11.01.2015 Views

O Conhecimento da Lógica e a Teoria da Definição Implícita

O Conhecimento da Lógica e a Teoria da Definição Implícita

O Conhecimento da Lógica e a Teoria da Definição Implícita

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

O <strong>Conhecimento</strong> <strong>da</strong> <strong>Lógica</strong> e a <strong>Teoria</strong> <strong>da</strong> <strong>Definição</strong> <strong>Implícita</strong><br />

Célia Teixeira<br />

A Semântica do Papel Conceptual ou a <strong>Teoria</strong> <strong>da</strong> <strong>Definição</strong> <strong>Implícita</strong> constituem<br />

as versões contemporâneas de revitalização do projecto empirista de explicar o<br />

conhecimento a priori, em geral, e o conhecimento <strong>da</strong> lógica, em particular,<br />

reduzindo-o ao mero conhecimento linguístico.<br />

A motivação por detrás de tais teorias consiste em fornecer uma explicação<br />

alternativa acerca do modo como o conhecimento a priori é possível sem postularem a<br />

existência <strong>da</strong> tão desacredita<strong>da</strong> intuição racional postula<strong>da</strong> pelos racionalistas.<br />

Segundo os racionalistas, possuímos uma capaci<strong>da</strong>de especial responsável pelo nosso<br />

conhecimento a priori, a que eles chamam de «intuição racional» ou «insight<br />

racional». A ideia é a de que do mesmo modo que sabemos que a relva é verde ou que<br />

a neve é branca através dos nossos sentidos sensoriais, sabemos que P ou não P (em<br />

que P é uma variável proposicional) ou que 2 + 2 = 4 através do nosso sentido<br />

racional. Contudo, apesar <strong>da</strong> sua plausibili<strong>da</strong>de inicial, nenhum racionalista conseguiu<br />

ain<strong>da</strong> fornecer uma teoria satisfatória que explique em que consiste tal capaci<strong>da</strong>de.<br />

Esta tem sido a grande crítica ao racionalismo e a grande motivação para o velho<br />

projecto empirista e para as suas novas versões, como é o caso <strong>da</strong> doutrina <strong>da</strong><br />

definição implícita.<br />

Não irei tentar uma defesa do racionalismo, apesar de julgar tratar-se <strong>da</strong> melhor<br />

explicação que temos a favor do conhecimento a priori em geral e do conhecimento<br />

<strong>da</strong> lógica em particular. Irei apenas tentar mostrar aquilo que julgo estar errado com a<br />

doutrina <strong>da</strong> <strong>Definição</strong> <strong>Implícita</strong>. Irei argumentar que existem dois tipos de problemas<br />

que a teoria enfrenta: (i) um problema menor acerca <strong>da</strong> aplicabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> teoria; e (ii)<br />

um problema maior acerca do projecto reducionista no seu todo.<br />

Comecemos então com uma breve exposição acerca do que constitui a teoria <strong>da</strong><br />

definição implícita.<br />

A teoria <strong>da</strong> definição implícita


Como disse, esta teoria funciona como um projecto reducionista do conhecimento<br />

a priori. Mas ain<strong>da</strong> não expliquei que tipo de redução está em causa. Comecemos<br />

então por aí.<br />

Tanto os velhos empiristas como os actuais, não negam a existência de uma forma<br />

diferente de conhecimento, que o modo como conhecemos que a relva é verde é<br />

distinta do modo como conhecemos que chove ou não chove. Mas como explicar esta<br />

diferença sem postularmos a existência de uma capaci<strong>da</strong>de, distinta dos sentidos<br />

sensoriais, responsável pelo nosso conhecimento a priori Reduzindo-o a algo menos<br />

substancial e mais fácil de aceitar: o conhecimento linguístico. Ninguém pode<br />

coerentemente negar que conhecemos factos linguísticos, i.e., factos acerca do<br />

significado ou do modo como fixamos o significado de certas palavras. O<br />

conhecimento <strong>da</strong> lógica, argumentam os empiristas, é apenas um caso particular de<br />

conhecimento linguístico. Visto que eles definem ver<strong>da</strong>des analíticas como aquelas<br />

cujo o mero conhecimento do seu significado justifica-nos em tomá-las como<br />

ver<strong>da</strong>deiras, então o conhecimento a priori é conhecimento de ver<strong>da</strong>des analíticas. Por<br />

este motivo, certos filósofos apeli<strong>da</strong>m estas doutrinas de teorias analíticas do<br />

conhecimento a priori. 1<br />

Note-se contudo que, apesar desta redução na explicação do conhecimento a<br />

priori, <strong>da</strong>í não se segue que as ver<strong>da</strong>des a priori sejam ver<strong>da</strong>des linguísticas. Como<br />

Boghossian mostra no seu artigo «Analyticity», as teorias analíticas do conhecimento<br />

a priori não implicam o não-factualismo, i.e., não implicam que as frases analíticas<br />

não sejam acerca de algo extra-linguístico.<br />

Mas como funciona este passo reducionista na explicação do nosso conhecimento<br />

a priori <strong>da</strong> lógica<br />

Boghossian caracteriza a teoria <strong>da</strong> definição implícita deste modo:<br />

<strong>Definição</strong> <strong>Implícita</strong>: É via estipulação arbitrária para tomar certas frases <strong>da</strong> lógica como<br />

ver<strong>da</strong>deiras, ou certas inferências como váli<strong>da</strong>s, que atribuímos um significado às constantes<br />

1 Existe uma longa discussão sobre que tipo de noção de analitici<strong>da</strong>de está em causa no projecto<br />

emp irista. Paul Boghossian (1997) mostrou que a noção usa<strong>da</strong> pelos primeiros empiristas, a que ele<br />

chama de analitici<strong>da</strong>de-metafísica, é incoerente. Contudo, ele revitaliza o projecto empirista recorrendo<br />

a uma outra noção de analitici<strong>da</strong>de a que ele chama de analitici<strong>da</strong>de-epistemológica. Para evitar<br />

2


lógicas. Mais especificamente, uma constante particular significa aquele objecto lógico, se algum,<br />

que tornará váli<strong>da</strong>s um conjunto específico de frases e/ou inferências que a contenham. 2<br />

De acordo com a teoria <strong>da</strong> <strong>Definição</strong> <strong>Implícita</strong>, as palavras lógicas adquirem o seu<br />

significado em virtude de participarem em certas inferências ou frases que tomamos<br />

como váli<strong>da</strong>s ou ver<strong>da</strong>deiras. Isto pode ser ilustrado do seguinte modo. Tome-se a<br />

seguinte inferência:<br />

(MPP)<br />

Se A, então B<br />

A<br />

Logo, B<br />

É em virtude de tomarmos (MPP) como válido que ‘Se, então’ tem o significado<br />

que tem. Nomea<strong>da</strong>mente, a condicional significa o que quer que seja (se significa<br />

alguma coisa) que torna MPP válido. Mas como funciona isto para explicar o nosso<br />

conhecimento a priori <strong>da</strong> lógica Uma vez que estipulamos que a condicional<br />

significa o que quer que seja que efectivamente torna esta inferência váli<strong>da</strong>, então<br />

sabemos a priori, i.e., independentemente de qualquer experiência empírica, que esta<br />

inferência é váli<strong>da</strong>, <strong>da</strong>do que este é o modo como fixamos o significado <strong>da</strong> expressão<br />

lógica, ‘se, então’. E o mesmo acontece no caso <strong>da</strong>s outras constantes lógicas. Deste<br />

modo, dizemos que certas inferências (as constitutivas do significado) definem<br />

implicitamente o significado <strong>da</strong>s nossas constantes lógicas.<br />

Boghossian 3 apresenta o seguinte argumento que procura mostrar com detalhe o<br />

modo como a doutrina <strong>da</strong> definição implícita funciona para justificar o nosso<br />

conhecimento <strong>da</strong> lógica:<br />

(1) Se, ‘se, então’ tem o significado que tem, então a inferência (MPP) tem de ser váli<strong>da</strong>, pois ‘se,<br />

então’ significa o que quer que seja que de facto torna a inferência váli<strong>da</strong>.<br />

confusões desnecessárias irei apenas usar a noção epistemológica de anatici<strong>da</strong>de, mesmo quando me<br />

refiro ao velho projecto empirista, uma vez que em qualquer dos casos o projecto falha.<br />

2 Boghossian (1997), pp. 348.<br />

3 Boghossian (1997), pp.357.<br />

3


(2) ‘se, então’ tem o significado que tem.<br />

Logo,<br />

(3) A inferência (MPP) é váli<strong>da</strong>.<br />

Saber (1) e (2) é saber o que ‘se, então’ significa. E (3) claramente se segue de (1)<br />

e (2). Logo, o mero conhecimento do significado é suficiente para nos justificar a<br />

acreditar na vali<strong>da</strong>de de (MPP) sem que seja necessário recorrermos à experiência<br />

empírica. Deste modo, argumentam eles, o nosso conhecimento <strong>da</strong> lógica pode ser<br />

analítico no sentido epistemológico requerido, e logo, a priori.<br />

Podemos assim reconhecer dois grandes objectivos que a teoria <strong>da</strong> definição<br />

implícita pretende atingir: um semântico e um epistemológico. Com isto em mente,<br />

irei tentar responder às seguintes duas questões:<br />

(1) Será que a <strong>Teoria</strong> <strong>da</strong> <strong>Definição</strong> <strong>Implícita</strong> explica como é que as constantes lógicas<br />

adquirem o significado que têm<br />

(2) Será que a teoria <strong>da</strong> <strong>Definição</strong> <strong>Implícita</strong> explica o nosso conhecimento a priori <strong>da</strong><br />

lógica<br />

Dois problemas<br />

O problema <strong>da</strong> ignorância<br />

O problema <strong>da</strong> ignorância é o de que se o que pretendemos explicar com o modelo<br />

epistémico fornecido pela teoria é em que consiste o nosso conhecimento <strong>da</strong> lógica,<br />

então, aparentemente, só podemos usá-lo para explicar o conhecimento <strong>da</strong> lógica de<br />

alguns filósofos. Conhecer a premissa (1) do modelo epistémico de Boghossian é<br />

simplesmente demasiado sofisticado para ser usado como explicação <strong>da</strong> justificação a<br />

priori do conhecimento <strong>da</strong> lógica por não filósofos. Mas se este for o caso, então a<br />

nossa explicação é demasiado fraca, uma vez que o nosso objectivo é o de explicar em<br />

que consiste o conhecimento <strong>da</strong> lógica simpliciter e não o de explicar em que cons iste<br />

o conhecimento <strong>da</strong> lógica de pessoas como o Boghossian.<br />

4


O próprio Boghossian 4 responde a esta objecção argumentando que podemos estar<br />

justificados em acreditar em algo apesar de não termos a capaci<strong>da</strong>de de articular a<br />

justificação em causa. E de facto, isto é o que acontece na maior parte <strong>da</strong>s vezes. Nós<br />

somos simplesmente incapazes de justificar como conhecemos as muitas coisas que<br />

sabemos. Se permitirmos a distinção introduzi<strong>da</strong> por Tyler Burge entre legitimação e<br />

justificação 5 , podemos resolver facilmente o problema. A legitimação é um requisito<br />

mais fraco para o conhecimento do que a justificação. Se uma pessoa está justifica<strong>da</strong><br />

em acreditar numa certa proposição, então essa pessoa está legitima<strong>da</strong> em acreditar<br />

nela. A justificação implica a legitimação, mas a legitimação não implica a<br />

justificação. Temos então os seguintes dois tipos de fun<strong>da</strong>mento para o conhecimento:<br />

• Uma pessoa está apenas legitima<strong>da</strong> em acreditar numa certa proposição se,<br />

e só se, existe uma justificação para a sua crença, mas ela não é capaz de a<br />

articular, quer seja porque nunca pensou nisso, quer seja porque não tem a<br />

capaci<strong>da</strong>de para o fazer.<br />

• Uma pessoa está justifica<strong>da</strong> em acreditar numa certa proposição se, e só<br />

se, essa pessoa é capaz de articular as razões que sustentam a sua crença.<br />

Ao aplicarmos esta distinção ao caso <strong>da</strong> lógica, podemos dizer que todos nós<br />

estamos legitimados em acreditar nas ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> lógica e na vali<strong>da</strong>de de certas<br />

inferências, mas apenas alguns de nós estão justificados no sentido estrito descrito.<br />

Não estou totalmente convenci<strong>da</strong> que esta explicação funcione. As legitimações e<br />

as justificações são tipos de fun<strong>da</strong>mentos ou razões, e tipos de fun<strong>da</strong>mentos ou razões<br />

são aquilo que é a priori ou a posteriori. Tomemos o seguinte exemplo. Imaginemos<br />

uma pessoa, a que chamaremos «Júlio», que sabe que está uma mesa à sua frente, mas<br />

que não sabe como justificar essa crença. Queremos dizer que, nesse caso, Júlio está<br />

legitimado a posteriori em acreditar que está uma mesa à frente dele porque ele vê<br />

uma mesa à sua frente e não há na<strong>da</strong> de errado com a sua percepção. A justificação<br />

que legitima Júlio à sua crença de que está uma mesa à sua frente é tal que depende <strong>da</strong><br />

sua capaci<strong>da</strong>de cognitiva de visão. E ela mostra por que razão o Júlio está a posteriori<br />

4 Ibidem.<br />

5


legitimado em acreditar que está uma mesa à sua frente. A justificação, de modo a ser<br />

correcta, tem de mostrar qual a capaci<strong>da</strong>de cognitiva exerci<strong>da</strong> por Júlio responsável<br />

pelo seu conhecimento. Uma justificação tem de mostrar como os agentes cognitivos<br />

conhecem as coisas que conhecem, e para isso tem de os relacionar com as<br />

capaci<strong>da</strong>des exerci<strong>da</strong>s. Para tornar isto mais claro imagine-se agora que o Júlio,<br />

ansioso por conhecimento, aprende que o último teorema de Fermat é ver<strong>da</strong>deiro.<br />

Como conhece Júlio tal coisa Júlio não está à altura de compreender a demonstração<br />

de Andrew Wiles, e assim, ao contrário de Wiles, ele não tem um conhecimento a<br />

priori dessa demonstração. Ele sabe que o último teorema de Fermat é ver<strong>da</strong>deiro por<br />

testemunho. E saber por testemunho é saber via experiência empírica, sem recorrer ao<br />

mero pensamento, e logo, a posteriori. O que isto significa é que a justificação que<br />

autoriza Júlio à sua crença de que o último Teorema de Fermat é ver<strong>da</strong>deiro é<br />

diferente <strong>da</strong> que autoriza e justifica Wiles, uma vez que eles exerceram diferentes<br />

capaci<strong>da</strong>des na construção <strong>da</strong> mesma crença tipo: O Wiles exerceu a capaci<strong>da</strong>de de<br />

raciocínio, o Júlio a de audição e visão. Podemos assim extrair o seguinte princípio<br />

geral de justificação:<br />

Princípio geral de justificação: Uma justificação para ser adequa<strong>da</strong> para explicar<br />

o conhecimento de um agente cognitivo particular deve ser tal que relacione, explícita<br />

ou implicitamente, o agente cognitivo com a capaci<strong>da</strong>de cognitiva exerci<strong>da</strong> na<br />

obtenção desta.<br />

Vejamos agora a justificação de Boghossian para o nosso conhecimento <strong>da</strong> lógica.<br />

De acordo com o nosso princípio geral de justificação, para esta justificação ser<br />

adequa<strong>da</strong>, ela tem de algum modo explicar qual a capaci<strong>da</strong>de cognitiva que legitima a<br />

nossa crença de que o MPP é válido. No caso de como o Boghossian conhece a<br />

lógica, o modelo de explicação por ele fornecido revela-se adequado: ele sabe pelo<br />

mero pensamento, a priori, que o MPP é adequado e a justificação é obviamente<br />

acessível às suas capaci<strong>da</strong>des cognitivas. E no caso do Júlio A premissa (1) do<br />

modelo do Boghossian é demasiado complexa para o Júlio a compreender, e logo ela<br />

5 Burge (1993).<br />

6


é tal que não é acessível às suas capaci<strong>da</strong>des cognitivas. Mas o Júlio sabe muitas<br />

ver<strong>da</strong>des lógicas. Ele sabe, por exemplo, que P ou não P. E sabe-o a priori. O mesmo<br />

acontece no caso <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong>s crianças. As crianças não têm a capaci<strong>da</strong>de para<br />

compreender a premissa (1) do modelo de Boghossian. Mas a maior parte delas<br />

também sabe a priori que ou chove ou não chove. Mas se as crianças não têm a<br />

capaci<strong>da</strong>de para compreender o modelo de Boghossian é porque ele não é acessível às<br />

suas capaci<strong>da</strong>des cognitivas. Logo, pelo nosso princípio geral de justificação, o<br />

modelo epistémico de Boghossian é inadequado como justificação <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong><br />

crenças lógicas <strong>da</strong>s pessoas ignorantes.<br />

Uma possível contra-réplica à minha réplica é a de que basta que o modelo seja<br />

acessível a pelo menos uma pessoa, que ele possa ser conhecido por pelo menos uma<br />

pessoa, para que a explicação suce<strong>da</strong> em explicar o nosso conhecimento a priori <strong>da</strong><br />

lógica. A ideia é a seguinte. O modelo de explicação <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> lógica que a<br />

teoria <strong>da</strong> definição implícita descreve é similar àquele que é usado por Kripke quando<br />

ele fornece o exemplo do metro padrão de Paris como um caso de uma ver<strong>da</strong>de<br />

contingente conheci<strong>da</strong> a priori. Sucintamente, o exemplo do metro padrão é o<br />

seguinte. Imagine-se a cerimónia em que se estipula que uma certa barra em Paris tem<br />

um metro. A pessoa que faz a estipulação ou o baptismo sabe a priori que aquela barra<br />

tem um metro de comprimento. E portanto ela sabe a priori que a frase «esta barra tem<br />

um metro de comprimento» é ver<strong>da</strong>deira. Contudo, as restantes pessoas, só sabem por<br />

testemunho, através <strong>da</strong> experiência, que a barra tem um metro. Ou seja, tirando aquela<br />

pessoa que introduziu o termo «metro» através <strong>da</strong> dita convenção, as restantes pessoas<br />

apenas sabem a posteriori que a barra tem um metro. Mas basta que um membro <strong>da</strong><br />

nossa comuni<strong>da</strong>de saiba a priori que a barra tem um metro para que isso conte como<br />

uma instância de conhecimento a priori. E é só isto que queremos para o caso <strong>da</strong><br />

lógica.<br />

Não julgo que esta contra-réplica seja satisfatória. Nomea<strong>da</strong>mente porque, se a<br />

analogia com o caso do metro padrão de Paris for correctamente transferi<strong>da</strong> para o<br />

nosso caso, então ficamos sem saber como é que certas pessoas antes de Boghossian,<br />

antes de alguém ter vindo com este tipo de explicação, conheciam as ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

lógica. Mas certamente que não queremos negar que Frege conhecia as ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

lógica, e a priori. Logo, o modelo <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> definição implícita não é correcta.<br />

7


O principal problema: estipulações<br />

As estipulações parecem ser uma activi<strong>da</strong>de comum em to<strong>da</strong>s as comuni<strong>da</strong>des<br />

linguísticas. Podemos estipular que a palavra «metro» refere uma certa barra em Paris,<br />

que o nosso cão se chama «Putchy», que a neve se chama «neve», etc. E neste<br />

processo de baptismo também estipulamos que certas frases são ver<strong>da</strong>deiras.<br />

Nomea<strong>da</strong>mente, aquelas frases em que uma <strong>da</strong>s palavras constituintes é a palavra<br />

introduzi<strong>da</strong> durante o processo de baptismo. Por exemplo, estipular que o meu cão se<br />

vai chamar Putchy é estipular que a frase «O meu cão é o Putchy» é ver<strong>da</strong>deira ⎯ e<br />

esta frase é por mim conheci<strong>da</strong> a priori. Não há na<strong>da</strong> de errado com este tipo de<br />

estipulações: nós de facto imperamos sobre a linguagem.<br />

Mas será que imperamos sobre a ver<strong>da</strong>de Para além dos casos triviais de<br />

baptismo, é difícil ver como isto poderá acontecer. O que faz uma frase ver<strong>da</strong>deira ou<br />

falsa é o mundo, e não podemos ordenar que o mundo seja de uma forma ou de outra.<br />

Mas podemos estipular que uma expressão vá buscar aquela coisa no mundo que torna<br />

uma certa frase ver<strong>da</strong>deira. Por exemplo, posso estipular que a palavra ‘blá’ irá<br />

significar o que quer que seja que torne a frase «2+2=blá» ver<strong>da</strong>deira. Neste caso<br />

sabemos que a palavra ‘blá’ apenas pode ir buscar o número 4. E assim podemos dizer<br />

que fomos bem sucedidos ao estipularmos a ver<strong>da</strong>de. Mas existem problemas com<br />

isto. Como sabemos que a palavra que man<strong>da</strong>mos ir ao mundo buscar aquela coisa<br />

que torna uma certa frase ver<strong>da</strong>deira foi bem sucedi<strong>da</strong> No caso de «blá» já sabíamos<br />

que ela iria apanhar a coisa certa. Mas como é que sabemos que a palavra «marciano»<br />

torna a frase «os marcianos são os seres vivos de Marte» ver<strong>da</strong>deira A não ser que<br />

tenhamos alguma forma independente de descobrir que a palavra apanha alguma coisa<br />

ou a coisa certa não podemos saber tal coisa. O que implica que no sentido não trivial<br />

implicado pelo modelo <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> definição implícita, não podemos estipular a<br />

ver<strong>da</strong>de nem a vali<strong>da</strong>de sem que de alguma forma tenhamos uma razão independente<br />

que suporte o sucesso <strong>da</strong> nossa estipulação. Ou seja, não podemos explicar o<br />

conhecimento através <strong>da</strong> estipulação uma vez que pressupomos este para explicar o<br />

sucesso desta.<br />

8


O Arthur Prior 6 introduziu um novo conectivo lógico, a que chamou «tonk» para<br />

ilustrar esta ideia. Se a vali<strong>da</strong>de fosse mero produto de estipulação, então poderíamos<br />

estipular que «tonk» irá significar o que quer que seja que torna as seguintes<br />

inferências váli<strong>da</strong>s:<br />

(TONK)<br />

A tonk B<br />

B<br />

A<br />

A tonk B<br />

Não existe, evidentemente, nenhum significado que «tonk» possa adquirir que<br />

torne estas inferências váli<strong>da</strong>s. Apesar de eu achar que as inferências (TONK)<br />

implicitamente definem o significado de tonk. Nomea<strong>da</strong>mente, «tonk» significa o que<br />

quer que seja que efectivamente torna estas inferências inváli<strong>da</strong>s. Deste modo, apesar<br />

de a teoria <strong>da</strong> definição implícita ser, talvez, bem sucedi<strong>da</strong> no seu objectivo semântico<br />

de explicar em virtude do que é que as constantes lógicas adquirem o significado que<br />

têm, ela falha no seu objectivo epistémico. A teoria <strong>da</strong> definição implícita baseia-se na<br />

ideia de que podemos estipular ver<strong>da</strong>de (ou vali<strong>da</strong>de) de modo a explicar o<br />

conhecimento do mesmo modo que o explicamos no caso do metro padrão de Paris ou<br />

nos casos normais de baptismo. Mas se não podemos estipular ver<strong>da</strong>de, também não<br />

podemos argumentar a favor do conhecimento por estipulação.<br />

O que isto significa é que a única forma de distinguir aqueles casos em que somos<br />

bem sucedidos nas nossas estipulações <strong>da</strong>queles em que não somos bem sucedidos,<br />

como no caso de «tonk», é quando já temos alguma justificação ou razão<br />

independente para acreditar no sucesso <strong>da</strong>s nossas estipulações. A forma como<br />

sabemos que não existe obviamente nenhum significado que «tonk» pode adquirir que<br />

torne as inferências (TONK) váli<strong>da</strong>s, é similar ao modo como sabemos que existe<br />

obviamente um significado que «se, então» pode ter que torne (MPP) válido. Mas se<br />

isto é o caso, então não é porque estipulamos o significado <strong>da</strong>s constantes lógicas para<br />

tornarem certas inferências váli<strong>da</strong>s, mas porque sabemos, independentemente <strong>da</strong><br />

estipulação, que essas inferências podem ou não ser váli<strong>da</strong>s. Mas se sabemos<br />

6 Prior (1960).<br />

9


independentemente <strong>da</strong> estipulação, então não sabemos por estipulação. E logo,<br />

podemos concluir que a teoria <strong>da</strong> definição implícita falha no seu objectivo<br />

epistemológico.<br />

Isto parece mostrar que existe algo de fun<strong>da</strong>mentalmente errado em qualquer<br />

projecto reducionista. O conhecimento de factos acerca do significado parece<br />

constituir um pré-requisito de todo o conhecimento proposicional, quer ele seja a<br />

priori ou a posteriori. Para sabermos que uma frase é ver<strong>da</strong>deira temos de saber duas<br />

coisas: (i) temos de saber o que ela diz, que é o mesmo que dizer que temos de saber o<br />

seu significado e (ii) temos de saber se aquilo que a frase diz é ver<strong>da</strong>de. Este é o<br />

significado-factos truísmo que o próprio Boghossian reconhece ser incoerente rejeitar.<br />

Mas reduzir o conhecimento de (ii) ao conhecimento de (i) é ain<strong>da</strong> assim uma rejeição<br />

do tão básico truísmo significado-factos. É ver<strong>da</strong>de que a teoria <strong>da</strong> definição implícita<br />

não implica o não-factualismo acerca <strong>da</strong> lógica, que não há na<strong>da</strong> no mundo<br />

responsável pela vali<strong>da</strong>de de certas inferências ou pela ver<strong>da</strong>de de certas frases. Mas<br />

dizer que não precisamos saber isso, que é suficiente saber um certo tipo de facto<br />

linguístico que nós estipulamos tornarem certas frases ver<strong>da</strong>deiras, parece apenas uma<br />

forma sofistica<strong>da</strong> de obscurecer o que pretendemos explicar.<br />

Para terminarmos, podemos reduzir a dialéctica reducionista deste modo. Em<br />

primeiro lugar eles argumentam que saber o significado de uma frase é suficiente para<br />

nos justificar a tomá-la como ver<strong>da</strong>deira. Depois perguntamos: Como é isso E a<br />

resposta é: porque estipulamos que é suficiente. E como sabemos que a estipulação é<br />

bem sucedi<strong>da</strong> Porque nos casos <strong>da</strong> lógica é evidente que o é. Mas assim, como Quine<br />

afirmou aquando <strong>da</strong>s suas críticas à primeira doutrina reducionista:<br />

[...] agora não parece implicar na<strong>da</strong> que já não esteja implicado pelo facto de a lógica<br />

elementar ser óbvia ou poder ser estabeleci<strong>da</strong> através de passos óbvios. 7<br />

Bibliografia:<br />

7 Quine (1954), pp.12.<br />

10


Boghossian, P. (1997) «Analyticity» in Hale, B. & Wright, C., Blackwell Companion<br />

to the Philosophy of Language. Oxford: Blackwell.<br />

Burge, T. (1993) «Content Preservation» in The Philosophical Review, October 1993.<br />

Quine, W. V. (1954) «Carnap and Logical Truth» in The Ways of Paradox and Other<br />

Essays. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.<br />

Prior, A. N. (1960): «The Runabout Inference-Ticket» in Irving M Copi & James A.<br />

Gould (1964), pp. 217-218.<br />

11

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!