo fortemente vivi<strong>da</strong>.<br />

... E a vi<strong>da</strong> tem tanta graça<br />

ao apagar para sempre estas coisas...<br />

Pílades<br />

Gracias a la vi<strong>da</strong><br />

que me ha <strong>da</strong>do tanto<br />

me ha <strong>da</strong>do la risa<br />

y me ha <strong>da</strong>do el llanto.<br />

Violeta Parra, Gracias a la vi<strong>da</strong><br />

Federica Savini


em paralelo<br />

Pier Paolo Pasolini<br />

mesa-redon<strong>da</strong> sábado, 20 de maio<br />

18h00 · Pequeno Auditório <strong>da</strong> <strong>Culturgest</strong><br />

Descrições de descrições<br />

Conversa com quatro encenadores de Pasolini<br />

Quatro encenadores (três portugueses,<br />

um italiano) falarão à ro<strong>da</strong> de uma mesa<br />

do seu trabalho com o teatro de Pier Paolo<br />

Pasolini. Entre si, e com algumas coincidências,<br />

montaram cinco <strong>da</strong>s seis tragédias<br />

que constituem o núcleo de uma <strong>da</strong>s mais<br />

originais obras teatrais do século XX, tecendo<br />

relações fortíssimas com a História<br />

(desde as origens do teatro à contemporanei<strong>da</strong>de<br />

dos anos sessenta e setenta), e<br />

com a obra cinematográfica e poética do<br />

autor, bem como com a sua vi<strong>da</strong>.<br />

Luís Miguel Cintra encenou e interpretou<br />

em 1999 Afabulação no Teatro <strong>da</strong><br />

Cornucópia. João Grosso encenou e interpretou<br />

em 2005 Orgia, no Teatro Nacional D.<br />

Maria II, tendo também sido actor na estreia<br />

teatral de Pasolini em Portugal, em 1985,<br />

com Pílades (encenação de Mário Feliciano,<br />

CAM <strong>da</strong> Gulbenkian). Pedro Marques encenou<br />

Orgia em 2006 (estreia no Teatro Viriato<br />

em Viseu), depois de ter sido operador de<br />

luz na Afabulação <strong>da</strong> Cornucópia. Em Itália,<br />

Antonio Latella encenou em 2002 Pílades,<br />

em 2003 Pocilga e em 2004 Besta de Estilo.


não perca este fim-de-semana na culturgest<br />

sexta-feira, 19 de maio · 22h00 · galerias 1 e 2<br />

Inauguração <strong>da</strong>s exposições<br />

Kees Goudzwaard e Roma Publications<br />

23h00 Conferência de Dieter Roelstraete a partir do texto que escreveu para Os livros fazem<br />

amigos, uma <strong>da</strong>s publicações feitas a propósito <strong>da</strong> exposição.<br />

23h45 Concerto do artista Wouter van Riessen, que irá interpretar canções do seu CD Made<br />

Out of Wood (Roma Publications, 2005).<br />

sábado, 20 de maio · 18h00 · pequeno auditório<br />

Descrições de descrições<br />

Conversa com quatro encenadores de Pasolini<br />

Luís Miguel Cintra, João Grosso, Pedro Marques e Antonio Latella falam à ro<strong>da</strong> de uma mesa<br />

do seu trabalho com o Teatro de Pasolini.<br />

domingo, 21 de maio · 16h00 · pequeno auditório<br />

A propósito <strong>da</strong> exposição<br />

Roma Publications<br />

16h00 Leitura de poemas de e por Marije Langelaar, Miriam Van hee e Arjen Duinker (a propósito<br />

<strong>da</strong> publicação Dias abertos, que igualmente acompanha a exposição).<br />

16h45 Conversa com Mark Manders, Roger Willems e os artistas participantes sobre Roma<br />

Publications e a exposição.<br />

18h15 Conferência de Philippe van Cauteren, director do S.M.A.K. de Ghent, em torno de projectos<br />

específicos que desenvolveu em colaboração com Roma Publications.<br />

Os portadores de bilhete para o espectáculo têm<br />

acesso ao Parque de Estacionamento <strong>da</strong> Caixa<br />

Geral de Depósitos.


Conselho de Administração<br />

Presidente Manuel José Vaz<br />

Vice-Presidente Miguel Lobo Antunes<br />

Vogal Luís dos Santos Ferro<br />

Assessores<br />

Gil Mendo (Dança)<br />

Francisco Frazão (Teatro)<br />

Miguel Wandschneider (Arte Contemporânea)<br />

Raquel Ribeiro dos Santos (Serviço Educativo)<br />

Direcção de Produção<br />

Margari<strong>da</strong> Mota<br />

Produção e Secretariado<br />

Patrícia Blazquez<br />

Mariana Cardoso de Lemos<br />

Jorge Epifânio<br />

Exposições<br />

António Sequeira Lopes (Produção e Montagem)<br />

Paula Tavares dos Santos (Produção)<br />

Fernando Teixeira (Montagem)<br />

Susana Sameiro (<strong>Culturgest</strong> Porto)<br />

Comunicação<br />

Filipe Folhadela Moreira<br />

Maria João Franco (estagiária)<br />

Publicações<br />

Marta Cardoso<br />

Rosário Sousa Machado<br />

Activi<strong>da</strong>des Comerciais<br />

Catarina Carmona<br />

Serviços Administrativos e Financeiros<br />

Cristina Ribeiro<br />

Paulo Silva<br />

Direcção Técnica<br />

Eugénio Sena<br />

Direcção de Cena e Luzes<br />

Horácio Fernandes<br />

Audiovisuais<br />

Américo Firmino (Chefe de Imagem)<br />

Paulo Abrantes (Chefe de Audio)<br />

Tiago Bernardo<br />

Iluminação de Cena<br />

Fernando Ricardo (Chefe)<br />

Nuno Alves<br />

Maquinaria de Cena<br />

José Luís Pereira (Chefe)<br />

Alcino Ferreira<br />

Técnico Auxiliar<br />

Álvaro Coelho<br />

Frente de Casa<br />

Rute Moraes Bastos<br />

Bilheteira<br />

Manuela Fialho<br />

Edgar Andrade<br />

Joana Marto<br />

Recepção<br />

Teresa Figueiredo<br />

Sofia Fernandes<br />

Auxiliar Administrativo<br />

Nuno Cunha<br />

Apoio<br />

<strong>Culturgest</strong>, uma casa do mundo.<br />

Informações 21 790 51 55<br />

Edifício Sede <strong>da</strong> CGD, Rua Arco do Cego, 1000-300 Lisboa<br />

culturgest@cgd.pt • www.culturgest.pt

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