A casa portuguesa: Cristãos conquistadores em O último suspiro do ...
A casa portuguesa: Cristãos conquistadores em O último suspiro do ...
A casa portuguesa: Cristãos conquistadores em O último suspiro do ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
História, imag<strong>em</strong> e narrativas<br />
N o 4, ano 2, abril/2007 – ISSN 1808-9895<br />
viver. O tiro que mata Aöi Ue atinge o quadro, simbolicamente, b<strong>em</strong> no coração de Aurora,<br />
pintada, anos antes, por Vasco. Pela fresta provocada pela bala, o sangue de sua companheira<br />
de cárcere escorre.<br />
O corpo de Vasco, antes que possa alcançar o último <strong>do</strong>s Zogoiby, estoura, <strong>em</strong><br />
conseqüência de uma over<strong>do</strong>se ou de uma agulha que ele dizia habitar e percorrer seu corpo<br />
há t<strong>em</strong>pos. Seu sangue vai, então, misturar-se ao da restaura<strong>do</strong>ra. O Mouro, com o pouco<br />
t<strong>em</strong>po que lhe resta, pois é vitima<strong>do</strong> por um ataque de asma – herança paterna – recupera os<br />
manuscritos de sua obra e foge da torre <strong>do</strong> Alhambra de Vasco Miranda. Prestes a dar o<br />
último <strong>suspiro</strong>, sai a pregar pelas cercas e pelos postes da província as páginas manuscritas de<br />
sua história. Debaixo das oliveiras de um c<strong>em</strong>itério, vislumbra as paredes avermelhadas <strong>do</strong><br />
Mouristão, a última fortaleza construída, no Ocidente, por seus ancestrais, um perfil especular<br />
das fortalezas de Delhi e Agra, na Índia.<br />
Da<strong>do</strong> o caráter enciclopédio da narrativa <strong>em</strong> estu<strong>do</strong>, destacar-se-á, neste artigo,<br />
alguns aspectos da performance <strong>portuguesa</strong> a partir de sua chegada e conseqüente relação com<br />
os povos indianos. Um desses aspectos está relaciona<strong>do</strong> ao que motivou Salman Rushdie a<br />
escrever o romance. Em entrevista ao Salon Features Interview, o autor assinala:<br />
Eu queria escrever sobre a tradição da especiaria. Queria escrever sobre Cochim (Índia)<br />
porque estive lá no início da década de 1980 e fui acometi<strong>do</strong> por aquele lugar. [...] Aquele era<br />
um lugar muito bonito e foi também o primeiro ponto de contato. Na ficção científica as<br />
pessoas falam sobre os primeiros contatos entre a raça humana e outras raças; e Cochim foi o<br />
lugar <strong>do</strong> primeiro contato entre a Índia e o Ocidente, um tipo de instante de ficção científica,<br />
ou se quiser, um encontro de duas espécies. Então, o encontro e a mistura dessas duas culturas<br />
foi, você poderia dizer, meu assunto. E eu pensei que poderia começar <strong>do</strong> começo, começar<br />
com o primeiro contato <strong>em</strong> Cochim, com as atividades de Vasco da Gama e sua morte lá,<br />
enterro e subseqüente migração post-mort<strong>em</strong> para Portugal, como Eva Perón. Eu pensava que<br />
deveria começar com Vasco e dar-lhe esta dinastia furiosa. Realmente, o livro nasceu desse<br />
germe, dessa imag<strong>em</strong> que eu tinha. Estava, de fato, atraí<strong>do</strong> pela idéia de que o primeiro contato<br />
da Europa com a Índia não tinha si<strong>do</strong> para conquistar, <strong>em</strong>bora subseqüent<strong>em</strong>ente tenha si<strong>do</strong>,<br />
claro, conquistar. Tu<strong>do</strong> veio com a pimenta. Pensar que toda essa história incrível t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong><br />
num grão de pimenta; há mais da metade de um romance nisso! 6<br />
Se, para Vasco da Gama, a viag<strong>em</strong> t<strong>em</strong> um senti<strong>do</strong> econômico e religioso, pois iam descobrir<br />
cristãos e especiarias, (VELHO, 1999, p. 31 e CAMÕES, 1980, p. 2) para Rushdie, além<br />
desses senti<strong>do</strong>s, a viag<strong>em</strong> proporciona uma apimentada mistura cultural, talvez imprevista,<br />
mas resulta<strong>do</strong> da tentativa de se conquistar outras terras e gentes. A finalidade religiosa da<br />
viag<strong>em</strong>, quase esquecida pelos portugueses, é, <strong>em</strong> Rushdie, ironizada, visto que a “dinastia<br />
furiosa”, fundada a partir de Vasco da Gama, é um caldeamento entre cristãos, judeus,<br />
6<br />
RUSHDIE. Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 19 maio 2005.<br />
http://www.historiaimag<strong>em</strong>.com.br<br />
101