16.01.2015 Views

Protestantismo em Revista, volume 17 (Ano 07, n.3) - Faculdades EST

Protestantismo em Revista, volume 17 (Ano 07, n.3) - Faculdades EST

Protestantismo em Revista, volume 17 (Ano 07, n.3) - Faculdades EST

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Revista</strong> eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong> (ano <strong>07</strong>, n. 03) – set<strong>em</strong>bro-dez<strong>em</strong>bro de 2008<br />

São Leopoldo – RS<br />

Periodicidade Quadrimestral - ISSN 1678-6408<br />

http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

<br />

Coordenador Geral<br />

Prof. Dr. Oneide Bobsin<br />

Conselho Editorial<br />

Berge Furre - Universidade de Oslo<br />

Emil A. Sobottka – PUCRS<br />

Adriane Luísa Rodolpho – Escola Superior de Teologia<br />

Ricardo W. Rieth – Escola Superior de Teologia/ULBRA<br />

Edla Eggert – Unisinos<br />

ISSN: 1678-6408<br />

Responsável por esta edição<br />

Oneide Bobsin<br />

Capa desta edição<br />

Iuri Andréas Reblin<br />

Revisão<br />

Ezequiel de Souza, Kathlen Luana de Oliveira e Iuri Andréas Reblin<br />

Editoração Eletrônica<br />

Iuri Andréas Reblin<br />

Link Desta Edição: http://www3.est.edu.br/nepp/revista/0<strong>17</strong>/ano<strong>07</strong>n3.pdf<br />

<strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> é um órgão do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP),<br />

que visa ser um canal de socialização de pesquisas de docentes e discentes da área de Teologia,<br />

Ciências das Religiões, abrangendo o espectro das Ciências Humanas e das Ciências Sociais Aplicadas,<br />

tanto de integrantes da Escola Superior de Teologia (<strong>EST</strong>) quanto de outras instituições.<br />

<strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> está sob a coordenação do Prof. Dr. Oneide Bobsin, titular da Cadeira de<br />

Ciências das Religiões da <strong>EST</strong>.<br />

A revista eletrônica <strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> é uma (jan.-abr.; mai.-<br />

ago., set.-dez.), sendo que as três edições do ano são tradicionalmente planejadas <strong>em</strong> duas edições<br />

t<strong>em</strong>áticas e uma edição livre. Comumente, a equipe de redação até o do<br />

do quadrimestre e a acontece normalmente na segunda quinzena do<br />

do quadrimestre, salvo exceções. Confira a data estipulada na grade do tópico<br />

“edições anteriores” no site da revista.<br />

Os trabalhos deverão ser do Núcleo de Estudos e Pesquisa<br />

do <strong>Protestantismo</strong>: nepp_iepg@yahoo.com.br. Consulte as normas no site da revista. D<strong>em</strong>ais<br />

informações e edições anteriores, acesse o site (http://www3.est.edu.br/nepp)<br />

2<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Sumário<br />

Editorial ................................................................................................................................................4<br />

Textos:<br />

A Práxis Pastoral Batista à luz de uma pedagogia libertadora.......................................................6<br />

por Eliseu Roque do Espírito Santo<br />

YE HÉ HUÁ SHÌ WO DE MÙ ZHE: Religiosidade, genealogias transnacionais e m<strong>em</strong>órias<br />

compartilhadas de deslocamento: o caso do protestantismo chinês <strong>em</strong> Recife .........................23<br />

por Marcos de Araújo Silva<br />

Educação protestante e cultura afro-descendente: uma relação conturbada ............................37<br />

por Cláudia Sales de Alcântara e Geraldo Magela de Oliveira-Silva<br />

A importância do dinheiro nas práticas religiosas da Igreja da Graça.......................................57<br />

por José Guibson Dantas<br />

Saúde e doença: algumas considerações sobre a hermenêutica do neoprotestantismo<br />

brasileiro à luz da sociologia de Zygmunt Bauman.......................................................................74<br />

por Anderson Clayton Pires e Cláudio Ivan de Oliveira<br />

A “Mcdonaldização” da fé - um estudo sobre os evangélicos brasileiros - ...............................86<br />

por Eduardo Guilherme de Moura Paegle<br />

Resenhas, Leituras e Prefácios de Obras:<br />

Conflitos pastorais e presença luterana na política: século XIX .................................................100<br />

por Oneide Bobsin<br />

Como citar esta revista.................................................................................................................103<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 3


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Editorial<br />

O Núcleo de Estudos e Pesquisas do <strong>Protestantismo</strong> está disponibilizando mais<br />

um número da <strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong>. A t<strong>em</strong>ática escolhida para encerrar o ano de<br />

2008 foi práticas religiosas, procurando evidenciar a pluralidade existente no<br />

protestantismo brasileiro. Esperamos que os leitores e as leitoras apreci<strong>em</strong>, enviando<br />

críticas e sugestões para o aprimoramento da revista.<br />

O primeiro artigo é de autoria de Eliseu Roque do Espírito Santo, intitulado A<br />

práxis pastoral batista à luz de uma pedagogia libertadora. Nesse artigo, o autor retoma<br />

reflexões realizadas <strong>em</strong> sua dissertação de mestrado, procurando analisar os quatro<br />

el<strong>em</strong>entos fundantes da práxis pastoral batista, relacionando-os com a proposta<br />

pedagógica de Paulo Freire. O artigo coloca questões pertinentes à prática pastoral das<br />

igrejas, <strong>em</strong> geral, e da Igreja Batista, <strong>em</strong> particular.<br />

No segundo artigo, Marcos Silva trabalha com os protestantes chineses de<br />

Recife. Situando historicamente o protestantismo chinês, com as dificuldades impostas<br />

<strong>em</strong> relação à liberdade religiosa, o autor procura identificar as mudanças ocorridas pelo<br />

processo de migração. Focalizando sua análise <strong>em</strong> um grupo que freqüenta regularmente<br />

uma comunidade batista de Recife, Marcos Silva identifica os motivos para a conversão e<br />

participação na vida comunitária.<br />

O artigo de Cláudia Alcântara e Geraldo Oliveira-Silva avalia a relação entre<br />

protestantismo e cultura afro-brasileira. A partir da análise dos conteúdos da educação<br />

protestante presentes nas escolas bíblicas, os autores identificam a prática da ideologia<br />

do branqueamento <strong>em</strong> dois níveis. O artigo contribui para a discussão da relação entre<br />

protestantismo e cultura afro-descendente, no sentido de proporcionar uma maior<br />

sensibilidade para essa t<strong>em</strong>ática.<br />

José Guibson Dantas, através da análise de discursos proferidos pelo missionário<br />

R. R. Soares no programa televisivo “Show da Fé”, identifica a importância do dinheiro<br />

4<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

nas práticas religiosas da Igreja Internacional da Graça de Deus. Valendo-se da teoria das<br />

representações sociais de Serge Moscovici, o autor examina el<strong>em</strong>entos como<br />

prosperidade, dízimo e castigo, conforme <strong>em</strong>pregados <strong>em</strong> programas do “Show da Fé”.<br />

O artigo seguinte é de autoria de Anderson Clayton Pires e Cláudio Ivan de<br />

Oliveira, o qual, à luz da sociologia de Zygmunt Bauman, apresenta algumas<br />

considerações sobre a hermenêutica do neoprotestantismo no Brasil. Para o autor, o novo<br />

fenômeno religioso brasileiro possui duas características que permit<strong>em</strong> identificá-lo<br />

como uma “religião pós-moderna”, a saber, sua natureza antiescatológica e sua proposta<br />

ética de valorização do mundo, ou sua “transcendência”, como diria Bauman. O binômio<br />

saúde e doença assume importância fundamental e explicita o processo de<br />

“desescatologização da fé” no contexto da pós-modernidade.<br />

No artigo intitulado A “Mcdonaldização” da fé: um estudo sobre os evangélicos<br />

brasileiros, são apresentadas reflexões sobre a crescente midiatização e mercantilização da<br />

fé. Eduardo Guilherme de Moura Paegle, autor do artigo, entende que os grupos<br />

imagéticos, ligados ao neopentecostalismo, têm atuado a partir de uma lógica de<br />

mercado: bens simbólicos são oferecidos <strong>em</strong> um contexto de concorrência religiosa,<br />

priorizando-se a experiência individual e o espetáculo. Procura-se agradar às massas,<br />

oferecendo respostas a probl<strong>em</strong>as urgentes.<br />

Por fim, <strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> traz uma resenha redigida por Oneide Bobsin a<br />

partir do livro Em busca de um lugar ao Sol: estratégias políticas, de Marcos Antônio Witt.<br />

Segundo Bobsin, o livro aborda o t<strong>em</strong>a da imigração al<strong>em</strong>ã do século XIX no Rio Grande<br />

do Sul, realçando os vínculos religiosos e políticos existentes entre São Leopoldo e o Vale<br />

Três Forquilhas. A obra aponta para os interesses materiais que permeavam contratos<br />

matrimoniais e relações de compadrio, b<strong>em</strong> como os casos de disputa por bens e cargos,<br />

que marcavam o cotidiano de pastores, juízes e colonos. “É difícil dissociar religião,<br />

economia e política”, concorda Bobsin, ao citar o autor do livro.<br />

São Leopoldo, dez<strong>em</strong>bro de 2008.<br />

Oneide Bobsin<br />

Ezequiel de Souza<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 5


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

A Práxis Pastoral Batista à luz de uma pedagogia libertadora<br />

Por Eliseu Roque do Espírito Santo *<br />

Resumo:<br />

O presente artigo analisa a prática pastoral batista, delimitando-a neste trabalho como<br />

práticas e reflexões relacionadas à atividade do pastor ou pastora. Busca inspiração na<br />

pedagogia libertadora de Paulo Freire para analisar quatro aspectos relacionados ao trabalho<br />

pastoral, que são: o uso da palavra, o trabalho social da Igreja, o ensino e discipulado e,<br />

finalmente, a relação da escatologia com a construção de um projeto de uma nova<br />

humanidade. O autor conclui que deve-se buscar resultados mais qualitativos que<br />

quantitativos se o objetivo é a libertação. Isto implica numa revisão e atualização das práticas<br />

à luz da Palavra de Deus e do propósito de libertação.<br />

Palavras-chave:<br />

Libertação, batistas, pastor/pastora, Paulo Freire, Pedagogia Libertadora, Teologia Pastoral,<br />

Igreja.<br />

As reflexões que se segu<strong>em</strong> são fruto de um trabalho anterior, onde<br />

realizamos uma leitura teológica da obra Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire 1 .<br />

Nessa pesquisa, buscamos identificar a contribuição da teologia no pensamento<br />

freireano e, dialeticamente, a contribuição da pedagogia libertadora à teologia,<br />

especialmente à teologia pastoral batista. À luz da pedagogia libertadora de Paulo<br />

Freire, buscamos focar quatro aspectos da prática pastoral batista: 1) uso da palavra;<br />

2) trabalho social; 3) ensino e discipulado e 4) utopia de uma nova humanidade.<br />

* Pastor batista, Diretor do s<strong>em</strong>inário Teológico Batista do Rio Grande do Sul. Mestre <strong>em</strong> Teologia<br />

(IEPG-<strong>EST</strong> – São Leopoldo/RS), Licenciatura <strong>em</strong> Pedagogia (UERJ/RJ), Pós-Graduação Latu Sensu<br />

<strong>em</strong> Missões (Centro Evangélico de Missões – Viçosa/MG), Bacharel <strong>em</strong> Teologia (S<strong>em</strong>inário Bíblico<br />

Batista do Rio de Janeiro). E-mail: pastoreliseu@terra.com.br.<br />

1 ESPÍRITO SANTO, Eliseu Roque do. Teologia e pedagogia <strong>em</strong> diálogo a partir de uma leitura teológica da<br />

obra Pedagogia do oprimido de Paulo Freire. 2005. Dissertação (Mestrado). São Leopoldo: IEPG, 2005.<br />

6<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Para iniciar nossa reflexão, é preciso esclarecer que, quando falamos de<br />

práxis pastoral batista, referirmo-nos neste trabalho às práticas e reflexões<br />

relacionadas às atividades do pastor 2 . Para os batistas, os nomes “bispo”,<br />

“presbítero” e “pastor” designam o mesmo ofício 3 . Suas funções são: 1. ser um<br />

mestre espiritual, público ou particular, 2. administrar as ordenanças (Santa Ceia e<br />

Batismo), 3. superintender a disciplina e presidir as reuniões da igreja 4 . Na<br />

Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira 5 , no capítulo XI que trata do<br />

“Ministério da Palavra”, refere-se ao pastor como hom<strong>em</strong> chamado e separado por<br />

Deus para o ministério da palavra 6 .<br />

1 O uso da palavra na práxis pastoral batista<br />

O trabalho dos pastores batistas é essencialmente ensinar a Palavra de Deus e<br />

liderar as congregações locais. Aos futuros obreiros e obreiras, é ensinada a arte de<br />

fazer uso da palavra. A palavra, segundo as Escrituras, deve ser usada para<br />

confortar, corrigir e instruir (2Tm 3.16).<br />

O fato do ministério pastoral ser tido como essencialmente o ministério da<br />

palavra não é nenhum probl<strong>em</strong>a. Precisamos de líderes que façam bom uso da<br />

palavra (tanto divina quanto humana). O probl<strong>em</strong>a é quando o ministério da palavra<br />

se converte <strong>em</strong> monopólio da palavra, quando o uso da palavra passa a ser direito<br />

apenas de uns poucos. Quando isso acontece, a palavra passa a ser então arma de<br />

2 Oficialmente, os Batistas da Convenção Batista Brasileira (CBB) não têm ordenado mulheres para o<br />

pastorado. Algumas congregações e convenções estaduais, à revelia da CBB, já t<strong>em</strong> feito isso. A<br />

discussão parece que vai se prolongar por bom t<strong>em</strong>po. Os batistas da CBB têm a prática de, <strong>em</strong><br />

assuntos polêmicos, ir deixando sobre a mesa. Enquanto isso, líderes e igrejas mais ousadas vão<br />

decidindo por sua própria conta. A experiência desses “rebeldes”, que arriscam coisas novas,<br />

permite que a liderança nacional, à luz dessa experiência destes e destas, julgue o melhor caminho<br />

a ser tomado. Foi assim com a questão do divórcio. Os batistas confiam mais no senso comum que<br />

nos teólogos.<br />

3 STRONG, Augusto Hopkins. Teologia sist<strong>em</strong>ática. São Paulo: Hagnos, 2003. p. 674.<br />

4 STRONG, 2003, p. 677-678.<br />

5 SOUZA, Sócrates Oliveira de (Org.). Pacto e comunhão. Rio de Janeiro: Junta de Educação Religiosa<br />

da Convenção Batista Brasileira, 2004. p. 13-28.<br />

6 SOUZA, 2004, p. 23-24.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 7


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

opressão. Para a tradição batista, o monopólio da Palavra é exclusividade do Espírito<br />

Santo, que sopra onde quer (Jo 3.8).<br />

Esse “monopólio da palavra de uns poucos” é fruto de uma cultura do<br />

silêncio 7 . Cultura que se fundamenta na desconfiança do povo. “Desconfiança de que<br />

o povo seja capaz de pensar certo. De querer, de saber” 8 .<br />

Seguindo essa mesma linha de reflexão e preocupado com ensino da palavra<br />

de Deus e a catequese, Mesters pergunta:<br />

O que se faz diante dessa situação Confirmamos o povo na sua<br />

ignorância e acabamos, assim, de fechar uma parte da revelação<br />

divina no cofre forte do povo, que não se abre por si, n<strong>em</strong> por<br />

decreto, ou procuramos acordar o povo para o valor que possui e que<br />

poderia enriquecer a nossa cultura e o nosso conhecimento da<br />

revelação divina Se o povo silencia e só escuta, ao ouvir as<br />

explicações que lhe faz<strong>em</strong>os, dev<strong>em</strong>os ver nisso um sinal de que ele<br />

concorda e aceita a nossa palavra, reconhecendo a sua ignorância, ou<br />

sinal de que a nossa palavra nele não encontrou ressonância e lhe<br />

permanece estranha É impossível continuar uma catequese e uma<br />

explicação da Bíblia que ignoram o que o povo sabe e que só sab<strong>em</strong> o<br />

que o povo ignora Quando diz<strong>em</strong>os que o povo não t<strong>em</strong> nada a<br />

contribuir estamos apoiados <strong>em</strong> quê Talvez só numa convenção<br />

cultural ou numa tradição teológica s<strong>em</strong> m<strong>em</strong>ória, que está atrás dos<br />

nossos olhos e que n<strong>em</strong> nós perceb<strong>em</strong>os o quanto nos condiciona o<br />

nosso julgamento. 9<br />

Concordamos com Mesters quando diz que o povo t<strong>em</strong> muito a contribuir<br />

quanto à compreensão da Palavra de Deus e não só isso, ele também pode ajudar<br />

muito seus/suas líderes na compreensão da realidade. Cr<strong>em</strong>os que quando o povo<br />

silencia, como observa Mesters, independente de estar compreendendo ou não o que<br />

estamos lhe falando, o objetivo maior que buscamos deixa de ser alcançado, que é<br />

seu engajamento na ação libertadora.<br />

7 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 37. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 47.<br />

8 FREIRE, 1995, p. 47.<br />

9 M<strong>EST</strong>ERS, Carlos. Por trás das palavras. 2. ed. Petrópolis. RJ: Vozes, 1975. p. 33-44.<br />

8<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

A questão fundamental para nós pastores e pastoras é construirmos uma<br />

visão clara de nossa missão. O que quer<strong>em</strong>os de fato Quer<strong>em</strong>os que o povo se torne<br />

um verdadeiro grupo discípulos de Jesus ou apenas ouvintes da palavra (de Deus e<br />

nossa) Se quer<strong>em</strong>os que o povo se torne realmente um grupo de discípulos,<br />

precisamos devolver-lhe a palavra.<br />

Não é no silêncio que os homens se faz<strong>em</strong>, mas na palavra, no<br />

trabalho, na ação-reflexão. Mas se dizer a palavra verdadeira, que é<br />

trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é<br />

privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens (e<br />

mulheres)[acréscimo meu]. Precisamente por isto, ninguém pode<br />

dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num<br />

ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos d<strong>em</strong>ais. 10<br />

É importante observar que o conceito de palavra de Freire, que ele faz<br />

questão de adjetivar de palavra verdadeira, não se trata apenas de uma expressão<br />

verbal, escrita ou gestual. Além destas formas de expressão, a palavra se constitui na<br />

ação e reflexão. Só assim ela se torna a palavra criadora e transformadora do mundo.<br />

Não há no pensamento de Freire nenhuma marg<strong>em</strong> para um entendimento mágico<br />

da palavra.<br />

Essa perspectiva se harmoniza com o que Jesus afirma nos evangelhos: não<br />

basta ouvir a palavra, é preciso praticá-la (Mt 7.24-27).<br />

Constitui-se, portanto, como grande desafio para a tarefa pastoral à luz do<br />

que vimos: dialogar com o povo sobre a importância de unir a palavra à ação e<br />

reflexão, ensinar s<strong>em</strong> prescrever, acreditar na capacidade do povo e desafiar o povo<br />

para que pronuncie sua palavra.<br />

10 FREIRE, 1995, p. 78.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 9


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

2 A práxis pastoral batista no âmbito do social<br />

As igrejas batistas tend<strong>em</strong> a seguir a orientação de seus pastores e pastoras.<br />

Logo, a prática social das igrejas é reflexo, na maioria dos casos, da visão social de<br />

seus obreiros e obreiras.<br />

À luz do conceito de amor e generosidade na obra, Pedagogia do oprimido, os<br />

batistas precisam rever sua práxis social. O alerta de Freire precisa ser ouvido pelos<br />

pastores e pastoras: “Aqueles que se compromet<strong>em</strong> autênticamente com o povo é<br />

indispensável que se revejam constant<strong>em</strong>ente” 11 . Que seja este o momento de<br />

revisão!<br />

Há um esforço dos batistas da Convenção Batista Brasileira à uma<br />

participação mais efetiva no campo social. Esse esforço se torna evidente na<br />

elaboração de uma “Filosofia de Ação Social da CBB” 12 . Outro sinal de um<br />

despertamento para essa t<strong>em</strong>ática foi a publicação pela CBB, <strong>em</strong> 1998, do livro “Ação<br />

social da Igreja de Cristo”, onde 13 <strong>em</strong>inentes batistas da CBB contribuíram com<br />

artigos sobre o assunto 13 . No entanto, o engajamento das igrejas e de seus m<strong>em</strong>bros<br />

ainda é muito tímido. É possível que alguns aspectos da teologia batista estejam<br />

impedindo a concretização dessas propostas.<br />

Dentre as sugestões de trabalho social encontrado no site da CBB,<br />

encontramos: capelania hospitalar, atendimento à Terceira Idade, oficina de<br />

alternativas alimentares, ministério <strong>em</strong> presídios (evangelização), esportes, reforço<br />

escolar, entre outros.<br />

11 FREIRE, 1995, p. 48.<br />

12 FILOSOFIA de Ação Social da CBB. Disponível <strong>em</strong>: .<br />

13 Sobre os t<strong>em</strong>as que foram tratados, encontramos: a questão social e a realidade brasileira, a Bíblia e<br />

a responsabilidade social, a igreja relevante para a comunidade, voltando os olhos para a família,<br />

as desigualdades sociais, o trabalho e o desafio para a modernidade, a terra e o seu uso, o<br />

imperativo da alimentação, moradia, a saúde está doente, a educação e o progresso social,<br />

cidadania e dignidade, Jesus Cristo e as carências humanas.<br />

10<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Os batistas da CBB têm se dedicado principalmente a atividades de<br />

assistência social que, <strong>em</strong> geral, estão vinculadas a iniciativas de evangelização. Em<br />

vários Estados, t<strong>em</strong>os lares para crianças e idosos, colégios batistas, algumas<br />

faculdades, centros de recuperação de dependentes químicos, abrigos para pessoas<br />

carentes, hortas comunitárias, pequenos cursos profissionalizantes, distribuição de<br />

cestas básicas e outras pequenas iniciativas. Geralmente essas instituições e<br />

atividades são mantidas por convenções estaduais, associações de igrejas e <strong>em</strong> alguns<br />

casos, unicamente por igrejas locais.<br />

Esta prática de associar o trabalho social à evangelização é comum entre as<br />

igrejas evangélicas do Brasil, principalmente as evangélicas de missão e as<br />

pentecostais. Comentando sobre a visão dos batistas, Azevedo observa:<br />

Uma das conseqüências desta mentalidade é a crença de que todas as<br />

coisas pod<strong>em</strong> ser resolvidas no plano da vontade: se o interior do<br />

hom<strong>em</strong> mudar, o hom<strong>em</strong> mudará. Assim, toda mudança, mesmo a<br />

social, t<strong>em</strong> que passar pela experiência de conversão. Pode-se mudar<br />

as formas de governo, mas se não mudar os corações dos homens,<br />

não se pode esperar melhoria alguma [...] Neste caso, o político tornase<br />

uma dimensão secundária da organização humana. A pretensão é<br />

de neutralidade. 14<br />

Lourenço Stélio Rega 15 , um influente líder batista ao falar da<br />

responsabilidade social cristã, afirma ser esta “resultado e conseqüência da<br />

evangelização” 16 . Com essa afirmação, reproduz-se a idéia de que a transformação da<br />

sociedade virá unicamente pela conversão dos homens e mulheres. Como<br />

conseqüência desse modo de pensar, no momento <strong>em</strong> que se t<strong>em</strong> que decidir por<br />

fazer alguma coisa e quando o t<strong>em</strong>po e recursos são poucos, a orientação é optar pela<br />

evangelização e, dessa forma, a prática social é deixada <strong>em</strong> segundo plano.<br />

14 AZEVEDO, Israel Belo. A celebração do indivíduo: a formação do pensamento batista brasileiro.<br />

Piracicaba: Unimep; São Paulo: Exodus, 1996. p.<strong>17</strong>9-180.<br />

15 Lourenço Stélio Rega é diretor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo, escritor e m<strong>em</strong>bro<br />

Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL).<br />

16 REGA, Lourenço Stélio. A Bíblia e a responsabilidade social cristã. In: BERNARDO, Salovi;<br />

MORAES, Luís Paulo de L. (Orgs.). Ação social da Igreja de Cristo. Rio de Janeiro: JUERP, 1998. p. 27.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 11


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Freire discorda desse ponto de vista e vê como uma ilusão a idéia de<br />

transformar os corações dos homens e mulheres s<strong>em</strong> tocar nas estruturas <strong>17</strong> . Por outro<br />

lado, reconhece que não se pode negar “o papel da subjetividade na luta pela<br />

modificação das estruturas” 18 .<br />

Na verdade, a prática social batista tende mais ao assistencialismo (dar o<br />

peixe) que à assistência social (ensinar a pescar). O probl<strong>em</strong>a do assistencialismo é<br />

que gera dependência, dominação, oferece mais anestésicos que soluções<br />

duradouras, mais desumaniza que humaniza. Para que isso não ocorra, as igrejas e<br />

seus líderes (pastores e pastoras) dev<strong>em</strong> estar ao lado dos pobres e não sobre eles.<br />

Geralmente, traçamos nossos planos, elaboramos nossos projetos s<strong>em</strong> dialogar com o<br />

povo. As igrejas e seus líderes precisam desenvolver o diálogo com o povo,<br />

estabelecer estratégias que conduzam à promoção social.<br />

Eu mesmo, como pastor batista, resolvi incentivar minha igreja a distribuir<br />

cestas básicas na época do natal, após termos distribuído, ouvimos algumas<br />

reclamações do tipo de arroz que distribuímos (arroz parbolizado), nos sentimos<br />

indignados, afinal “eles e elas não tinham do que reclamar já que estavam recebendo<br />

uma ajuda”. Essa postura autoritária revelava nossa falsa generosidade.<br />

de prescrição.<br />

O que houve de errado nesse trablho que realizamos Freire chama esse erro<br />

Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra.<br />

Daí, o sentido alienador das prescrições que transformam a<br />

consciência recebedora no que vimos chamando de consciência<br />

“hospedeira” da consciência opressora. Por isto, o comportamento<br />

dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de<br />

pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores. 19<br />

<strong>17</strong> FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 106.<br />

18 FREIRE, 1995, p. 37.<br />

19 FREIRE, 1995, p. 34.<br />

12<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

T<strong>em</strong>os que admitir que muitos projetos desenvolvidos por igrejas, ONGs e<br />

outras entidades são elaborados não <strong>em</strong> função das reais necessidades do povo, mas<br />

muito mais <strong>em</strong> função dos desejos pessoais dos líderes destas organizações. O<br />

grande probl<strong>em</strong>a é que ao prescrever <strong>em</strong> vez de dialogar com o povo, terminamos<br />

não só prescrevendo errado (e para Freire prescrever é s<strong>em</strong>pre errado), mas também<br />

retiramos do povo o privilégio de ser parte da ação libertadora, <strong>em</strong> outras palavras,<br />

estamos desumanizando.<br />

Outro grande probl<strong>em</strong>a dos batistas no campo social é a ação política.<br />

Comenta Azevedo:<br />

Neste caso, o político tornar-se uma dimensão secundária da<br />

organização humana. A pretenção é a de neutralidade. Não importa o<br />

sist<strong>em</strong>a <strong>em</strong> vigor: o crente é cidadão de outra pátria. Não importa o<br />

regime <strong>em</strong> ação: o crente o considera como um mal necessário. Não<br />

importa o governo no poder: o crente deve obedecê-lo. 20<br />

É preciso um grande esforço para reeducar politicamente o povo batista. Essa<br />

pseudo-neutralidade política t<strong>em</strong> impedido o alcance de objetivos tão valorizados<br />

pelo grupo como a evangelização do país. A denominação t<strong>em</strong> enfrentado<br />

dificuldades na evangelização de indígenas, na construção de t<strong>em</strong>plos <strong>em</strong> algumas<br />

cidades, no recebimento de missionários estrangeiros e etc. Todas essas dificuldades<br />

possu<strong>em</strong> um campo de enfrentamento, o político. Se os batistas não vê<strong>em</strong> no campo<br />

político um espaço de transformação de vidas, pelo menos deveriam ver como meio<br />

para des<strong>em</strong>baraçar os entraves de uma política “anti-evangélica”.<br />

O despertamento dos batistas para uma ação política mais eficaz, cr<strong>em</strong>os,<br />

depende de uma reflexão (revisão) teológica de seus posicionamentos. Os batistas<br />

não têm se ocupado muito <strong>em</strong> pensar sua fé, geralmente estão preocupados <strong>em</strong><br />

defendê-la. Cr<strong>em</strong>os que somente uma reflexão teológica mais profunda permitirá<br />

uma mudança de mentalidade <strong>em</strong> relação à política. Reflexões <strong>em</strong> torno da teologia<br />

20 AZEVEDO, 1996, p. 180.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 13


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

de missão têm se desenvolvido, mesmo que timidamente, e já t<strong>em</strong> apresentado<br />

resultados.<br />

3 A práxis pastoral batista e a onda neoliberal<br />

Azevedo afirma que ”os batistas no Brasil vêm forjando, à luz de uma<br />

tradição própria, suas idéias filosóficas a partir de uma grande matriz: o<br />

liberalismo” 21 . Como herança desse pensamento liberal, t<strong>em</strong>os na práxis batista:<br />

ênfase exagerada na separação entre Igreja e Estado, a centralidade do indivíduo e a<br />

forte ênfase na uso da razão na compreensão da fé.<br />

Do liberalismo para o neoliberalismo, é só um passo. Não é surpresa que os<br />

batistas da atualidade, b<strong>em</strong> como outras igrejas mais recentes do Brasil, tenham se<br />

deixado seduzir por idéias neoliberais.<br />

Falando sobre o assalto neoliberal ao campo social e educacional, Tomaz<br />

Tadeu da Silva apresenta alguns rasgos dessa ideologia:<br />

(1) deslocamento das causas – o eixo de análise é deslocado do<br />

questionamento das relações de poder e de desigualdade para o<br />

gerenciamento eficaz e eficiente dos recurso; (2) culpabilização das<br />

vítimas – a miséria e a pobreza resultam de escolhas e decisões<br />

inadequadas por parte dos miseráveis e dos pobres; (3) despolitização<br />

e naturalização do social – as presentes condições estruturais e sociais<br />

são vistas como naturais e inevitáveis e abstraídas de sua conexão<br />

com relações de poder e subjugação; (4) d<strong>em</strong>onização do público e<br />

santificação do privado [...] (5) apagamento da m<strong>em</strong>ória e da história<br />

[...]. 22<br />

Essas estratégias neoliberais que, segundo Tadeu da Silva, estão assaltando o<br />

campo social e educacional têm suas correspondências no meio eclesiástico. Alguns<br />

21 AZEVEDO, 1996, p. 299.<br />

22 SILVA, Tomaz Tadeu da. O projeto educacional da nova direita e a trajetória da qualidade total. In:<br />

SILVA, Tomaz Tadeu da; GENTILI, Pablo (Orgs.). Escola S.A.: qu<strong>em</strong> ganha e qu<strong>em</strong> perde no<br />

mercado educacional do neoliberalismo. Brasília: CNTE, 1996. p. 7-8.<br />

14<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

slogans neoliberais são facilmente absorvidos pelas igrejas batistas, já que são<br />

heranças do liberalismo. Questões como despolitização do social e d<strong>em</strong>onização do<br />

público já faz<strong>em</strong> parte do repertório batista há muito t<strong>em</strong>po.<br />

Já a ênfase no gerenciamento eficaz é fenômeno mais recente e traz consigo<br />

muitas conseqüências, entre elas, o surgimento do que pod<strong>em</strong>os chamar de neoclericalismo,<br />

ou seja, um enfoque muito centrado na figura do/da líder. Nota-se nas<br />

igrejas batistas, cuja tradição s<strong>em</strong>pre foi de um governo d<strong>em</strong>ocrático e<br />

congregacional, uma tendência à centralização de poder na figura de um pastor ou<br />

de um pequeno grupo de líderes 23 .<br />

Fascinados e fascinadas pelo crescimento explosivo de algumas igrejas norteamericanas,<br />

pastores e pastoras estão recebendo de forma acrítica idéias de autores<br />

evangélicos norte-americanos. No afã da eficácia e dos resultados rápidos, muitos<br />

princípios caros dos batistas estão sendo sacrificados, dentre estes, a prática<br />

d<strong>em</strong>ocrática das igrejas de tomar suas decisões.<br />

George Barna, um desses escritores norte-americanos que muito t<strong>em</strong><br />

influenciado a geração dos pastores-administradores, <strong>em</strong> seu livro O poder da visão 24 ,<br />

afirma categoricamente que a visão do que deve ser feito, ou seja, do que vai nortear<br />

o planejamento da igreja, Deus dá aos líderes, mais propriamente ao pastor. É<br />

enfático <strong>em</strong> afirmar que a visão não deve ser resultado do consenso 25 . Depois que o<br />

líder recebe a visão de Deus, deve passá-la para a igreja.<br />

Seguindo esse mesmo princípio, Josué Campanhã, influente líder batista, <strong>em</strong><br />

seu livro Planejamento estratégico, obra muito difundida não apenas no meio batista,<br />

23 As igrejas batistas da CBB têm como prática realizar Ass<strong>em</strong>bléias Regulares mensais, onde, através<br />

do voto de cada m<strong>em</strong>bro, as decisões são tomadas. Essa prática está desaparecendo lentamente <strong>em</strong><br />

muitas igrejas. Algumas igrejas começaram a realizar ass<strong>em</strong>bléias apenas trimestralmente, e já há<br />

algumas que só realizam anualmente. No intervalo dessas ass<strong>em</strong>bléias, um pequeno grupo de<br />

líderes toma as decisões. Assim, lentamente, o modelo congregacional vai se descaracterizando.<br />

24 BARNA, George. O poder da visão. 1. ed. São Paulo: Abba Press, 1993. p. 50.<br />

25 BARNA, 1993, p. 51.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 15


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

mas evangélico <strong>em</strong> geral, afirma: “a visão v<strong>em</strong> de Deus para o líder, para ser<br />

compartilhada com a igreja” 26 .<br />

Ao afirmar que a visão de Deus para sua igreja v<strong>em</strong> ao líder para depois ele<br />

ou ela compartilhar com a igreja é uma visão sacerdotal nos moldes do Antigo<br />

Testamento, <strong>em</strong> que os sacerdotes pertenciam a uma casta de religiosos superiores ao<br />

povo, e fere um dos principais princípios batistas, que é o sacerdócio do crente.<br />

O sacerdócio do crente, portanto, significa que todos os cristãos são<br />

iguais perante Deus e na fraternidade da igreja local. Cada cristão,<br />

tendo acesso direto a Deus através de Jesus Cristo, é seu próprio<br />

sacerdote e t<strong>em</strong> a obrigação de servir de sacerdote de Jesus Cristo <strong>em</strong><br />

benefício de outras pessoas. 27<br />

Essa onda neoliberal, cuja marca principal é seu pragmatismo, também t<strong>em</strong><br />

trazido para o campo eclesiástico uma nova terminologia. Palavras com conotações<br />

mercadológicas hoje faz<strong>em</strong> parte do vocabulário comum das igrejas, tais como:<br />

gerenciamento 28 , produtividade 29 , concorrentes 30 , planos de ação, estratégias, entre<br />

outras.<br />

Estas novidades eclesiásticas já estão sendo combatidas no seu berço, USA.<br />

Vozes, mesmo que ainda poucas, estão se levantando contra essa tendência. Um livro<br />

recente, traduzido e publicado no Brasil, intitulado Igreja S/A: dando adeus à igreja<strong>em</strong>presa<br />

e recuperando o sentido da igreja-rebanho 31 , mostra essa preocupação.<br />

neoliberal<br />

Quais desafios se apresentam à práxis pastoral batista à luz dessa onda<br />

26 CAMPANHÃ, Josué. Planejamento estratégico: como assegurar qualidade no crescimento de sua<br />

igreja. São Paulo: Vida, 2001. p. 97.<br />

27 SOUZA, Sócrates Oliveira de (Org.). Pacto e comunhão. Rio de Janeiro: Junta de Educação Religiosa<br />

da Convenção Batista Brasileira, 2004. p. 33.<br />

28 CAMPANHÃ, 2001, p. 243.<br />

29 BARNA, 1993, p. 126.<br />

30 BARNA, 1993, p. 95.<br />

31 WAGNER, E. Glenn. Igreja S/A: dando adeus à igreja-<strong>em</strong>presa e recuperando o sentido da igrejarebanho.<br />

São Paulo: Vida, 2003.<br />

16<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Parece-nos que o grande desafio é primeiramente a reflexão crítica. O<br />

ministério pastoral batista no Brasil está atordoado diante de tantas novidades. Ora<br />

ouve falar de “Igrejas com Propósitos” 32 , “Rede Ministerial” 33 , “igrejas <strong>em</strong> células” 34 ,<br />

“G12” 35 , “Crescimento natural da Igreja” 36 , entre outras novidades.<br />

Os pastores e pastoras batistas, ao estudar essas novas propostas<br />

eclesiológicas com o fim de aplicá-las às suas igrejas, precisam antes passá-las pelo<br />

crivo teológico. Alguns caminhos muitos largos e aparent<strong>em</strong>ente fáceis de transitar<br />

pod<strong>em</strong>, no final de tudo, resultar <strong>em</strong> desastre para a igreja (Mt 7.13-14).<br />

4 A práxis pastoral batista no ensino e discipulado<br />

Os batistas dão bastante ênfase ao ensino e ao discipulado. Tradicionalmente<br />

uma igreja batista da CBB é dividida <strong>em</strong> organizações voltadas a instruir seus<br />

m<strong>em</strong>bros de acordo com sua faixa etária. Há organizações para crianças, juniores,<br />

adolescentes, jovens, adultos e idosos. Além das organizações divididas por faixa<br />

32 Igreja com Propósitos é uma metodologia que t<strong>em</strong> crescido no Brasil batista. Várias igrejas e<br />

pastores têm aderido a essa metodologia. A obra principal que trata desse modelo de igreja é:<br />

WARREN, Rick. Uma igreja com propósitos. São Paulo: Vida, 1999.<br />

33 Rede Ministerial é uma metodologia que propõe revitalizar a igreja através do ministério dos dons<br />

espirituais. Foi desenvolvida na Willow Creek Community Church nos EUA. Hoje já possui uma<br />

organização internacional que divulga e auxilia na implantação do modelo. T<strong>em</strong>os obras<br />

traduzidas pela Igreja Batista Central de Fortaleza, Ceará, que introduz<strong>em</strong> a metodologia.<br />

BUGBEE, Bruce; COUSINS, Don; HYBELS, Bill. Rede ministerial: pessoas certas... lugares certos...<br />

pelas razões certas...: guia do participante. São Paulo: Vida, 1998.<br />

34 Igrejas <strong>em</strong> células é uma metodologia que busca o crescimento da igreja através de pequenos<br />

grupos (8-15 pessoas). Esses grupos se reún<strong>em</strong> geralmente <strong>em</strong> lares com o propósito de edificação<br />

mútua e evangelização. IGREJA <strong>em</strong> células. Disponível <strong>em</strong>: .<br />

35 G12 é uma variação do modelo de igrejas <strong>em</strong> células com um perfil neopentecostal e<br />

neocarismático. Suas principais características são: ênfase na formação de grupo de 12 pessoas, na<br />

participação numa reunião que chamam de Encontro, prática de regressão psicológica, sopro<br />

espiritual, e etc.<br />

36 Crescimento Natural da Igreja é um modelo para crescimento das igrejas com base <strong>em</strong> pesquisas<br />

do Instituto para o Desenvolvimento da Igreja. Os seus princípios teóricos estão expostos na obra<br />

de SCHWARZ, Christian A.; SCHALK, Christoph. A prática do crescimento natural da igreja. Curitiba:<br />

Evangélica Esperança, 1998.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp <strong>17</strong>


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

etária, há as que são divididas também por gênero 37 . Há também a Escola Bíblica<br />

Dominical (EBD) que é a maior organização e congrega todos os grupos <strong>em</strong> classes<br />

de aula.<br />

Os cultos também são voltados ao ensino e discipulado. A maioria das igrejas<br />

t<strong>em</strong> pelo menos dois cultos s<strong>em</strong>anais, o culto de domingo e quarta-feira (ou meio de<br />

s<strong>em</strong>ana). Algumas igrejas acrescentam às atividades das organizações e dos cultos,<br />

reuniões nos lares através de pequenos grupos.<br />

O probl<strong>em</strong>a não está na falta de atividade, mas <strong>em</strong> como tudo é feito.<br />

Geralmente, a responsabilidade é dividida entre um pequeno grupo de m<strong>em</strong>bros<br />

mais comprometidos e a grande maioria termina como espectadores ou assistidos.<br />

Esse fenômeno gera pelo menos duas graves conseqüências: o desgaste dos poucos<br />

que trabalham e a falta de crescimento pessoal e espiritual dos que são feitos objetos<br />

da ação.<br />

À luz do que aprend<strong>em</strong>os no diálogo com Freire e a teologia, uma ação<br />

verdadeiramente libertadora não usa armas da dominação, n<strong>em</strong> trata homens e<br />

mulheres como objetos. Uma ação libertadora tratará os oprimidos e oprimidas como<br />

sujeitos, eles e elas farão parte da ação que os tornará livres.<br />

Desse modo, <strong>em</strong> vez de um ensino ou discipulado pautado na prescrição, na<br />

palavra de alguns poucos e no silêncio da maioria, o diálogo e a ação ocupará o<br />

centro do processo formador da igreja. Como vimos <strong>em</strong> Freire, “não é no silêncio que<br />

os homens se faz<strong>em</strong>, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão” 38 .<br />

Todo esforço pastoral que pretende a formação de discípulos maduros e<br />

responsáveis, deve preocupar-se com a participação de todos na ação libertadora. No<br />

37 Para mulheres t<strong>em</strong>os MCA (Mulheres Cristãs <strong>em</strong> Ação) e para homens UHB (União de Homens<br />

Batistas).<br />

38 FREIRE, 1995, p. 78.<br />

18<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

entanto, essa ação deve ser acompanhada de reflexão, senão se transforma <strong>em</strong><br />

ativismo e termina servindo à opressão.<br />

Caminha junto com o ativismo o fanatismo. Ambos têm uma causa <strong>em</strong><br />

comum: falta de reflexão e inserção crítica.<br />

Resta aos pastores e pastoras esses dois grandes desafios: mobilizar a igreja à<br />

reflexão e ao trabalho. O importante é sabermos que s<strong>em</strong> reflexão e trabalho de todos<br />

e todas envolvidos/as, todo esforço é vão e até perigoso pelos resultados. Pod<strong>em</strong>os<br />

está transferindo apenas oprimidos e oprimidas de um pólo a outro de opressão.<br />

Uma práxis pastoral libertadora terá que seguir pela senda mais difícil,<br />

porém necessária, do diálogo d<strong>em</strong>ocrático, da reflexão junto com o povo, da<br />

confiança nos homens e mulheres iniciantes na vida cristã, da confiança nos mais<br />

antigos mesmos presos a tradições, algumas já caducas inclusive; terá que prepararse,<br />

como diz Freire, para deserções da luta e até de traições 39 .<br />

5 A práxis pastoral batista e a utopia de uma nova humanidade<br />

Os batistas não crê<strong>em</strong> numa mudança no mundo (humanidade) pela via da<br />

política ou de mudanças estruturais. Na verdade, os batistas <strong>em</strong> geral são muito<br />

pessimistas quanto ao futuro. Crê<strong>em</strong> que o mundo avança para uma destruição que<br />

culminará com a segunda volta de Cristo (parousia). O que os crentes dev<strong>em</strong> fazer é<br />

pregar e viver o evangelho. É esse compromisso de viver o evangelho que o leva a<br />

alguma ação no campo social.<br />

Azevedo chama essa visão de história dominante entre os batistas e alguns<br />

grupos de evangélicos, de peregrinismo; e assim ele a descreve:<br />

É um tipo de dualismo apocalíptico, no qual existe um plano de Deus<br />

para cada pessoa; este plano já está dado: ele é preexistente às<br />

decisões de cada um na história. E nesta história, pré-determinada, o<br />

fim será trágico: cabe a cada um salvar-se. Para estes salvos, o futuro<br />

39 FREIRE, 1995, p. 168.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 19


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

será glorioso. Importar-se com o presente é irrelevante. Os eventuais<br />

sofrimentos dev<strong>em</strong> ser relativizados porque o fim da história reserva<br />

ao crente uma vida completamente diferente, infinitamente melhor<br />

na sua qualidade. 40<br />

A perspectiva da espera e o sentido da esperança, foi, mais uma vez,<br />

distorcida pela igreja. Segundo Jesus, o t<strong>em</strong>po de espera deve ser de luta e trabalho<br />

(Mt 24.42-51; Lc 12.35-40) e, <strong>em</strong> vez da igreja se ocupar com o t<strong>em</strong>po do fim, deve se<br />

ocupar da missão (At 1.6-8).<br />

É nessa perspectiva que Freire trata o t<strong>em</strong>a esperança. Ele sabia que a<br />

esperança mal interpretada poderia levar a um cruzar de braços 41 . Para Freire, a<br />

Pedagogia do oprimido é uma Pedagogia da esperança, serve como motor da luta, como<br />

utopia que aponta o futuro e transforma o presente.<br />

Nesse sentido, torna-se muito importante a observação de Libâneo e<br />

Bing<strong>em</strong>er de que “a escatologia clássica descuidava a trama do jogo, para l<strong>em</strong>brar ao<br />

hom<strong>em</strong> continuamente a importância única, decisiva do final do jogo” 42 . A<br />

escatologia precisa ser um motor que <strong>em</strong>purra a Igreja para o futuro, construindo-o a<br />

partir de sua ação no presente. Para isso, a Igreja precisa olhar o futuro como algo a<br />

ser construído e não como algo já determinado.<br />

Nesse sentido, a escatologia pode colaborar à práxis pastoral. Ela possui uma<br />

força, um atrativo; ela ao impulsionar a igreja para o futuro, transforma o seu<br />

presente. É mais ou menos assim que Leonardo Boff define utopia:<br />

Utopia, literalmente, significa: “de nenhum lugar”. Utopia é a<br />

descrição de um estado ideal da condição humana, pessoal e social,<br />

que não existe <strong>em</strong> nenhum lugar mas que serve para relativisar<br />

qualquer tipo de sociedade, criticá-la e também impulsioná-la para<br />

que se modifique e se oriente na direção do ideal apresentado. A<br />

utopia representa a realização plena de virtualidades presentes<br />

40 AZEVEDO, 1996, p. <strong>17</strong>7.<br />

41 FREIRE, 1995, p. 82.<br />

42 LIBÂNIO, João B.; BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 32.<br />

20<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

dentro da vida. Neste sentido, o utópico pertence ao real, na sua<br />

dimensão possível e virtual. 43<br />

Conclusão<br />

A Pedagogia Libertadora de Paulo Freire impõe um desafio ao ministério<br />

pastoral batista de pensar suas estratégias <strong>em</strong> função de objetivos libertadores. Desse<br />

modo, uma determinada ação não será considerada eficaz por resultados<br />

quantitativos (número de batismos, de pessoas atendidas <strong>em</strong> trabalho social,<br />

freqüência nos cultos e etc.), mas sua eficácia será avaliada na medida <strong>em</strong> que<br />

homens e mulheres se engaj<strong>em</strong> de forma crítica na luta pela libertação sua e de seus<br />

companheiros e companheiras.<br />

O uso da palavra, a visão social, o ensino e discipulado e a própria<br />

escatologia cristã dev<strong>em</strong> servir ao projeto de libertação. A Igreja e seus líderes<br />

dev<strong>em</strong>, <strong>em</strong> diálogo, à luz da Palavra de Deus, encontrar os caminhos legítimos para<br />

vivenciar sua fé, revê-la e atualizá-la s<strong>em</strong> perder de vista onde se quer chegar.<br />

Costumamos dizer que os fins não justificam os meios e isso é verdade porque os<br />

meios determinam o fim. Como nos afirma Freire: não se liberta com as armas da<br />

opressão.<br />

Referências<br />

A BÍBLIA Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Nova Versão Internacional. São<br />

Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2002.<br />

AZEVEDO, Israel Belo. A celebração do indivíduo: a formação do pensamento batista brasileiro.<br />

Piracicaba: Unimep; São Paulo: Exodus, 1996.<br />

BARNA, George. O poder da visão. 1. ed. São Paulo: Abba Press, 1993.<br />

43 BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. 28. ed. Petrópolis: Vozes,<br />

1997. p. 206.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 21


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. 28. ed. Petrópolis:<br />

Vozes, 1997.<br />

BUGBEE, Bruce; COUSINS, Don; HYBELS, Bill. Rede ministerial: pessoas certas... lugares<br />

certos... pelas razões certas...: guia do participante. São Paulo: Vida, 1998.<br />

CAMPANHÃ, Josué. Planejamento estratégico: como assegurar qualidade no crescimento de<br />

sua igreja. São Paulo: Vida, 2001.<br />

ESPÍRITO SANTO, Eliseu Roque do. Teologia e pedagogia <strong>em</strong> diálogo a partir de uma leitura<br />

teológica da obra Pedagogia do oprimido de Paulo Freire. 2005. Dissertação (Mestrado). São<br />

Leopoldo: IEPG, 2005.<br />

FILOSOFIA de Ação Social da CBB. Disponível <strong>em</strong>: .<br />

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.<br />

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 37. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.<br />

IGREJA <strong>em</strong> células. Disponível <strong>em</strong>: .<br />

LIBÂNIO, João B.; BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985.<br />

M<strong>EST</strong>ERS, Carlos. Por trás das palavras. 2. ed. Petrópolis. RJ: Vozes, 1975.<br />

REGA, Lourenço Stélio. A Bíblia e a responsabilidade social cristã. In: BERNARDO, Salovi;<br />

MORAES, Luís Paulo de L. (Orgs.). Ação social da Igreja de Cristo. Rio de Janeiro: JUERP, 1998.<br />

SCHWARZ, Christian A.; SCHALK, Christoph. A prática do crescimento natural da igreja.<br />

Curitiba: Evangélica Esperança, 1998.<br />

SILVA, Tomaz Tadeu da. O projeto educacional da nova direita e a trajetória da qualidade<br />

total. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; GENTILI, Pablo (Orgs.). Escola S.A.: qu<strong>em</strong> ganha e qu<strong>em</strong><br />

perde no mercado educacional do neoliberalismo. Brasília: CNTE, 1996.<br />

SOUZA, Sócrates Oliveira de (Org.). Pacto e comunhão. Rio de Janeiro: Junta de Educação<br />

Religiosa da Convenção Batista Brasileira, 2004.<br />

STRONG, Augusto Hopkins. Teologia sist<strong>em</strong>ática. São Paulo: Hagnos, 2003.<br />

WAGNER, E. Glenn. Igreja S/A: dando adeus à igreja-<strong>em</strong>presa e recuperando o sentido da<br />

igreja-rebanho. São Paulo: Vida, 2003.<br />

WARREN, Rick. Uma igreja com propósitos. São Paulo: Vida, 1999.<br />

22<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

YE HÉ HUÁ SHÌ WO DE MÙ ZHE: Religiosidade, genealogias<br />

transnacionais e m<strong>em</strong>órias compartilhadas de deslocamento:<br />

o caso do protestantismo chinês <strong>em</strong> Recife<br />

Por Marcos de Araújo Silva *<br />

Resumo:<br />

Neste artigo, descrevo e analiso dados etnográficos sobre a fração cristã da comunidade<br />

chinesa pernambucana. As observações, depoimentos e biografias colhidas ajudam a refletir<br />

sobre a politização de m<strong>em</strong>órias coletivas e as especificidades que a interpretação da<br />

doutrina cristã pode apresentar entre um grupo de imigrantes. No ambiente religioso<br />

investigado, percebe-se que el<strong>em</strong>entos como fluxos internacionais e conversões se<br />

entrecruzam e dialogam com dimensões mais amplas, evidenciando a heterogeneidade do<br />

protestantismo brasileiro cont<strong>em</strong>porâneo.<br />

Palavras-chave:<br />

<strong>Protestantismo</strong> Histórico, Diáspora Chinesa, Diálogos Interculturais, Identidade Étnica e<br />

M<strong>em</strong>ória Social.<br />

Uma breve história do cristianismo na RPC/Taiwan e da Igreja Batista<br />

Emanuel<br />

Os primeiros contatos do cristianismo com a China r<strong>em</strong>ontam ao século VII,<br />

quando missionários nestorianos 1 de tradição síria alcançaram a Ásia Central, através<br />

da Rota da Seda. Sob o reinado do imperador Wan Li, da dinastia Ming (1368-1644) o<br />

catolicismo se expandiu consideravelmente graças à atuação dos jesuítas, dentre estes<br />

* Antropólogo, mestrando <strong>em</strong> Antropologia na Universidade Federal de Pernambuco. Sócio da<br />

Associação Brasileira de Antropologia e Pesquisador Associado do NEPE – Núcleo de Estudo e<br />

Pesquisas sobre Etnicidade da UFPE.<br />

1 O Nestorianismo é uma doutrina cristã nascida no século V <strong>em</strong> Antioquia (Turquia) e que manteve<br />

forte influência na Síria. Os nestorianos se propagaram pela Ásia Central, chegando até a China.<br />

Atualmente subsist<strong>em</strong> igrejas nestorianas (conhecidas como Igreja Assíria do Oriente)<br />

principalmente na Índia, na China e nos EUA. Para uma melhor contextualização, ver JORDAN,<br />

James B. Liturgical nestorianism: a critical review of "Worship in the presence of God". Niceville:<br />

Transfiguration, 1994.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 23


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

o italiano Matteo Ricci, que chegou ao território chinês <strong>em</strong> 1582. Depois, houve<br />

contatos esporádicos, mas só no século XIX se deram passos decisivos para uma<br />

evangelização mais sist<strong>em</strong>ática da atual RPC; o protestantismo, mais<br />

especificamente, entrou de forma institucionalizada no território chinês após a<br />

Guerra do Ópio, quando missionários ocidentais como o britânico Hudson Taylor 2<br />

estabeleceram igrejas e propagaram a doutrina pelo interior do país.<br />

Desde que os comunistas tomaram o poder no território chinês e fundaram a<br />

República Popular da China (RPC), <strong>em</strong> 1949, as religiões foram coibidas e seus<br />

seguidores perseguidos e presos <strong>em</strong> maior ou menor grau. A repressão religiosa se<br />

intensificou após a instauração da Revolução Cultural (1966-1976), quando<br />

missionários estrangeiros tiveram que abandonar o país e muitos seguidores foram<br />

obrigados a renegar suas crenças, para não ser<strong>em</strong> enviados aos campos de<br />

concentração e prisões. Em 1978, Deng Xiaoping diminui as restrições à prática<br />

religiosa, mas, pela atual legislação, somente pessoas com mais de 18 anos pod<strong>em</strong> ser<br />

evangelizadas na RPC e nenhum grupo cristão pode se reunir fora dos locais<br />

registrados, sob pena de prisão para os infratores. Segundo organizações nãogovernamentais<br />

estrangeiras de direitos humanos e religiosos, há centenas de<br />

pessoas presas atualmente na RPC por dirigir<strong>em</strong> ou estar<strong>em</strong> ligadas a igrejas e<br />

t<strong>em</strong>plos considerados clandestinos, por não atuar<strong>em</strong> sob o estrito controle do Partido<br />

Comunista Chinês (PCC).<br />

Atualmente, todas as igrejas e t<strong>em</strong>plos na RPC têm de ser registradas no<br />

Escritório do Movimento Patriótico das Três Autonomias (auto-administração, autoapoio,<br />

e auto-propagação), que é responsável pelo Protestant Three Self Patriotic<br />

Mov<strong>em</strong>ent e pela China’s Catholic Patriotic Association; ambos os grupos são<br />

2 James Hudson Taylor (1832-1905) trabalhou durante 51 anos na atual RPC e fundou a China Inland<br />

Mission (CIM) (agora OMF International). Ele foi responsável por trazer mais de 800 missionários e<br />

125 escolas religiosas ao país durante a época <strong>em</strong> que atuou lá, atuação que teria sido responsável<br />

pela conversão de aproximadamente 18.000 chineses ao cristianismo. Descrições e análises<br />

compl<strong>em</strong>entares sobre a atuação de Taylor no território chinês pod<strong>em</strong> ser encontradas <strong>em</strong><br />

BROOMHALL, Alfred. Hudson Taylor and China's open century: it is not death to die. London:<br />

Hodder and Stoughton, 1989.<br />

24<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

controlados pelo PCC. O primeiro fiscaliza o trabalho de evangelização dos fiéis e da<br />

administração dos assuntos religiosos na sua esfera protestante e a segunda, com as<br />

mesmas atribuições, atua na esfera católica; estes grupos tomam suas decisões de<br />

forma independente das matrizes dessas igrejas no exterior 3 . Com isso, os chineses<br />

cristãos que quiseram continuar praticando sua crença cristã, tiveram que aderir a<br />

alguma “igreja patriótica”, ou passar para a clandestinidade: freqüentando igrejas<br />

familiares, residenciais ou “subterrâneas”, nas quais os cultos são realizados nas<br />

casas dos fiéis ou <strong>em</strong> esconderijos.<br />

Em outubro de 20<strong>07</strong>, dois estudos foram realizados para estimar o número<br />

de cristãos na RPC. O primeiro foi conduzido pelo missionário protestante Werner<br />

Burklin, e o segundo, pelos professores Tong Shijun e Liu Zhongyu, da East China<br />

Normal University, <strong>em</strong> Xangai; este último a pedido do próprio governo chinês. As<br />

pesquisas foram realizadas de forma independente e durante períodos diferentes,<br />

mas elas chegaram ao mesmo resultado. De acordo com estes estudos, a RPC possui<br />

300 milhões de pessoas com mais de 16 anos que se defin<strong>em</strong> como religiosas, exist<strong>em</strong><br />

aproximadamente 54 milhões de cristãos na China, dos quais 39 milhões são<br />

protestantes e 14 milhões são católicos 4 .<br />

Outro dado importante presente nos dois estudos diz respeito a um perfil<br />

diferente do crescimento religioso da RPC <strong>em</strong> relação aos da maioria dos países,<br />

sobretudo os ocidentais: os novos religiosos chineses são jovens (62% têm entre 16 e<br />

3 No caso específico do catolicismo, a vertente da Igreja Católica atuante no território chinês que<br />

permaneceu fiel ao Papa e à Santa Sé continua funcionando na ilegalidade desde 1958. A RPC<br />

coloca como condição para melhorar suas relações bilaterais com o Vaticano a ruptura das relações<br />

diplomáticas entre este Estado Pontifício e Taiwan, assim como autonomia para poder para<br />

nomear bispos. O Vaticano aceita a primeira condição, mas descarta a segunda. Disponível <strong>em</strong>:<br />

<br />

e<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 13 abr.<br />

2008.<br />

4 Disponível <strong>em</strong>: ;<br />

;<br />

;<br />

. Últimos<br />

acessos <strong>em</strong>: 26 jan. 2008.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 25


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

39 anos), urbanos, e muitos já o concluíram o que equivale ao “ensino médio” no<br />

Brasil e integram a nova classe média que se forma nas cidades industrializadas do<br />

leste do país; justamente o perfil dos jovens que, majoritariamente, afastam-se da<br />

religião no Ocidente. Uma pesquisa de opinião, feita <strong>em</strong> 2001, <strong>em</strong> Beijing, mostrou<br />

que 60% dos estudantes disseram estar interessados no cristianismo 5 .<br />

O crescimento do cristianismo na RPC entre acadêmicos, escritores e<br />

intelectuais influenciaram David Aikman 6 a afirmar a existência de um estilo bíblico<br />

literário na China cont<strong>em</strong>porânea. Aikman estima que 300 milhões de chineses<br />

devam se converter até 2040, o que transformaria a RPC <strong>em</strong> um dos maiores países<br />

cristãos do mundo; esse número poderá ser alcançado caso os atuais índices, que<br />

indicam que anualmente cerca de dois milhões de chineses se convert<strong>em</strong> anualmente<br />

ao cristianismo no país (uma das maiores taxas de crescimento da história da<br />

religião) permaneçam <strong>em</strong> escala ascendente.<br />

Questionado sobre as razões para este “renascimento religioso”, que é como<br />

a mídia estatal chinesa chama este fenômeno do crescimento e da procura pela<br />

religiosidade, o Prof. Miikka Ruokanen, que atualmente leciona <strong>em</strong> Nanjing, acredita<br />

que um “vácuo de valores e crenças” é um dos motivos que explicam a procura pela<br />

religião no país, sobretudo na sua esfera cristã. Para ele, “o próprio comunismo está<br />

enfrentando uma crise de credibilidade e as pessoas educadas sent<strong>em</strong> o vazio<br />

provocado pelo materialismo. Quando já se está obtendo o que quer, é provável que<br />

se sinta infeliz por uma necessidade espiritual”. Ruokanen também observa o grande<br />

apelo que o Cristianismo t<strong>em</strong> hoje nas áreas rurais do país: “os camponeses viv<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong> previdência social, precisam pagar por educação e pela saúde, um contexto que<br />

beneficia a religião cristã” 7 .<br />

5 Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 13 jun. 2008.<br />

6 AIKMAN, David. 2003. Jesus in Beijing. How Christianity is changing the global balance of power.<br />

Washington: Regnery Publishing, 2003.<br />

7 Disponível <strong>em</strong>: .<br />

26<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Diferente do que ocorre na RPC, a legislação do território de Taiwan não<br />

permite que exista repressão institucionalizada e governamental a nenhuma religião,<br />

desde que suas práticas não viol<strong>em</strong> os princípios d<strong>em</strong>ocráticos da constituição<br />

taiwanesa. Com isso, as cerimônias públicas e as atuações missionárias cristãs das<br />

mais diversas orientações e denominações são livres na ilha e os conflitos esporádicos<br />

ligados à religiosidade, que ocorr<strong>em</strong> no território, costumam ser atribuídos a grupos<br />

isolados de extr<strong>em</strong>a-direita que persegu<strong>em</strong> vertentes religiosas que julgam ser<br />

“d<strong>em</strong>oníacas” ou “anti-nacionalistas”. Em uma população total estimada <strong>em</strong><br />

22.911.292, Taiwan possui 605.000 cristãos protestantes e 298.000 cristãos 8 , o que<br />

representa, respectivamente, a quarta e a quinta doutrina religiosa com maior<br />

número de adeptos naquele país, ficando atrás do budismo, do taoísmo e do Yi Guan<br />

Dao 9 .<br />

Devido a estes fatores, exist<strong>em</strong> diferenças substanciais entre os imigrantes<br />

chineses oriundos de Taiwan e da RPC 10 no tocante às suas vivências particulares<br />

ligadas à religiosidade; que ocasionam l<strong>em</strong>branças e percepções distintas que<br />

interfer<strong>em</strong> nos possíveis relacionamentos religiosos que eles venham a ter nos países<br />

anfitriões, onde resid<strong>em</strong> atualmente. É importante salientar, contudo, que no<br />

contexto específico da comunidade chinesa de Pernambuco, a pesquisa etnográfica<br />

mostrou que apesar da liberdade religiosa taiwanesa, a intensa repressão religiosa<br />

8 Dados disponibilizados pelo periódico Taipei Times Yearbook 2004: Religion.<br />

9 Yi Guan Dao (ou I-Kuan Tao) é um movimento religioso que se originou na RPC no século XX.<br />

Simultaneamente, ele incorpora os el<strong>em</strong>entos mais antigos do confucionismo, do taoísmo e do<br />

budismo chinês e também reconhece a validade de tradições religiosas não-orientais, tais como o<br />

cristianismo e o islamismo. Por esta razão, ele é muitas vezes classificado como uma seita<br />

sincrética, juntamente com outras religiões similares como a “Way of Former Heaven” (Xian Tian<br />

Dao).<br />

10 Em diferentes momentos históricos, 98% da atual população de Taiwan vieram da China<br />

Continental. Por isso, diversos autores inclu<strong>em</strong> os taiwaneses <strong>em</strong>igrados na “diáspora chinesa”.<br />

Vale l<strong>em</strong>brar que este território se separou da RPC <strong>em</strong> 1949, quando os nacionalistas foram<br />

derrotados pelos comunistas e se refugiaram nesta ilha, onde fundaram a “República da China”<br />

(nome oficial de Taiwan). Dados compl<strong>em</strong>entares pod<strong>em</strong> ser encontrados <strong>em</strong> CARTIER, Carolyn;<br />

MA, Laurence J.C. The Chinese diaspora: Space, place, mobility and identity. Lanham, MD: Rowman<br />

& Littlefield Publishers, 2003; COOPER, John. Taiwan: Nation-State or Province Boulder:<br />

Westview Press, 1999; MANTHORPE, Jonathan. Forbidden nation: a history of Taiwan. New York:<br />

Palgrave Macmillan, 2005.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 27


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

praticada na RPC constitui um el<strong>em</strong>ento presente direta e indiretamente também nas<br />

m<strong>em</strong>órias e no cotidiano de parte significativa dos <strong>em</strong>igrados que nasceram <strong>em</strong><br />

Taiwan. Este fato se deve, sobretudo, aos vínculos familiares ou afetivos destes<br />

imigrantes com sua terra natal (que muitos consideram separada da RPC apenas<br />

politicamente); mais especificamente com amigos e parentes que foram perseguidos<br />

ou que ainda viv<strong>em</strong> na RPC, e são obrigados a praticar sua religiosidade conforme as<br />

orientações do Movimento Patriótico 11 .<br />

“A Emanuel nos acolheu”<br />

Entrevistas abertas e s<strong>em</strong>i-estruturadas realizadas com uma amostrag<strong>em</strong> de<br />

noventa e três integrantes da comunidade chinesa pernambucana, incluindo<br />

m<strong>em</strong>bros da primeira e da segunda geração, sobre a questão da religiosidade,<br />

revelaram os seguintes dados: 27 pessoas (29%) se declararam ateus ou afirmaram<br />

não ter interesse <strong>em</strong> nenhuma religião, 37 (40%) declararam-se budistas ou “abertos<br />

às religiões” 12 e 29 pessoas (31%) afirmaram acreditar <strong>em</strong> Jesus Cristo e se declararam<br />

católicos ou protestantes, ainda que alguns tenham alegado não freqüentar<br />

regularmente cerimônias religiosas por falta de t<strong>em</strong>po, excesso de trabalho ou<br />

escolha própria. Estes números causaram surpresa, sobretudo, pelo fato da sociedade<br />

11 Como já foi dito, o Movimento Patriótico das Três Autonomias fiscaliza todos os assuntos<br />

religiosos “oficiais”. Entretanto, vale salientar que o controle deste departamento governamental<br />

costuma ser mais rígido sobre as religiões de orientação cristã, acusadas pelo PCC de,<br />

historicamente, conter espiões estrangeiros entre os seus m<strong>em</strong>bros e pretender divulgar “veneno<br />

anticomunista”. Este argumento costuma ser exposto por diversas ONGs internacionais religiosas<br />

ou de direitos humanos e foi confirmado por seis imigrantes chineses entrevistados. Um fato da<br />

história chinesa que corrobora este t<strong>em</strong>or dos comunistas, de que a religião pode favorecer levantes<br />

políticos, foi a derrubada da Qing, última dinastia imperial chinesa <strong>em</strong> 1911, que resultou na<br />

criação da República da China; as revoltas que culminaram nesta derrocada dinástica foram<br />

lideradas por Sun Yat-sen (1866-1925), um cantonês convertido ao protestantismo e considerado o<br />

“pai da China moderna”.<br />

12 Esta expressão, segundo os interlocutores entrevistados que a utilizaram, significa que eles<br />

prefer<strong>em</strong> não se envolver formalmente com nenhuma esfera religiosa “cerimonial” e por isso,<br />

exerc<strong>em</strong> suas religiosidades, que pod<strong>em</strong> variar de práticas confucionistas e taoístas a cristãs, no<br />

ambiente doméstico. Segundo alguns comentaram, não sendo convertidos a nenhuma religião<br />

específica, possu<strong>em</strong> liberdade para, quando têm vontade e oportunidade, freqüentar<br />

esporadicamente diversas denominações religiosas, s<strong>em</strong> compromisso com nenhuma delas.<br />

28<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

chinesa ser comumente associada, <strong>em</strong> termos religiosos, ao budismo ou às d<strong>em</strong>ais<br />

religiões de orig<strong>em</strong> oriental; conseqüent<strong>em</strong>ente, ficou evidenciada a importância <strong>em</strong><br />

conhecer melhor as vivências religiosas cristãs destes imigrantes na região<br />

metropolitana do Recife.<br />

Após algumas visitas às três igrejas católicas e aos quatro t<strong>em</strong>plos<br />

protestantes que foram citados nas respostas dos entrevistados, ficou evidenciado<br />

que apenas uma destas instituições religiosas apresentava um grupo constante e<br />

regular de adeptos e freqüentadores de orig<strong>em</strong> chinesa. As d<strong>em</strong>ais instituições<br />

continham m<strong>em</strong>bros isolados de famílias compostas por algum m<strong>em</strong>bro chinês ou<br />

descendente. Este cenário indicava a existência de dispersão e heterogeneidade entre<br />

a fração cristã da comunidade chinesa pernambucana. Por isso, a análise ficou focada<br />

no cotidiano de uma instituição religiosa cristã que consegue agregar chineses de<br />

forma coesa desde 2001: a Igreja Batista Emanuel (IBE), localizada no bairro recifense<br />

de Boa Viag<strong>em</strong>. Antes de descrever e refletir sobre o cotidiano e os representantes<br />

deste ambiente, é importante tecer breves considerações sobre a história da IBE, uma<br />

das representantes da vertente batista do chamado “protestantismo histórico”<br />

brasileiro 13 .<br />

No ano de 1966, os missionários norte-americanos Pr. Glen e Sra. Audrey<br />

Swicegood, e a Sra. Mary Witt chegaram a Recife, vindos de Campinas/SP, e<br />

lideraram a comissão que providenciou a compra de lotes na Rua Maria Carolina,<br />

onde se localiza a atual sede da IBE, inaugurada no dia 27 de outubro daquele ano.<br />

Antes disso, locais improvisados eram utilizados para a realização dos cultos<br />

dominicais de orientação batista, que contavam com um grupo de cerca de quinze<br />

13 As igrejas batistas formam uma família denominacional protestante de orig<strong>em</strong> anglo-americana e a<br />

sua história r<strong>em</strong>onta, comumente, a um grupo de dissidentes ingleses no século XVII. Importantes<br />

el<strong>em</strong>entos históricos que contextualizam o ambiente sociocultural nos países anglo-saxões nos<br />

períodos pré e pós o advento das igrejas batistas são encontrados <strong>em</strong> HAMMETT, John S. Biblical<br />

foundations for Baptist churches: a cont<strong>em</strong>porary ecclesiology. MI: Kregel, 2005; BLAIR, John P. The<br />

Church in anglo-saxon society. Oxford: Oxford University Press, 2005. Uma análise sobre a formação<br />

e o desenvolvimento da doutrina batista no Brasil pode ser encontrada <strong>em</strong> AZEVEDO, Israel B. de.<br />

A celebração do indivíduo: a formação do pensamento batista brasileiro. Piracicaba: Unimep, 1996.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 29


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

pessoas. O Pr. Glen Swicegood assumiu o cargo de pastor e nele ficou até o ano<br />

seguinte, 1967. O nome “Emanuel” foi sugerido por um dos adeptos, professor de<br />

hebraico: língua na qual Emanuel significa “Deus conosco” 14 .<br />

Um el<strong>em</strong>ento intercultural marcou a história da IBE desde o seu início até<br />

meados da década de 1990: a utilização da língua inglesa <strong>em</strong> alguns cultos e estudos<br />

bíblicos. Esta utilização visava atrair seguimentos populacionais abastados que,<br />

tendo ou não orig<strong>em</strong> nos países de língua inglesa, d<strong>em</strong>onstravam interesse por ela e<br />

residiam <strong>em</strong> Boa Viag<strong>em</strong>, bairro que desde a década de 1950 possui um dos maiores<br />

índices socioeconômicos da cidade do Recife. Com isso, desde sua fundação, a IBE é<br />

marcada pela presença de adeptos estrangeiros. É interessante notar sua “sintonia”,<br />

<strong>em</strong> diferentes contextos históricos, com nações econômica e politicamente<br />

estratégicas, através da integração de imigrantes destes países: das décadas de 1960<br />

até a de 1990 com os EUA e desde o início deste milênio, com a China.<br />

A história da fração cristã dos chineses residentes no Recife que, desde 1999<br />

participa de celebrações regulares <strong>em</strong> mandarim na IBE, r<strong>em</strong>onta ao ano de 1997,<br />

quando o Sr. Francisco (75 anos) se batizou na IBE. Oriundo de Taiwan, ele chegou<br />

ao Recife nos anos 1980 e, <strong>em</strong> 2001, retornou ao estado de São Paulo, deixando um<br />

grupo de chineses cristãos da cidade organizado no t<strong>em</strong>plo da IBE. Desde meados de<br />

1995 até set<strong>em</strong>bro de 1999, o grupo de chineses que tinham interesse pelo<br />

cristianismo protestante no Recife costumava reunir-se <strong>em</strong> restaurantes ou <strong>em</strong><br />

residências para estudar a Bíblia, realizar cerimônias de casamento e fazer orações<br />

coletivas.<br />

Em set<strong>em</strong>bro de 1999, após os batismos do Sr. Francisco e de Jeany (36 anos),<br />

também oriunda de Taiwan, o ministério de evangelização da IBE convidou<br />

formalmente os m<strong>em</strong>bros do grupo a participar<strong>em</strong> de suas atividades religiosas e<br />

14 Emanuel é um nome freqüent<strong>em</strong>ente usado para se referir a Jesus Cristo ou à vinda do filho<br />

unigênito de Deus para a Terra. Uma famosa passag<strong>em</strong> do livro profético de Isaías, no Antigo<br />

Testamento, assim anuncia a chegada do Messias: “Portanto, o mesmo Senhor vos dará um sinal:<br />

Eis que a virg<strong>em</strong> conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel” (Is 7.14).<br />

30<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

lhes ofereceu um dos salões da igreja para que, quinzenalmente, lá se reuniss<strong>em</strong> para<br />

um culto específico e direcionado a eles. “A IBE nos acolheu”, disse a Sra. Li (64<br />

anos), enquanto comentava que a iniciativa da IBE não era de “abrir” um grupo<br />

chinês, mas apoiar os m<strong>em</strong>bros que, como ela, queriam ouvir o evangelho e<br />

possuíam a particularidade de ser<strong>em</strong> chineses ou brasileiros de orig<strong>em</strong> chinesa.<br />

O Sr. Francisco foi responsável pela condução destes cultos chineses até 2001,<br />

quando deixou Pernambuco e indicou Chaw Shan Hua (50 anos) para substituí-lo.<br />

Irmão Chaw, como prefere ser chamado, nasceu <strong>em</strong> Taiwan e veio ainda bebê ao<br />

Brasil (inicialmente Campinas/SP); ele chegou ao Recife <strong>em</strong> 2000 e, no mesmo ano,<br />

começou a freqüentar a IBE, converteu-se e realizou o batismo. Desde a saída do Sr.<br />

Francisco, Chaw conduz os cultos chineses da IBE, que ocorr<strong>em</strong> nos primeiros e nos<br />

terceiros domingos de cada mês e são realizados <strong>em</strong> duas línguas, a portuguesa e a<br />

chinesa (mandarim). Nos segundos e nos quartos domingos, existe tradução<br />

simultânea dos cultos para os chineses da IBE que ainda não dominam b<strong>em</strong> a língua<br />

portuguesa; esta tradução é feita por Smiley Ferreira (40 anos), um brasileiro filho de<br />

pai chinês que morou 11 anos <strong>em</strong> Taiwan e fala mandarim fluent<strong>em</strong>ente.<br />

Além destes citados cultos, o atual grupo de vinte e quatro chineses que<br />

freqüenta regularmente as cerimônias da IBE também participa de estudos bíblicos,<br />

realizados <strong>em</strong> chinês às quartas-feiras, e da Escola Bíblica Dominical. Alberto Freitas,<br />

o atual pastor da IBE, costuma s<strong>em</strong>pre se referir à fração chinesa da igreja <strong>em</strong> suas<br />

pregações. Apesar da maioria destes imigrantes chineses já ter tido contato com o<br />

cristianismo <strong>em</strong> sua terra natal, seja na RPC ou <strong>em</strong> Taiwan (país de onde veio<br />

dezesseis dos citados vinte e quatro), e da principal referência cristã nestes países<br />

r<strong>em</strong>eter ao protestantismo (devido a sua presença majoritária), Chaw acredita que<br />

estes fatores não são responsáveis pela convergência, na IBE, da maioria dos chineses<br />

recifenses cristãos.<br />

Comentando sobre isso, Chaw revelou que sua mãe era católica e defendeu<br />

que a explicação para este agrupamento não r<strong>em</strong>ete exatamente a heranças culturais,<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 31


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

n<strong>em</strong> a “tradição” da IBE <strong>em</strong> acolher estrangeiros, mas sim a uma “obra de Deus”.<br />

Para Chaw, além de ser<strong>em</strong> longínquas, as referências religiosas trazidas por aqueles<br />

que tiveram algum contato com o cristianismo na RPC/Taiwan pod<strong>em</strong> r<strong>em</strong>eter a<br />

perseguições (no caso da RPC) ou a crenças exóticas, como eram vistas as religiões<br />

cristãs <strong>em</strong> Taiwan, ainda pouco difundidas até a década de 1970 (período no qual<br />

muitos já tinham <strong>em</strong>igrado). “A gente procurava uma fé verdadeira e uma linha<br />

teológica saudável, a denominação batista nos acolheu e nos deu este campo<br />

saudável”, conclui.<br />

Outros imigrantes do grupo concordaram com esta hipótese colocada por<br />

Chaw e expuseram argumentos s<strong>em</strong>elhantes. Quatro destes, inclusive, além de<br />

reiterar que suas crenças cristãs antecediam a formalização dos cultos chineses na<br />

IBE, comentaram que a imag<strong>em</strong> tradicionalista da IBE causa impressões positivas aos<br />

m<strong>em</strong>bros do grupo, que não costumam ver com bons olhos el<strong>em</strong>entos que<br />

consideram pagãos no catolicismo e <strong>em</strong> algumas vertentes do protestantismo, como<br />

as linhas neopentecostais. Para Raquel (22 anos), nascida na RPC, esta idéia de<br />

“campo religioso saudável”, à qual Chaw se referiu, t<strong>em</strong> a ver com um<br />

distanciamento <strong>em</strong> relação a “coisas erradas” do catolicismo (que para ela são, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, as adorações dos santos e das imagens) e também com um afastamento do<br />

“toma lá, dá cá”, termo com o qual ela se referiu ao caráter utilitarista e<br />

mercantilizado que acredita existir nas igrejas neopentecostais.<br />

Diante dos dados expostos até agora, v<strong>em</strong>os que existe diversidade na fração<br />

cristã da comunidade chinesa de Pernambuco no que se refere a doutrinas (católica e<br />

protestante), caráter das práticas religiosas (públicas e domésticas) e níveis de<br />

pertencimento e ortodoxia (os que se convert<strong>em</strong> e os que se declararam “abertos às<br />

religiões”). Além disso, perceb<strong>em</strong>os que noções genéricas como ‘cristianismo’ e<br />

‘protestantismo’ precisam ser relativizadas no contexto analítico; já que<br />

características comumente atribuídas a algumas de suas vertentes pod<strong>em</strong> ser<br />

percebidas e apropriadas de formas distintas ou até mesmo excludentes, pelos<br />

32<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

indivíduos que as viv<strong>em</strong> nos seus cotidianos, evidenciando as dinâmicas da<br />

religiosidade cristã no Brasil. Agora é o momento de investigar as razões pelas quais<br />

estes imigrantes optaram pelo comprometimento religioso no ambiente específico da<br />

IBE.<br />

Conversões e m<strong>em</strong>órias sociais<br />

Cada culto chinês da IBE começa da mesma forma: todos os presentes<br />

cantam “Ye Hé Huá Shì Wo De Mù Zhe” [O Senhor é meu Pastor] e mais dois hinos <strong>em</strong><br />

chinês. Em seguida começa a pregação, que é feita de maneira concomitante a<br />

diversas leituras de versículos da Bíblia. Desde que estas cerimônias específicas<br />

começaram, o grupo está vinculado à Sul América Evangelismo, missão evangélica<br />

de orig<strong>em</strong> chinesa sediada no bairro da Liberdade (cidade de São Paulo), que lhes<br />

fornece o aparato litúrgico de Bíblias, livretos e um periódico quinzenal; todo este<br />

material está escrito <strong>em</strong> mandarim com caracteres tradicionais, formato utilizado <strong>em</strong><br />

Taiwan. Esta associação também colaborou na composição dos hinários usados pelos<br />

integrantes do grupo chinês da IBE. Durante e após a pregação de Chaw, exist<strong>em</strong><br />

momentos de oração, nos quais os chineses comentaram que costumam “sentir o<br />

poder de Deus”.<br />

Como as oito crianças e adolescentes da segunda geração que freqüentam<br />

com certa regularidade as cerimônias chinesas estão acompanhando seus pais, era<br />

preciso saber, dos imigrantes da primeira geração, suas motivações para entrar<strong>em</strong>,<br />

permanecer<strong>em</strong> e se converter<strong>em</strong> ao protestantismo promovido pela IBE. Seguindo<br />

uma tendência presente no restante da comunidade chinesa <strong>em</strong> Pernambuco, existe<br />

relativa transitoriedade entre o grupo de chineses que freqüentam a IBE; isso se deve,<br />

sobretudo, a questões relativas à legislação imigratória (vistos de trabalho, rejeição a<br />

alguns pedidos de permanência, etc.) e às dinâmicas do comércio transnacional, do<br />

qual a maioria faz parte. Desde que a pesquisa <strong>em</strong>pírica na IBE começou, <strong>em</strong> outubro<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 33


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

de 20<strong>07</strong>, enfatizando as atividades que contavam com a participação dos chineses,<br />

ficou constatada a presença de quatro imigrantes que regressaram à RPC, a Taiwan,<br />

ou que se deslocaram a outros pontos do Brasil.<br />

Dentre os vinte e quatro chineses ou “brasileiros de orig<strong>em</strong> chinesa”, como<br />

alguns prefer<strong>em</strong> ser chamados, que atualmente freqüentam os cultos da IBE, dez<br />

realizaram o batismo, sete declararam que “aceitaram Jesus” e que ainda não fizeram<br />

a cerimônia por que prefer<strong>em</strong> se preparar mais, estudando o evangelho, e os outros<br />

sete afirmaram que estão por enquanto apenas conhecendo a religião.<br />

Quando<br />

indagados sobre a motivação para começar<strong>em</strong> a freqüentar as cerimônias, oito<br />

disseram que começaram a visitar as reuniões do grupo pelo fato delas constituír<strong>em</strong><br />

momentos de sociabilidade únicos, que dificilmente ocorreriam <strong>em</strong> outras ocasiões<br />

devido aos horários de trabalho de cada um. O restante alegou o contato prévio com<br />

o cristianismo (<strong>em</strong> sua vertente católica e protestante) na RPC, <strong>em</strong> Taiwan ou <strong>em</strong><br />

cidades brasileiras como São Paulo (de onde alguns vieram) como a principal razão<br />

para começar a freqüentar as cerimônias “informais” e a continuidade destas, de<br />

maneira institucionalizada, na IBE.<br />

O casal Shao Lin (37 anos) e Liong (31), que vieram da RPC, disse que não<br />

podiam deixar de aproveitar a liberdade religiosa existente no Brasil e que <strong>em</strong> sua<br />

terra natal, sentiam-se frustrados e/ou incompletos pelo confucionismo e pelo<br />

budismo e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, tinham receio <strong>em</strong> conhecer melhor o evangelho,<br />

t<strong>em</strong>endo as conseqüências que a busca pela religiosidade cristã poderia acarretar lá.<br />

Um fator interessante é que, antes de vir para o Brasil, eles dois passaram três meses<br />

<strong>em</strong> Taiwan e conheceram um pouco da liberdade religiosa daquele território, fato<br />

que lhes influenciou tanto a não se opor<strong>em</strong> mais à autonomia política taiwanesa,<br />

quanto a começar<strong>em</strong> e continuar<strong>em</strong> freqüentando os cultos da IBE.<br />

Na análise das d<strong>em</strong>ais observações, entrevistas e conversas informais<br />

obtidas, também se sobressai certa correlação entre a iniciativa de continuar nesta<br />

esfera religiosa e sentimentos nacionalistas que diz<strong>em</strong> respeito, majoritariamente, à<br />

34<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

autonomia política taiwanesa. Com isso, parece que estas práticas religiosas se<br />

entrecruzam com dimensões mais amplas, que envolv<strong>em</strong> histórias familiares,<br />

l<strong>em</strong>branças e m<strong>em</strong>órias compartilhadas relativas à perseguição religiosa; el<strong>em</strong>entos<br />

que, direta ou indiretamente, compõ<strong>em</strong> o itinerário das vidas de cada um destes<br />

imigrantes. Com isso, parece que as diferenças substanciais entre as esferas públicas<br />

da religiosidade na RPC e <strong>em</strong> Taiwan marcaram e influenciam os seus cidadãos<br />

<strong>em</strong>igrados a ponto de ocasionar, entre certos grupos, um diálogo entre religiosidade,<br />

sentimentos nacionalistas e politização de parte das experiências e recordações<br />

vividas na terra natal.<br />

Considerações Finais<br />

As primeiras observações na IBE entre estes chineses protestantes indicaram<br />

inicialmente a existência de uma relação direta entre o comprometimento com a<br />

religiosidade e a estabilidade nos negócios e questões financeiras. Entretanto, a<br />

continuidade da pesquisa <strong>em</strong>pírica, aliada a um conseqüente contato aprofundado<br />

com os interlocutores, indicou que não existe, necessariamente, uma ligação entre a<br />

autonomia financeira e (apenas) a partir dela, um possível envolvimento e<br />

compromisso religioso. De maneiras específicas, tanto no segmento cristão praticante<br />

(representado pela IBE) quanto no segmento que se declarou apenas “simpático” à<br />

doutrina cristã (acreditando na figura de Jesus Cristo, mas não sendo adepto de<br />

nenhuma igreja), existe vivências distintas de modalidades e pertencimentos<br />

religiosos, de forma independente de condições financeiras.<br />

Com isso, os fatores econômicos pod<strong>em</strong> influenciar diretamente a opção pelo<br />

envolvimento religioso, mas não são os únicos responsáveis por ele. Além disso, as<br />

práticas religiosas cristãs restritas ao ambiente privado, não dev<strong>em</strong> ser encaradas<br />

unicamente como indicativas de enfraquecimento ou distanciamento religioso: isso<br />

seria reducionista. Ao invés disso, pode ser mais coerente e profícuo pensar na<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 35


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

possibilidade destas práticas estar<strong>em</strong> dialogando com dimensões conjunturais, como<br />

novos cenários geopolíticos e socioeconômicos, os quais pod<strong>em</strong> alterar<br />

profundamente a constituição de subjetividades particulares.<br />

A sociedade chinesa está passando por profundas mudanças, que afetam<br />

inclusive a “província rebelde” de Taiwan. Assim, não é possível compreender a<br />

identidade, a cultura e a religiosidade destes <strong>em</strong>igrantes s<strong>em</strong> atentar para as<br />

profundas alterações que o atual “boom” econômico pode provocar nestas esferas.<br />

Para Li Zhang e Aihwa Ong 15 , os lucros vindos do mercado e de um comportamento<br />

auto-centrado, permitidos atualmente na RPC pela privatização, coexist<strong>em</strong> com os<br />

controles estatais socialistas; entretanto, a privatização não deve ser entendida como<br />

um conjunto de técnicas que liberam apenas <strong>em</strong>preendedorismo e organizações<br />

<strong>em</strong>presariais, mas também os poderes da personalidade (powers of the self). Com isso,<br />

Zhang e Ong desafiam noções convencionais sobre os processos de privatização na<br />

RPC e identificam a difusão de inúmeras práticas de interesse e inspiração<br />

autônomas dos indivíduos associadas com esta lógica neoliberal específica.<br />

A participação do grupo de imigrantes chineses na IBE parece estar<br />

entrecruzada por esta citada idéia de poderes da personalidade, de que falam Zhang<br />

e Ong, e simultaneamente, por um cunho político, na medida <strong>em</strong> que, ao optar por<br />

ela, estes imigrantes d<strong>em</strong>onstram interesse <strong>em</strong> fortalecer sua identidade étnica,<br />

construída a partir de especificidades culturais, m<strong>em</strong>órias compartilhadas de<br />

deslocamento e pertencimento a mais de um estado nacional. Este último fator,<br />

inclusive, parece ser capaz de maximizar oportunidades e experiências específicas<br />

<strong>em</strong> dois países tão distantes, como o Brasil e a China, e que, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

possu<strong>em</strong> suas fronteiras culturais profundamente relativizadas pelas presenças e<br />

crenças destes imigrantes.<br />

15 ZHANG, Li; ONG, Aihwa. Privatizing China: socialism from afar. Ithaca: Cornell University Press,<br />

2008.<br />

36<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Educação protestante e cultura afro-descendente:<br />

uma relação conturbada<br />

Por Cláudia Sales de Alcântara *<br />

Por Geraldo Magela de Oliveira-Silva **<br />

Resumo:<br />

A cultura africana presente no Brasil deixou-nos um legado sagrado, onde encontramos<br />

vários tipos de manifestações religiosas de rico valor cultural. O protestantismo que chega ao<br />

Brasil, por sua vez, é tipicamente europeu e norte-americano, logo, com sérias dificuldades<br />

de manter um relacionamento cultural com o povo brasileiro, fort<strong>em</strong>ente influenciado pela<br />

cultura africana. Ex<strong>em</strong>plo disso é o material desenvolvido pela APEC, utilizadas até hoje nas<br />

escolas bíblicas, com as crianças, <strong>em</strong> todo Brasil. Através deste material, poder<strong>em</strong>os ver<br />

como o processo de aculturação da identidade afro-descendente acontece tanto de forma<br />

objetiva (imposição aberta) como de forma subjetiva (imposição baseada na atração e<br />

conseqüente desvalorização do sist<strong>em</strong>a cultural através de falta de referências afrodescendentes<br />

no material apresentado e a supervalorização da cultura branca européia e<br />

norte-americana).<br />

Palavras-chave:<br />

negritude, protestantismo, cultura, educação, aculturação.<br />

Introdução<br />

Apesar do número significativo de negros na população brasileira, a igreja<br />

protestante - histórica e pentecostal, conhecida hoje como evangélica, não t<strong>em</strong><br />

observado a riqueza cultural que esta matriz possui e pode proporcionar à cultura<br />

evangélica. De modo geral, a liturgia, a música e a educação das igrejas ditas<br />

* Graduada <strong>em</strong> Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Ceará e <strong>em</strong> Teologia pelo<br />

Instituto Cristão de Estudos Cont<strong>em</strong>porâneos; mestranda <strong>em</strong> Educação Brasileira pela<br />

Universidade Federal do Ceará – UFC, na área de Currículo, cultura, políticas e práticas<br />

curriculares.<br />

** Graduado <strong>em</strong> Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú e <strong>em</strong> Teologia pelo Instituto<br />

Bíblico das Ass<strong>em</strong>bléias de Deus; orientador educacional da Secretaria Municipal de Educação da<br />

Prefeitura Municipal de Fortaleza, CE.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 37


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

evangélicas no Brasil são brancas, e o negro, para ter acesso a elas, t<strong>em</strong> que sofrer um<br />

processo de branqueamento.<br />

Ser negro e protestante (principalmente se for pentecostal) significa, <strong>em</strong><br />

muitos casos, ainda hoje, não ser mais praticante da macumba ou umbanda e aceito<br />

pelos d<strong>em</strong>ais “irmãos” brancos, que o vê<strong>em</strong> como um negro diferente dos d<strong>em</strong>ais,<br />

um negro de “alma branca”. Pod<strong>em</strong>os analisar algumas estratégias que as igrejas,<br />

tradicionais e pentecostais, utilizaram para que se forjasse uma ideologia do<br />

branqueamento dentro de suas igrejas: a teologia, branca e racista, a começar por<br />

suas próprias origens – euro-americana; a educação, onde o t<strong>em</strong>a d<strong>em</strong>ocracia racial<br />

não é discutido nas escolas bíblicas; aliás, a educação religiosa dessas igrejas passa<br />

longe de assuntos polêmicos que exijam o mínimo de reflexão; e a falta de referência,<br />

ou seja, poucos são os negros que ocupam posição de liderança, ou dirig<strong>em</strong> igrejas.<br />

Contudo, quer<strong>em</strong>os nos deter apenas na segunda estratégia – a educação.<br />

Para isso, quer<strong>em</strong>os trabalhar com alguns instrumentais da APEC (Aliança Pró-<br />

Evangelização das Crianças) tais como músicas, histórias e figuras utilizadas até hoje<br />

nas escolas bíblicas <strong>em</strong> todo Brasil. Nesse material, pod<strong>em</strong>os ver como o processo de<br />

aculturação da identidade afro-descendente acontece tanto de forma objetiva<br />

(imposição aberta) como de forma subjetiva (imposição baseada na atração e<br />

conseqüente desvalorização do sist<strong>em</strong>a cultural através de falta de referências afrodescendentes<br />

no material apresentado e a super valorização da cultura branca<br />

européia e norte-americana).<br />

O Brasil: um país mestiço<br />

A nação brasileira foi basicamente formada pela miscigenação do branco<br />

europeu, principalmente o português, com o índio e o negro. Além do índio e do<br />

negro, b<strong>em</strong> como do branco português, outros europeus vieram para cá, mas tiveram<br />

38<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

pouca vivência e influência, razão pela qual não serão abordados neste artigo. Ainda<br />

sobre o assunto, Carl Joseph Hahn afirma:<br />

Ao contrário das Américas, seu sangue europeu limitou-se, durante<br />

os três primeiros séculos, quase que exclusivamente ao português.<br />

Este sangue europeu, mais o africano e o indígena misturaram-se<br />

livr<strong>em</strong>ente numa nova linha sanguínea desde os inícios mesmos da<br />

imigração européia. 1<br />

Os índios eram, s<strong>em</strong> dúvida, os primeiros habitantes do Brasil e estavam<br />

espalhados por todo país na época de seu “descobrimento”. Os portugueses, por sua<br />

vez, vieram de várias regiões de Portugal e também das ilhas dos Açores e da<br />

Madeira. Os negros, por fim, foram trazidos para o Brasil devido à utilização da mãode-obra<br />

escrava, ainda no século XIV.<br />

Em pouco t<strong>em</strong>po, índios - especificamente as índias, mulheres de<br />

portugueses, soldados, colonos e administradores criavam seus filhos mamelucos 2<br />

<strong>em</strong> uma miscigenação de culturas e de crenças, religião e superstições. A religião<br />

animista indígena misturou-se facilmente com a macia e lírica religião católicoromana<br />

portuguesa, como diz Darcy Ribeiro:<br />

Os iberos, ao contrário, se lançaram à aventura no além-mar [...]<br />

Certos de que eram novos cruzados cumprindo uma missão<br />

salvacionista de colocar o mundo inteiro sob a regência católicoromana.<br />

Des<strong>em</strong>barcavam s<strong>em</strong>pre desabusados, acesos e atentos aos<br />

mundos novos, querendo fluí-los, recriá-los, convertê-los e mesclar-se<br />

racialmente com eles. 3<br />

E para completar esse processo de miscigenação, os negros que foram<br />

trazidos ao Brasil de forma violenta, arrancados de seus lares, foram batizados <strong>em</strong><br />

massa na fé portuguesa católico-romana, compartilhando seus talentos, crenças e<br />

características para as d<strong>em</strong>ais etnias existentes no Brasil.<br />

1 HAHN, Carl Joseph. História do culto protestante no Brasil. Trad. Antônio Gouvêa de Mendonça. São<br />

Paulo: ASTE, 1989. p. 47.<br />

2 Mestiço de português e índio.<br />

3 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 2006. p. 60.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 39


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Estas são as questões fundamentais para compreender o processo de<br />

formação da nação brasileira com todas as implicações que estão agregadas a ela,<br />

como dizia Darcy Ribeiro:<br />

Nós, brasileiros, nesse quadro, somos um povo <strong>em</strong> ser, impedido de<br />

sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a<br />

mestiçag<strong>em</strong> jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda<br />

continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da<br />

mestiçag<strong>em</strong> viveu por séculos s<strong>em</strong> consciência de si, afundada na<br />

ninguendade. Assim foi até se definir como uma nova identidade<br />

étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, <strong>em</strong> ser, na dura<br />

busca de seu destino. Olhando-os, ouvindo-os, é fácil perceber que<br />

são, de fato uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas<br />

melhor, porque lavada <strong>em</strong> sangue índio e sangue negro. 4<br />

A nação brasileira é, portanto, uma nação mestiça e sincrética <strong>em</strong> suas<br />

práticas religiosas, uma nação presenteada com uma rica flora e fauna, uma nação<br />

multicor. Uma nação que possui um pouco de cada uma das civilizações que por<br />

aqui chegaram, como diz Gilberto Freyre, “todo brasileiro, mesmo o mais claro e<br />

louro, traz consigo, <strong>em</strong> sua alma, quando não no corpo também […] a sombra, ou ao<br />

menos a marca de nascença do índio ou do negro” 5 .<br />

O negro e as igrejas protestantes<br />

O Brasil recebeu 37% de todos os escravos africanos que foram trazidos para<br />

as Américas, totalizando mais de três milhões de pessoas. Durante o período<br />

colonial, a escravidão era a base que sustentava a economia do Brasil, principalmente<br />

na exploração de minas de ouro e nas lavouras de cana-de-açúcar. Por vários séculos,<br />

desde o ciclo da cana-de-açúcar - séculos XVI e XVII - até o ciclo do café - séculos XIX<br />

e XX, o negro foi o braço sustentador da economia brasileira, estando presente <strong>em</strong><br />

todas as atividades econômicas fundamentais do país. Para termos uma idéia da<br />

importância da mão-de-obra escrava para a economia brasileira, somente no período<br />

4 RIBEIRO, 2006, p. 410.<br />

5 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 53.<br />

40<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

de 1820 a 1860, o Brasil recebeu 1.200.000 negros escravizados, mais que o dobro da<br />

quantidade recebida por toda a América espanhola no mesmo período.<br />

Os escravos assistiram à chegada dos primeiros protestantes - protestantismo<br />

de invasão, viram suas crenças, costumes e fé. Contudo, os primeiros protestantes<br />

que aqui chegaram – através dos huguenotes, dos holandeses e flamengos durante o<br />

período colonial – viam o negro apenas como uma indispensável força de trabalho,<br />

barata e muito rentável.<br />

Com a independência do Brasil, houve grande interesse por parte de<br />

imigrantes, inclusive protestantes, de tentar uma vida melhor no “novo mundo”. O<br />

protestantismo de imigração inicia-se na primeira metade do século XIX, com a<br />

chegada de imigrantes al<strong>em</strong>ães <strong>em</strong> 1824, onde fundam, <strong>em</strong> 1968, a Igreja Evangélica<br />

de Confissão Luterana no Brasil 6 . A igreja luterana era uma igreja étnica, ou seja,<br />

voltada apenas para os imigrantes e seus descendentes. A Igreja Metodista Episcopal<br />

foi então a primeira denominação a iniciar atividades missionárias junto aos<br />

brasileiros. Eles fundaram, no Rio de Janeiro, a primeira Escola Dominical do Brasil,<br />

<strong>em</strong> 1828. Contudo, a sua atuação foi destinada aos grupos de classe média e a alta<br />

burguesia, através de um discurso elitizado. Desta forma, o negro, segundo<br />

Leonardo Boff:<br />

pelo fato de ser<strong>em</strong> diferentes dos brancos, dos cristãos e dos<br />

europeus, foram tratados com desigualdade, discriminados. A<br />

diferença de raça, de religião e de cultura não foi vista pelos<br />

colonizadores como riqueza humana. Grande equívoco: a diferença<br />

foi considerada como inferioridade! 7<br />

Durante o período missionário protestante - protestantismo de missão, entre<br />

os anos de 1850 e 1900, os protestantes buscaram formar entre seus adeptos uma<br />

forte consciência de ser “diferente”, ou <strong>em</strong> outras palavras, “anticatólico”, o que<br />

6 A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil como tal surgiu apenas <strong>em</strong> 1968. Até então,<br />

havia vários sínodos luteranos regionais.<br />

7 BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Petrópolis: Vozes, 1997. p.<br />

19.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 41


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

gerou no meio do protestantismo uma tendência religiosa firmada na negação e<br />

oposição à religião tradicional, arcaica, praticada e vivenciada anteriormente, para<br />

abrir-se para o novo, para o moderno, entrando no mundo das letras, a Bíblia. Nessa<br />

nova visão religiosa, as pessoas passavam a viver a experiência da conversão<br />

sinalizada por uma ruptura com o catolicismo 8 .<br />

Esses missionários que introduziram também outra cultura, marcada pelo<br />

estilo de vida norte americana, vieram tanto do Norte como do Sul dos Estados<br />

Unidos, trouxeram consigo profundas divergências teológicas e políticas. Os do<br />

Norte tinham conceitos teológicos e idéias liberais, eram contra a escravidão. Os do<br />

Sul eram ortodoxos intérpretes das Escrituras Sagradas – “fundamentalistas” – a<br />

escravidão era tida como uma instituição ordenada por Deus. Para os missionários<br />

do Sul, o negro era um descendente de Caim, amaldiçoado por Deus para s<strong>em</strong>pre. O<br />

servo do servo de seus irmãos 9 . Nesse contexto, <strong>em</strong> meio a tantas divergências<br />

teológicas e políticas, muitos no Brasil foram convertidos através de uma pregação<br />

influenciada pelo fundamentalismo que, além de resistir ao catolicismo, tinha<br />

conceitos e preconceitos contra os negros, o que levou as Igrejas Protestantes a<br />

estigmatizar e menosprezar a cultura e regiliosidade africana, tidas como satânicas.<br />

Veja o que diz o Padre Antônio Aparecido da Silva:<br />

Do púlpito à corte, as práticas religiosas de orig<strong>em</strong> africana foram<br />

estigmatizadas e satanizadas, sofrendo, inclusive, a repressão policial.<br />

Graças unicamente à proteção divina e à resistência negra,<br />

permanec<strong>em</strong> hoje, mais florescentes que ont<strong>em</strong>. Mesmo com o clima<br />

mais favorável para o ecumenismo e o diálogo religioso que se criou<br />

após o Concílio Vaticano II, ainda são fortes os preconceitos e a<br />

distância de católicos e protestantes <strong>em</strong> relação à religiosidade de<br />

orig<strong>em</strong> africana. 10<br />

Até os dias de hoje, muitas igrejas protestantes conhecidas como históricas,<br />

não permit<strong>em</strong> que <strong>em</strong> seus cultos sejam utilizados instrumentos musicais ou ritmos<br />

8 RIBEIRO, 2006.<br />

9 VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília: EdUnb,<br />

1980.<br />

10 SILVA, Antônio Aparecido da. Cultura Negra e evangelização. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 99.<br />

42<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

que não sejam os trazidos pela tradição européia e norte-americana. O som do piano<br />

e do órgão é a música considerada a mais apreciada por Deus. Os ritmos, os sons de<br />

atabaques, tambores e chocalhos são el<strong>em</strong>entos profanos e pecaminosos, por<br />

originar<strong>em</strong>-se da cultura, e ser<strong>em</strong> usados nos cultos afros, considerados inferiores e<br />

d<strong>em</strong>oníacos. Esta visão t<strong>em</strong> suas raízes ideológicas na idéia de branqueamento que<br />

associava o negro a tudo o que é mau, feio e ruim, e o branco ao bom, bonito e<br />

perfeito. Como diz Marco Davi de Oliveira:<br />

Assim, a liturgia constituiu outra barreira a que os negros no Brasil se<br />

aproximass<strong>em</strong> mais das igrejas históricas. Com uma programação<br />

litúrgica que valorizava os ritmos europeus e norte-americanos, as<br />

denominações históricas d<strong>em</strong>onstravam quanto se colocavam à<br />

marg<strong>em</strong> da cultura negra do Brasil. 11<br />

Com o surgimento do pentecostalismo – com sua liturgia mais flexível,<br />

dinâmica e participativa – os negros encontraram tudo aquilo que eles precisavam<br />

para que se viss<strong>em</strong> como cidadãos e recuperass<strong>em</strong> a auto-estima. Ser negro e<br />

pentecostal significava não ser mais praticante da macumba ou umbanda e aceito<br />

pelos d<strong>em</strong>ais “irmãos” brancos que o vê<strong>em</strong> como um negro diferente dos d<strong>em</strong>ais, um<br />

negro de “alma branca”.<br />

Mesmo as igrejas pentecostais possuindo como valores máximos a cultura<br />

ocidental européia e norte-americana, paradoxalmente, serão elas onde os negros<br />

mais se identificarão; é o pentecostalismo que proporcionará essa liberdade a eles,<br />

fazendo com que os negros particip<strong>em</strong> do culto, deixando de ser apenas meros<br />

ouvintes e espectadores. Entre as explicações para esse fenômeno, Marco Davi de<br />

Oliveira afirma que alguns aspectos contribuíram para isso:<br />

[…] o primeiro, que salta aos olhos, é a utilização do corpo como<br />

instrumento de culto. Nas igrejas pentecostais, o corpo é usado<br />

livr<strong>em</strong>ente no momento da adoração, indo de palmas e danças até<br />

expressões incomuns, como rastejar no chão, abrir os braços numa<br />

posição de vôo, correr s<strong>em</strong> sair do lugar, etc. […] O segundo aspecto<br />

que chama a atenção na liturgia pentecostal e que atrai os negros no<br />

11 OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004. p. 59.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 43


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Brasil é a musicalidade. […] É muito difícil para um negro ouvir um<br />

ritmo que faça alusão à sua orig<strong>em</strong> e ficar inerte. […] Um último<br />

aspecto que pode ser identificado na liturgia pentecostal e que atinge,<br />

sobretudo, os negros é a força dos antepassados, <strong>em</strong>bora essa questão<br />

não seja muito b<strong>em</strong> compreendida pela maioria dos evangélicos,<br />

tanto pentecostais quanto históricos. […] L<strong>em</strong>brar os antepassados –<br />

s<strong>em</strong> cultuá-los, naturalmente – é reconhecer a força cultural que<br />

privilegia os mais experientes, chamando-os sábios. 12<br />

Contudo, observamos que, apesar do movimento pentecostal ser de orig<strong>em</strong><br />

negra e atrair os negros brasileiros, ele possuía como valores e referencial do divino,<br />

para todos os povos, a cultura ocidental européia ou norte-americana, tratando as<br />

d<strong>em</strong>ais culturas, inclusive a cultura africana, como de orig<strong>em</strong> diabólica. Tudo isso fez<br />

com que a cultura africana fosse cada vez mais distanciada da identidade do negro<br />

pentecostal.<br />

O lado “negro” do pentecostalismo<br />

O pentecostalismo no Brasil é, apesar de negro, de orig<strong>em</strong> norte-americana;<br />

sendo assim, s<strong>em</strong>pre olhou de maneira preconceituosa as diversas manifestações<br />

culturais já existentes <strong>em</strong> solo brasileiro. O que aconteceu entre o pentecostalismo e<br />

os afro-descendentes no Brasil equivale à imposição da cultura euro-americana pelos<br />

cristãos imperialistas aos países por eles colonizados, como afirma Brian McLaren:<br />

[…] uma visão de substituição cultural; aniquilar as culturas<br />

associadas a outras religiões e substituir todas as m<strong>em</strong>órias e<br />

artefatos delas com os ornamentos da religião dominante. É<br />

exatamente isso o que o cristianismo ocidental t<strong>em</strong> praticado de<br />

maneira menos explosiva, porém não menos real <strong>em</strong> nossa história. 13<br />

Padilla:<br />

Ou ainda, como foi citado David O. Moberg, <strong>em</strong> Missão Integral de C. René<br />

12 OLIVEIRA, 2004, p. 68-70.<br />

13 MCLAREN, Brian D. Uma ortodoxia generosa: a igreja <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos de pós-modernidade. Trad. Jorge<br />

Camargo. Brasília: Palavra, 20<strong>07</strong>. p. 280.<br />

44<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

T<strong>em</strong>os equiparado o ‘americanismo’ com o cristianismo até o ponto<br />

de estarmos tentados a crer que as pessoas <strong>em</strong> outras culturas, ao<br />

converter<strong>em</strong>-se, dev<strong>em</strong> adotar os padrões institucionais<br />

estadunidenses. Através de processos psicológicos naturais somos<br />

levados a crer inconscient<strong>em</strong>ente que a essência de nosso American<br />

way of life é basicamente – senão totalmente – cristã. 14<br />

Desde sua gênese o pentecostalismo, <strong>em</strong> seu intuito de formar adeptos,<br />

possui uma forte característica que é a de “tirar” o fiel deste mundo, e isso implicava<br />

fort<strong>em</strong>ente <strong>em</strong> ser contracultural, sectário e ascético. Com uma crença fundamentada<br />

na Segunda Vinda iminente de Cristo, e na dicotomia entre o b<strong>em</strong> e o mal, o céu e o<br />

inferno, o material e o espiritual, este não deveria jamais se interessar por “coisas<br />

mundanas”, posicionando-se incisivamente contra a participação de cristãos <strong>em</strong> todo<br />

e qualquer tipo de manifestação artística e cultural. Para o pentecostalismo, a arte<br />

possuía como fator genético o pecado. Ser pentecostal, nesse sentido, implicava <strong>em</strong><br />

sacrifícios, penitências <strong>em</strong> troca de paz espiritual e certeza de salvação, devendo<br />

s<strong>em</strong>pre estar alerta para uma série de proibições e tabus comportamentais.<br />

Embora a igreja pentecostal possua uma orig<strong>em</strong> negra, ela continuará a<br />

pensar como igreja estrangeira. Desta forma, além de ter aversão a tudo que é<br />

católico, vai também ojerizar todas as manifestações culturais brasileiras, indígenas e<br />

negras que vão ser confundidas com as manifestações católicas, logo consideradas<br />

diabólicas, mudanas, ímpias. Marco Davi afirma:<br />

O primeiro princípio que notamos na Igreja Evangélica brasileira é<br />

que tudo que v<strong>em</strong> de matriz africana é coisa d<strong>em</strong>oníaca. Na Igreja<br />

brasileira, já se convencionou considerar “do diabo” tudo que t<strong>em</strong><br />

orig<strong>em</strong> na África. [...] Outro princípio que tomou conta da igreja<br />

brasileira <strong>em</strong> relação à orig<strong>em</strong> africana dos negros é que os el<strong>em</strong>entos<br />

que guardam s<strong>em</strong>elhança com os aspectos culturais da África dev<strong>em</strong><br />

dar lugar àqueles originários de outros lugares, de outras culturas.<br />

[...] Um terceiro princípio que deve ser citado <strong>em</strong> relação à orig<strong>em</strong><br />

africana dos negros é que essa orig<strong>em</strong> deve ser esquecida para não<br />

14 PADILLA, C. René. Missão integral: ensaios sobre o Reino e a igreja. Trad. Emil Albert Sobottka. São<br />

Paulo: FTL-B / T<strong>em</strong>ática Publicações, 1992. p. 28.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 45


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

suscitar nenhuma divisão entre os evangélicos. Falar das questões<br />

raciais não é correto, n<strong>em</strong> se torna um test<strong>em</strong>unho adequado. 15<br />

A proposta do pentecostalismo então foi e é de um rompimento com o<br />

“velho hom<strong>em</strong>”, deixando para trás toda herança cultural de orig<strong>em</strong>, para se tornar<br />

uma “nova criatura”, abraçando a forma de celebrar e cultuar a Deus, importada<br />

culturalmente do h<strong>em</strong>isfério norte, o que não possibilita nenhuma forma de aceitação<br />

de el<strong>em</strong>entos culturais afro-brasileiros, quer nas celebrações, quer na prática da vida<br />

diária. Arte, entretenimento e ociosidade formavam - ou ainda formam - o triângulo<br />

perfeito para a instalação da “oficina de Satanás”. Este conservadorismo exacerbado<br />

se estendeu por décadas e influenciou significativamente na formação de gerações<br />

completamente alienadas da arte e da cultura, de maneira geral, causando danos<br />

incalculáveis à cultura afro-descendente, que sofreu um processo de aculturação 16<br />

dentro dessas denominações, resultando <strong>em</strong> desvalorização, descaracterização e<br />

perca de identidade da cultura negra nas igrejas pentecostais.<br />

O branqueamento<br />

A ideologia do branqueamento entrou <strong>em</strong> voga no Brasil a partir na década<br />

de 1930, com o objetivo de extinguir o seguimento negro brasileiro, pois existia um<br />

desejo que o país se tornasse branco, o que seria conseguido com o cruzamento das<br />

raças. Durante muitos anos, o Brasil possuía a maioria da população negra, sendo<br />

15 OLIVEIRA, 2004, p. 94-96.<br />

16 Quando falamos de aculturação estamos nos referindo à absorção de uma cultura pela outra, onde<br />

essa nova cultura terá aspectos da cultura inicial e da cultura absorvida. Este conceito está<br />

fort<strong>em</strong>ente associado à idéia de extinção, descaracterização ou desestruturação social-cultural e<br />

perda de identidade de um povo. Isso porque a aculturação supõe que uma cultura possui mais<br />

valor do que outra, do mesmo modo como a suposta superioridade de certas raças <strong>em</strong> face de<br />

outras. Sendo assim, esta se faz pela imposição ou insinuação de estilos de comportamento através<br />

de processos sociais formais e informais, diretos e indiretos. Nesse contexto, o processo de<br />

aculturação é um molde social imposto por uma sociedade heg<strong>em</strong>ônica sobre outra. Este molde<br />

pode acontecer de forma objetiva (imposição aberta, colonialista) ou de forma subjetiva (imposição<br />

baseada na atração e conseqüente desvalorização do sist<strong>em</strong>a cultural materno <strong>em</strong> detrimento do<br />

apresentado), sendo ambas danosas.<br />

46<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

assim, era visto como um país de mestiços. Por isso, foram usados vários<br />

instrumentos institucionais para que esta ideologia fosse implantada.<br />

Um desses instrumentos foi a igreja protestante, conhecida hoje como<br />

evangélica, que ainda é um instrumento de manutenção desta ideologia. A história<br />

da igreja evangélica no Brasil s<strong>em</strong>pre favoreceu aos brancos <strong>em</strong> detrimento a tudo o<br />

que acontecia com os índios e negros. A igreja protestante chegou a solo brasileiro<br />

<strong>em</strong> plena escravidão e manteve-se omissa e conivente com as atrocidades que eram<br />

feitas.<br />

Pod<strong>em</strong>os analisar algumas estratégias que as igrejas protestantes, históricas e<br />

pentecostais, utilizaram para que se forjasse uma ideologia do branqueamento<br />

dentro das igrejas.<br />

A Primeira delas é a teologia; teologia esta branca e racista, a começar por<br />

suas próprias origens – européia e norte-americana. Como exceção, t<strong>em</strong>os o<br />

Pentecostalismo que surge do avivamento iniciado pelo negro e filho de escravo<br />

William James Seymour, e que se aproximou dos mais pobres e negros logo que<br />

chegou no Brasil <strong>17</strong> , o que já mostra um certo avanço. Contudo, as igrejas pentecostais<br />

influenciadas pelo racismo d<strong>em</strong>onizaram tudo o que era de orig<strong>em</strong> negra. A nossa<br />

teologia é de orig<strong>em</strong> racista. Por isto que até os dias de hoje v<strong>em</strong>os a descrição do<br />

pecado como a cor preta, o diabo da mesma forma, etc.<br />

A segunda coisa que pod<strong>em</strong>os citar é a educação religiosa – objeto do nosso<br />

estudo. Não se é falado <strong>em</strong> d<strong>em</strong>ocracia racial <strong>em</strong> nossas escolas bíblicas, aliás, a<br />

educação religiosa de nossas igrejas passa longe de assuntos polêmicos que exijam o<br />

mínimo de reflexão; nossas igrejas fog<strong>em</strong> “como o diabo foge da cruz” de<br />

constrangimentos e de impossibilidade de respostas. Elas tentam s<strong>em</strong>pre manter<br />

uma postura fundamentalista e dogmática de tudo. Isso não acontece apenas com a<br />

<strong>17</strong> OLIVEIRA, 2004.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 47


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

questão racial, mas com muitos outros assuntos tais como a sexualidade, o sexo, os<br />

desejos, atração e o prazer.<br />

Uma última estratégia que poderíamos citar é a falta de referência, ou seja,<br />

poucos são os negros que ocupam posição de liderança, ou dirig<strong>em</strong> igrejas.<br />

Todo esse contexto gerou, inclusive nas igrejas pentecostais, um grande<br />

número de casamento inter-racial. O desejo de aceitação <strong>em</strong> muitos casos fez com<br />

que se escolhesse o cônjuge pela cor de sua pele, falando mais alto do que o amor.<br />

Como afirma Marco Davi de Oliveira:<br />

[...] o amor não t<strong>em</strong> raça, n<strong>em</strong> está preocupado com a cor da pele do<br />

ser amado. Qu<strong>em</strong> ama, ama e pronto. Há a escolha pessoal, e isso é<br />

muito saudável. Porém é sabido que n<strong>em</strong> todos os casamentos nas<br />

igrejas pentecostais têm o amor como única motivação [...] a escolha<br />

de um cônjuge está, muitas vezes, circunscrita à cor da pele. 18<br />

Esse tipo de ideologia fez com que por muito t<strong>em</strong>po se acreditasse que o<br />

branqueamento fosse o melhor caminho para se conquistar a ascensão social,<br />

inclusive dentro das igrejas.<br />

A educação infantil nas igrejas protestantes: analisando o material da<br />

APEC<br />

Uma das estratégias utilizadas para “branquear” as igrejas protestantes no<br />

Brasil foi a educação. A educação nessas igrejas inicia-se desde a idade de<br />

aproximadamente três anos e segue por toda vida. As classes de escolas bíblicas,<br />

assim denominados esses momentos de estudo, estão geralmente divididas da<br />

seguinte maneira: sala das crianças, sala dos adolescentes - esta sala t<strong>em</strong> sua<br />

formação mais recente, sala dos jovens - ou ainda, dos não casados - e sala dos<br />

casados - onde são incluídos os(as) desquitados(as) e viúvos(as).<br />

18 OLIVEIRA, 2004, p. 87-88.<br />

48<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Em relação à sala das crianças, ainda encontramos <strong>em</strong> algumas igrejas as<br />

seguintes subdivisões: sala dos “não letrados” - 3 a 5 anos - e a dos “letrados” - 6 a 10<br />

anos, podendo ainda encontrar uma divisão mais rebuscada: maternal - 3 a 5 anos,<br />

primários - 6 a 7 anos - e a dos juniores - 8 a 10 anos. Esta divisão varia de acordo<br />

com o espaço logístico disponível nas igrejas e o número de professores(as)<br />

disponíveis.<br />

Quanto ao recurso didático utilizado para a ministração das aulas, pod<strong>em</strong>os<br />

citar os produzidos pelas seguintes editoras: CPAD, Cristã Evangélica, entre outras;<br />

contudo, o material didático que mais nos chamou a atenção, s<strong>em</strong> dúvidas, foi o<br />

material produzido pela Aliança Pró-Evangelização das Crianças – APEC, uma<br />

organização fundada <strong>em</strong> 1937 por Jessé Irwin Overholtzer, <strong>em</strong> Chigaco, Estados<br />

Unidos, que se expandiu até o Brasil – por um motivo muito simples: a autora fez o<br />

curso desta instituição para formação de professoras, com a duração de um ano,<br />

onde aprendeu a utilizar os materiais didáticos - músicas, hitórias, jogos, campanhas,<br />

etc - vindo a ser professora da referida instituição na cidade de Fortaleza, lecionando<br />

a disciplina de comunicação visual, por dois anos consecutivos.<br />

Entre os materiais disponíveis, encontramos a base da evangelização de<br />

crianças, que permeia todo o curso e é depois desenvolvido nas igrejas, nas salas de<br />

Escola Bíblica e nos impactos evangelísticos: o livro s<strong>em</strong> palavras. Este livro t<strong>em</strong><br />

páginas coloridas que é usado como recurso visual, para evangelizar as crianças; ele<br />

possui cinco páginas, cada página contém uma cor, que traz uma interpretação<br />

fundamentalista da Bíblia, na seguinte ord<strong>em</strong>: dourada, preta, vermelha, branca e<br />

verde. Cada página diz uma verdade bíblica à criança que aprenderá esta verdade<br />

pela sua associação com a cor. Vejamos o que diz cada página:<br />

PÁGINA DOURADA<br />

Esta página dourada nos fala do Céu. Não posso lhe dizer como é<br />

lindo o Céu, mas há um versículo da Palavra de Deus que nos dá<br />

uma idéia. É o Apocalipse 21:21 “E as doze portas eram doze pérolas... A<br />

praça da cidade é de ouro puro”.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 49


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Mais do que isso, o céu é um lugar de alegria. Ninguém fica doente<br />

no Céu. Não há dores, n<strong>em</strong> sofrimentos, n<strong>em</strong> tristezas. Melhor ainda,<br />

ninguém morre. “E Deus enxugará dos olhos as lágrimas e a morte já não<br />

existirá, já não haverá luto, n<strong>em</strong> pranto, n<strong>em</strong> dor” (Ap 21:4).<br />

Somente Deus poderia criar um lugar tão maravilhoso. Você já sabia<br />

que Deus o ama tanto que quer que você esteja no Céu com Ele para<br />

s<strong>em</strong>pre Quando o Senhor Jesus voltou para o céu depois de morrer<br />

na cruz e ressuscitar dos mortos, Ele disse que ia preparar um lugar<br />

para nós. E Deus quer você lá com Ele para ser feliz eternamente.<br />

PÁGINA PRETA<br />

Se a calçada na frente da sua casa fosse de ouro, quanto t<strong>em</strong>po ela<br />

ficaria ali Uma noite “Oh”, você diz, “alguém a roubaria”. Mas não<br />

é pecado roubar Claro que é. E lá no Céu... “Nela nunca jamais<br />

penetrará coisa alguma contaminada... e mentira” (Ap 21:27). Quer dizer<br />

que o pecado não poderá entrar no Céu para estragá-lo.<br />

Pense, então: Deus quer que cada um de nós vá para o Céu, mas se há<br />

pecado <strong>em</strong> nossos corações, este nos impede de entrar no Céu.<br />

A página preta representa o pecado <strong>em</strong> nossos corações, o pecado<br />

que nunca poderá entrar no Céu. A Palavra de Deus nos diz que<br />

“Todos pecaram” (Rm 3:23). Você também precisa dizer, “eu pequei”.<br />

Mas, escute... Deus t<strong>em</strong> Boas Novas para você! Ele t<strong>em</strong> um r<strong>em</strong>édio<br />

que faz possível nos livrar dos pecados! Nós não pod<strong>em</strong>os fazer nada<br />

para limpar os nossos corações. Mas Deus pode e o fará... se crermos<br />

no Evangelho: “que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as<br />

Escrituras, e que foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as<br />

Escrituras” (1 Co 15:3-4).<br />

PÁGINA VERMELHA<br />

Esta página vermelha representa o precioso sangue do Senhor Jesus<br />

Cristo. A Bíblia nos ensina que “o sangue de Jesus seu Filho nos purifica<br />

de todo pecado” (1 Jo 1:7). Não é maravilhoso saber que Deus não<br />

somente nos ama tanto que nos quer no Céu, mas nos ama tanto que<br />

deu Seu único Filho para ser o nosso Salvador e para levar o castigo<br />

de nossos pecados Quando o Senhor Jesus morreu na cruz, Deus pôs<br />

sobre Ele os nossos pecados. Assim que diz 2 Co 5:21 “Aquele que não<br />

conheceu pecado, o fez pecado por nós; para que n'Ele fôss<strong>em</strong>os feitos justiça<br />

de Deus”.<br />

Depois de morrer <strong>em</strong> nosso lugar, Jesus foi sepultado, e ao terceiro<br />

dia ressuscitou! Viveu novamente! Jesus está vivo! E porque Ele vive,<br />

Ele pode vir morar <strong>em</strong> nossos corações. Ele diz agora: “Eis que estou à<br />

porta e bato: se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei <strong>em</strong> sua<br />

casa” (Ap 3:20). Quando convidamos o Senhor Jesus a entrar <strong>em</strong><br />

nossos corações e ficar para nos salvar do pecado, Ele entra e fica.<br />

PÁGINA BRANCA<br />

50<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

A página branca representa o coração limpo, que Jesus já purificou.<br />

Sabe quão branco ele faz o coração que O recebe Tão branquinho<br />

como a neve Não! Mais branco do que a neve! A Bíblia diz, “Lava-me,<br />

e ficarei mais alvo que a neve” (Sl 51:7b).<br />

Você não gostaria de ter o seu coração tão limpinho assim Deus<br />

quer perdoar os seus pecados e purificar o seu coração, e assim Ele<br />

fará no momento que você receber Jesus como seu Salvador. Jesus já<br />

morreu <strong>em</strong> seu lugar; ele quer ser o seu Salvador; quer lhe dar a vida<br />

eterna... vida eterna no Céu.<br />

Jesus está batendo à porta do seu coração. Você precisa abrir a porta e<br />

deixá-lO entrar. Não quer fazer isso agora mesmo Então, abaixe<br />

agora a sua cabeça e peça ao Senhor Jesus que entre <strong>em</strong> seu coração.<br />

Peça para Ele ser o seu Salvador.<br />

A salvação é um presente. Como faz<strong>em</strong>os ao receber um presente<br />

Agradec<strong>em</strong>os, não é Então, diga “muito obrigado” agora mesmo a<br />

Deus, o Pai. Agradeça a Deus por ter enviado o Senhor Jesus para<br />

morrer <strong>em</strong> seu lugar. Agradeça que Ele agora o salvou e perdoou<br />

seus pecados. Agradeça que Ele lhe deu agora a vida eterna.<br />

PÁGINA VERDE<br />

A página verde nos fala da nova vida que receb<strong>em</strong>os quando<br />

aceitamos o Senhor Jesus como Salvador.<br />

Quais são as coisas verdes que exist<strong>em</strong> na natureza Sim, as ervas, as<br />

árvores, o gramado e as plantas <strong>em</strong> geral. E todas são coisas que têm<br />

vida. Vamos ler mais um versículo da Bíblia. É João 3:36 “Qu<strong>em</strong> crê no<br />

filho t<strong>em</strong> a vida eterna”. Você agora crê no Senhor Jesus como Salvador<br />

e Senhor da sua vida (dono) Então, este versículo fala de você. Diz<br />

que você t<strong>em</strong> o quê Exatamente, você t<strong>em</strong> a vida eterna - o tipo de<br />

vida que precisamos ter para poder entrar no Céu. Você não está<br />

contente de ter recebido Jesus como seu Salvador<br />

E, agora, esta nova vida precisa ser alimentada pela leitura da Palavra<br />

de Deus (2 Pe 3:18), e pela oração. Assim você irá crescendo<br />

espiritualmente na vida cristã, agradando ao Senhor Jesus na sua vida<br />

diária e ganhando outros para Ele. 19<br />

Fica claro a associação da cor preta ao pecado, a algo que foi contaminado e<br />

que não possui acesso ao Céu e ao próprio Deus. É por associação que as crianças<br />

aprend<strong>em</strong> desde cedo que tudo referente ao preto, negro, é diabólico, contém<br />

natureza pecaminosa.<br />

19 A história do Livro s<strong>em</strong> palavras. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 01 jun.<br />

2008.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 51


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Outro material muito utilizado é o recurso musical; e para reforçar a lição do<br />

livro s<strong>em</strong> palavras t<strong>em</strong>os o seguinte cântico:<br />

Meu Coração era Preto [Sujo]<br />

Meu coração era PRETO [<strong>em</strong> outras versões SUJO],<br />

Mas Cristo aqui já entrou,<br />

Com seu precioso sangue,<br />

Tão BRANCO [<strong>em</strong> outras versões ALVO] assim o tornou.<br />

E diz <strong>em</strong> sua Palavra,<br />

Que <strong>em</strong> ruas de ouro andarei,<br />

Oh, dia feliz quando eu cri,<br />

E a Vida Eterna eu ganhei. 20<br />

Continua evidente que o processo educativo no qual, principalmente,<br />

crianças estão envolvidas, é segregacionista e discriminador, induzindo ao<br />

preconceito desde o simples uso da cor preta como cor que simboliza o pecado e a<br />

sujeira. Esses ex<strong>em</strong>plos mostram o processo de aculturação da identidade afrodescendente<br />

de forma objetiva - imposição aberta.<br />

Quanto às histórias que são contadas às crianças com o auxílio de recursos<br />

visuais, cartazes, observamos a escassez de referenciais negros. Os grandes heróis são<br />

os missionários euro-americanos; os personagens bíblicos são representados por<br />

figuras de homens e mulheres magros, de pele branca e cabelos castanhos e<br />

dourados. Raras são as histórias com personagens negros como protagonistas,<br />

reforçando o processo de aculturação, agora de forma subjetiva, ou seja, pela<br />

imposição baseada na atração e conseqüente desvalorização do sist<strong>em</strong>a cultural<br />

através de falta de referências.<br />

Este quadro de violência simbólica nos mostra como se dão de maneira sutil<br />

os processos de dominação que ocorr<strong>em</strong> através da imposição de um sist<strong>em</strong>a<br />

cultural. Bourdieu 21 explica b<strong>em</strong> este conceito, mostrando que a cultura é um<br />

conjunto de símbolos selecionados, ao longo da história, de acordo com os interesses<br />

de uma classe dominante. Tais produções simbólicas estão fundamentadas <strong>em</strong><br />

20 Cânticos de salvação para crianças. v. 2. São Paulo: APEC, [s.d.]. p. 9.<br />

21 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 1989. Lisboa: Difel<br />

52<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

ideologias que são coletivamente apropriadas, <strong>em</strong>bora sirvam a interesses<br />

particulares do grupo que domina.<br />

A violência simbólica expressa-se na imposição “legítima” e<br />

dissimulada, com a interiorização da cultura dominante. [...] O<br />

dominado não se opõe ao seu opressor, já que não se percebe como<br />

vítima desse processo: ao contrário, o oprimido considera a situação<br />

natural e inevitável. 22<br />

Dessa forma, a violência simbólica é efetivada com a “cumplicidade”<br />

daqueles que a sofr<strong>em</strong>.<br />

[...] violência simbólica é essa coerção que se institui por intermédio<br />

da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao<br />

dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para<br />

pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele,<br />

mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm <strong>em</strong><br />

comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de<br />

dominação, faz<strong>em</strong> esta relação ser vista como natural; ou, <strong>em</strong> outros<br />

termos, quando os esqu<strong>em</strong>as que ele põe <strong>em</strong> ação para se ver e se<br />

avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/baixo,<br />

masculino/f<strong>em</strong>inino, branco/negro, etc.) resultam da incorporação<br />

de classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é<br />

produto. 23<br />

Assim, os grupos dominados - negros - têm como referência os ideais de vida<br />

construídos do ponto de vista dos dominantes - brancos, euro-americanos - s<strong>em</strong><br />

perceber que auxiliam para a manutenção das formas de dominação, porquanto<br />

percebidas como naturais.<br />

Esta é a realidade da maioria das escolas bíblicas espalhadas pelo Brasil,<br />

onde as crianças negras e mestiças continuam a crescer s<strong>em</strong> fazer uma reflexão da<br />

sua identidade, a partir de uma educação preconceituosa, forjada por valores<br />

dominantes e treinada, à exaustão, para repetir a prática corrente na sociedade,<br />

cumprindo assim o seu papel de manter as estruturas vigentes.<br />

22 SOUZA, A. C. B. ; ALBUQUERQUE, L. B. Currículo cultural: a sutil eficácia da violência simbólica.<br />

III Colóquio Internacional de Políticas e Práticas Curriculares, 20<strong>07</strong>. Globalização e Interculturalidade:<br />

currículo, espaço <strong>em</strong> litígio, João Pessoa, v. 1, p. 1-<strong>17</strong>, 20<strong>07</strong>.<br />

23 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 160.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 53


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Considerações finais<br />

Concluímos que a nação brasileira é uma nação mestiça e sincrética <strong>em</strong> suas<br />

práticas religiosas, uma nação multicor que possui um pouco de cada uma das<br />

civilizações que por aqui chegaram e que o evangelho pode ser propagado s<strong>em</strong><br />

abalar a cultura das etnias, povos e raças aqui existentes, pois o evangelho de Jesus<br />

não está contra a cultura de ninguém, mas reconhece e respeita as diferenças<br />

culturais, ressaltando-as, como prova da diversidade, da sabedoria e da criatividade<br />

de Deus na Criação.<br />

Concluímos, também, que as igrejas de tradição protestante evangélica, tanto<br />

históricos como pentecostais, contribuíram para que a situação de discriminação e<br />

marginalização dos negros no Brasil foss<strong>em</strong> por tanto t<strong>em</strong>po perpetuadas e que<br />

t<strong>em</strong>os uma dívida a pagar. Uma das maneiras de pagarmos essa dívida é propormos<br />

uma educação de afirmação às raízes étnicas e culturais afro-descendentes, com o<br />

intuito de fazer valer o respeito cultural tão fundamental para a construção de uma<br />

sociedade igualitária, livre e d<strong>em</strong>ocrática.<br />

Somente desta forma poder<strong>em</strong>os propor uma inculturação, preocupada com<br />

o resgate da dignidade do negro brasileiro, criado à imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança de Deus;<br />

para que possamos (re)afirmar esta dignidade, ativamente engajados no Reino de<br />

Deus que é contra toda injustiça e opressão e anseia por justiça, igualdade e<br />

liberdade.<br />

Referências<br />

A história do Livro s<strong>em</strong> palavras. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 01<br />

jun. 2008.<br />

Cânticos de salvação para crianças. v. 2. São Paulo: APEC, [s.d.].<br />

54<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

ALENCAR, Gedeon. <strong>Protestantismo</strong> tupiniquim: hipóteses da (não) contribuição evangélica à<br />

cultura brasileira. São Paulo: Arte Editorial, 2005.<br />

BARBOSA. José Carlos. Negro não entra na igreja: espia da banda de fora. Piracicaba: Unimep,<br />

2002.<br />

BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Petrópolis: Vozes,<br />

1997.<br />

BOTAS, Paulo. Carne do sagrado – edun ara: devaneios sobre a espiritualidade dos orixás.<br />

Petrópolis: Vozes, 1996.<br />

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.<br />

______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.<br />

______. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.<br />

COMBLIN, José. O batismo do ministro da rainha da Etiópia: o negro e a Biblia. Petrópolis:<br />

Vozes, 1988.<br />

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1999.<br />

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.<br />

HAHN, Carl Joseph. História do culto protestante no Brasil. Trad. Antônio Gouvêa de<br />

Mendonça. São Paulo: ASTE, 1989.<br />

HOORNAERT, Eduardo. Uma guerra s<strong>em</strong> trégua: a guerra cultural contra o negro. <strong>Revista</strong> de<br />

Liturgia, São Paulo, n. 66. p. 16-<strong>17</strong>, nov./dez., 1984.<br />

MCLAREN, Brian D. Uma ortodoxia generosa: a Igreja <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos de pós-modernidade. Trad. Jorge<br />

Camargo. Brasília: Palavra, 20<strong>07</strong>.<br />

MIRANDA, Mário de França. Inculturação da fé e sincretismo religioso. REB, vol. 60,<br />

fascículo 238, 2000.<br />

OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004.<br />

PADILLA, C. René. Missão integral: ensaios sobre o Reino e a igreja. Trad. Emil Albert<br />

Sobottka. São Paulo: FTL-B/T<strong>em</strong>ática Publicações, 1992.<br />

RAMOS, Arthur. A aculturação negra no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.<br />

REGO, Waldeloir. Iconografia dos deuses africanos no Candomblé da Bahia. São Paulo: Raízes<br />

Artes Gráficas, 1980.<br />

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 2006.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 55


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

ROCHA, José Geraldo da. Teologia & negritude: um estudo sobre os Agentes de Pastoral<br />

Negros. Rio Grande do Sul: Palloti, 1998.<br />

SANT’ANA, Antonio Olímpio de. O negro latino-americano. Rio de Janeiro: T<strong>em</strong>po e Presença,<br />

1989.<br />

SANTOS, Gilberto dos. Aprendendo com os Cultos Afro-Brasileiros. Liturgia, São Paulo, n. 66, p.<br />

6-12, nov./dez., 1984.<br />

SANTOS, Leontino Farias dos. Educação: libertação ou submissão A ideologia da educação<br />

protestante na perspectiva da APEC. São Paulo: Simpósio, [s.d.].<br />

SILVA, Antônio Aparecido da. Cultura Negra e Evangelização. São Paulo: Paulinas, 1991.<br />

SILVA, Antônio Aparecido da. Negritude e liturgia. Liturgia, São Paulo, n. 66, p. 1-5,<br />

nov./dez., 1984.<br />

SOUZA, A. C. B. ; ALBUQUERQUE, L. B. Currículo cultural: a sutil eficácia da violência<br />

simbólica. III Colóquio Internacional de Políticas e Práticas Curriculares, 20<strong>07</strong>. Globalização e<br />

Interculturalidade: currículo, espaço <strong>em</strong> litígio, João Pessoa, v. 1, p. 1-<strong>17</strong>, 20<strong>07</strong>.<br />

VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília:<br />

EdUnb, 1980.<br />

56<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

A importância do dinheiro<br />

nas práticas religiosas da Igreja da Graça<br />

Por José Guibson Dantas *<br />

Resumo:<br />

Este trabalho analisa os discursos proferidos pelo missionário R. R. Soares no programa<br />

Show da Fé com o objetivo de identificar as representações sociais do dinheiro nas práticas<br />

religiosas da Igreja da Graça a partir da teoria das representações sociais formulada por<br />

Serge Moscovici. Para a obtenção dos resultados foram gravados cinco programas e tudo o<br />

que era dito sobre bens materiais, dinheiro, dízimos, e prosperidade foi transcrito e dividido<br />

por categorias. Na análise, concluiu-se que há uma forte ideologia capitalista nos conteúdo<br />

veiculado no programa Show da Fé, <strong>em</strong> que se dá uma grande ênfase ao dinheiro nas<br />

práticas religiosas da instituição que produz este programa: a Igreja da Graça.<br />

Palavras-chave:<br />

práticas religiosas - dinheiro – representações sociais – Igreja da Graça.<br />

Introdução<br />

A Igreja Internacional da Graça de Deus v<strong>em</strong> sendo observada com<br />

curiosidade por pesquisadores e pessoas que tramitam no espaço religioso brasileiro<br />

pelo fato desta instituição dar grande ênfase ao dinheiro <strong>em</strong> suas práticas religiosas,<br />

seguindo os passos iniciais da igreja neopentecostal considerada modelo para todas<br />

as outras deste segmento pentecostal: a Igreja Universal do Reino de Deus.<br />

Apoiando-se na Teologia da Prosperidade e com um discurso fort<strong>em</strong>ente<br />

personalizado <strong>em</strong> seu líder, o auto-intitulado missionário R. R. Soares, a Igreja da<br />

Graça investe milhões de reais <strong>em</strong> conteúdo religioso veiculado nos meios de<br />

comunicação de massa, sobretudo na televisão, meio <strong>em</strong> que veicula o “Show da Fé”,<br />

* Pesquisador e professor, doutorando <strong>em</strong> Comunicação e Poder pela Universidad de Málaga e<br />

autor de dois livros sobre a atuação das igrejas neopentecostais na programação televisiva<br />

brasileira (joseguibsondantas@uol.com.br).<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 57


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

um programa televisivo que é exibido diariamente <strong>em</strong> canais abertos <strong>em</strong> rede<br />

nacional.<br />

Com grande habilidade <strong>em</strong> convencer o telespectador a tornar-se um<br />

“patrocinador” do programa, fazendo-o assumir o compromisso de doar<br />

mensalmente uma determinada quantia de dinheiro à igreja, R. R. Soares transforma<br />

os sessenta minutos do programa <strong>em</strong> um verdadeiro espaço de negociação monetária<br />

<strong>em</strong> que Deus está presente para exercer seu poder de cura mediante o pagamento da<br />

graça alcançada. A Igreja da Graça, neste caso, seria a mediadora do negócio.<br />

Entender esta prática religiosa da Igreja da Graça motivou este trabalho, que<br />

t<strong>em</strong> como objetivo principal identificar as representações sociais do dinheiro nas<br />

práticas religiosas da Igreja da Graça a partir da teoria das representações sociais<br />

formulada por Serge Moscovici. Para a obtenção dos resultados foi utilizada a técnica<br />

de observação não participante e o centro de análise foi o programa Show da Fé,<br />

apresentado pelo missionário R. R. Soares, sendo gravados cinco programas. Tudo o<br />

que era dito sobre bens materiais, dinheiro, dízimos, e prosperidade observados nas<br />

gravações foi transcrito para o papel (o que gerou aproximadamente 15 páginas de<br />

transcrições), sendo analisados de forma sist<strong>em</strong>ática e divididos por categorias. Na<br />

análise, consideraram-se os seus significados, a consistência e especificidade interna<br />

das mensagens e todo tipo de idéia que pudesse realçar a importância do dinheiro<br />

nas práticas religiosas da Igreja da Graça.<br />

O arcabouço das representações sociais<br />

O campo das representações sociais configura-se <strong>em</strong> nossos dias não só uma<br />

linha de pesquisa produtiva da psicologia social, mas uma ferramenta importante<br />

para se compreender o universo simbólico da sociedade pós-moderna, <strong>em</strong> que os<br />

meios de comunicação de massa possu<strong>em</strong> um papel central de mediação entre as<br />

pessoas e as instituições e a própria realidade.<br />

58<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Entretanto, o conceito de representações sociais é tratado de diferentes<br />

maneiras pelos pesquisadores, tal a sua complexidade, pois “designa tanto um<br />

conjunto de fenômenos quanto o conceito que os engloba e a teoria construída para<br />

explicá-los, identificando um vasto campo de estudos psicossociológicos” 1 .<br />

Aliás, o próprio Serge Moscovici 2 , fundador da teoria das representações<br />

sociais e principal expoente da mesma, s<strong>em</strong>pre evitou apresentar uma definição<br />

universal das representações sociais por julgar que uma tentativa de estabelecer um<br />

conceito fixo acabaria por reduzir o seu alcance.<br />

Moscovici desenvolveu sua teoria a partir do conceito de representações<br />

coletivas de Émile Durkheim, pelo qual o autor de As formas el<strong>em</strong>entares da vida<br />

religiosa procurava tratar de fenômenos como os mitos, a religião, a ciência e as<br />

categorias de espaço e t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> termos de conhecimento inerente à sociedade.<br />

Porém, Moscovici afirma que as representações coletivas são estáticas,<br />

conseqüência de uma sociedade unificada e já ultrapassada. Por isso, o mesmo<br />

definiu uma outra ord<strong>em</strong> de fenômenos (as representações sociais) para tratar de um<br />

conhecimento gerado pela sociedade cont<strong>em</strong>porânea, muito mais complexa e<br />

suscetível à mudanças que na época de Durkheim.<br />

A partir da concepção de representações sociais, Moscovici procurou definir<br />

uma estrutura teórica para as representações. Diz ele, <strong>em</strong> uma formulação já tornada<br />

clássica no campo que:<br />

No real, a estrutura de cada representação nos aparece desdobrada;<br />

ela t<strong>em</strong> duas faces tão pouco dissociáveis quanto a frente e o verso de<br />

uma folha de papel: a face figurativa e a face simbólica. Nós<br />

escrev<strong>em</strong>os que: Representação = figura – significação, entendendo<br />

1 SÁ, Celso Pereira de. Representações Sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, Mary<br />

Jane (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia<br />

social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 29.<br />

2 MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações <strong>em</strong> psicologia social. 2. ed. Petrópolis:<br />

Vozes, 2003.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 59


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

por isso que ela faz compreender <strong>em</strong> toda figura um sentido e <strong>em</strong><br />

todo sentido uma figura. 3<br />

A partir desta configuração estrutural das representações sociais, Moscovici<br />

partiu para caracterização de seus processos formadores. Ele chamou de<br />

“ancorag<strong>em</strong>” a função de duplicar uma figura por um sentido, fornecer um contexto<br />

inteligível ao objeto e interpretá-lo. Ou seja, é a integração cognitiva do objeto<br />

representado – sejam eles acontecimentos, pessoas, idéias, etc. – a um sist<strong>em</strong>a de<br />

pensamento social preexistente e nas transformações implicadas. Ancorar é<br />

classificar e denominar “coisas que não são classificadas n<strong>em</strong> denominadas são<br />

estranhas, não existentes e ao mesmo t<strong>em</strong>po ameaçadoras” 4 .<br />

Uma outra proposição teórica, admitida por Moscovici, é a transformação do<br />

não familiar <strong>em</strong> familiar. Para ele, o propósito de todas as representações é o de<br />

transformar algo não familiar ou a própria não familiaridade, <strong>em</strong> familiar. Para<br />

entender este processo é importante, antes de mais nada, se conhecer os dois<br />

universos de pensamento que compõ<strong>em</strong> as representações sociais: o consensual e o<br />

reificado.<br />

Segundo Pavarino 5 , o universo consensual é onde as representações sociais<br />

são produzidas, o conhecimento é espontâneo e por meio dele se elaboram opiniões<br />

sobre a política, educação, ciência, esportes, isto é, são as noções discutidas e<br />

apreendidas na escola, <strong>em</strong> casa, no trabalho ou pela mídia. Esse universo está s<strong>em</strong>pre<br />

<strong>em</strong> movimento, nunca está estático, e os indivíduos são transformados <strong>em</strong> cúmplices,<br />

podendo falar <strong>em</strong> nome do grupo a qual pertenc<strong>em</strong> e é protegido por ele. Por outro<br />

lado, o universo reificado é o científico, que vive sob o maniqueísmo do certa e do<br />

errado, do legítimo e do ilegítimo, do falso e do verdadeiro, do qualificado ou do<br />

desqualificado.<br />

3 SÁ, 2004, p. 34.<br />

4 SÁ, 2004, p. 38.<br />

5 PAVARINO, Rosana Nantes. Teoria das representações sociais: pertinência para as pesquisas <strong>em</strong><br />

comunicação de massa. Comunicação e Espaço Público, São Paulo, nº 1 e 2, p. 128-141, 2004.<br />

60<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Para Moscovici, ambos os universos citados atuam simultaneamente para<br />

moldar nossa realidade. Na nossa sociedade, o novo é trazido ao meio social por<br />

meio de universos reificados da ciência, da tecnologia ou pelos profissionais<br />

especializados. São teorias ou descobertas que, quando expostas à sociedade comum,<br />

provocam estranheza ou introduz a não familiaridade à mesma.<br />

Na verdade, uma realidade social, de acordo com a teoria das representações<br />

sociais, é criada somente quando o novo ou não familiar é incorporado ao universo<br />

consensual e é justamente aí que operam os processos pelos quais o não familiar<br />

passa a ser familiar, perdendo a novidade e tornando-se socialmente conhecido.<br />

Se o não familiar (ou o objeto estranho) não se apresentasse de forma tão<br />

imprevisível, o pensamento social teria a estabilidade do t<strong>em</strong>po que Durkheim<br />

atribuía às representações coletivas. Para Moscovici, o não familiar atrai, intriga e<br />

instiga as pessoas e as comunidades, provocando nelas um t<strong>em</strong>or da perda de tudo<br />

que é habitual e da compreensão mútua. Porém, tornando o não familiar <strong>em</strong> familiar,<br />

ele é transformado ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> menos extraordinário e mais interessante, ou<br />

seja, familiar.<br />

Dessa forma, mostra-se o quanto as representações sociais são construídas<br />

para tornar o mundo cotidiano mais interessante para a sociedade, e mostra b<strong>em</strong> o<br />

quanto elas são características dos t<strong>em</strong>pos modernos, <strong>em</strong> que as pessoas esquec<strong>em</strong>,<br />

criam e adaptam conceitos e opiniões numa grande velocidade.<br />

As representações sociais do dinheiro no “Show da Fé”<br />

Nos últimos anos, o que se viu foi um grande número de trabalhos sobre o<br />

avanço neopentecostal no Brasil. Este trabalho v<strong>em</strong> colaborar com os esforços da<br />

acad<strong>em</strong>ia <strong>em</strong> compreender o sucesso destas igrejas, sobretudo da Igreja Internacional<br />

da Graça de Deus e seu líder R.R. Soares. É justamente a partir de seu programa<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 61


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

(“Show da fé”) que pode-se compreender como funciona a ancorag<strong>em</strong> da extorsão<br />

financeira a representações que já habitam o imaginário dos seus seguidores antes<br />

mesmo de ingressar<strong>em</strong> na igreja.<br />

Vale ressaltar que os programas que foram analisados se mostraram<br />

extr<strong>em</strong>amente repetitivos, s<strong>em</strong>pre ressaltando a importância do dinheiro para aquela<br />

instituição e para os próprios fiéis que a freqüentam. Estes, ao contrário de outras<br />

igrejas evangélicas e da própria Igreja Católica, não vão à Igreja da Graça para pedir<br />

proteção, mas para fazer um acordo financeiro com Deus – que na liturgia religiosa<br />

desta igreja se mostra um grande agiota e detentor de toda máquina capitalista do<br />

planeta.<br />

A representação social da “reciprocidade”<br />

Todo o discurso do missionário R. R. Soares se baseia no universo simbólico<br />

dos chamados ‘patrocinadores’, ou seja, das pessoas que dão ofertas <strong>em</strong> dinheiro ao<br />

programa. Como uma parcela considerável das pessoas que assist<strong>em</strong> ao programa e<br />

participam dos cultos da Igreja Internacional da Graça de Deus faz parte da camada<br />

mais humilde da população, essa prática de dar, receber e retribuir é muito comum<br />

entre essas pessoas, que t<strong>em</strong> suas vidas atreladas às práticas de solidariedade e ajuda<br />

mútua <strong>em</strong> suas comunidades.<br />

Como se pode ver no discurso abaixo, R. R. Soares apela a esse universo<br />

simbólico do “é dando que se recebe”, sendo que a doação do dinheiro é de forma<br />

antecipada, <strong>em</strong> que o fiel contribuinte t<strong>em</strong> que esperar algum t<strong>em</strong>po para ser<br />

retribuído por Deus:<br />

[...] Eita! Jesus lindo que nós t<strong>em</strong>os! Pastor Jaime, deixa eu abençoar<br />

os novos patrocinadores. Obreiros, pod<strong>em</strong> guardar, pois qu<strong>em</strong> já teve<br />

que sentir a chamada de Deus já sentiu. Se você <strong>em</strong> casa ainda não<br />

teve condições de telefonar, telefone [...] Eu acho que é uma boa coisa<br />

fazer pacto com Deus, né Principalmente se ele está te convidando.<br />

62<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Qu<strong>em</strong> se inscreveu hoje, por favor, coloque sua mão no coração e ore<br />

comigo: Querido Jesus, eu recebo esses meus irmãos que aceitaram<br />

patrocinar a tua obra e s<strong>em</strong>pre que eu estiver orando estas pessoas<br />

estarão incluídas, meu pai. Abre as portas, abençoa. Deus, tanta gente<br />

sofrendo e eu oro pelos outros patrocinadores e eles estão precisando<br />

de ajuda [...] Graças a Deus!<br />

Um fator importante no programa que encoraja as pessoas a dar<strong>em</strong> dinheiro<br />

e “investir<strong>em</strong>” <strong>em</strong> Deus <strong>em</strong> longo prazo é o test<strong>em</strong>unho de pessoas que já deram<br />

dinheiro e foram recompensadas:<br />

Minha amiga me trouxe aqui [...] me batizei e minha vida está<br />

maravilhosa. Acabei de construir minha casa e agora recebi minha<br />

aposentadoria. E os dízimos do Fundo de Garantia e o primeiro<br />

salário da minha aposentadoria já estão guardados para trazer. Glória<br />

a Deus.<br />

Sobre esta prática, Dantas afirma que:<br />

Ao assistir a um test<strong>em</strong>unho de vida de alguém desconhecido, mas<br />

que pertence a uma classe popular e que anuncia uma vida<br />

confortável após delatar uma série de sofrimentos, o telespectador,<br />

que já está envolvido pelas mensagens de esperança e fé <strong>em</strong>itidas<br />

durante todo o programa, passa a se colocar no lugar daquela pessoa,<br />

gerando uma <strong>em</strong>patia. Mesmo não tendo vivenciado as dores<br />

relatadas pelo depoente, o receptor t<strong>em</strong> condições de se colocar na<br />

situação daquela pessoa pela maneira coloquial e simples que são<br />

dados os test<strong>em</strong>unhos. 6<br />

A representação social do “povo escolhido”<br />

Em todos os programas analisados, a menção bíblica do povo escolhido é<br />

tratada de forma constante, dando um sentido especial àqueles que pertenc<strong>em</strong> à<br />

comunidade religiosa da Igreja da Graça.<br />

6 DANTAS, José Guibson Delgado. A atuação das igrejas neopentecostais e as mediações culturais. 2005.<br />

169 f. Dissertação (Mestrado <strong>em</strong> Ciências da Comunicação). Programa de Pós-graduação <strong>em</strong><br />

Ciências da Comunicação, Universidade Católica Portuguesa. Lisboa, 2005. p. 79.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 63


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Porém, o que lhes atribui o grau de “escolhidos” ou “parceiros” de Deus não<br />

é propriamente a fé que eles possu<strong>em</strong> no Evangelho, mas o cumprimento disciplinar<br />

do dízimo (ou ser um “patrocinador fiel”, como o líder da igreja sustenta), como<br />

pode-se perceber no discurso a seguir: “Você que é um patrocinador louve a Deus<br />

pela sua chamada, seja fiel [...] Não é o missionário Soares que está fazendo isso, mas<br />

o Espírito Santo que usa a mim e a você e juntos vamos receber a recompensa”.<br />

A população brasileira, sobretudo a camada mais pobre da população é, por<br />

si só, carente de assistência e com uma auto-estima muito baixa. No discurso acima,<br />

nota-se que o missionário tenta atribuir uma representatividade a esse povo<br />

esquecido pelas autoridades e instituições que mantém as classes heg<strong>em</strong>ônicas no<br />

poder, mas mediante o pagamento (<strong>em</strong> espécie ou depósito bancário) do dízimo.<br />

Entre essa população que assiste ao programa e dá dinheiro:<br />

Há um grande desejo de fazer parte de um grupo, e por meio dele<br />

ganhar uma distinção simbólica dentro da sociedade. Uma das razões<br />

da aceitação da programação televisiva das igrejas neopentecostais se<br />

dá, entre outras coisas, justamente pelo fato desses programas<br />

criar<strong>em</strong> uma comunidade virtual <strong>em</strong> torno da televisão, <strong>em</strong> que os<br />

t<strong>em</strong>as religiosos e os próprios test<strong>em</strong>unhos dados pelos fiéis neste<br />

meio de comunicação de massa aproximam pessoas das mais<br />

variadas denominações religiosas ou situação financeira, fazendo<br />

com que se sintam valorizadas e com um sentimento de<br />

representatividade na esfera social. 7<br />

Não é por acaso que R.R. Soares insiste <strong>em</strong> distinguir o patrocinador de seu<br />

programa dos d<strong>em</strong>ais fiéis: “Se você sentir a chamada um dia você se inscreve. Não<br />

tenha dor de consciência e faça aquilo que Deus está orientando você. Eu queria que<br />

todo mundo fosse patrocinador para eu fazer o meu trabalho para Jesus. Mas, Jesus<br />

sabe o que faz”.<br />

Além disso, como o discurso acima deixa b<strong>em</strong> claro, o missionário trabalha<br />

muito com o inconsciente dos fiéis. Ele sustenta que todo raciocínio do fiel enquanto<br />

estiver assistindo ao programa é influenciado diretamente por Deus ou pelo Diabo:<br />

7 DANTAS, 2005, p. 104.<br />

64<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

se o fiel decidir doar seu dinheiro, foi Deus que o ordenou; se o fiel decidir não dar<br />

dinheiro, foi o Diabo que o desencorajou.<br />

A representação social da “prosperidade”<br />

Uma das características centrais do movimento neopentecostal é a forte<br />

ênfase que se dá na aquisição de bens materiais e prosperidade financeira, pois toda<br />

liturgia é baseada na Teologia da Posperidade, uma filosofia religiosa <strong>em</strong> que o<br />

sagrado se manifesta a partir da obtenção de melhorias nas condições materiais e<br />

econômicas.<br />

Grande parte dos fiéis pertencentes a estas igrejas a procura no intuito de<br />

sanar dívidas ou para pedir<strong>em</strong> a Deus (mediante um acordo, estipulado pelo dízimo)<br />

o aumento do nível de renda da família. Quando o fiel logra os seus objetivos, é<br />

encorajado a dar test<strong>em</strong>unho sobre os mesmos, como pod<strong>em</strong>os ver a seguir, pois,<br />

segundo o missionário R. R. Soares, “a graça só é completa após ser divulgada”:<br />

[...] Antes nossa vida não tinha prosperidade. A gente saia, andava,<br />

voltava e não tinha nada. Hoje, graças a Deus, o choro acabou e está<br />

tudo <strong>em</strong> paz. Nós estamos prosperando e o que é para dar errado dá<br />

tudo certo. Graças a Deus!<br />

Eu estava com minha causa já perdida, sobre a revisão da minha<br />

aposentadoria. Mas, eu peguei a palavra e falei para o Senhor julgar a<br />

minha causa. Todo dia eu falava por honra e glória ao Senhor e já<br />

saiu meu processo e vou receber.<br />

Um outro ponto importante é que <strong>em</strong> toda graça alcançada os depoentes<br />

faz<strong>em</strong> questão de delatar as condições que se encontrava no período anterior à<br />

aceitação da igreja e os ganhos que obteve depois, não só <strong>em</strong> relação a conquistas<br />

materiais como sentimentais também.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 65


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Assim, a prosperidade financeira alcançada pelo fiel mediante o pagamento<br />

do dízimo traz, além da aquisição de bens materiais, a realização dele como ser<br />

humano.<br />

A representação social do “comércio”<br />

Não é por acaso que muitos estudiosos apelid<strong>em</strong> as igrejas neopentecostais<br />

de “supermercados da fé”. Todas as práticas que guiam o mercado capitalista<br />

possu<strong>em</strong> importância na forma como os fiéis e a igreja se relacionam com Deus. A<br />

relação entre fiel e Deus não é mais uma relação entre criador e criatura, mas de bolsa<br />

de valores e investidor: o fiel só é cont<strong>em</strong>plado com uma graça se pagar o valor<br />

determinado (pelos pastores) das mesmas.<br />

Esta prática é extr<strong>em</strong>amente comum no programa “Show da Fé” e encarado<br />

com muita naturalidade pelos fiéis e telespectadores, pois estes estão inseridos no<br />

sist<strong>em</strong>a capitalista e encararam o dinheiro como um meio de conseguir<strong>em</strong> paz,<br />

proteção, etc. A igreja seria uma espécie de mediador entre dois negociantes (Deus e<br />

o fiel) e o dinheiro passa a ser tratado como um símbolo sagrado.<br />

O próprio R. R. Soares encoraja essa prática de mercado e sacraliza o<br />

dinheiro com ex<strong>em</strong>plos de sua própria vida, como no discurso abaixo <strong>em</strong> que conta<br />

como foi que comprou o t<strong>em</strong>plo <strong>em</strong> que o programa “Show da Fé” é gravado:<br />

Antes de nós comprarmos esse cin<strong>em</strong>a aqui para nossa igreja, me<br />

levaram para o outro lado da esquina onde t<strong>em</strong> uma concessionária<br />

de carros e o pastor Jaime me disse que era agora, era pegar ou largar.<br />

Daí eu fui falar com Deus [...] eles insistiram, mas eu dizia que meu<br />

coração tinha fechado. Nós compramos aqui quase pela metade que<br />

pagaríamos lá. E se eu não tivesse orado Aprenda a nunca se afastar<br />

da casa de Deus.<br />

O comércio de produtos é misturado com orações e test<strong>em</strong>unhos. R. R.<br />

Soares aproveita o seu programa para vender produtos no palco, tornando sagrada a<br />

prática do comércio e a compra dos mesmos. A Igreja da Graça fundamenta todo seu<br />

discurso mercantilista a partir dos meios de comunicação de massa devido o poder<br />

66<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

de visibilidade que eles lhe dão, pois “é através dos intercâmbios comunicativos que<br />

as representações sociais são estruturadas e transformadas” 8 .<br />

Segu<strong>em</strong>, abaixo, alguns ex<strong>em</strong>plos de estímulo ao consumo de produtos das<br />

<strong>em</strong>presas ligadas à Igreja da Graça e a ênfase que se dá ao comércio no programa:<br />

Deus é tão bom que me permitiu gravar alguns cds [...].<br />

Esses dias eu fiz uma promoção deste livro aqui [...] Fora daqui da<br />

Igreja da Graça há um shopping à esquerda que você pode comprar<br />

este livro.<br />

Antes de ir para as test<strong>em</strong>unhas eu não dei o telefone do livro, pois<br />

muita gente quer comprá-lo pelo telefone [...] As pessoas quer<strong>em</strong><br />

comprar a ‘Turminha da Graça’. O telefone da Graça Editorial é [...].<br />

A representação social da “habitação”<br />

Um dos grandes probl<strong>em</strong>as enfrentados pela sociedade brasileira é a<br />

habitação. O sonho da casa própria faz parte dos desejos de grande parte das famílias<br />

brasileiras. O missionário R. R. Soares, percebendo isso, estimula os test<strong>em</strong>unhos<br />

que tratam da aquisição da casa própria, da reforma da casa ou troca por uma mais<br />

confortável, como percebe-se nos discursos a seguir:<br />

[...] O sócio deu um golpe, fugiu para os Estados Unidos e ficou com<br />

todos os bens de Sérgio. ‘Comecei a clamar muito a Jesus para que ele<br />

me ajudasse [...] Eu não tinha mais apartamento e tudo que consegui<br />

na minha vida foi batalhado desde cedo e eu acabei perdendo tudo.<br />

Eu resolvi reaver tudo isso, mas eu precisava de força [...] Se não<br />

fosse Jesus do meu lado eu não conseguiria reaver tudo o que tinha<br />

perdido’. Sérgio queria comprar um apartamento, mas não tinha<br />

dinheiro para continuar no mesmo bairro [...] ‘Em determinada época<br />

eu escrevi uma carta pedindo para Jesus um apartamento e<br />

ousadamente eu determinei o lugar que eu queria’. No metro<br />

quadrado mais caro de São Paulo, Sérgio encontra o que buscava: um<br />

apartamento grande, com uma linda vista.<br />

8 DUVEEN, Gerard. O poder das idéias. In: MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações<br />

<strong>em</strong> psicologia social. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 28.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 67


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Há dezoito anos eu comprei um apartamento médio no quarto andar,<br />

mas eu tinha um desejo no meu coração de ter um apartamento<br />

grande num andar mais baixo. E esse ano eu coloquei no meu projeto<br />

de vida e para a honra e a glória do Senhor eu consegui meu<br />

apartamento grande. Vou me mudar logo.<br />

Entretanto, todo o sucesso alcançado pelos depoentes é atrelado à prática do<br />

dízimo, à disciplina com que o fiel doa à igreja parte dos seus ganhos. Na verdade,<br />

segundo o missionário, a aquisição da casa própria ou casa nova não deve ser visto<br />

como definitiva, pois caso o fiel parar de dar dinheiro a “Deus” este pode enfurecerse<br />

e tomar a casa de volta. Resumindo: Deus é um agiota, uma linha de crédito, que<br />

não t<strong>em</strong> piedade caso o fiel-contratante deixe de contribuir financeiramente com o<br />

<strong>em</strong>preendimento sagrado.<br />

A representação social do “<strong>em</strong>prego”<br />

O probl<strong>em</strong>a mais grave do Brasil, talvez, seja o des<strong>em</strong>prego. Até pelos<br />

horários dos cultos <strong>em</strong> que são gravados os programas (horário laboral), se supõe<br />

que grande parte das pessoas que aparec<strong>em</strong> no programa “Show da Fé” estão<br />

des<strong>em</strong>pregadas.<br />

O trabalho é definido pelo programa como uma recompensa de Deus e<br />

aqueles que estão des<strong>em</strong>pregados são encorajados a rever a sua fé e a colaborar<br />

financeiramente com a igreja, este último um requisito fundamental para que Deus<br />

lhe conceda um posto de trabalho.<br />

O uso de test<strong>em</strong>unhos <strong>em</strong>ocionados é constante no programa. Ao contar<strong>em</strong> a<br />

sua graça, o público entra <strong>em</strong> catarse e contagia o telespectador que, por sua vez, é<br />

motivado a dar dinheiro:<br />

Eu coloquei o currículo da minha filha. Eu tenho uma filha formada<br />

<strong>em</strong> Administração de Empresas e há um ano distribui currículos por<br />

aí. Ont<strong>em</strong>, com a graça de Deus, ela recebeu um telefon<strong>em</strong>a e foi<br />

68<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

chamada para trabalhar. Apesar de ser numa cidade de interior aqui<br />

perto, com a fé que tenho <strong>em</strong> Jesus, ela está na colocação certa.<br />

Quero lhe contar que meu filho fazia um ano e meio que estava<br />

des<strong>em</strong>pregado e com a glória de Deus já faz seis meses que ele está<br />

trabalhando.<br />

[...] Eu tenho uma <strong>em</strong>presa de informática e há um ano não vai muito<br />

b<strong>em</strong>. Então, há duas s<strong>em</strong>anas atrás, eu senti no coração e falei comigo<br />

mesmo quando o Senhor diz assim: ‘Quer ser patrocinador’ Eu<br />

escutei, tocou no meu coração de associar minha <strong>em</strong>presa e eu estava<br />

conversando muito com Deus. Eu disse para ele: ‘Eu acho que não<br />

compensa mais eu estar com a <strong>em</strong>presa. Oh! Senhor, abra-me uma<br />

porta!’ Há três meses atrás um amigo meu pediu para eu enviar meu<br />

currículo para a <strong>em</strong>presa onde ele trabalha. E isso há três meses<br />

estava correndo, fiz três entrevistas e não deu <strong>em</strong> nada. Há duas<br />

s<strong>em</strong>anas atrás eu tomei uma posição e associei a <strong>em</strong>presa à obra de<br />

Deus. Ont<strong>em</strong> pela manhã, eu fui chamado e por honra e glória do<br />

Senhor eu começo a trabalhar s<strong>em</strong>ana que v<strong>em</strong>.<br />

Eu assisti há duas s<strong>em</strong>anas atrás que qu<strong>em</strong> está afastada de Deus<br />

pode voltar para seu reino [...] Na sexta-feira, dia 28, já faz oito meses<br />

que eu trabalho [...] Antes eu tinha sido dispensada do serviço s<strong>em</strong><br />

motivo nenhum. Comecei a entregar currículo pela Internet [...] Daí,<br />

t<strong>em</strong> um serviço perto de casa que não aceita ex-funcionários. Eu<br />

trabalhei lá [...] Na sexta-feira passada eu escutei a palavra do Senhor<br />

e veio aquela palavra assim ‘Se tu estás com Cristo, criatura dele tu<br />

és!’ Daí, peguei aquela palavra e voltei lá, preguei e me aceitaram.<br />

Arrumei dois serviços no mesmo dia .<br />

A representação social do “castigo”<br />

No programa “Show da Fé”, Deus, além de ser dotado de grande habilidade<br />

comercial e ostentar a função de agiota é um ser extr<strong>em</strong>amente rancoroso e cruel.<br />

Dessa forma, ameaças de castigo, ênfase no sentimento de culpa e perda de bens<br />

materiais como prática pedagógica divina são difundidos com o objetivo de angariar<br />

mais dinheiro dos fiéis. Vejamos os test<strong>em</strong>unhos abaixo:<br />

Eu era <strong>em</strong>presário <strong>em</strong> Brasília. Eu tinha cinco <strong>em</strong>presas <strong>em</strong> Brasília e<br />

faturava mais ou menos R$ 1.000.000,00 por mês. Minha esposa<br />

estava passeando numa feira <strong>em</strong> Brasília, naquelas barraquinhas<br />

esotéricas que as pessoas acham que não faz mal nenhum [...] E<br />

minha esposa entrou numa barraca de um hom<strong>em</strong> que jogava búzios<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 69


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

e infelizmente nós não conhecíamos Jesus [...] Esse hom<strong>em</strong> era um<br />

babalorixá. Ele usou este trabalho dos orixás e do dia que<br />

conhec<strong>em</strong>os esse hom<strong>em</strong> até findar nossas <strong>em</strong>presas e acabar tudo<br />

foram oito meses. Eu parei <strong>em</strong> Salvador e no final já estava fumando<br />

[...] A minha esposa com síndrome do pânico. Eu estava escutando<br />

seu culto [...] me ajoelhei perante a televisão e aceitei Jesus. Eu dormi<br />

um viciado e acordei liberto. Deus me chamou para ser patrocinador<br />

porque é melhor dar que receber. Quando a gente é patrocinador de<br />

sua obra e esse é o verdadeiro test<strong>em</strong>unho que eu gostaria de dar e é<br />

para isso que eu vim aqui. Quando a gente é patrocinador,<br />

missionário, seu programa vai na TV para abençoar muitas pessoas.<br />

Muitas pessoas ficam curadas ao assistir<strong>em</strong> ao seu programa. Eu fui<br />

curado assistindo esse programa [...] Eu sou patrocinador. Comecei<br />

com R$ 30,00, pois eu ainda não tinha um <strong>em</strong>prego fixo [...] mas logo<br />

que o Senhor chamou a gente para ser patrocinador eu aumentei para<br />

R$ 50,00 [...] Minha sogra era católica a 38 anos assistiu seu programa<br />

e se converteu. Hoje também é patrocinadora. Obrigado missionário!<br />

Para explicar esta prática no programa “Show da Fé”, vale a pena transcrever<br />

o que Guareschi diz sobre aqueles que não contribu<strong>em</strong> financeiramente para estas<br />

igrejas:<br />

O sentimento de culpa e a ameaça de castigo são também<br />

<strong>em</strong>pregados para incentivar as contribuições. Qu<strong>em</strong> não dá dinheiro,<br />

qu<strong>em</strong> não contribui monetariamente, não só deixará de receber o<br />

milagre, mas ele estará conspirando contra o desenvolvimento da<br />

igreja, e com isso estará impedindo a outros de ser<strong>em</strong> ajudados<br />

através das obras prodigiosas e milagrosas operadas através dos<br />

pastores e da igreja; numa palavra, estará se opondo ao próprio Deus.<br />

Para isso se <strong>em</strong>prega até a Bíblia: as pessoas que não contribu<strong>em</strong> são<br />

como “as árvores que não dão fruto”. 9<br />

O que Pedrinho Guareschi afirma sobre a propagação desse sentimento de<br />

culpa e do castigo divino, caso o fiel não contribua financeiramente com a igreja, é<br />

b<strong>em</strong> visível no discurso a seguir:<br />

Antes do irmão dar seu test<strong>em</strong>unho, os obreiros pegu<strong>em</strong> os<br />

envelopes de inscrição. Se você não é chamado por Deus para ser<br />

patrocinador faça de conta que você não está aqui hoje. Não se<br />

inscreva! Ao menos se Deus durante o programa chamar você [...]<br />

9 GUARESCHI, Pedrinho. S<strong>em</strong> dinheiro não há salvação: ancorando o b<strong>em</strong> e o mal entre os<br />

neopentecostais. In: GUARESCHI, Pedrinho; JOVCHELOVITCH, Sandra. Textos <strong>em</strong> representações<br />

sociais. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 2<strong>17</strong>-218.<br />

70<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Isso aqui é um trabalho de fé que estamos conversando diante Dele e<br />

eu tenho dito que não quero ninguém que o Senhor não tenha<br />

chamado. Se Deus t<strong>em</strong> tocado no seu coração para ser um<br />

patrocinador, não se acovarde. Aí se ela é chamada e não aceita ela<br />

está recusando um convite de Jesus. E diz a Bíblia que os covardes<br />

não entrarão no reino de Deus. Eles vão ter a deles. Você é o<br />

responsável pela sua chamada.<br />

Conclusão<br />

O programa “Show da Fé” do missionário R. R. Soares representa b<strong>em</strong> a<br />

ânsia por dinheiro das instituições religiosas neopentecostais. Todo o seu esforço de<br />

evangelizar e angariar mais fiéis t<strong>em</strong> como objetivo tirar dinheiro da camada da<br />

população mais carente do país, que, no caso, não é tratado como fiel, mas como<br />

cliente.<br />

A extorsão de dinheiro é legitimada pelo mecanismo de ancorag<strong>em</strong>, pois o<br />

ato de “dar para receber” está inserido profundamente na cultura popular do<br />

brasileiro desde a época da colonização, <strong>em</strong> que índios davam ouro e pedras<br />

preciosas aos conquistadores portugueses <strong>em</strong> troca de espelhos e objetos s<strong>em</strong> valor<br />

na Europa.<br />

As representações sociais do dinheiro que foram identificadas<br />

(reciprocidade, povo escolhido, prosperidade financeira, comércio, habitação,<br />

<strong>em</strong>prego e castigo) são, na verdade, uma constante construção, sendo reelaboradas e<br />

enriquecidas diariamente. É justamente isso que acontece quando os fiéis e<br />

telespectadores (pois há os dizimistas virtuais, ou seja, pessoas que dão dinheiro pelo<br />

telefone) dão suas ofertas.<br />

Toda a aflição da doença, do des<strong>em</strong>prego e da falta de perspectiva futura<br />

foram ancoradas na promessa de salvação e dias melhores na terra oferecidas por<br />

este “supermercado da fé”, mediante o pagamento de dinheiro. E há preços<br />

diferenciados a ser<strong>em</strong> pagos: quanto maior a benção, mais dinheiro o fiel terá que<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 71


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

dar. O fiel não vai pedir a Deus por uma cura, mas vai fazer um negócio com o seu<br />

Deus-agiota, tendo a igreja como o mediador e juiz da transação.<br />

Apesar de ser chocante a atuação mercantilista de R. R. Soares na televisão e<br />

a sua <strong>em</strong>inente despreocupação sobre o que as pessoas de fora da igreja pensam ao<br />

seu respeito, a sua postura capitalista e secularizada é, na verdade, uma continuação<br />

da realidade cotidiana das pessoas que lhe assist<strong>em</strong>. O ato de cobrar dinheiro não<br />

espanta seus seguidores, pois estes passam pela mesma situação no seu dia-a-dia,<br />

repleto de probl<strong>em</strong>as de ord<strong>em</strong> econômica e familiar. O boleto bancário de<br />

patrocinador e o gesto de Soares de “inscrever o nome da pessoa <strong>em</strong> seu livro<br />

sagrado de patrocinadores” dá segurança àquele que deu seu dinheiro, pois a partir<br />

desse ato ele passa a pertencer ao grupo dos ‘escolhidos’.<br />

Por outro lado, o mal é ancorado nas práticas religiosas de outras igrejas,<br />

sobretudo esotéricas e afro-brasileiras. É quase unânime a crença dos fiéis e<br />

telespectadores do “Show da Fé” na existência de espíritos malignos (os chamados<br />

encostos). O missionário, por sua vez, explora esse universo simbólico do brasileiro<br />

mais humilde para extorquir dinheiro do mesmo, pois “enquanto houver pessoas<br />

que acredit<strong>em</strong> nos exus e pombajiras, vão existir milagreiros e exorcistas” 10 .<br />

O que se vê é que por trás de toda a catarse coletiva e práticas que exploram<br />

o lado afetivo, <strong>em</strong>ocional e nervoso das pessoas é uma forte ideologia capitalista no<br />

programa “Show da Fé”, que extorque dinheiro de uma população desprotegida e<br />

carente de tudo, a partir de um discurso envolvente que é legitimado pelo aparato<br />

tecnológico de mediação mais poderoso de nosso t<strong>em</strong>po: a televisão.<br />

Referências<br />

DANTAS, José Guibson Delgado. A atuação das igrejas neopentecostais e as mediações culturais.<br />

Lisboa, 2005. 169 p. Dissertação (Mestrado <strong>em</strong> Ciências da Comunicação). Programa de Pósgraduação<br />

<strong>em</strong> Ciências da Comunicação, Universidade Católica Portuguesa.<br />

10 GUARESCHI, 1995, p. 220.<br />

72<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

DUVEEN, Gerard. O poder das idéias. In: MOSCOVICI, Serge. Representações sociais:<br />

investigações <strong>em</strong> psicologia social. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.<br />

GUARESCHI, Pedrinho. S<strong>em</strong> dinheiro não há salvação: ancorando o b<strong>em</strong> e o mal entre os<br />

neopentecostais. In: GUARESCHI, Pedrinho; JOVCHELOVITCH, Sandra. Textos <strong>em</strong><br />

representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1995.<br />

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações <strong>em</strong> psicologia social. 2. ed.<br />

Petrópolis: Vozes, 2003.<br />

PAVARINO, Rosana Nantes. Teoria das representações sociais: pertinência para as pesquisas<br />

<strong>em</strong> comunicação de massa. Comunicação e Espaço Público, São Paulo, n. 1 e 2, p. 128-141, 2004.<br />

SÁ, Celso Pereira de. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK,<br />

Mary Jane (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da<br />

psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 73


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Saúde e doença: algumas considerações sobre a hermenêutica<br />

do neoprotestantismo brasileiro à luz da sociologia de<br />

Zygmunt Bauman<br />

Por Anderson Clayton Pires *<br />

Por Cláudio Ivan de Oliveira **<br />

Estar ciente da mortalidade significa imaginar a imortalidade, sonhar<br />

com a imortalidade, trabalhar com vistas à imortalidade – ainda que,<br />

como adverte Borges, seja somente esse sonho que enche a vida de<br />

significado, enquanto a vida imortal, se algum dia alcançado, Freud<br />

respondesse que nosso perpétuo impulso <strong>em</strong> direção à imortalidade<br />

é, <strong>em</strong> si, o efeito do instinto da morte...<br />

(Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, p. 191)<br />

Introdução<br />

A reincursão de um neoplatonismo filosófico-religioso nos t<strong>em</strong>pos pósmodernos<br />

redundaria num probl<strong>em</strong>a de ord<strong>em</strong> ética melindroso. A pósmodernidade<br />

1 construiu uma nova arquitetura religiosa na qual o discurso acerca da<br />

imortalidade acabou saindo do centro da vida cultural, influenciando com isso,<br />

diretamente, o epicentro da moral social cotidiana. O dualismo ontológico que<br />

compreende e explica o mundo a partir do principio binário – espiritual versus<br />

material – perdeu seu poder de coação nos sist<strong>em</strong>as de crença centrais operacionais<br />

dos indivíduos que hoje optaram <strong>em</strong> não mais gastar o t<strong>em</strong>po pensando <strong>em</strong> como<br />

* Doutor <strong>em</strong> teologia pela <strong>Faculdades</strong> <strong>EST</strong>, sou doutorando <strong>em</strong> sociologia pela UFRGS e professor<br />

colaborador do Instituto Superior de Teologia Luterana <strong>em</strong> Goiânia (ISTL).<br />

** Doutor <strong>em</strong> psicologia pela Universidade de Brasília (UnB) e professor efetivo do departamento de<br />

psicologia da Universidade Católica de Goiás (UCG).<br />

1 A utilização deste conceito obedece o critério da argumentação do autor. Portanto, não é nossa<br />

intenção questionar a operacionalidade ou não do conceito, mesmo tendo consciência da discussão<br />

que existe <strong>em</strong> torno do mesmo.<br />

74<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

deve ser a vida depois da morte. Ao contrário, a consciência da mortalidade está se<br />

distanciando cada vez mais do cotidiano vivido tanto daqueles que pertenc<strong>em</strong> a<br />

algum meio religioso confessional, quanto daqueles que prefer<strong>em</strong> omitir suas crenças<br />

no que tange a esta realidade ainda tão confusa e abscôndita no contexto da pósmodernidade,<br />

que é a realidade da própria morte.<br />

O argumento de que o impulso <strong>em</strong> direção à imortalidade é uma resposta<br />

sintomática do instinto de morte (tanatos), como já analisara Freud, não t<strong>em</strong> a<br />

relevância que tinha outrora para este novo hom<strong>em</strong> inserido no contexto pósmoderno.<br />

Afinal, o interesse pela própria vida pode ser considerado motivo de sobra<br />

para se querer viver o máximo de t<strong>em</strong>po cronológico que for possível. E esta parece<br />

ser a motivação que assenta os pilares epist<strong>em</strong>ológicos da nova revolução biotecnológica<br />

que veio não mais para falar da morte, mas de como a vida pode ser mais<br />

b<strong>em</strong> vivida e mais extensamente experimentada no itinerário bio-sócio-histórico dos<br />

seres humanos.<br />

A morte não deixou de ser uma realidade que ameaça e amedronta a vida<br />

humana na experiência histórica. Mas sua incômoda presença, de acordo com<br />

Bauman, t<strong>em</strong> sido afastada do cotidiano à medida que o horizonte de percepção do<br />

hom<strong>em</strong> pós-moderno, irrompido pelo advento do progresso bio-tecnológico,<br />

começou a trabalhar com o conceito de “prolongamento da vida” 2 . Ainda que uma<br />

doença possa sugestionar a intuição da morte como fato de irreversível<br />

superabilidade, o avanço no investimento <strong>em</strong> tecnologia da vida/saúde busca driblar<br />

este nó contraditório com o qual a religião gastou algumas toneladas de folhas<br />

escritas para tentar desmistificar, <strong>em</strong> complexos tratados teológicos, o significado da<br />

vida que caminha para a morte todo o dia (Rm 8.36).<br />

Aparent<strong>em</strong>ente, o discurso acima apresentado não revela nenhuma<br />

contradição notória que possa causar uma contestação imediata de qu<strong>em</strong> lê uma<br />

2 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.<br />

p.195.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 75


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

reflexão como esta que pretende revisibilizar um horizonte doxográfico que aborde<br />

uma ontologia da vida e da morte que até então era de domínio teórico das ciências<br />

teológicas propriamente. O fato é que, ao falar de progresso da biotecnologia, não há<br />

como não associar a um probl<strong>em</strong>a que se torna fulcral na análise de Bauman: num<br />

contexto <strong>em</strong> que se fala da existência de um “des<strong>em</strong>prego estrutural”, resta saber<br />

qu<strong>em</strong> serão os economicamente privilegiados que poderão usufruir deste<br />

“prolongamento da vida” que se transformou num valor culturalmente incentivado 3 .<br />

Para Bauman, este acesso a uma vida mais longa já foi, tecnologicamente,<br />

estratificada 4 .<br />

Uma vez que se exacerba a quantificação cronológica da vida como um<br />

artigo a ser consumido culturalmente, maximizando a relação custo-benefício com<br />

este produto tecnologicamente disponibilizado ao uso de consumidores<br />

economicamente competentes, resta saber que tipo de doenças psicológicas serão<br />

geradas na consciência daqueles que estão privados economicamente deste donativo<br />

proveniente do progresso bio-tecnológico da era pós-moderna. O que fazer quando o<br />

valor do artigo culturalmente vendido é maior que o bolso economicamente desvalido da massa<br />

socialmente menos favorecida pode pagar Aqui está um probl<strong>em</strong>a que pode servir de<br />

base para se fundamentar a hipótese de que a religiosidade que se desenvolve no<br />

contexto da pós-modernidade pretende dar uma resposta satisfatória ao mesmo.<br />

Neste sentido, pergunta supracitada se torna hermeneuticamente fundamental para<br />

compreender a lógica da “racionalidade da gratificação” (Herbert Marcuse) que se<br />

desenvolveu na cultura religiosa evangélica brasileira no contexto da pósmodernidade.<br />

3 BAUMAN, 1998, p. 196-197.<br />

4 BAUMAN, 1998, p. 198.<br />

76<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

1 A dimensão psico-pneumática da imortalidade reivindicada no cotidiano<br />

da nova religiosidade evangélica brasileira<br />

Uma vez que o acesso a esta nova d<strong>em</strong>anda cultural se torna privilégio de<br />

uma minoria economicamente competente, privando, desta forma, o grande<br />

contingente social marginalizado pela política da tecnologia que estratifica o<br />

universo de consumo das possibilidades de uma existência bio-ontologicamente<br />

beatificada, a religião do cotidiano que nasce desta d<strong>em</strong>anda <strong>em</strong>ergente pela<br />

expansão da vida biológica (e não da alma incorpórea) acaba percebendo a brecha<br />

deixada pelo paradoxo do progresso biotecnológico, e reconstrói um discurso, <strong>em</strong><br />

tom messiânico, que a coloque novamente no centro do cenário histórico da<br />

existência de milhões de seres humanos destituídos do “capital econômico” (Pierre<br />

Bourdieu), sob o auspício de uma promessa que os torne (os seres humanos<br />

destituídos do capital econômico) aptos a adquirir, pela via religiosa, o direito de<br />

consumir a finalidade última dos benefícios oriundos do progresso tecnológico que<br />

foi aperfeiçoada na era da pós-modernidade.<br />

Coincidência ou não, a própria construção s<strong>em</strong>ântica do conceito “religião”<br />

já introduz a noção de “insuficiência antropológica”, como b<strong>em</strong> trouxe à baila<br />

Zygmunt Bauman ao fazer uso desta definição dada pelo filósofo da religião Leszek<br />

Kolakowski 5 . A clássica definição de Schleiermacher legitima, pela via positiva, o<br />

sentido do conceito supracitado, reforçando-o com a alusão à religião como sendo<br />

um “sentimento de dependência absoluta do Divino”. No entanto, se pensado à luz<br />

da pós-modernidade, a religião deve ser compreendida sob a perspectiva de uma<br />

arquitetura ontológica b<strong>em</strong> diferente daquela que a modernidade convencionalmente<br />

lhe concebera. A insuficiência antropológica parece estar gerando, na era da pósmodernidade,<br />

ao invés daquilo que Anthony Giddens chamou de “segurança<br />

ontológica”, uma “ansiedade existencial” que t<strong>em</strong> vulnerabilizado o horizonte biohistórico<br />

da existência humana.<br />

5 BAUMAN, 1998, p. 209.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 77


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

O sapere aude kantiano, tão <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>aticamente auspiciado para reforçar a<br />

melodiosa canção da maioridade auto-suficiente do ser humano no contexto da<br />

modernidade, parece ter se tornado inoperante diante do novo cenário <strong>em</strong> que a vida<br />

humana se vê privada de horizontalidade. O martirizante terror da insuficiência, diz<br />

Bauman, deixa o ser humano mais suscetível à mensag<strong>em</strong> religiosa 6 . Ora, neste<br />

contexto de alta vulnerabilidade bio-onto-ecológica, <strong>em</strong> que a sobrevivência humana<br />

se torna dramática por conta dos inúmeros “riscos” enfrentados no âmbito cotidiano,<br />

o discurso religioso se torna sugestivo e atrativo do ponto de vista da hermenêutica<br />

existencial do sentido da caminhada histórica. Para Bauman, as igrejas chegaram a<br />

nos convencer da idéia de que são possuidoras de um ‘capital hermenêutico’ que<br />

oferece soluções explicativas às perguntas fundamentais acerca da finalidade da<br />

vida 7 . Este é o sentido do conceito de “desparadoxalização da vida” como função da<br />

religião-igreja que Niklas Luhmann propõe <strong>em</strong> sua teoria sociológica da religião 8 .<br />

É nesta perspectiva explicativa até aqui transcorrida que se deve<br />

compreender o tipo de racionalidade de gratificação [imediata] que se desenvolveu<br />

na nova religiosidade evangélica no Brasil cont<strong>em</strong>porâneo. A morte sai de cena à<br />

medida que o discurso religioso a coloca como inimigo ontológico a ser vencido na<br />

psicoespiritualidade da fé-saúde. No novo espaço litúrgico da vida, a única canção<br />

que se permite cantar é a da vitória da fé sobre a vulnerabilidade ontológica. A<br />

“auto-afirmação ôntica” (Paul Tillich) não é relativizada por conta da promessa de<br />

uma vida superior a ser aquinhoada ulteriormente na dimensão pós-t<strong>em</strong>poral da<br />

existência humana. Neste sentido, acontece uma inversão antropológica que<br />

redimensiona o significado psicológico que a doutrina da imortalidade exerce no<br />

nível consciente da realização cotidiana da fé. Não é a outra realidade que se constitui<br />

objeto de interesse primário desta nova consciência evangélico-religiosa no Brasil<br />

cont<strong>em</strong>porâneo.<br />

6 BAUMAN, 1998, p. 211.<br />

7 BAUMAN, 1998, p. 210.<br />

8 Citado por PACE, Enzo. Sociedade complexa e religião. Sociologia da religião. São Paulo: Paulinas,<br />

78<br />

1990. p. 3<strong>17</strong>.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

O conceito de “mortificação” (morte cotidiano de um eu-volitivo) dado por<br />

Michel Foucault 9 , querendo tipificar o modelo axiológico constitutivo do cristianismo<br />

histórico, não caracteriza, <strong>em</strong> absoluto, a arquitetura valorativa da nova religiosidade<br />

evangélica brasileira. Na saúde que faz do cotidiano sua oikia de permanente estadia,<br />

a imortalidade é sentida e invocada a nível subjetivo, psico-pneumático<br />

(psicoespiritual). Ad<strong>em</strong>ais, a eternidade não é pensada para qu<strong>em</strong> olha, com senso<br />

de responsabilidade, o cotidiano repleto de tarefas a ser<strong>em</strong> executada por qu<strong>em</strong> goza<br />

de verdadeira saúde. A interacionalidade psicossociológica do binômio saúdeprodutividade<br />

ganha, na nova religiosidade evangélica brasileira, inteligibilidade<br />

terapêutica capaz de gerar o desejo indomável de usufruir a vida, compreendida aqui<br />

como o mais insigne dom que Deus outorgara ao hom<strong>em</strong> de necessidades reais.<br />

Neste sentido, a espiritualidade desta nova religião do cotidiano se<br />

desescatologiza, inaugurando a nova fase de “desplatonização da s<strong>em</strong>ântica” do<br />

conceito dado à imortalidade. Sua realidade não deve ser esperada para a eternidade,<br />

mas usufruída na plenitude psicofísica que é reivindicada como condição sine qua non<br />

de uma fé-saúde compreendida <strong>em</strong> termos de cotidianidade. Este foi um novo<br />

aprendizado que a nova religião-igreja, de acordo com Bauman, teve que<br />

desenvolver no contexto da pós-modernidade 10 . O perfil deste novo tipo religioso<br />

está configurado no ethos da nova religiosidade evangélica no Brasil cont<strong>em</strong>porâneo.<br />

Para tornar a proposta de prolongamento da vida atrativa para aqueles que se vê<strong>em</strong><br />

privados financeiramente do recurso necessário para pagar por este benefício, a<br />

imortalidade é apresentada como perenização da plenitude psicofísica no cotidiano<br />

daqueles que são entregues à psicoespiritualidade da fé-saúde. Se a morte se<br />

apresenta como oposição a vida na couraça da doença, a imortalidade é apresentada<br />

como possibilidade a ser alcançada na saúde preservada pela fé. Esta é a lógica<br />

metafísica da saúde, que desenvolve, com isso, um tipo de racionalidade de<br />

gratificação imediata capaz de restaurar o poder de atratividade que a religião, na<br />

9 Citado por BAUMAN, 1998, p. 210.<br />

10 BAUMAN, 1998, p. 215.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 79


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

modernidade, havia perdido. Sua realidade (a imortalidade encarnada no cotidiano<br />

da fé-saúde) está disponível àquele sujeito que se entendeu privado financeiramente<br />

de recurso para se beneficiar do progresso seletivo da biotecnologia. Na fragilidade<br />

bio-sócio-existencial dos excluídos dos benefícios biotecnológicos no contexto da pósmodernidade,<br />

marcado pela economia de mercado livre, que parece ser mais<br />

excludente do que inclusiva, o discurso da religião-igreja apresenta, <strong>em</strong> seu conteúdo<br />

de tom messiânico, a possibilidade de se colocar como alternativa institucional de<br />

acesso social irrestrito ao projeto de quantificação qualitativa da vida na fé-saúde.<br />

2 Revolução antiescatológica: a ocupação com a era presente e novo sentido<br />

dado à religiosidade do cotidiano desenvolvida na nova espiritualidade evangélica<br />

brasileira<br />

De acordo com Bauman, o desinteresse pela escatologia, no contexto da pósmodernidade,<br />

pode ser compreendido como conseqüência do processo da<br />

secularização 11 . Há um certo consenso, entre sociólogos que estudam a religião, que a<br />

secularização realmente produziu impactos de natureza ético-morfológica na religião<br />

cristã ocidental como um todo. Alguns pensam a secularização como supressão do<br />

sagrado da vida sócio-cultural, e fim da utopia religiosa cristã no Ocidente (ou seja, a<br />

vigência 12 de uma era da “destranscendentalidade”, como sugere o uso do conceito<br />

habermasiano) 13 . Outros, a entend<strong>em</strong> como uma “nova forma de religiosidade” 14 que<br />

assume valores voltados para a dimensão intramundana da existência históricosocial.<br />

A despeito da existência de um dissenso hermenêutico entre os estudiosos, é<br />

possível chegar ao consenso de que o advento da secularização gerou mudanças<br />

tanto na cosmovisão do hom<strong>em</strong> (Weltanschauung) inserido nesta pós-modernidade,<br />

11 BAUMAN, 1998, p. 211.<br />

12 Uso este conceito no sentido weberiano.<br />

13 HABERMAS, Jürgen. Agir comunicativo e razão destranscendentalizada. Rio de Janeiro: T<strong>em</strong>po<br />

Brasileiro, 2002.<br />

14 Esta é a definição que Thomas Luckmann dá ao fenômeno da secularização <strong>em</strong> seu livro The<br />

Invisible Religion (A religião invisível), na qual ocorre a “subjetivação das crenças religiosas”.<br />

80<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

quanto na sua forma de interpretar os processos interativos da vida social <strong>em</strong> que<br />

este fenômeno se vê materializado de maneira cabal. A relação entre o indivíduo e a<br />

religião institucional ganha um novo contorno ético, e as implicações sociais dela<br />

aparec<strong>em</strong> configuradas no ethos religioso que revela um novo perfil valorativo na<br />

forma de cada um assumir sua religiosidade/responsabilidade no reino da<br />

cotidianidade. No caso do indivíduo, a religião acaba se inserindo no seu Lebenswelt<br />

(que na nossa tradução corriqueira significa “o seu cotidiano”). A responsabilidade<br />

com o excesso de tarefas assumidas no cotidiano sofrido dos indivíduos religiosos, e<br />

a co-responsabilidade do pastor <strong>em</strong> ter que auxiliá-lo <strong>em</strong> suas dificuldades<br />

enfrentadas nele, acaba criando um novo perfil de espiritualidade, na compreensão<br />

de Bauman 15 [16]. As formas sociais de sofrimento interfer<strong>em</strong> diretamente na<br />

subjetividade dos indivíduos, e com elas nasce também uma nova atitude cognitiva<br />

destes últimos <strong>em</strong> relação ao escopo da mensag<strong>em</strong> e dos artigos religiosos.<br />

Durantes séculos na história do cristianismo, a vida após a morte s<strong>em</strong>pre foi<br />

uma das principais forças doutrinais defendidas pelos cristãos. Se considerarmos<br />

atentamente, é possível perceber a força do postulado confessional de uma promessa<br />

de vida após a morte por trás da ética da secularização desenvolvida entre os<br />

protestantes calvinistas analisados por Weber. A pergunta pela etiologia da ética<br />

protestante (calvinista) deve revelar a força de uma crença na imortalidade 16 , e o que<br />

ela produz <strong>em</strong> termos de implicações sócio-morais. Neste sentido, devo considerar<br />

equivocada a percepção de Bauman quando faz a afirmação que a modernidade<br />

“desfaz/repele a obsessão com a vida após a morte”, concentrando-se mais no “aqui<br />

e agora”. Ora, o tipo de racionalidade que reclama a presença de uma ascese moral<br />

esconde o postulado da crença na imortalidade. Isto porque s<strong>em</strong> a preocupação com<br />

a eternidade não faria sentido haver uma angústia com relação à doutrina da eleição<br />

na graça divina. O fenômeno da secularização na modernidade não elimina, <strong>em</strong><br />

absoluto, a preocupação angustiante do religioso pela existência da realidade última<br />

15 BAUMAN, 1998, p. 210-11.<br />

16 Imortalidade não no sentido greco-helenístico, mas paulino, que fala dela como predicativo da<br />

“vida na ressurreição”.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 81


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

da esperança cristã. Ela é a variável que dá combustão ao movimento ético da<br />

secularização na modernidade iluminista. N<strong>em</strong> mesmo <strong>em</strong> Kant se pode divorciar a<br />

ética da razão secular de seus postulados religiosos mais rudimentares admitidos<br />

como imponderáveis “fatos da razão”. Fazer uma interpretação que desconsidera<br />

este dado significa admitir que Weber não foi compreendido corretamente pelos seus<br />

intérpretes cont<strong>em</strong>porâneos.<br />

Posto desta forma, não seria complicado admitir que a nova religiosidade<br />

evangélica brasileira (o neoprotestantismo brasileiro) reflete valores de uma outra<br />

modernidade, ou como chama Bauman, de uma pós-modernidade. A mortificação do<br />

corpo está presente na moral de ascese da ética calvinista. Este traço axiológico nos<br />

leva a admitir também que na modernidade o protestantismo histórico (calvinista)<br />

tende a ser mais “desmundano”, mesmo concordando que nele o paradoxo de uma<br />

ética do trabalho jungido à racionalização do consumo pretende afirmar uma<br />

ontologia materialista (e, portanto, secularizante) da vocação histórica de seus<br />

confessantes. No entanto, na nova religiosidade evangélica brasileira este traço<br />

parece inexistir. Nela, a atenção dos indivíduos a ela, ligados pelo vínculo da fésaúde,<br />

intercambia a tríade: fé-espiritualidade-racionalidade de gratificação<br />

(imediata). A “vida de auto-imolação, mortificação do corpo, rejeição das alegrias<br />

terrenas” <strong>17</strong> é tudo que estes novos religiosos não aceitam consumir como artigos de<br />

fé.<br />

Na estrutura axiológica deste novo tipo religioso está a “economia<br />

libidinal” 18 , que orienta o esforço da racionalidade de gratificação imediata mediante<br />

o influxo de um “impulso para a satisfação” desonerada, desculpabilizada. Os<br />

conteúdos que se vê<strong>em</strong> presentes na estrutura de valor do neoprotestantismo<br />

brasileiro denunciam uma mudança de natureza moral. O legado escatológico do<br />

cristianismo incipiente, como instrumento hermenêutico de construção de uma<br />

filosofia/teologia da história, chegou a sua derrocada. A intuição hegeliana acerca de<br />

<strong>17</strong> BAUMAN, 1998, p. 216.<br />

18 BAUMAN, 1998, p. 223.<br />

82<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

um telos dialético da mão providente, configurado no horizonte histórico da<br />

construção da esperança escatológica, cai num penhasco derradeiro. A nova<br />

arquitetura moral da religiosidade evangélica segue os trilhos do itinerário valorativo<br />

que historiciza o super-hom<strong>em</strong> nietzscheano para dentro de si mesma à medida que<br />

alimenta o seu novo ideário espiritual com o ritual da carnalidade regenerada. A<br />

felicidade/prazer não é uma coisa do outro mundo, mas deste aqui, parafraseando o<br />

anúncio que Nietzsche coloca na boca de Zaratustra. A finalidade da economia<br />

libidinal, de acordo com Bauman, é “alcançar a experiência orgástica” 19 . Na<br />

racionalidade de gratificação imediata, o prazer-felicidade é o corolário para o qual<br />

deve se valer todo o esforço religioso (tanto do indivíduo quanto da religião-igreja)<br />

de uma espiritualidade que t<strong>em</strong> no Eros, e não na Ágape, seu norte de orientação<br />

moral para vida-aqui assumida com toda a responsabilidade e satisfação decorrente<br />

dela. A “unção de prosperidade” 20 , clichê lingüístico que se transformou <strong>em</strong> crença<br />

corrente para este novo tipo religioso evangélico brasileiro, objetiva preservar o<br />

indivíduo da incidência do sofrimento na experiência cotidiana da fé-saúdefelicidade.<br />

E por quê Porque ela (a experiência cotidiana do trinômio) é a única coisa<br />

palpável com a qual a realidade de Deus pode deixar os indícios/sinais de sua<br />

existência inconteste. Aqui, diferent<strong>em</strong>ente do que afirmara Leszek Kolakowski 21 , os<br />

critérios <strong>em</strong>píricos da vivência da fé-saúde-felicidade neste novo modelo de<br />

espiritualidade evangélica brasileira conduz<strong>em</strong> o sujeito religioso à experiência<br />

epifânica com a graça divina no cotidiano laico destituído de qualquer “senso<br />

escatológico”. A espiritualidade do cotidiano desenvolvida neste novo modelo<br />

religioso é o locus no qual se deve compreender a nova religiosidade evangélica<br />

brasileira como sendo uma religião tipicamente pós-moderna e, portanto, “religião<br />

da desescatologização” do horizonte bio-histórico-social. Por trás da crença teológica<br />

19 BAUMAN, 1998, p. 223.<br />

20 Este conceito foi verbalmente proferido pelo líder maior da Igreja Evangélica Sara Nossa Terra, o<br />

Bispo Robson Rodovalho, na “Conferência de Quebra de Maldição” <strong>em</strong> que o autor deste artigo<br />

participou na cidade de Goiânia, quarta-feira, dia <strong>07</strong> de julho de 2004, na sede regional da SNT-<br />

Goiânia.<br />

21 Citado por BAUMAN, 1998, p. 209.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 83


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

afirmada pelo líder carismático acima, o advento da secularização se vê consolidado<br />

na prática cotidiana da fé-saúde-prosperidade, para a qual a atenção desta nova<br />

religiosidade evangélica brasileira se volta de maneira eufórica e apaixonada. É no<br />

cotidiano que a eternidade se antropomorfiza, psicossociologicamente, <strong>em</strong> termos de<br />

uma linguag<strong>em</strong> de inclusão, inteligibilidade e beatificação da vida compreendida<br />

como dom de Deus.<br />

Conclusão<br />

O propósito de provocar um diálogo entre Bauman e a nova religiosidade<br />

evangélica brasileira foi intencional. Analisar o fenômeno religioso proposto neste<br />

ensaio na perspectiva da sociologia baumaniana leva à conclusão inevitável de que<br />

ele é um fenômeno típico da pós-modernidade. Este novo fenômeno que se<br />

descortina no horizonte social da experiência religiosa no Brasil cont<strong>em</strong>porâneo<br />

torna a leitura de Bauman também necessária, conquanto monitorada por um olhar<br />

crítico. As diferenças religiosas dos continentes (Europa e América Latina) não<br />

significam ininteligibilidade/irreconciabilidade de similitudes a ser<strong>em</strong> consideradas<br />

numa reflexão como esta que se tentou fazer neste artigo. A nova religiosidade<br />

evangélica brasileira é rica, conquanto complexa e intrigante. Mas certamente o<br />

conceito de “religião pós-moderna” é operacional quando aplicado ao fenômeno<br />

religioso brasileiro refletido neste ensaio. Ele possui duas características que o define<br />

como “religião pós-moderna”: sua natureza antiescatológica e a sua proposta ética de<br />

uma valorização do mundo, ou sua “transcendência”, como disse Bauman. A erótica<br />

(Eros) presente na espiritualidade deste fenômeno evangélico brasileiro indica um<br />

afastamento do paradigma tradicional do cristianismo evangélico brasileiro que se<br />

perdurou até a década de 1980 no continente americano, cuja espiritualidade<br />

fundava-se sob o pressuposto da “moral agápica”, renunciante do ponto de vista da<br />

moral e, portanto, escatologista. A mudança de paradigma hermenêutica de<br />

compreensão das relações “hom<strong>em</strong> e mundo”, “fé e sociedade”, revela que do ponto<br />

84<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

de vista social, o indivíduo religioso integrante deste novo movimento evangélico é<br />

mais integrado socialmente, e aprecia sua vivência no mundo s<strong>em</strong> o preconceito<br />

anteriormente vicejado na “ética de ínterim”, típica variável etológica que figurava o<br />

cristianismo histórico como sendo uma religião “ascético e com a costa virada para o<br />

mundo”. A teologia política de Metz e Moltmann, na década de 1960, falou da<br />

“mudança de identidade” a que o cristianismo histórico deveria ser submetido: sua<br />

mundanização, i.e, sua capacidade de voltar-se para mundo de maneira que este<br />

pudesse, finalmente, ser assumido pela fé cristã como sua “pátria da identidade”<br />

(Ernst Bloch). É natural, portanto, que ao assumir esta nova identidade, o paradigma<br />

hermenêutico também colocasse novos desafios para viver uma “espiritualidade de<br />

engajamento”: o binômio saúde e doença se tornou critério para definir a nova<br />

“espiritualidade”, e a vida eterna como proposta de vida no além foi ressignificada<br />

dentro do universo conceitual do cristianismo, passando a ser compreendido como<br />

“proposta de vida feliz intramundanamente”. A salvação, do grego σοτερια, passou<br />

então a ser definida como “saúde integral” para o indivíduo de fé que assumiu o<br />

mundo como seu “lugar de auto-encontro” (Ernst Bloch), lugar para se viver<br />

intensamente o presente s<strong>em</strong> pensar no depois (transcendentalização do mundo).<br />

Zygmunt Bauman teve uma arguta percepção e chamou isso de processo de<br />

“desescatologização da fé” da religião no contexto da pós-modernidade.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 85


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

A “Mcdonaldização” da fé<br />

- um estudo sobre os evangélicos brasileiros -<br />

Por Eduardo Guilherme de Moura Paegle *<br />

Resumo:<br />

Este trabalho analisa diversas questões cont<strong>em</strong>porâneas envolvendo os evangélicos<br />

brasileiros, entre eles, pod<strong>em</strong>os citar: a fé vista como espetáculo, a relação com a mídia e a<br />

sociedade imagética, b<strong>em</strong> como a inserção desse grupo religioso enquanto mercado<br />

consumidor. Utiliza-se nesta análise a “Mcdonaldização”, como metáfora para as<br />

características que permeiam notadamente os grupos neopentecostais, mais centrados no<br />

descarte da m<strong>em</strong>ória, quando comparados aos grupos ligados a Reforma Protestante do<br />

século XVI, tornando o campo religioso brasileiro mais plural e dinâmico e acentuando o<br />

trânsito religioso.<br />

Palavras-chave:<br />

“mcdonaldização”, evangélicos, espetáculo, mídia e trânsito religioso.<br />

Introduzindo o estudo 1<br />

Uma experiência cotidiana nos grandes centros urbanos é alimentar-se fora<br />

de casa, nas lanchonetes de refeições rápidas, designadas <strong>em</strong> inglês pelo termo fast<br />

food. Ou ainda pedir alguma refeição <strong>em</strong> casa ou no local de trabalho através de um<br />

serviço de tele-entrega feito pela internet ou via telefone, costumeiramente chamado<br />

de delivery (entrega, <strong>em</strong> inglês). Torna-se muito usual, neste sentido, o consumidor<br />

saciar a sua fome no momento <strong>em</strong> que está comendo, com uma refeição feita e<br />

consumida às pressas, mas cerca de duas ou três horas depois, a fome volta.<br />

* Mestre <strong>em</strong> História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Email:<br />

edpaegle@hotmail.com.<br />

1 O referido projeto surgiu a partir do artigo. PAEGLE, Eduardo Guilherme de Moura. A religião<br />

fast food. Jornal Diário Catarinense. Caderno de Cultura, p. 4, 2 fev. 2008.<br />

86<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Essa experiência, típica de uma cultura urbana, onde a sensação constante de<br />

falta de t<strong>em</strong>po para realizar as atividades cotidianas, que no caso, citamos a<br />

preparação de uma refeição, dá-nos a idéia da ausência de um processo de trabalho.<br />

Impõe-se a concepção do instantâneo, da rapidez, da fugacidade, do efêmero contra a<br />

idéia do duradouro, da visão que as atividades necessitam de um processo de t<strong>em</strong>po<br />

para realizar-se.<br />

O dinamismo do campo religioso brasileiro<br />

Trazendo essa concepção de t<strong>em</strong>po (ou da ausência dele) para o campo<br />

religioso brasileiro, o dinamismo nesta área apresenta-nos de forma evidente, o que<br />

os permite abordar diferentes questões pertinentes ao estudo dos fenômenos<br />

religiosos. O pluralismo, o mercado e o trânsito religioso; a idéia de happening<br />

(acontecimento) e a idéia de doutrina; a espetacularização da fé e da liturgia dentro<br />

de uma sociedade imagética, enfim abre-se um vasto leque das opções para as<br />

discussões acadêmicas a respeito do estudo das religiões.<br />

Inicialmente, é preciso explicar duas questões essenciais: a idéia de campo<br />

religioso e o recorte dos evangélicos brasileiros, enquanto objetos de investigação.<br />

A idéia de campo religioso se insere <strong>em</strong> sociedades <strong>em</strong> que existe uma<br />

condição de disputa competitiva entre as diversas denominações, <strong>em</strong> busca do maior<br />

número dos fiéis possíveis 2 . Neste sentido, utilizar<strong>em</strong>os como referenciais teóricos,<br />

Peter Berger e Pierre Bourdieu. O campo religioso brasileiro é marcado pelas<br />

disputas entre diferentes grupos religiosos - católicos, evangélicos, judeus,<br />

muçulmanos, religiões afro, etc., a partir das práticas dos fiéis numa situação<br />

pluralista de mercado. Essas práticas são mediadas pelos produtores dos bens<br />

simbólicos que dev<strong>em</strong> ser consumidos pelos fiéis, que depend<strong>em</strong> basicamente da<br />

2 NIEBUHR, H. Richard. As origens sociais das denominações cristãs. Trad. Antônio Gouvêa Mendonça.<br />

São Paulo: ASTE e UMESP, 1992.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 87


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

eficácia simbólica do discurso, ou seja, de que forma ele é absorvido, compreendido e<br />

assimilado pelos fiéis 3 .<br />

O recorte dentro do campo religioso que nos propomos é o dos evangélicos 4<br />

brasileiros, classificados de diferentes formas pelos acadêmicos. Numa classificação,<br />

exist<strong>em</strong> cinco ramos que compõ<strong>em</strong> os evangélicos brasileiros: anglicanos (incluindo<br />

os episcopais), luteranos, reformados (presbiterianos e congregacionais), paralelos à<br />

Reforma (batistas e menonitas) e pentecostais (Ass<strong>em</strong>bléia de Deus, Congregação<br />

Cristã do Brasil, Deus é Amor, entre outras). Para Gedeon Alencar, ocorre a divisão<br />

<strong>em</strong> quatro grupos, como protestantismo de imigração (luteranos), protestantismo de<br />

missão (congregacionais, presbiterianos, metodistas e batistas), protestantismo<br />

pentecostal (Congregação Cristã do Brasil e Ass<strong>em</strong>bléia de Deus) e protestantismo<br />

moderno (Quadrangular, “Brasil para Cristo”, “Deus é amor” e Igreja Universal do<br />

Reino de Deus) 5 .<br />

Numa outra tipologia sociológica, a “primeira onda”, classifica as igrejas<br />

pentecostais existentes a partir da década de 1910, que surg<strong>em</strong> no Norte do Brasil <strong>em</strong><br />

pleno ciclo da borracha. A Igreja Congregação Cristã (1910) e a Ass<strong>em</strong>bléia de Deus<br />

(1911) classificam-se como de “primeira onda.” Da “segunda onda”, são as igrejas<br />

surgidas na década de 1950 e 1960, baseados na idéia de cura divina e divulgação da<br />

mensag<strong>em</strong> religiosa através do rádio. Surg<strong>em</strong> num contexto paulista. Neste grupo,<br />

pod<strong>em</strong>os citar: a Igreja do Evangelho Quadrangular (1951), O Brasil para Cristo<br />

(1955) e Deus é Amor (1962). Por último, as da “terceira onda” surg<strong>em</strong> na década de<br />

1970 e 1980 num contexto carioca. Têm como características a defesa da teologia da<br />

prosperidade, o uso da mídia de massa, sobretudo a TV. São ex<strong>em</strong>plos desse grupo a<br />

3 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 79-98.<br />

4 Em termos gerais, consideramos o início dos grupos evangélicos a partir da figura do Reformador<br />

Lutero, a partir do século XVI.<br />

5 MENDONÇA, Antônio Gouvêa; VELÁSQUES Filho, Prócoro. Introdução ao protestantismo no Brasil.<br />

São Paulo: Loyola, 1990. p. <strong>17</strong>-18; ALENCAR, Gedeon. <strong>Protestantismo</strong> tupiniquim: hipóteses da (não)<br />

contribuição evangélica à cultura brasileira. São Paulo: Arte Editorial, 2005. p. 151.<br />

88<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Igreja Universal do Reino de Deus (1977) e Igreja Internacional da Graça de Deus<br />

(1980) 6 .<br />

Neste texto, chamamos os grupos da primeira e da segunda onda de<br />

pentecostais e os de terceira onda, de neopentecostais.<br />

Propomos uma nova classificação a partir da propagação da mensag<strong>em</strong><br />

religiosa, classificamos os grupos protestantes (luteranos, presbiterianos,<br />

congregacionais, anglicanos e batistas) como ligados à cultura letrada; os grupos<br />

pentecostais (Ass<strong>em</strong>bléia de Deus, “Deus é amor”, Quadrangular, Congregação<br />

Cristã do Brasil), como ligados a cultura oral, notadamente o rádio, como<br />

ex<strong>em</strong>plificado; e por último, os grupos imagéticos, ligados ao neopentecostalismo<br />

(Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça e a Renascer <strong>em</strong><br />

Cristo), baseados na teologia da prosperidade, onde a idéia do espetáculo, da<br />

teatralização e o uso massivo da TV é mais evidente.<br />

O pluralismo, o trânsito e o mercado religioso no Brasil.<br />

Conforme as estatísticas dos últimos censos realizados no país, torna-se<br />

claramente perceptível a queda dos índices percentuais de fiéis que se autodeclararam<br />

Católicos Romanos, sendo <strong>em</strong> grande parte absorvidos por dois grupos:<br />

os “s<strong>em</strong>-religião” 7 e os evangélicos 8 , principalmente entre os grupos pentecostais e<br />

neopentecostais, o que é um indicador que o trânsito religioso é evidente.<br />

Aquele adágio popular que afirmava “que o fulano nasce numa religião e vai<br />

morrer nela” não t<strong>em</strong> mais sentido na realidade religiosa do país, onde a religião<br />

6 FR<strong>EST</strong>ON, Paul. FR<strong>EST</strong>ON, Paul. In: ANTONIAZZI, Alberto et al. N<strong>em</strong> anjos n<strong>em</strong> d<strong>em</strong>ônios:<br />

interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 67-162.<br />

7 Grupos não necessariamente ateus, mas que não declaram filiação religiosa, cerca de 12.492.403, no<br />

censo de 2001.<br />

8 Conforme o censo do IBGE de 2001, 16% da população brasileira se declaram evangélicas,<br />

totalizando 26.184.961 fiéis, sendo 70 % dos evangélicos eram pentecostais ou neopentecostais.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 89


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

passa a ser menos definida pelo nascimento e mais pela escolha ou pela opção<br />

individual, quando esses produtos são oferecidos à la carte, constituindo a idéia de<br />

um “supermercado religioso”, onde cabe ao fiel/consumidor montar<br />

metaforicamente no seu carrinho de supermercado os el<strong>em</strong>entos que considera mais<br />

favoráveis a sua experiência religiosa.<br />

[...] a tradição religiosa, que antigamente podia ser imposta pela<br />

autoridade, agora t<strong>em</strong> que ser colocada no mercado. Ela t<strong>em</strong> que ser<br />

“vendida” para uma clientela que não está mais obrigada a<br />

“comprar”. A situação pluralista é, acima de tudo, uma situação de<br />

mercado. Nela, as instituições religiosas tornam-se agências de<br />

mercado e as tradições religiosas tornam-se comodidades de<br />

consumo. E, de qualquer forma, grande parte da atividade religiosa<br />

nessa situação v<strong>em</strong> a ser dominada pela lógica da economia de<br />

mercado. 9<br />

Um fiel pode optar por um pregador eloqüente, t<strong>em</strong>plos grandes e um cultoshow,<br />

enquanto outro pode optar por um culto litúrgico, a ênfase do discurso na<br />

doutrina e <strong>em</strong> hinos executados num piano. Pode-se ainda mesclar diferentes e<br />

inúmeros el<strong>em</strong>entos que, combinados entre si, permit<strong>em</strong> que o fiel se aproprie do<br />

discurso de formas diversas e individualizadas, possibilitando que num mesmo<br />

espaço religioso ocorram diferentes manifestações da experiência religiosa. Em suma,<br />

o fiel pode, mesmo que sujeito aos mesmos el<strong>em</strong>entos religiosos e ao discurso oficial<br />

de uma denominação religiosa, ter uma recepção diferente da mensag<strong>em</strong> para a qual<br />

o <strong>em</strong>issor se propõe, devido aos fatores culturais, espaciais, sociais e até pessoais.<br />

A centralização no indivíduo, considerando os “produtos e serviços”<br />

religiosos ofertados num amplo pluralismo e na concorrência do mercado religioso,<br />

constitui uma verdadeira concepção do self. Considerando o serviço religioso à la<br />

carte, inclusive dentro de uma mesma denominação ou vertente religiosa, a idéia do<br />

“faça você mesmo” ou “sirva com aquilo que você quer” (self-service) domine o<br />

panorama.<br />

9 BERGER, Peter. O dossel sagrado: el<strong>em</strong>entos para uma teoria sociológica da religião. 2 ed. São Paulo:<br />

Paulinas, 1985. p. 149.<br />

90<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

O self é uma das chaves para explicar o crescimento dos neopentecostais.<br />

Neste sentido, é uma recusa da mediação religiosa institucional, abrindo espaço para<br />

um sincretismo religioso na experiência individual s<strong>em</strong> contestações eclesiásticas,<br />

onde não existe uma ausência de contradições de diferentes tradições religiosas. O<br />

que seria mais pós-moderno do que isso, <strong>em</strong> termos religiosos<br />

Essa metáfora faz-nos l<strong>em</strong>brar que as igrejas neopentecostais, como a IURD 10<br />

e a Renascer, apresentam cada dia da s<strong>em</strong>ana com um cardápio diferente, no dia x, o<br />

culto da Libertação, no y, do <strong>em</strong>presário, no dia w, da família e no f, a terapia do<br />

amor 11 .<br />

T<strong>em</strong>os uma idéia da “Mcdonaldização” da fé, na medida <strong>em</strong> que a lógica de<br />

mercado é imposta nesta sociedade neoliberal. Forma-se um drive thru religioso, onde<br />

o fiel serve-se de acordo com as suas preferências, marcado num contexto histórico<br />

do final da década de 1980 e início dos anos 1990, pela red<strong>em</strong>ocratização do país, a<br />

queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria e da própria União Soviética.<br />

Dentro desse panorama histórico, a vitória da sociedade de mercado também<br />

influencia o contexto religioso, tornando o país, do ponto-de-vista religioso, mais<br />

plural e com uma concorrência religiosa mais acirrada.<br />

evangélico<br />

Magali Nascimento da Cunha retrata dentro desse contexto, que no campo<br />

[...] surg<strong>em</strong> no Brasil duas correntes religiosas denominadas<br />

“Teologias da prosperidade” e “Guerra espiritual”, que dão base à<br />

pregação neopentecostal e também captam ampla receptividade entre<br />

as igrejas históricas. Aqui é um fator – sociopolítico e econômico que<br />

possibilita o sucesso dessas formas religiosas: as políticas neoliberais<br />

– novas manifestações do capitalismo. Todo esse processo interfere<br />

no cenário religioso e provoca mudanças das quais essas correntes<br />

10 Abreviação de Igreja Universal do Reino de Deus.<br />

11 A Iurd apresenta a seguinte dinâmica s<strong>em</strong>anal. Domingo – Reunião de louvor e adoração; Segunda<br />

– Reunião da Nação dos 318; Terça – Sessão espiritual do descarrego; Quarta – Reunião dos Filhos<br />

de Deus; Quinta – Corrente da família; Sexta – Corrente da libertação; Sábado – Terapia do amor.<br />

IGREJA Universal do Reino de Deus. Disponível <strong>em</strong>: .<br />

Acesso <strong>em</strong>: 3 jan. 2008.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 91


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

são um ex<strong>em</strong>plo forte. Na lógica da exclusão, que caracteriza a<br />

política neoliberal, prega-se a inclusão social com a promessa de<br />

prosperidade material (“Vida na Bênção”), condicionada à fidelidade<br />

material e espiritual a Deus. 12<br />

Forma-se uma espécie de teoria do dominó, pois protestantes sofr<strong>em</strong> uma<br />

pressão se pentecostalizar<strong>em</strong> e pentecostais para se neopentecostalizar<strong>em</strong>, dentro<br />

dessa lógica de mercado, pois são os neopentecostais que defend<strong>em</strong> a teologia da<br />

prosperidade, aliando assim, com uma maciça participação televisiva, ao transformar<br />

o culto <strong>em</strong> espetáculo, nesse contexto neoliberal. Assim, não é de estranhar que<br />

surjam cartões de créditos Visa para os evangélicos (batistas), noventa e seis<br />

gravadoras de músicas gospel com faturamento de R$ 200.000.000,00 por ano, mais de<br />

300 <strong>em</strong>issoras de rádios e TV e a venda de quinze milhões de livros evangélicos por<br />

ano 13 , além de uma forte bancada evangélica no Congresso Nacional 14 . Caracteriza-se<br />

assim, o que Magali Cunha, chamou de explosão gospel 15 .<br />

Significaria isso que a idéia de uma sociedade imagética se sobrepôs à<br />

sociedade da leitura na cont<strong>em</strong>poraneidade Se considerarmos as estatísticas, parecenos<br />

que sim, pois, sobretudo os grupos protestantes (calvinistas, luteranos,<br />

anabatistas e anglicanos) oriundos das reformas do século XVI estagnaram do pontode-vista<br />

estatístico, e eram esses que justamente defendiam uma maior valorização<br />

doutrinária, o que implica na leitura e interpretação do texto revelado. Em<br />

comparação, são justamente os grupos neopentecostais que, com a sua inserção na<br />

12 CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário<br />

evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauá/Instituto Mysterium, 20<strong>07</strong>. p. 51.<br />

13 EDWARD, José. A força do Senhor. <strong>Revista</strong> Veja, p. 88-95, 3 jul. 2002.<br />

14 A participação evangélica no campo político foi evidenciada no período de red<strong>em</strong>ocratização. Por<br />

volta, de 1988, os deputados federais evangélicos se uniram e formaram a chamada “bancada<br />

evangélica” trabalhando principalmente nas áreas de liberdade religiosa e questões morais (contra<br />

o aborto e o casamento homossexual). Na época, difundia-se a idéia que os parlamentares<br />

evangélicos deveriam se unir para influenciar na Constituição de 1988. Nestas duas últimas<br />

décadas, a presença maciça dos evangélicos, permitiu também a concessão de mais espaços<br />

televisivos e radiofônicos, já que é uma concessão pública, alimentando assim, ainda mais o<br />

crescimento dos evangélicos brasileiros, a partir do tele-evangelismo.<br />

15 No livro com o mesmo nome, já citado. Observa-se que no Brasil, o termo gospel é entendido como<br />

evangélico, enquanto na língua inglesa, t<strong>em</strong> o sentido tanto de evangélico, quanto de Evangelho,<br />

ou seja, a Bíblia. Literalmente, evangélico representa aquele que crê no Evangelho, ou seja, a “boanova”<br />

da ressurreição de Cristo.<br />

92<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

mídia, sobretudo televisiva, consegu<strong>em</strong> utilizar os recursos imagéticos como forma<br />

de aumentar os seus fiéis/consumidores. Paradoxalmente, as livrarias evangélicas<br />

têm vendido proporcionalmente cada vez menos livros e ocupado as suas vendas<br />

com Cd’s, Dvd’s, cartões, camisas, bottons, bonés, jogos, enfim, um mercado religioso<br />

lucrativo com a ampliação de diferentes produtos gospel para agradar a todos os<br />

estilos, sobretudo incorporado el<strong>em</strong>entos interessantes para uma sociedade<br />

imagética. O apelo visual se tornou maior numa sociedade que valoriza mais o poder<br />

da imag<strong>em</strong> do que o poder da palavra.<br />

As denominações também passaram a funcionar muitas vezes como marcas.<br />

A pomba estilizada e o escrito “Pare de sofrer” são características típicas da<br />

identidade visual da Igreja Universal do Reino de Deus, o peixe, símbolo histórico do<br />

cristianismo foi patenteado pela Igreja Renascer <strong>em</strong> Cristo; a sarça ardente, símbolo<br />

da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) são marcas de uma política de identidade<br />

visual, numa sociedade imagética, assim como os arcos dourados, faz<strong>em</strong> parte da<br />

identidade visual do Mcdonald’s 16 . Neste sentido, o sagrado se apropria e<br />

ressignifica o profano (enquanto marca que precisa ser consumida), tornando as<br />

definições clássicas de Rudolf Otto e Mircea Eliade obsoletas <strong>17</strong> .<br />

Como escrito a seguir:<br />

Qu<strong>em</strong> avidamente come um Big Mac engole exatamente o quê Uma<br />

massa de carne moída e prensada, banhada <strong>em</strong> incertos molhos,<br />

ladeada por algumas verduras e duas fatias de pão Ou realiza uma<br />

transubstanciação às avessas, que <strong>em</strong> vez de transformar carne e<br />

sangue <strong>em</strong> pão e vinho, incorpora <strong>em</strong> seu sangue, <strong>em</strong> suas carnes,<br />

uma combinação complexa de valores e desejos, <strong>em</strong>balados não<br />

numa caixa de papelão, mas nas curvas sinuosas de um tentacular<br />

“M” amarelo Forma e conteúdo, essência e aparência, valor de uso –<br />

e principalmente – valor de troca, o que a marca Mcdonald’s menos<br />

vende é comida. Numa sociedade <strong>em</strong> que tudo é representação –<br />

finge o que é dor a dor que deveras vende -, o que a rede norte-<br />

16 FONTENELLE, Isleide Arruda. O nome da marca: Mcdonald’s, fetichismo e cultura descartável. São<br />

Paulo: Bont<strong>em</strong>po, 2002.<br />

<strong>17</strong> OTTO, Rudolfo. O sagrado. São Paulo: Vozes, [s.d.]; ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a<br />

essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1999.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 93


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

americana de lanchonetes faz é comercializar um estilo de vida para<br />

um suposto paladar universal. Um fetiche <strong>em</strong> que marca, signos,<br />

uniforme de atendentes, programação visual, arquitetura interna das<br />

lojas, tudo, tudo, busca atender a este paladar. Não há invenção, não<br />

há sanduíche “no capricho”, não há “mal passado, b<strong>em</strong> passado ou<br />

no ponto.” Não há riscos. Os detratores dos antigos regimes<br />

socialistas do Leste europeu apregoavam que as filas vistas diante de<br />

mercados e armazéns eram o retrato acabado de uma sociedade de<br />

escassez e privação. Pois a mcdonaldização do mundo transformou<br />

as filas na frente dos caixas/atendentes <strong>em</strong> sinônimo de eficiência e<br />

rapidez. 18<br />

Cria-se uma “sociedade do espetáculo”, onde “o espetáculo não é um<br />

conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” 19 .<br />

O espetáculo que os evangélicos proporcionam ocorre tanto no espaço midiático,<br />

especialmente televisivo quanto na ocupação do espaço público. Apresentadores,<br />

como Edir Macedo 20 , Estevão Hernandes 21 , Silas Malafaia 22 e R. R. Soares 23 ocupam<br />

generosos espaços televisivos e radiofônicos, criando identidades duplas, como<br />

pastores/animadores de auditório, e realimentando os seus impérios<br />

midiáticos/eclesiásticos, inspirados pelos tele-evangelistas estadunidenses, como<br />

Billy Graham e Jimmy Swaggart. Nos espaços públicos, l<strong>em</strong>bramos da “Marcha para<br />

Jesus” 24 , eventos musicais, como proporcionadas pela Banda “Diante do Trono”,<br />

ligada à Igreja Batista da Lagoinha de Belo Horizonte, que constant<strong>em</strong>ente ench<strong>em</strong><br />

estádios nos seus shows.<br />

18 FONTENELLE, 2002.<br />

19 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:<br />

Contraponto, 1997. p. 14.<br />

20 Líder da Igreja Universal do Reino de Deus.<br />

21 Auto-intitulado apóstolo e líder da Igreja Renascer <strong>em</strong> Cristo.<br />

22 Pastor da Igreja Ass<strong>em</strong>bléia de Deus, famoso pelos seus programas televisivos.<br />

23 Pastor e fundador da Igreja Internacional da Graça, sendo também o apresentador do programa<br />

vinculado na Rede Bandeirantes, chamado “O show da fé.”<br />

24 Evento iniciado na Inglaterra <strong>em</strong> 1987 para dar maior visibilidade aos evangélicos no espaço<br />

público. Espalhou-se para diversos países. No Brasil, a “Marcha para Jesus” é organizada pela<br />

Igreja Renascer <strong>em</strong> Cristo, mas reúne diferentes denominações evangélicas, sendo a maior<br />

concentração numérica de fiéis na cidade de São Paulo. Além da caminhada dos fiéis, exist<strong>em</strong> os<br />

shows com grupos de música gospel, orações, discursos religiosos - políticos, até camisetas<br />

relacionadas com o evento.<br />

94<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

O happening, ou seja, o acontecimento, que neste caso, se refere à experiência<br />

religiosa passa a ser mais valorizado do que a doutrina para o crescimento <strong>em</strong><br />

número de fiéis, num processo que chamamos aqui de “desteologização”. Neste<br />

sentido, a doutrina não é importante, mas sim o acontecimento, seja uma cura, uma<br />

bênção recebida, um <strong>em</strong>prego novo conquistado, ou breves momentos onde o fiel<br />

pode cantar a música do seu cantor gospel favorito.<br />

A fé não pode ser rotineira, litúrgica, pois para se conseguir mais sucesso<br />

(leia-se mais fiéis) torna-se necessário ter eventos espetaculares, estádios lotados,<br />

curas, milagres, sonhos, adivinhações, aparições midiáticas que sejam respostas do<br />

t<strong>em</strong>po do “aqui e agora”, mais ao gosto dos (neo) pentecostais do que os discursos<br />

transcendentais dos grupos reformados. Uma das questões é saber se existe um<br />

limite na capacidade de atração dos fiéis a essa visão que a fé t<strong>em</strong> que ser<br />

constant<strong>em</strong>ente espetacular Essa rotinização da espetacularização da fé poderia<br />

perder a capacidade de atrair fiéis Essa discussão me parece <strong>em</strong> aberto, sendo que<br />

necessitamos de mais algum t<strong>em</strong>po de pesquisas para percebermos se a tendência de<br />

crescimento numérico dos neopentecostais continua ou não. A questão é saber se a<br />

curva de crescimento dos neopentecostais atingiria um teto nesse crescimento.<br />

A IURD apresenta-se como o maior ex<strong>em</strong>plo da espetacularização da fé no<br />

campo religioso brasileiro. Sua posição de destaque no quadro religioso brasileiro se<br />

deve à visibilidade, ao proselitismo agressivo e, sobretudo à sua rápida expansão:<br />

conforme os dados dos dois últimos Censos D<strong>em</strong>ográficos, essa igreja cresceu nada<br />

menos que 718% entre 1991 e 2000. Se, <strong>em</strong> termos numérico, a IURD, apresente<br />

2.101.887 fiéis no Censo do IBGE de 2000, cifra inferior aos Católicos Romanos,<br />

Batistas, Ass<strong>em</strong>bléia de Deus, Congregação Cristã do Brasil e Espíritas, ocupando um<br />

relativamente modesto sexto lugar no número de filiações por instituição, mas é<br />

justamente o seu impacto midiático que assusta os seus concorrentes religiosos 25 .<br />

Usamos o termo “relativamente modesto”, porque a sua inserção midiática é tão<br />

25 SOUZA, André Ricardo. Igreja in concert: padre cantores, mídia e marketing. São Paulo:<br />

Annablume e FAPESP. 2005. p. 23.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 95


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

forte, sobretudo na Rede Record, na qual o Bispo Macedo é dono desde 1989, que se<br />

julgasse, que a impressão que se t<strong>em</strong> é que a IURD possui uma quantidade de fiéis<br />

muito maiores. Se o critério de julgamento dependesse do t<strong>em</strong>po de existência da<br />

IURD, com cerca de 30 anos, o número de fiéis não é nada modesto 26 .<br />

Assim, pod<strong>em</strong>os dizer que:<br />

A Igreja Universal se constituiu como movimento religioso num<br />

contexto de globalização que tornou possível o <strong>em</strong>prego da<br />

propaganda, publicidade e marketing religioso <strong>em</strong> seu processo de<br />

expansão. Essa prática mercadológica repousa no pressuposto que é<br />

no ato de consumir individualmente que o ser humano adquire a sua<br />

humanização e não na preocupação com os excluídos deste processo.<br />

Nesse sentido, a propaganda tende a des<strong>em</strong>penhar nos sist<strong>em</strong>as<br />

religiosos função s<strong>em</strong>elhante ao sangue no corpo humano, fazendo<br />

circular a mensag<strong>em</strong> do centro às extr<strong>em</strong>idades; daí a ganância <strong>em</strong> se<br />

adquirir espaços na mídia e <strong>em</strong> se comprar<strong>em</strong> <strong>em</strong>issoras de rádio e<br />

de televisão. 27<br />

Amparada pelo poder midiático e pelo poder político (necessário para<br />

ampliar as concessões públicas das redes de TV e rádios), a IURD impactou o campo<br />

religioso brasileiro, sobretudo a necessidade da Igreja Católica Romana de deter esse<br />

avanço, a partir da década de 1980, notadamente com a Renovação Carismática, com<br />

destaque para as figura do padre Marcelo Rossi 28 . Como b<strong>em</strong> sintetizou Gedeon<br />

Alencar<br />

Nada mais pós-moderno que a religião. Estamos no mundo da<br />

imag<strong>em</strong>, do espetáculo e nada mais sintomático que até a<br />

circunspecta Igreja Católica, tão conservadora <strong>em</strong> seus rituais, tenha<br />

que admitir que para atrair 50, 200 ou 800 mil pessoas, só mesmo a<br />

“Aeróbica de Jesus”, celebrado pelo padre Marcelo Rossi. Afinal uma<br />

celebração com leitura de texto, pregação expositiva e hermenêutica<br />

apurada cansam, e poucos estão interessados. A celebração precisa<br />

ser diet, a doutrina preferencialmente, fast food, e o compromisso o<br />

26 TAVOLARO, Douglas. O bispo: a história revelada de Edir Macedo. São Paulo: Larrousse, 20<strong>07</strong>. p.<br />

154.<br />

27 CAMPOS, 1997, p. 244.<br />

28 SOUZA, 2005, p. 122.<br />

96<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

mais light possível, pois se quer mesmo é o show! É a “religião<br />

espetacularizada”! Intimista, mas consumista como espetáculo. 29<br />

Assim sendo, julgamos neste artigo alguns aspectos que consideramos mais<br />

relevantes. O primeiro é que as matrizes religiosas sobre a tradição eclesiástica<br />

perd<strong>em</strong> fiéis, como t<strong>em</strong> ocorrido com a Igreja Católica e ascensão notadamente dos<br />

grupos neopentecostais que estão assentados sobre o descarte da m<strong>em</strong>ória coletiva,<br />

num discurso facilmente digerível - “fast food” - que procura agradar as massas (cura,<br />

prosperidade financeira, terapia do amor, entre outros), levando a intensificação do<br />

trânsito religioso brasileiro, além de ocupar, sobretudo os neopentecostais, um<br />

espaço importante na resolução dos probl<strong>em</strong>as cotidianos (fome, des<strong>em</strong>prego, falta<br />

de assistência médica e educacional), onde o estado mínimo neoliberal se ausenta,<br />

gerando uma maior eficácia simbólica no seu discurso. Além disso, intensifica-se o<br />

mercado religioso <strong>em</strong> busca do fiel/consumidor, marcando a mercantilização do<br />

sagrado, numa fé mais ligado ao self, caracterizando um relativismo ético/religioso<br />

com uma certa ausência de contradições nesse menu religioso à la carte, sendo que as<br />

denominações neopentecostais cresc<strong>em</strong> por se encaixar mais nesse perfil que<br />

combina religiosidade, mercado e espetáculo.<br />

Referências<br />

ALENCAR, Gedeon. <strong>Protestantismo</strong> tupiniquim: hipóteses da (não) contribuição evangélica à<br />

cultura brasileira. São Paulo: Arte Editorial, 2005.<br />

ANTONIAZZI, Alberto et al. N<strong>em</strong> anjos n<strong>em</strong> d<strong>em</strong>ônios: interpretações sociológicas do<br />

pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994.<br />

BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge<br />

Zahar, 2008.<br />

BERGER, Peter. O dossel sagrado: el<strong>em</strong>entos para uma teoria sociológica da religião. 2 ed. São<br />

Paulo: Paulinas, 1985.<br />

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.<br />

29 ALENCAR, 2005, p. 113.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 97


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, t<strong>em</strong>plo e mercado: organização e marketing de um<br />

<strong>em</strong>preendimento neopentecostal. Petrópolis e São Paulo: Vozes, Simpósio e UMESP, 1997.<br />

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: artes do fazer.Petrópolis: Vozes, 1994.<br />

CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o<br />

cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauá/Instituto Mysterium, 20<strong>07</strong>.<br />

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil Rio de Janeiro: Rocco, 1986.<br />

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:<br />

Contraponto, 1997.<br />

EDWARD, José. A força do Senhor. <strong>Revista</strong> Veja, p. 88-95, 3 jul. 2002.<br />

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes,<br />

1999.<br />

FONTENELLE, Isleide Arruda. O nome da marca: Mcdonald’s, fetichismo e cultura<br />

descartável. São Paulo: Bont<strong>em</strong>po, 2002.<br />

FR<strong>EST</strong>ON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da constituinte ao impeachment. 1993. Tese<br />

(Doutorado). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1993.<br />

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Tradução: Raul Fiker. São Paulo:<br />

Unesp, 1991.<br />

GUERRIERO, Silas (org.). O estudo das religiões: desafios cont<strong>em</strong>porâneos. São Paulo:<br />

Paulinas, 2003.<br />

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1995.<br />

IGREJA Universal do Reino de Deus. Disponível <strong>em</strong>: .<br />

Acesso <strong>em</strong>: 3 jan. 2008.<br />

MARTINO, Luís Mauro Sá. Mídia e poder simbólico: um ensaio sobre a comunicação e o campo<br />

religioso. São Paulo: Paulus, 2003.<br />

MENDONÇA, Antônio Gouvêa; VELÁSQUES Filho, Prócoro. Introdução ao protestantismo no<br />

Brasil. São Paulo: Loyola, 1990.<br />

NIEBUHR, H. Richard. As origens sociais das denominações cristãs. Trad. Antônio Gouvêa<br />

Mendonça. São Paulo: ASTE e UMESP, 1992.<br />

ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos Alberto (Orgs.). Globalização e religião. 2 ed. Petrópolis: Vozes,<br />

1999.<br />

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2001.<br />

OTTO, Rudolfo. O sagrado. São Paulo: Vozes, [s.d.].<br />

98<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

PAEGLE, Eduardo Guilherme de Moura. A religião fast food. Jornal Diário Catarinense.<br />

Caderno de Cultura, p. 4, 2 fev. 2008.<br />

REILY, Duncan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE,<br />

1993.<br />

SIEPIERSKI, Carlos Tadeu. “De b<strong>em</strong> com a vida”: o sagrado num mundo <strong>em</strong> transformação.<br />

Um estudo sobre a Igreja Renascer <strong>em</strong> Cristo e a presença evangélica na sociedade brasileira<br />

cont<strong>em</strong>porânea. 2001. Tese (Doutorado). São Paulo, Universidade de São Paulo, 2001.<br />

SIEPIERSKI, Paulo D.; GIL, Benedito M. Religião no Brasil: enfoques, dinâmicas e abordagens.<br />

São Paulo: Paulinas, 2003.<br />

SOUZA, André Ricardo. Igreja in concert: padre cantores, mídia e marketing. São Paulo:<br />

Annablume e FAPESP. 2005.<br />

SOUZA, Jessé de (Org.). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade<br />

cultural brasileira. Brasília: UNB, 1999.<br />

TAVOLARO, Douglas. O bispo: a história revelada de Edir Macedo. São Paulo: Larrousse,<br />

20<strong>07</strong>.<br />

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2003.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 99


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Conflitos pastorais e presença luterana na política: século XIX<br />

Por Oneide Bobsin *<br />

Resenha de:<br />

WITT, Marcos Antônio. Em busca de um lugar ao sol: estratégias políticas. São<br />

Leopoldo: Oikos, 2008.<br />

O livro do meu conterrâneo, Marcos Antônio Witt, nasceu de sua tese de<br />

doutorado <strong>em</strong> História, que foi defendida no início do corrente ano na Pontifícia<br />

Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Ela revisita, com um outro olhar<br />

complexivo, a imigração al<strong>em</strong>ã no Rio Grande do Sul, do século XIX, realçando os<br />

vínculos religiosos e políticos entre São Leopoldo e o Litoral Norte do RS - LNRS,<br />

mais especificamente Vale Três Forquilhas.<br />

Algumas perguntas importantes vão-nos suscitando instigantes percepções<br />

através da pesquisa acurada feita <strong>em</strong> arquivos, s<strong>em</strong> ignorar a tradição oral. A<br />

pesquisa joga novas luzes sobre assuntos já sedimentados. Imigrantes al<strong>em</strong>ães e seus<br />

descendentes envolveram-se ou não no jogo político As respostas são tão<br />

surpreendentes quanto preocupantes. As colônias al<strong>em</strong>ãs do LNRS, tanto a católica<br />

quanto a evangélica, articulavam-se ou não com São Leopoldo e adjacências A idéia<br />

do isolamento dos imigrantes e seus descendentes não parece se sustentar.<br />

Os contratos matrimoniais se pautavam pelo amor ou outros interesses<br />

regiam a constituição de novas famílias Parece que o amor não era tão romântico no<br />

século XIX! Também as relações de compadrio, propiciadas pelo batismo de crianças,<br />

* Professor de Ciências da Religião, Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa do<br />

<strong>Protestantismo</strong> e Reitor da <strong>Faculdades</strong> <strong>EST</strong>.<br />

100<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre visavam o test<strong>em</strong>unho de fé. Os interesses materiais s<strong>em</strong>pre estavam<br />

presentes, <strong>em</strong> menor ou maior grau, como <strong>em</strong> qualquer cultura ou tradição religiosa.<br />

A disputa entre os pastores por um lugar onde a função fosse mais<br />

reconhecida e o futuro mais promissor economicamente não é uma questão atual.<br />

Faz parte do campo simbólico-religioso com suas estratégias de poder entre agentes<br />

reconhecidos e outros agentes “leigos” que pleiteavam tais cargos. A densa descrição<br />

destes conflitos feita por Marcos Witt merece ser lida pelo clero de diversas Igrejas.<br />

As disputas entre o pastor Carlos Leopoldo Voges, que se estabeleceu no<br />

Vale Três Forquilhas depois da 1830, e o pastor Ehlers, de São Leopoldo, também<br />

envolveram o pastor<br />

Klingelhoeffer, que morreu nos campos de batalhas da<br />

Revolução Farroupilha. Marcos Witt se sustenta no historiador Tramontini, seu<br />

orientador do mestrado, para ex<strong>em</strong>plificar as disputas pela liderança das<br />

comunidades: “Voges, inimigo figadal de Elhers, conquistou espaços que o colocaram como<br />

“expoente” nas esferas econômicas e política do mundo colonial do século XIX. Casamentos,<br />

apadrinhamentos, alianças, entre outras artimanhas, proporcionaram a Voges lugar de<br />

destaque no mega-espaço São Leopoldo - LNRS” (p. 69), t<strong>em</strong>a do capítulo II.<br />

As tabelas sobre Inventários e Registros Paroquiais da Lei de Terras, b<strong>em</strong><br />

como as de casamentos, quantificam os pactos entre famílias “exponenciais” que<br />

casavam suas filhas e seus filhos entre si, forjando, assim, um lugar de destaque no<br />

jogo político. “Assim como os casamentos que envolveram as famílias Diefenthäler e Voges<br />

resultaram no crescimento econômico e social daquelas parentelas, os acordos matrimoniais<br />

estabelecidos entre os núcleos Jacoby, Schmitt e Voges fundiram uma estrutura de liderança<br />

no cenário colonial do LNRS que chegou até o século XX” (p. 93).<br />

Os capítulos subseqüentes, da parte II, reún<strong>em</strong> um farto material a partir de<br />

inventários que sustentam a tese que procuramos resumir acima, tentando ser fiel ao<br />

seu autor.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 101


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Contudo, entre tantas questões que chamam a nossa atenção nos inventários<br />

detalhados, refere-se à menção de escravos negros no rol dos bens, ao lado de vacas,<br />

bois, porcos e extensão de terras. Mas também o poder comercial do filho do pastor<br />

Voges, com a sua venda <strong>em</strong> Taquari, encontra respaldo na relação de <strong>em</strong>presas<br />

fornecedoras de Porto Alegre. Mais um argumento para contestar a tese do<br />

isolamento do LNRS. Igualmente, mais um argumento para mostrar que uma rede de<br />

transporte fluvial e terrestre ancorava os <strong>em</strong>preendimentos comerciais. Tê-las a seu<br />

favor é uma das condições para a constituição do poder político local.<br />

Por último, mas não menos importante, o capítulo que considera a disputa<br />

político-partidária, pode assim ser resumido, com as palavras desta consistente tese<br />

de doutorado de Marcos Witt: “Todos os casos investigados foram perpassados por<br />

conflitos, de maior ou menor grau. Pastores, juízes, colonos tiveram o cotidiano marcado por<br />

disputas, as quais visavam à conquista de um b<strong>em</strong> maior, quer fosse um pedaço a mais de uma<br />

colônia ou a ocupação de um cargo público. O subcapítulo que encerra este texto ficará<br />

centrado num único conflito, cuja orig<strong>em</strong> esteve na disputa político-partidária” (p. 267).<br />

Assim, ao retomar sua dissertação de mestrado para sustentar a sua tese, o<br />

livro destaca <strong>em</strong> seu último parágrafo a presença do pastor Voges ao longo do século<br />

XIX. Carlos Leopoldo Voges exerceu por mais de 60 anos atividades que reuniram o<br />

poder simbólico e material. Tal poder se estendeu para o século XX, <strong>em</strong> âmbito local.<br />

Concordamos, pois com Marcos Witt, quando desdobra o “caso Voges”: “é<br />

difícil dissociar religião, economia e política”.<br />

Parece-me que Voges foi um “estrategista”. Sua casa ao lado do t<strong>em</strong>plo <strong>em</strong><br />

que fomos socializados na fé, <strong>em</strong> Itati, serviu de escola, de moradia e de ponto<br />

comercial: ela permanece como sinal daqueles t<strong>em</strong>pos que não se foram totalmente,<br />

mas que não voltam do jeito que foi descrito por Marcos Witt.<br />

102<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>17</strong>, set.-dez. de 2008 – ISSN 1678 6408<br />

Como citar esta revista<br />

Como citar esta revista:<br />

<strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong>. São Leopoldo, v. <strong>17</strong>, set.-dez. 2008. ISSN 1678 6408 Disponível <strong>em</strong>:<br />

Acesso <strong>em</strong>: 30/12/2008<br />

Como citar um artigo desta revista:<br />

(Ex<strong>em</strong>plo)<br />

DANTAS, José Guibson. A importância do dinheiro nas práticas religiosas da Igreja da Graça.<br />

<strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong>. São Leopoldo, v. <strong>17</strong>, set.-dez. 2008, p. 57-73. ISSN 1678 6408. Disponível <strong>em</strong>:<br />

Acesso <strong>em</strong>: 30/12/2008.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 103

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!