A casa portuguesa: Cristãos conquistadores em O último suspiro do ...
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História, imag<strong>em</strong> e narrativas<br />
N o 4, ano 2, abril/2007 – ISSN 1808-9895<br />
muçulmanos e hindus. Pelo Roteiro da primeira viag<strong>em</strong> de Vasco da Gama, atribuí<strong>do</strong> à pena<br />
de Álvaro Velho, o desejo de encontrar cristãos (e o Preste João, que parecia viver na Índia<br />
Baixa) foi aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. T<strong>em</strong>-se a sensação de que, uma vez encontra<strong>do</strong> o caminho rumo à<br />
terra das especiarias, os portugueses se deram por satisfeitos. Ao visitar<strong>em</strong> um t<strong>em</strong>plo hindu,<br />
Velho relata a impressão que aquele espaço causa no olhar cristão da tropa <strong>do</strong> Gama:<br />
Aqui nos levaram a uma grande Igreja, na qual estavam estas cousas seguintes: –<br />
Primeiramente o corpo da igreja é da grandeza de um mosteiro, toda lavrada de cantaria<br />
talhada de ladrilho. Na porta principal há um padrão de arame da altura de um mastro. Em<br />
cima desse padrão há uma ave que parece galo e outro padrão da altura de um hom<strong>em</strong> e muito<br />
grosso. No meio da igreja há um coruchéu to<strong>do</strong> de cantaria e t<strong>em</strong> uma porta que cabe um<br />
hom<strong>em</strong> e uma escada de pedra pela qual sob<strong>em</strong> à porta, que é de arame, onde estava uma<br />
imag<strong>em</strong> pequena, a qual eles diziam que era nossa Senhora. Diante da porta da Igreja, ao longo<br />
da parede, há sete pequenos sinos. Aqui fez o capitão mor a oração e nós outros com ele. Não<br />
entramos nessa capela porque seu costume é não entrar nela senão homens certos que serv<strong>em</strong><br />
às igrejas, aos quais eles chamam Quafeis. Esses Quafeis traz<strong>em</strong> umas linhas por cima <strong>do</strong><br />
ombro esquer<strong>do</strong>, que passam por baixo <strong>do</strong> ombro direito, assim como traz<strong>em</strong> os clérigos <strong>do</strong>s<br />
evangelhos a estola. Estes nos lançaram água benta, dão um barro branco que os cristãos desta<br />
terra costumam colocar nas testas e nos peitos, ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> pescoço, nos buchos e nos braços.<br />
Toda essa cerimônia fizeram ao capitão e lhe deram aquele barro para que pusesse. E o capitão<br />
o tomou e o deu a guardar dan<strong>do</strong> a entender que depois o poria. Outros santos estavam<br />
pinta<strong>do</strong>s pelas paredes da igreja, os quais tinham diad<strong>em</strong>as. E a sua pintura era <strong>em</strong> diversa<br />
maneira porque os dentes eram tão grandes, que saia da boca uma polegada e cada santo tinha<br />
quatro e cinco braços. Abaixo dessa igreja estava um grande tanque lavra<strong>do</strong> de cantaria, assim<br />
como muitos outros que pelo caminho tínhamos visto. (VELHO, 1999, 76-77)<br />
Por esses indícios, um questionamento se impõe: os indianos e o t<strong>em</strong>plo são vistos<br />
como cristãos por que os lusitanos queriam encontrá-los, ou por que a verdade <strong>portuguesa</strong><br />
decidiu por isso O cristianismo, aqui, parece funcionar como um tropo que combina as<br />
representações <strong>do</strong> real com as manipulações desse real assim entendi<strong>do</strong>. Parece que, para<br />
negar a alteridade religiosa, os portugueses projetam nos indianos sua própria identidade.<br />
Em O último <strong>suspiro</strong> <strong>do</strong> Mouro, o t<strong>em</strong>a da viag<strong>em</strong> assume diversas acepções. A<br />
viag<strong>em</strong> pela m<strong>em</strong>ória ajuda o narra<strong>do</strong>r a revolver os fios de sua genealogia e <strong>em</strong>aranhá-los<br />
aos fios das culturas oriental e ocidental. À medida que os <strong>em</strong>baralha, desconstrói a fronteira<br />
que o encontro inaugural de Vasco da Gama criou, porque transformou o mun<strong>do</strong> numa<br />
dicotomia: Oriente/Ocidente; nós/outros. A viag<strong>em</strong> à Península Ibérica seria uma tentativa de<br />
reaver os quadros da mãe, rouba<strong>do</strong>s por Vasco Miranda. O romance t<strong>em</strong> início com o fim<br />
dessa viag<strong>em</strong>, revelada ao leitor apenas na última parte da narrativa. Não é a viag<strong>em</strong> de um<br />
naturalista a registrar a paisag<strong>em</strong> de terras recém-descobertas, n<strong>em</strong> a aventura por mares<br />
desconheci<strong>do</strong>s, menos ainda por sua terra ou à roda <strong>do</strong> seu quarto. Não é também a de um<br />
peregrino à Terra Santa, mas à suposta pátria de seus antepassa<strong>do</strong>s.<br />
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