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Tempo, Trabalho e Gênero - Instituto de Economia da UFRJ

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<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero<br />

Claudio Salvadori De<strong>de</strong>cca *<br />

Este ensaio trata <strong>de</strong> um tema ain<strong>da</strong> pouco explorado na literatura sobre trabalho e proteção<br />

social: o uso do tempo no capitalismo. Apesar <strong>da</strong> maior <strong>da</strong> difusão recente <strong>de</strong> estudos, são<br />

gran<strong>de</strong>s as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> empreendê-los em razão <strong>da</strong> disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> escassa <strong>de</strong><br />

informações sobre o tema.<br />

Mais recentemente, diversos países começaram a implementar levantamentos estatísticos<br />

com o objetivo <strong>de</strong> caracterizar o uso do tempo por suas populações. São exemplos, os<br />

países <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> Européia, Estados Unidos e Canadá. O Brasil, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2001, passou a<br />

contar com alguma informação sobre o assunto, em razão <strong>da</strong> Pesquisa Nacional por<br />

Amostra <strong>de</strong> Domicílio - Pnad-Ibge ter introduzido alguns quesitos sobre a realização e<br />

tempo <strong>de</strong>spendido com afazeres domésticos.<br />

O acesso a esse tipo <strong>de</strong> informação abre a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> confrontar o uso do tempo, ao<br />

menos, em duas dimensões: para reprodução econômica e para reprodução social. O tempo<br />

para reprodução econômica envolve aquele <strong>de</strong>stinado ao trabalho remunerado e o gasto<br />

com <strong>de</strong>slocamento para sua realização. O tempo para reprodução familiar e social<br />

incorpora, ao menos, as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> organização domiciliar, <strong>de</strong> lazer e <strong>de</strong> sono. Ambos os<br />

tempos são recorrentemente transformados pelas mu<strong>da</strong>nças econômicas, sociais e culturais.<br />

A regulação <strong>de</strong> seu uso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>s instituições<br />

políticas e culturais. Elas regulam sua duração e a articulação entre ambos. Não há<br />

naturali<strong>da</strong><strong>de</strong> na alocação <strong>de</strong> seu uso. Portanto, as pessoas realizam a alocação <strong>de</strong> seu tempo<br />

sob constrangimento social, tendo pouca ou relativa autonomia <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão sobre esse<br />

processo.<br />

Este ensaio discute a questão do uso do tempo no capitalismo. Em segui<strong>da</strong> trata do tema no<br />

capitalismo <strong>de</strong>senvolvido. Explora, a partir <strong>de</strong>ssa abor<strong>da</strong>gem, as implicações <strong>da</strong> regulação<br />

sobre o uso do tempo para a <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> social. E finalmente analisa o tema na socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

brasileira. Incorpora para análise a abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> gênero, por ela ocupar papel central na<br />

gestão do uso do tempo na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista.<br />

* Professor do <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> <strong>Economia</strong> <strong>da</strong> Unicamp (c<strong>de</strong><strong>de</strong>cca@eco.unicamp.br).


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 2<br />

Seu objetivo é mo<strong>de</strong>sto: preten<strong>de</strong> somente apresentar uma primeira abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> questão<br />

para nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> social. Seus resultados voltam-se mais para uma reflexão sobre o<br />

problema do uso do tempo e menos para conclusões <strong>de</strong>finitivas. Espera-se que esse esforço<br />

auxilie na reflexão sobre <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças econômicas e sociais atuais e suas implicações para<br />

a reprodução social. Enten<strong>da</strong>-se, portanto, como somente um primeiro esforço, amplamente<br />

exposto à crítica.<br />

1. Recuperando, ao menos, três características do trabalho no capitalismo<br />

O trabalho em si não diferencia o capitalismo <strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> organização sócioeconômica<br />

conheci<strong>da</strong>s na história <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. O <strong>de</strong>senvolvimento humano<br />

esteve sempre estreitamente associado ao trabalho, nele encontrando reitera<strong>da</strong>mente seus<br />

fun<strong>da</strong>mentos econômico, social, ético e, em certos casos, religioso. Entretanto, três<br />

características, ao menos, do trabalho no capitalismo lhe diferenciam <strong>da</strong>s formas pretéritas<br />

<strong>de</strong> organização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna.<br />

A primeira <strong>de</strong>las é a nova compulsorie<strong>da</strong><strong>de</strong> cria<strong>da</strong> pelo capitalismo através do trabalho. A<br />

submissão do trabalho através <strong>da</strong> violência ou do controle do acesso à terra caracterizaram<br />

muitas <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s pretéritas. No capitalismo essa submissão se faz pela monetização do<br />

consumo que, na ausência <strong>da</strong> possa <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>/patrimônio, obriga a população à ven<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> força <strong>de</strong> trabalho. A proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista dá aos seus <strong>de</strong>tentores a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sobreviverem sem ven<strong>de</strong>r trabalho e, a<strong>de</strong>mais, a autonomia <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem não compra<br />

trabalho.<br />

Ao contrário, aos não <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>/patrimônio a ven<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho se constitui<br />

uma obrigatorie<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois é através <strong>de</strong>la que se viabiliza a própria sobrevivência. Para<br />

esses, a ausência <strong>de</strong> compradores <strong>de</strong> sua força <strong>de</strong> trabalho inviabiliza a própria<br />

sobrevivência imediata, ao comprometer o fluxo <strong>de</strong> moe<strong>da</strong> necessário para a realização do<br />

consumo básico. É nesse sentido que se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> uma nova compulsorie<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

trabalho no capitalismo, não mais expressa na violência ou na posse <strong>da</strong> terra, mas na<br />

obrigatorie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> <strong>de</strong> força <strong>de</strong> trabalho imposta pelo não acesso à<br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>/patrimônio, isto é capital, em uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que monetizou o consumo (Marx:<br />

1985).


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 3<br />

Para Rosseau, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o instante em que um homem sentiu necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> socorro <strong>de</strong> outro,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, <strong>de</strong>sapareceu a<br />

igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, introduziu-se a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, o trabalho tornou-se necessário e as vastas<br />

florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos<br />

homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as<br />

colheitas (Rosseau, 1978:265). Se o autor explora as raízes <strong>da</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong><br />

subordinação do trabalho na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, Poe retrata essa situação para Londres do<br />

Século XIX, já sob plena vigência <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista, quando <strong>de</strong>screve na tensão <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> urbana a situação <strong>de</strong> submissão do homem à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> (Poe: 1938).<br />

Se a obrigação ao trabalho se torna compulsória, obrigatória, outras questões aparecem<br />

quanto às condições que caracterizam sua apropriação na ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica. Aqui se<br />

explicita a segun<strong>da</strong> e a terceira especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s do trabalho no capitalismo.<br />

A segun<strong>da</strong> diz respeito ao processo <strong>de</strong> alocação do trabalho no processo <strong>de</strong> produção e suas<br />

implicações sobre o tempo <strong>de</strong> trabalho. Ao contrário <strong>da</strong>s formas sócio-econômicas<br />

pretéritas, o capitalismo organiza antecipa<strong>da</strong>mente a ocupação do trabalhador. A<strong>de</strong>mais, as<br />

condições em que se exerce a ocupação são revoluciona<strong>da</strong>s permanentemente, em razão <strong>da</strong>s<br />

mu<strong>da</strong>nças na base técnica e organizacional, permitindo que a recorrência do aumento <strong>da</strong><br />

produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> se transforme em uma alavanca portentosa para a acumulação <strong>de</strong> lucros e<br />

valorização <strong>da</strong> riqueza (Schumpeter: 1984). O aumento <strong>de</strong> produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> reflete o maior<br />

rendimento do trabalho em uma mesma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo, expressando, portanto, uma<br />

intensificação do ritmo que ele se realiza. A reiteração constante <strong>de</strong>sse processo se faz<br />

graças à transformação do conhecimento técnico em proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista, a partir do<br />

final do século XIX. Marx <strong>de</strong>nominou essa situação como subsunção real do trabalho ao<br />

capital (Marx, 1985). Chaplin construiu uma versão ironiza<strong>da</strong> <strong>da</strong> mesma em <strong>Tempo</strong>s<br />

Mo<strong>de</strong>rnos. Essa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do capitalismo <strong>de</strong> organizar trabalho, estabeleci<strong>da</strong> claramente<br />

na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX, <strong>de</strong>sproveu o trabalhador do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> controlar o tempo<br />

<strong>de</strong> trabalho, transferindo-o para a nova classe <strong>de</strong> homens responsáveis pela gerência e<br />

administração do processo produtivo.<br />

A capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do capitalismo em organizar o tempo <strong>de</strong> trabalho foi, também naquela época,<br />

potencializa<strong>da</strong> pela difusão <strong>da</strong> energia elétrica como força motriz do processo produtivo. A


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 4<br />

energia elétrica permitiu esten<strong>de</strong>r a jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho além <strong>da</strong> duração do período diurno<br />

regulado pelo sol e pelas estações do ano e, também, reduzir ain<strong>da</strong> mais a <strong>de</strong>pendência do<br />

processo produtiva <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> física <strong>da</strong> força <strong>de</strong> trabalho. O trabalho noturno passou a<br />

ser uma recorrência no capitalismo. Sob as or<strong>de</strong>ns capitalistas passou a se estabelecer o<br />

ritmo e a extensão do tempo <strong>de</strong> trabalho. A pressão sobre o trabalho, que havia sido ataca<strong>da</strong><br />

pelo movimento ludista <strong>de</strong> quebra <strong>de</strong> máquinas no início do Século XIX, passou a se fazer<br />

ain<strong>da</strong> mais intensa no final <strong>de</strong>sse século. A justificativa científica do processo foi<br />

apresenta<strong>da</strong> por Taylor em seu estudo sobre tempos e movimentos publicado em 1911<br />

(Taylor, 1976). A experiência com maior êxito foi organiza<strong>da</strong> por Ford em 1913, inspirado<br />

na linha <strong>de</strong> <strong>de</strong>smonte e <strong>de</strong>sossa <strong>de</strong> carne bovina que Swift havia organizado em Boston no<br />

final do Século XIX (Chandler: 1986: Capítulo1).<br />

É a partir <strong>da</strong> apropriação do trabalho e <strong>de</strong> seu tempo pelo capitalismo que se estabelece a<br />

terceira característica. Apesar <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do capitalismo em revolucionar as<br />

condições <strong>de</strong> trabalho, ele não foi, e continua não sendo, capaz <strong>de</strong> eliminar a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um tempo necessário para a reprodução social, física e mental dos homens e mulheres. O<br />

aumento <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> extensão <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho esbarra na exigência <strong>de</strong> um<br />

período <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso, a ser realizado <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s 24 horas <strong>de</strong> duração do dia. Aqui também<br />

aparece uma outra limitação <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transformação do capitalismo. Apesar <strong>de</strong>le<br />

ter <strong>de</strong>svinculado a duração <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho <strong>da</strong>s condições naturais que caracterizam<br />

o período diurno, ele não foi capaz <strong>de</strong> modificar a extensão do dia, continuando esse a durar<br />

24 horas. Justamente por esse motivo, o avanço <strong>da</strong> máquina capitalista criou, e continua<br />

criando, uma recorrente tensão na distribuição do tempo diário entre seu uso para a<br />

produção econômica e sua utilização para reprodução social, física e mental 1 . E não foi por<br />

1 Muitos autores referem-se ao tempo para reprodução social, física e mental como tempo doméstico, <strong>da</strong>ndo<br />

continui<strong>da</strong><strong>de</strong> ao enfoque encontrado nos ensaios <strong>de</strong> Marx. Apesar <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a controvérsia sobre o modo como<br />

o autor tratou a questão (Albarracin, 1999), parecer ser inquestionável que o <strong>de</strong>bate sobre o uso do tempo no<br />

capitalismo do Século XX não mais permite i<strong>de</strong>ntificar o tempo não criador <strong>de</strong> valores <strong>de</strong> troca como tempo<br />

doméstico. O papel cumprido na reprodução social no âmbito <strong>da</strong>s famílias-domicílios articula-se com o tempo<br />

econômico para o processo <strong>de</strong> acumulação capitalista. Um não se processa sem o outro, causando<br />

sistematicamente pressão sobre o tempo livre <strong>da</strong> população. Como bem afirma Maria Bethânia Ávila, a<br />

dicotomia, do ponto <strong>de</strong> vista analítico, , entre produção e reprodução, leva a uma visão que consi<strong>de</strong>ra<br />

indireta a exploração do trabalho doméstico, ou a consi<strong>de</strong>ra apenas como um substrato <strong>da</strong>s relações na<br />

esfera <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong> trabalho (Ávila, 2002). A posição <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> nesse ensaio é que se trate o tempo do<br />

chamado trabalho doméstico como tempo para reprodução social, entendo-o como fun<strong>da</strong>mental para resolver<br />

alguns problemas <strong>da</strong> acumulação capitalista que não se equacionam no sistema generalizado <strong>de</strong> trocas<br />

realiza<strong>da</strong>s através <strong>da</strong> moe<strong>da</strong>.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 5<br />

outro motivo que a primeira gran<strong>de</strong> ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> luta do movimento operário tenha sido a<br />

limitação <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> diária <strong>de</strong> trabalho, simboliza<strong>da</strong> politicamente na história do<br />

enforcamento <strong>de</strong> 5 operários na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Chicago em 1º <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1886.<br />

O controle <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> diária <strong>de</strong> trabalho apareceu como a primeira regulamentação pública<br />

sobre as condições <strong>de</strong> trabalho. Na Inglaterra em 1947 e na França no ano seguinte, com a<br />

regulamentação <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> diária máxima <strong>de</strong> 10 horas.<br />

A centrali<strong>da</strong><strong>de</strong> do tema po<strong>de</strong> ser constata<strong>da</strong> quando se analisa as primeiras Convenções<br />

Internacionais do <strong>Trabalho</strong> estabeleci<strong>da</strong>s pela Organização Internacional do <strong>Trabalho</strong>. O<br />

tema é objeto <strong>da</strong> 1ª e <strong>da</strong> 14ª Convenções Internacionais do <strong>Trabalho</strong>, estabeleci<strong>da</strong>s em<br />

1919 e 1921. Na 1ª Convenção encontram-se estabeleci<strong>da</strong>s as jorna<strong>da</strong>s diária e semanal <strong>de</strong><br />

trabalho máximas <strong>de</strong> 8 e 48 horas, respectivamente. Na 14ª Convenção afirma-se o direito<br />

do <strong>de</strong>scanso semanal, o qual <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>sfrutado, em especial, nos dias consagrados nos<br />

costumes e tradições nacionais e por todos os empregados <strong>da</strong> empresa. A preocupação em<br />

limitar o tempo <strong>de</strong> trabalho aparece na origem dos instrumentos <strong>de</strong> regulação do trabalho<br />

tanto na esfera <strong>da</strong>s nações como no âmbito <strong>da</strong>s instituições internacionais.<br />

2. O tempo <strong>de</strong> trabalho no capitalismo<br />

A centrali<strong>da</strong><strong>de</strong> do tempo <strong>de</strong> trabalho na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista constitui-se em uma<br />

recorrência. Se em um primeiro momento, os instrumentos públicos <strong>de</strong> regulação voltaramse<br />

para a extensão <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> e o <strong>de</strong>scanso semanal, nota-se, posteriormente, uma ação<br />

sobre o funcionamento <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho com o objetivo <strong>de</strong> estabelecer, sempre que<br />

possível, sua recorrência no período diurno dos dias <strong>da</strong> semana, isto é, <strong>de</strong> segun<strong>da</strong> a sexta<br />

feiras. Esse movimento impôs, recorrentemente, restrições às jorna<strong>da</strong>s noturnas, em turno e<br />

nos finais <strong>de</strong> semana. Somente nas situações em que a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica<br />

era uma exigência social ou técnica, ficou garanti<strong>da</strong> a jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho em regimes<br />

excepcionais. São exemplos disso o trabalho contínuo nos hospitais e nas empresas <strong>de</strong><br />

distribuição <strong>de</strong> energia elétrica, por necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> social, e nas si<strong>de</strong>rurgias e petroquímicas,<br />

por imposição técnica. No Século XX, a história do trabalho até a déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 70 foi<br />

caracteriza<strong>da</strong> pela difusão <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> regulação e padronização <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

trabalho. Esses instrumentos foram construídos inicialmente na esfera pública do Estado e,


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 6<br />

após a Segun<strong>da</strong> Guerra, através dos contratos coletivos <strong>de</strong> trabalho. A regulação promovi<strong>da</strong><br />

em ambas dimensões se retro-alimentaram, provocando uma que<strong>da</strong> sistemática <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong><br />

anual <strong>de</strong> trabalho em diversos países, em especial nos <strong>de</strong>senvolvidos.<br />

A partir do início dos anos 80, esse movimento é rompido. O crescimento do <strong>de</strong>semprego é<br />

tomado como justificativa pelos governos para permitir uma flexibilização <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

trabalho e utilizado pelas empresas para pressionar os sindicatos para estabelecerem<br />

normas menos restritivas. A referência <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> padroniza<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho vai per<strong>de</strong>ndo<br />

importância e as jorna<strong>da</strong>s em regime excepcional vão ganhando relevância.<br />

A difusão <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho em regime excepcional é observa<strong>da</strong> com maior<br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> em países como os Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, França e Itália e com<br />

menor extensão na Alemanha, Áustria, Suécia e Holan<strong>da</strong>. Os setores <strong>de</strong> maior proliferação<br />

<strong>da</strong>s jorna<strong>da</strong>s em regime excepcional são o comércio varejista e a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> bancária,<br />

estimula<strong>da</strong>s pelo crescimento explosivo e generalizado dos shopping centers em todo o<br />

mundo. No caso do comércio varejista, são encontra<strong>da</strong>s situações <strong>de</strong> funcionamento <strong>de</strong><br />

lojas durante 24 horas por dia, em especial nos Estados Unidos. Essas situações alcançam<br />

inclusive setores como <strong>de</strong> ven<strong>da</strong> <strong>de</strong> material <strong>de</strong> construção. É possível comprar torneira ou<br />

cimento <strong>de</strong> madruga<strong>da</strong>.<br />

A ampliação <strong>da</strong>s jorna<strong>da</strong>s excepcionais <strong>de</strong> trabalho encontra respaldo na população, na<br />

medi<strong>da</strong> que o consumo conspícuo passou a ser vendido como lazer. Passear em shopping<br />

center se tornou recreação <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> semana, em uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que bombar<strong>de</strong>ia<br />

sistematicamente os indivíduos com lançamentos <strong>de</strong> novos produtos que geram novas<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s individuais ou familiares nem sempre fun<strong>da</strong>mentais. Também, o<br />

funcionamento <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em regimes excepcionais é a<strong>de</strong>quado para uma população<br />

que conhece uma ampliação do ritmo e <strong>da</strong> extensão <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho e que passa a ter<br />

o fim <strong>de</strong> semana como único momento para realizar suas compras.<br />

A flexibilização <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho encontra-se estreitamente associa<strong>da</strong> à consoli<strong>da</strong>ção<br />

<strong>da</strong> cultura do consumo individual e conspícuo difundi<strong>da</strong> no capitalismo central e periférico<br />

nesses últimos 20 anos. Um exemplo <strong>de</strong>ssa difusão é encontrado nas revistas semanais, cuja<br />

maior parte <strong>da</strong>s páginas são toma<strong>da</strong>s por propagan<strong>da</strong> ou matérias sobre o admirável mundo


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 7<br />

novo <strong>da</strong>s tecnológicas dos bens <strong>de</strong> consumo. A difusão <strong>de</strong>ssa cultura tem transformado<br />

ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e consumo em quase sinônimos.<br />

Esse movimento tem revolucionado o uso do tempo no capitalismo recente. A regulação <strong>da</strong><br />

jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho até os anos 70 <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> passa<strong>da</strong> visava a separação entre o tempo para<br />

a reprodução econômica e aquele para reprodução social. O principal objetivo <strong>da</strong>quele<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> regulação era limitar a extensão do tempo econômico sobre o tempo total <strong>da</strong>s<br />

pessoas e famílias. A compulsorie<strong>da</strong><strong>de</strong> do trabalho estabelecia uma relação <strong>de</strong>sigual entre<br />

trabalhadores e empresas, havendo necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> esfera pública restringir a extensão com<br />

que essas po<strong>de</strong>riam se apropriar do tempo disponível dos trabalhadores. Ao regular a<br />

extensão do tempo econômico garantiu-se tempo para reprodução social. Ao padronizar a<br />

jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong>finiu-se o regime do tempo <strong>da</strong>s pessoas e famílias para a reprodução<br />

econômica. A<strong>de</strong>mais, a padronização <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho permitiu a sincronização no<br />

uso do tempo para reprodução social no interior <strong>da</strong>s famílias e, também, nas políticas<br />

sociais.<br />

A padronização <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho diurna nos dias úteis foi fun<strong>da</strong>mental para a<br />

compatibili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre trabalho e vi<strong>da</strong> familiar, ao coincidir os horários <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong><br />

escola e <strong>de</strong> creche. A ampliação <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> em regime excepcional rompe essa<br />

compatibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. É completamente diferente o acesso à creche <strong>de</strong> uma mãe que trabalha <strong>da</strong>s<br />

8 às 17 horas <strong>de</strong> segun<strong>da</strong> a sexta feiras e <strong>de</strong> outra que trabalha <strong>da</strong>s 8 às 11 horas e <strong>da</strong>s 16 às<br />

22 horas <strong>de</strong> terça a sábado ou <strong>de</strong> quarta a domingo. Como a creche funciona em regime<br />

diurno <strong>de</strong> segun<strong>da</strong> a sexta-feira, fica estabelecido um problema para a segun<strong>da</strong> mãe aos<br />

sábados e domingos em relação ao cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> seu(s) filho(s). Essa situação é mais<br />

recorrente com o regime <strong>de</strong> horário escolar, restrito ao período <strong>de</strong> segun<strong>da</strong> a sexta ou<br />

sábado. Durante o período <strong>de</strong> aulas, os <strong>de</strong>scansos <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> mãe po<strong>de</strong>m jamais coincidir<br />

com aquele <strong>de</strong> seu(s) filho(s).<br />

Como bem notou Norbert Elias em seu conhecido estudo sobre o tempo, a palavra<br />

“tempo” é um símbolo <strong>de</strong> uma relação que um grupo humano (isto é, <strong>de</strong> seres vivos com a<br />

facul<strong>da</strong><strong>de</strong> biológica <strong>de</strong> se acor<strong>da</strong>r e sintetizar) estabelece entre dois ou mais processos,<br />

<strong>de</strong>ntre os quais um toma como quadro <strong>de</strong> referência ou medi<strong>da</strong> os <strong>de</strong>mais (Elias, 1989: 56).


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 8<br />

A regulação do tempo econômico, inclusive com sua tendência <strong>de</strong> redução no após-guerra,<br />

protegeu as <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> uso do tempo, ou melhor o tempo para a reprodução social.<br />

A contrário, no período recente os tempos econômico e social vão per<strong>de</strong>ndo sincronismo<br />

(Chiesi, 1989) e, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> condição pessoal ou individual, essa situação aparece,<br />

simbolicamente, para as pessoas, como dois relógios <strong>de</strong> ponto com regimes <strong>de</strong><br />

funcionamento distintos e não compatíveis. O aspecto mais preocupante aí inscrito, é a<br />

subordinação do tempo social ao tempo econômico garanti<strong>da</strong> pelo caráter compulsório<br />

do trabalho para a maioria <strong>da</strong> população.<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que a flexibilização <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho expressa o principal retrocesso <strong>da</strong><br />

regulação social sobre a máquina econômica do capitalismo, ao permitir novamente que a<br />

reprodução social se subordine aos <strong>de</strong>sígnios <strong>da</strong> acumulação <strong>de</strong> riqueza. Se o capitalismo se<br />

conforma como uma máquina em favor do progresso, como insistentemente afirmam seus<br />

<strong>de</strong>fensores mais ardorosos, ela somente se faz efetiva graças à capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do trabalho, ao<br />

garantir continui<strong>da</strong><strong>de</strong> e estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do processo produtivo, <strong>de</strong> transformar em recorrente o<br />

aumento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Isto é, é na forma específica – segun<strong>da</strong> característica – <strong>de</strong><br />

apropriação do trabalho que se fun<strong>da</strong> o capitalismo enquanto máquina <strong>de</strong> progresso.<br />

Se esta consi<strong>de</strong>ração é ética e socialmente legitima, é totalmente válido que se <strong>de</strong>fen<strong>da</strong> o<br />

controle do tempo econômico <strong>de</strong> trabalho como um dos instrumentos <strong>de</strong> apropriação social<br />

dos ganhos produzidos pelo capitalismo. Contudo, a trajetória recente do capitalismo refuta<br />

esta possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao ampliar o tempo econômico na medi<strong>da</strong> que este subordina os tempo<br />

para reprodução social.<br />

3. O uso do tempo nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s<br />

O movimento mencionado é claramente observado quando se analisa o uso do tempo em<br />

alguns países <strong>de</strong>senvolvidos. Segundo Multinational Time Use Study (MTUS), grupo <strong>de</strong><br />

pesquisadores <strong>de</strong> vários países, a tendência <strong>de</strong> que<strong>da</strong> do tempo econômico pago e não pago<br />

foi interrompi<strong>da</strong> na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> dos anos 80 2 (Fisher & Layte, 2002). A elevação do<br />

tempo econômico tem sido acompanha<strong>da</strong> por certa estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>quele para a organização<br />

2 Os <strong>da</strong>dos referem-se à levantamentos nacionais realizados nos países seguintes: Canadá, Dinamarca,<br />

Finlândia, Holan<strong>da</strong>, Noruega, Reino Unido e Estados Unidos.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 9<br />

familiar – <strong>de</strong>nominado pelos autores como tempo para uso pessoal – e, portanto, observa-se<br />

uma contração do tempo livre <strong>da</strong>s pessoas (Gráfico 1).<br />

100%<br />

Gráfico 1 - Uso do <strong>Tempo</strong><br />

90%<br />

80%<br />

70%<br />

60%<br />

50%<br />

40%<br />

30%<br />

20%<br />

10%<br />

0%<br />

1960-1970 1971-1977 1978-1982 1983-1989 1990-1995<br />

Pago Não Pago Pessoal <strong>Tempo</strong> Livre<br />

Fonte: K.Fisher & R.Layte - Measuring Work-Life Balance and Degree of Sociability, Working Paper 12, Essex: EPAG.<br />

Ao contrário do propalado pelos <strong>de</strong>fensores <strong>da</strong> teoria do tempo livre, a trajetória recente do<br />

capitalismo parece não estar produzindo uma redução do tempo econômico e, apesar <strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong> a parafernália eletroeletrônica que caracteriza os domicílios, tampouco <strong>da</strong>quele gasto<br />

para reprodução social na organização familiar.<br />

O menor tempo livre é observado para as mulheres e, em especial, para aquelas com filhos<br />

com até 15 anos. No caso dos homens, encontra-se um tempo econômico pago mais<br />

elevado e tempos não pagos e para organização familiar menos intensos. Situação inversa é<br />

encontra<strong>da</strong> para as mulheres. Essas possuem um tempo econômico pago menor, mas<br />

realizam jorna<strong>da</strong>s mais extensas <strong>de</strong> trabalho não pago e na organização familiar (Gráfico 2).


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 10<br />

Gráfico 2 - Uso do <strong>Tempo</strong> segundo Sexo e Status Familiar<br />

Mulheres<br />

Homens<br />

Com mais <strong>de</strong> 45 anos e sem<br />

filhos<br />

Com filhos <strong>de</strong> 5 a 15 anos<br />

Com filhos <strong>de</strong> menos <strong>de</strong> 5<br />

anos<br />

Menos <strong>de</strong> 45 anos sem filhos<br />

Total<br />

0% 20% 40% 60% 80% 100%<br />

Pago Não Pago Pessoal <strong>Tempo</strong> Livre<br />

Fonte: K.Fisher & R.Layte - Measuring Work-Life Balance and Degree of Sociability, Working Paper 12, Essex: EPAG.<br />

Essa situação é confirma<strong>da</strong> em outra pesquisa recente realiza<strong>da</strong> pela Eurostat, instituto<br />

responsável por levantamentos estatísticos nos países <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> Européia, que mostra<br />

a diferenciação do uso do tempo. As mulheres casa<strong>da</strong>s e com filhos entre 7 e 17 anos a<br />

apresentam tendência <strong>de</strong> realizar uma jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho total, isto é trabalho remunerado<br />

mais trabalho em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> organização domiciliar e familiar, mais eleva<strong>da</strong> que os<br />

homens em igual situação.<br />

É importante ressaltar que o uso mais elevado do tempo em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> reprodução social<br />

, neste caso, refere-se a um conjunto <strong>de</strong> países que mantém uma política social <strong>de</strong> caráter<br />

abrangente. Que garantem, na maioria <strong>da</strong>s situações, regime <strong>de</strong> horário integral nas escolas<br />

e creches para a população.<br />

Também, merece <strong>de</strong>staque o fato <strong>da</strong> recorrência <strong>de</strong> um tempo mais elevado <strong>de</strong> trabalho em<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> organização familiar para as mulheres em países com políticas sociais mais<br />

amplas e com a expectativa que, o maior grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, pu<strong>de</strong>sse estar<br />

acompanha<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma menor discriminação entre homens e mulheres no uso do tempo.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 11<br />

Gráfico 3 - Uso do <strong>Tempo</strong> no <strong>Trabalho</strong> e em Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cui<strong>da</strong>do Domiciliar e Familiar<br />

<strong>de</strong> Mulheres e Homens vivendo em Regime Conjugal e com Filhos <strong>de</strong> 7 a 17 anos<br />

Horas por dia<br />

10<br />

9<br />

8<br />

7<br />

6<br />

5<br />

4<br />

3<br />

2<br />

1<br />

0<br />

M H M H M H M H M H M H M H M H M H M H<br />

Belgica Dinamarca França Holan<strong>da</strong> Noruega Finlândia Suécia Reino<br />

Unido<br />

Romênia<br />

Hungria<br />

<strong>Trabalho</strong> mais tempo <strong>de</strong> locomoção<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>do domiciliar e familiar<br />

Fonte: Eurostat (2003) Time use at diferent stages of life, Luxembourg: Eurostat.<br />

4. Regulação do tempo e <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Esse fato sugere um aspecto complexo na <strong>de</strong>terminação do tempo econômico para as<br />

mulheres. Se é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que no caso dos países europeus o uso diferenciado do tempo entre<br />

homens e mulheres casados e com filhos se faz na presença <strong>de</strong> políticas sociais<br />

abrangentes, po<strong>de</strong>-se afirmar que a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> do uso do tempo econômico entre homens e<br />

mulheres acentuaria a diferenciação entre jorna<strong>da</strong>s totais <strong>de</strong> trabalho segundo sexo,<br />

colocando as mulheres em uma posição ain<strong>da</strong> mais <strong>de</strong>sfavorável. Em suma, é provável que<br />

para as mulheres, a elevação do tempo econômico po<strong>de</strong>rá significar redução do tempo livre,<br />

se manti<strong>da</strong>s as atuais condições <strong>de</strong> organização do uso diário do tempo.<br />

Neste sentido, o controle público sobre o tempo econômico é fun<strong>da</strong>mental para a menor<br />

diferenciação entre homens e mulheres no mercado <strong>de</strong> trabalho, entretanto este controle


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 12<br />

<strong>de</strong>ve levar em conta as <strong>de</strong>mais dimensões do uso do tempo, que, em geral, são<br />

<strong>de</strong>sfavoráveis às mulheres. Explicita-se a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> regulação sobre o uso do tempo<br />

na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista, ao se i<strong>de</strong>ntificar as limitações <strong>de</strong> uma regulação social que leve em<br />

conta somente o tempo econômico.<br />

Este é o maior problema encontrado na maioria dos estudos sobre jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho. Os<br />

argumentos favoráveis à sua flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, mesmo que com redução <strong>da</strong> sua extensão,<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ram as implicações <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças no uso <strong>de</strong> caráter econômico para as <strong>de</strong>mais<br />

formas <strong>de</strong> uso do tempo. Boa parte <strong>da</strong> literatura existente trata fun<strong>da</strong>mentalmente <strong>da</strong>s<br />

implicações <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> regulação <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho para a geração <strong>de</strong> emprego ou<br />

para a melhor utilização <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> produtiva, jamais fazendo menção <strong>de</strong> seus efeitos<br />

sobre as <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> utilização social do tempo. Desconsi<strong>de</strong>rando, em geral, a<br />

provável per<strong>da</strong> <strong>de</strong> sintonia entre os tempos econômico e para reprodução social.<br />

Anteriormente simboliza<strong>da</strong> pela existência dos dois relógios <strong>de</strong> ponto mantidos em regimes<br />

distintos.<br />

A discussão sobre <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho extrapola as esferas <strong>de</strong> regulação inscritas nos<br />

sistemas nacionais <strong>de</strong> relação <strong>de</strong> trabalho. Se restrita a essas, será tratado somente as<br />

mu<strong>da</strong>nças na gestão do tempo econômico, po<strong>de</strong>ndo ter resultados que constranjam suas<br />

<strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> uso. E, portanto, as medi<strong>da</strong>s que porventura sejam adota<strong>da</strong>s, po<strong>de</strong>m<br />

estabelecer uma redistribuição <strong>de</strong>sfavoravelmente dos frutos <strong>da</strong> maior produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> máquina <strong>de</strong> progresso capitalista. Um <strong>de</strong>bate mais justo sobre o tema tem que<br />

se <strong>da</strong>r no âmbito <strong>da</strong>s políticas sociais. Na primeira situação, alterações no uso do tempo<br />

econômico implicam em repartições na riqueza imediatamente gera<strong>da</strong> no processo<br />

produtivo. Na segun<strong>da</strong> situação, o rearranjo do uso global do tempo ten<strong>de</strong> a induzir<br />

modificações na distribuição social <strong>da</strong> riqueza. É possível, nesse caso, levar em<br />

consi<strong>de</strong>ração o tempo <strong>de</strong>stinado à reprodução social, que não é remunerado mas contribui<br />

extensa e intensivamente para a organização social e econômica do capitalismo, o qual tem<br />

no trabalho <strong>da</strong> mulher sua centrali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Essa preocupação ganha crescente importância em um contexto marcado por sinais <strong>de</strong><br />

elevação ou estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho (tempo econômico) nos países<br />

<strong>de</strong>senvolvidos e em <strong>de</strong>senvolvimento. São relevantes algumas informações sobre o tema


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 13<br />

para a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> economicamente do planeta, os Estados Unidos. Entre<br />

1985 e 1993, o país conheceu um incremento, no conjunto dos assalariados não-agrícolas,<br />

<strong>da</strong> participação dos trabalhadores com jorna<strong>da</strong> semanal <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> 49 horas ou mais <strong>de</strong><br />

13% para 18,5% (Rones et alli, 1997), tendo ele sido mais intenso entre as mulheres. Ao<br />

mesmo tempo, a National Survey of the Families and Households (1992-94) informa que o<br />

trabalho na organização doméstica correspondia, em média, a 36 horas por semana<br />

(Winkler, 2002). A ampliação dos empregos <strong>de</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho extensa se faz em uma<br />

situação marca<strong>da</strong> por um tempo <strong>de</strong> trabalho na organização familiar elevado, sinalizando<br />

que, à medi<strong>da</strong> que o dia continua tendo somente 24 horas, esteja ocorrendo uma redução do<br />

tempo livre. Essa situação é encontra<strong>da</strong> na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que convive com o padrão <strong>de</strong><br />

consumo mais <strong>de</strong>senvolvido e difundido <strong>da</strong> parafernália eletroeletrônica. Cuja existência<br />

tem fun<strong>da</strong>mentado os argumentos sobre a automação dos domicílios e aumento do tempo<br />

livre. É possível argumentar que, se tal parafernália tem algum papel positivo para o uso do<br />

tempo na organização domiciliar, ela volta-se para o controle <strong>de</strong>sse tempo, garantindo que a<br />

maior <strong>de</strong>stinação do tempo para as diversas formas <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica realiza<strong>da</strong> por<br />

aquela socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, não acentue a redução do tempo livre <strong>da</strong>s pessoas. Como afirma um<br />

excelente estudo sobre a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> americana, o tempo <strong>de</strong> trabalho <strong>da</strong>s pessoas é<br />

crescentemente constrangido em suas várias dimensões, a tal ponto que seria interessante a<br />

criação <strong>de</strong> mais um mês extra <strong>de</strong> trabalho (Schor, 1991: Capítulo 2).<br />

A intensificação e a ampliação do uso do tempo nas esferas econômica e familiar tem sido<br />

acompanha<strong>da</strong> por uma redução <strong>da</strong> participação do trabalho na ren<strong>da</strong> nacional nos países <strong>da</strong><br />

OECD. Apesar <strong>da</strong> maior apropriação econômica direta e indireta pelo capitalismo do tempo<br />

disponível <strong>da</strong>s populações nacionais, nota-se um retrocesso na distribuição funcional <strong>da</strong><br />

ren<strong>da</strong> nos países <strong>de</strong>senvolvidos. Isto é, amplia-se o tempo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>queles que<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do trabalho para sobreviver, mas se retroce<strong>de</strong> sua participação na distribuição <strong>de</strong><br />

riqueza gera<strong>da</strong> por essas nações.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 14<br />

Gráfico 4 - Participação <strong>da</strong> Ren<strong>da</strong> do <strong>Trabalho</strong> no Produto Interno Bruto<br />

80<br />

70<br />

60<br />

50<br />

40<br />

30<br />

20<br />

10<br />

0<br />

E. Unidos<br />

Cana<strong>da</strong><br />

Japão<br />

Alemanha<br />

France<br />

Itália<br />

Austrália<br />

Holan<strong>da</strong><br />

Bélgica<br />

Noruega<br />

1970 1980 1990<br />

Suécia<br />

Finlandia<br />

Fonte: Bentolila, S. & Saint-Paul, G. (2003) Explaining Movements in the Labor Share, Contributions to Macroeconomics, 3(1), Berkeley:<br />

Bepress.<br />

Po<strong>de</strong>ria se argumentar que a redução <strong>da</strong> participação <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> do trabalho tenha <strong>de</strong>corrido<br />

<strong>de</strong> um pior <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>ssas economias com que<strong>da</strong>s <strong>de</strong> produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. É indiscutível<br />

que, nos últimos 25, o capitalismo conheceu taxas mais baixas <strong>de</strong> crescimento e elevações<br />

menos intensas <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> nos países <strong>de</strong>senvolvidos. Contudo, o produto e a<br />

produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> mantiveram taxas médias <strong>de</strong> crescimento positivas, não po<strong>de</strong>ndo ser a ele<br />

imputa<strong>da</strong> a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> pelas mu<strong>da</strong>nças negativas na distribuição funcional <strong>da</strong> ren<strong>da</strong>.<br />

A única economia com <strong>de</strong>sempenho muito baixo <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, nos anos 80, foi a<br />

americana. To<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>mais tiverem aumentos médios <strong>de</strong> produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> iguais ou<br />

superiores a 2,5% a.a. (ver Gráfico 5). Este fato sinaliza uma repartição <strong>de</strong>sigual dos<br />

aumentos <strong>de</strong> produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> nessas economias, que explica a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> participação <strong>da</strong> ren<strong>da</strong><br />

do trabalho. A<strong>de</strong>mais, esse movimento se faz pela intensificação do trabalho direta ou<br />

indiretamente voltado para a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica, refletindo pressões crescentes sobre o<br />

tempo livre <strong>da</strong> população nessas economias.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 15<br />

Trabalha-se mais, mas os frutos do trabalho <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser apropriados pela população que<br />

o realiza. A<strong>de</strong>mais, essa população sofre crescente pressão sobre seu tempo disponível,<br />

subordinando-o às <strong>de</strong>terminações impostas pelo uso do tempo econômico. Portanto, a<br />

<strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> acaba por extrapolar o mercado <strong>de</strong> trabalho, entrando <strong>de</strong>ntro dos domicílios.<br />

25,0<br />

Gráfico 5 - Variação Média Anual <strong>da</strong> Produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> Hora<br />

20,0<br />

15,0<br />

10,0<br />

1960-70<br />

1970-80<br />

1980-90<br />

5,0<br />

0,0<br />

Estados Unidos<br />

Cana<strong>da</strong><br />

Japão<br />

Dinamarca<br />

França<br />

Repúbl. Fed. <strong>da</strong> Alemanha<br />

Itália<br />

Holan<strong>da</strong><br />

Noruega<br />

Suécia<br />

Fonte: Bureau of Labor Statistics, Foreign Labor Statistics. Elaboração própria.<br />

Reino Unido<br />

Bélgica<br />

Explicita-se, <strong>de</strong>sse modo, as razões para se tratar o uso do tempo <strong>de</strong> modo integrado,<br />

abandonando a perspectiva econômica <strong>de</strong> circunscrevê-lo à sua dimensão associa<strong>da</strong> à<br />

geração direta <strong>de</strong> valor. A maior produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> social, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

capitalismo <strong>de</strong> gerar e difundir recorrentemente inovações, impõe que a redistribuição <strong>da</strong><br />

riqueza extrapole o âmbito do processo produtivo, isto é sua repartição entre lucros e<br />

salários. É preciso que se leve em consi<strong>de</strong>ração a contribuição para a geração <strong>da</strong> riqueza


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 16<br />

<strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> uso do tempo, para que o seu processo <strong>de</strong> repartição não subordine,<br />

por um lado, o tempo para reprodução social e, por outro, não esmague o tempo livre na<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

As modificações na gestão do tempo econômico, observa<strong>da</strong>s nesses últimos 25 anos, têm<br />

subordinado e esmagado as <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> uso do tempo. A<strong>de</strong>mais, tem potencializado<br />

uma forma in<strong>de</strong>seja<strong>da</strong> socialmente <strong>de</strong> disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo: aquela vivi<strong>da</strong> por parcelas<br />

crescentes <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados. Enquanto, por um lado, parte <strong>da</strong> população sofre uma<br />

pressão crescente sobre o uso <strong>de</strong> seu tempo, encontra-se, por outro, uma outra que sofre<br />

uma ociosi<strong>da</strong><strong>de</strong> perversa <strong>de</strong> seu tempo.<br />

Concluindo-se essas observações, po<strong>de</strong>-se dizer que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> passa novamente a viver<br />

com uma distribuição <strong>de</strong>sigual que extrapola aquela <strong>da</strong> riqueza, estabelecendo-a em novas<br />

dimensões que a regulação social, até os anos 70 do século passado, havia<br />

progressivamente constrangido.<br />

O enfraquecimento <strong>da</strong> regulação social, traduzi<strong>da</strong> na corrosão sistemática <strong>da</strong>s políticas<br />

sociais <strong>de</strong> caráter universal, favorece a recomposição dos mecanismos <strong>de</strong> distribuição<br />

<strong>de</strong>sigual <strong>da</strong> riqueza na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista atual.<br />

5. O uso do tempo no Brasil<br />

O <strong>de</strong>bate sobre o tema no Brasil encontra-se, historicamente, incorporado aos estudos <strong>de</strong><br />

gênero, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 70. Na referência à dupla jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho aparecia a contradição<br />

entre o tempo econômico e o tempo para a reprodução social e a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong>ste como fonte <strong>de</strong><br />

criação <strong>de</strong> valor na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista. Dois estudos clássicos discutiram diretamente a<br />

questão (Ma<strong>de</strong>ira & Singer, 1973 e Saffioti, 1976). Contudo, uma abor<strong>da</strong>gem mais geral<br />

sobre o tema foi apresenta<strong>da</strong> no trabalho <strong>de</strong> Francisco <strong>de</strong> Oliveira (2003) publicado<br />

originalmente em 1975, quando o autor discutia a função do trabalho não remunerado para<br />

a acumulação capitalista no Brasil e na reiteração dos baixos salários 3 .<br />

3 Após quase trinta anos, o estudo foi publicado na forma <strong>de</strong> livro, apesar <strong>da</strong>s contribuições recorrentes do<br />

ensaio para o <strong>de</strong>bate sobre o <strong>de</strong>senvolvimento brasileiro durante todo esse período. Como forma <strong>de</strong> valorizar a<br />

publicação tardia do ensaio na forma <strong>de</strong> livro, agora complementa<strong>da</strong> por um outro gran<strong>de</strong> ensaio do autor<br />

sobre a situação atual do país e suas perspectivas, utilizamos edição recente nas referências <strong>de</strong>sse artigo.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 17<br />

Mesmo certos tipos <strong>de</strong> serviços estritamente pessoais, prestados diretamente ao<br />

consumidor e até <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s famílias, po<strong>de</strong>m revelar uma força disfarça<strong>da</strong> <strong>de</strong> exploração<br />

que reforça a acumulação. Serviços que, para serem prestados fora <strong>da</strong>s famílias, exigiriam<br />

infra-estrutura <strong>de</strong> que as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s não dispõem e, evi<strong>de</strong>ntemente, uma base <strong>de</strong> acumulação<br />

capitalística que não existe (Oliveira, 1975:58).<br />

Apesar <strong>de</strong> não discutir <strong>de</strong> maneira explicita a questão, os argumentos <strong>de</strong> Francisco Oliveira<br />

apontavam para a articulação do tempo consi<strong>de</strong>rado não econômico (ou não produtivo) ao<br />

tempo econômico. A<strong>de</strong>mais, mostrava como o primeiro cumpre uma um papel funcional ao<br />

segundo e, em conseqüência, para o processo <strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong> riqueza.<br />

O autor fazia referência ao uso do tempo em ambas dimensões para apontar a ocorrência <strong>de</strong><br />

um conjunto <strong>de</strong> trabalhos não remunerados que permitiram rebaixar o custo <strong>de</strong> reprodução<br />

<strong>da</strong> força <strong>de</strong> trabalho no processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento capitalista brasileiro do após 1930,<br />

caracterizado pela reprodução, e mesmo aprofun<strong>da</strong>mento, <strong>da</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> social. A<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> atendimento <strong>de</strong> algumas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s coletivas, como a construção <strong>da</strong><br />

habitação via o trabalho não remunerado estabelecido em uma jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho adicional<br />

àquela <strong>de</strong> caráter econômico, viabilizou a reprodução <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> fun<strong>da</strong><strong>da</strong> nos baixos<br />

salários. Tratamento semelhante foi <strong>da</strong>do pelo autor para a produção para auto-consumo na<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> agrícola.<br />

Essas duas formas <strong>de</strong> trabalho não remunerado não esgotam as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> tratamento<br />

do tempo para reprodução social. Mais recentemente, estudos sobre o processo <strong>de</strong><br />

reestruturação produtiva têm mostrado o reaparecimento ou consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> outras formas<br />

<strong>de</strong> trabalho realiza<strong>da</strong>s no interior <strong>da</strong> própria reprodução social, que se encontram<br />

estreitamente associa<strong>da</strong>s ao uso do tempo econômico <strong>da</strong>s famílias. São exemplos disso a<br />

confecção <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> roupa e a elaboração <strong>de</strong> produtos <strong>de</strong> cisal e palha. Muitas vezes,<br />

estas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s são executa<strong>da</strong>s no interior dos domicílios, incorporando crianças em<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s complementares, tanto diretamente a elas volta<strong>da</strong>s como complementarmente<br />

associa<strong>da</strong>s.<br />

Pelas situações acima aponta<strong>da</strong>s, mas também por outras, o movimento <strong>da</strong>s mulheres no<br />

Brasil tem sistematicamente <strong>de</strong>fendido o reconhecimento <strong>de</strong>sses tempos <strong>de</strong> trabalho<br />

voltados para a reprodução social. No final dos anos 80, conseguiram que o IBGE passasse


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 18<br />

a investigar as formas <strong>de</strong> trabalho para auto-consumo e auto-construção, além <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar<br />

as situações <strong>de</strong> trabalho com jorna<strong>da</strong> inferior a 15 horas semanais.<br />

A mensuração <strong>de</strong>ssas formas <strong>de</strong> trabalho amplia a População Economicamente Ativa, tendo<br />

especial importância para a captação do trabalho <strong>da</strong> mulher em jorna<strong>da</strong> inferior a 15 horas<br />

semanais e em auto-consumo.<br />

Tabela 1<br />

População Economicamente Ativa segundo os Critérios Amplo e Restrito<br />

Brasil, 2001<br />

Homens Mulheres Total<br />

População Economicamente Ativa - Ampla (1) 48.387.458 34.838.709 83.226.167<br />

População Desemprega<strong>da</strong> 3.824.348 4.439.861 8.264.209<br />

População Ocupa<strong>da</strong> Ampla 44.563.110 30.398.848 74.961.958<br />

Ocupados - 15 1.188.719 3.122.708 4.311.427<br />

Ocupados + 15 43.374.391 27.276.140 70.650.531<br />

População Ocupa<strong>da</strong> Agrícola - Ampla 10.620.548 4.921.850 15.542.398<br />

Ocupados - 15 556.019 1.678.497 2.234.516<br />

Ocupados + 15 10.064.529 3.243.353 13.307.882<br />

População Ocupa<strong>da</strong> Não Agrícola - Ampla 33.918.398 25.476.998 59.395.396<br />

Ocupados - 15 632.135 1.444.211 2.076.346<br />

Ocupados + 15 33.286.263 24.032.787 57.319.050<br />

População Economicamente Ativa - Restrita (2) 46.483.593 31.090.628 77.574.221<br />

População Desemprega<strong>da</strong> 3.824.348 4.439.861 8.264.209<br />

População Ocupa<strong>da</strong> - Restrita 42.659.245 26.650.767 69.310.012<br />

(PEA-A) - (PEA-R) (Valores Absolutos) 1.903.865 3.748.081 5.651.946<br />

(PEA-A) / (PEA-R) (em %) 4,1 12,1 7,3<br />

Fonte: PNAD-IBGE, 2001, micro<strong>da</strong>dos. Elaboração do autor.<br />

(1) A População Economicamente Ativa - Ampla (PEA-A) incorpora to<strong>da</strong>s a pessoas <strong>de</strong> 10 anos ou mais que<br />

realizaram ao menos 1 hora <strong>de</strong> trabalho na semana, inclusive em auto construção e auto-consumo.<br />

(2) A População Economicamente Ativa - Restrita (PEA-R) incorpora to<strong>da</strong>s a pessoas <strong>de</strong> 10 anos ou mais<br />

que realizaram 15 horas ou maisao menos 1 hora <strong>de</strong> trabalho na semana, exclusive em auto construção e<br />

auto-consumo.<br />

É possível observar que a adoção <strong>de</strong>sse critério mais amplo significa, em 2001, um<br />

incremento <strong>da</strong> PEA feminina em 3,7 milhões <strong>de</strong> pessoas, equivalente a 12%. Para os<br />

homens, esse aumento correspon<strong>de</strong> a 1.9 milhões <strong>de</strong> pessoas, ou 4,1%. Do total <strong>de</strong> 3,7


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 19<br />

milhões <strong>de</strong> mulheres incorpora<strong>da</strong>s na PEA-A, 3,1 milhões realizam jorna<strong>da</strong>s inferiores a 15<br />

horas semanais, sendo 1,3 milhões <strong>de</strong>ssas em trabalho <strong>de</strong> auto-consumo.<br />

Se consi<strong>de</strong>rado somente o segmento ocupacional agrícola, constata-se que as mulheres com<br />

jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho inferior a 15 horas e em trabalho <strong>de</strong> auto-consumo representam 27% <strong>da</strong><br />

ocupação total. Isto é, se <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rado o trabalho em ocupações com baixa jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

trabalho e para auto-consumo, <strong>de</strong>ixa-se <strong>de</strong> levar em conta 25% <strong>da</strong> ocupação agrícola<br />

feminina. Como afirma Hil<strong>de</strong>te Melo, esta é uma dimensão invisível do trabalho <strong>da</strong> mulher,<br />

não reconheci<strong>da</strong> pelo critério estritamente econômico (Melo, 2002: 70 e 71).<br />

16,0<br />

Gráfico 6 - Taxas <strong>de</strong> Desemprego segundo Critérios <strong>de</strong> PEA-A e PEA-R<br />

Brasil 2001<br />

14,0<br />

12,0<br />

10,0<br />

8,0<br />

6,0<br />

4,0<br />

2,0<br />

0,0<br />

Homens Mulheres Total<br />

Pop. Desemprega<strong>da</strong>/PEA-A<br />

Pop. Desemprega<strong>da</strong>/PEA-R<br />

Fonte: Pnad-Ibge, 2001. Elaboração do autor.<br />

Cabe ressaltar, somente, que consi<strong>de</strong>rar a dimensão invisível do trabalho em jorna<strong>da</strong>s curtas<br />

e em auto-consumo e autoconstrução acaba por modificar a dimensão do <strong>de</strong>semprego, ao<br />

incorporar à PEA novos contingentes. Como aponta o Gráfico 6, a taxa <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 20<br />

feminina era, em 2001, <strong>de</strong> 12,7% pelo critério amplo e 14,3% pelo restrito. A diferença<br />

entre taxas <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego é maior para as mulheres, comparativamente àquela observa<strong>da</strong><br />

para os homens.<br />

Se por um lado, vai se reconhecendo uma dimensão do trabalho que escapa <strong>da</strong>s orientações<br />

mais tradicionais <strong>de</strong> mensuração <strong>da</strong> população ocupa<strong>da</strong>, não se po<strong>de</strong> esquecer que, mesmo<br />

segundo o critério mais restrito, nota-se, por outro, que a inserção ocupacional <strong>da</strong> mulher<br />

apresenta-se mais <strong>de</strong>sfavorável que àquele encontra<strong>da</strong> para os homens. Seguindo orientação<br />

já incorpora<strong>da</strong> em outros trabalhos (De<strong>de</strong>cca, 2002), po<strong>de</strong>-se analisar a população ocupa<strong>da</strong>,<br />

segundo o critério restrito, em três segmentos: i. gran<strong>de</strong>-médio segmento conformado pelos<br />

ocupados em estabelecimentos com 5 ou mais empregados e pelo emprego público (Gran<strong>de</strong><br />

Setor); ii. Pequeno setor contratado formado pelo emprego sem carteira e empregadores em<br />

estabelecimento <strong>de</strong> pequena dimensão e pelos autônomos que <strong>de</strong>stinam seu trabalho a uma<br />

outra uni<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica (Pequeno Setor Contratado); e iii. Pequeno setor não contratado<br />

formado pelo emprego sem carteira e empregadores em estabelecimento <strong>de</strong> pequena<br />

dimensão e pelos autônomos que <strong>de</strong>stinam seu trabalho aos indivíduos e às famílias<br />

(Pequeno Setor Não Contratado).<br />

A noção <strong>de</strong> Pequeno Setor Não Contratado é próxima <strong>da</strong>quela, genericamente <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong>,<br />

<strong>de</strong> setor informal. Enquanto essa se encontra construí<strong>da</strong> pela ausência <strong>de</strong> relações formais<br />

<strong>de</strong> trabalho e/ou seja pela recorrência <strong>da</strong> baixa produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>ra-se para a <strong>de</strong>finição<br />

<strong>de</strong> Pequeno Setor Não Contratado o segmento ocupacional com relações <strong>de</strong> trabalho não<br />

formaliza<strong>da</strong>s que <strong>de</strong>stina o resultado <strong>de</strong> sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> aos indivíduos e famílias,<br />

congregando boa parte <strong>da</strong>s ocupações consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s menos protegi<strong>da</strong>s socialmente – por<br />

exemplo, ven<strong>de</strong>dor ambulante, emprego doméstico, guar<strong>da</strong>dor <strong>de</strong> carros, jardineiro,...<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, esse critério possui algum grau <strong>de</strong> arbitrarie<strong>da</strong><strong>de</strong> imposto pelas limitações<br />

metodológicas <strong>da</strong> Pesquisa Nacional por Amostra <strong>de</strong> Domicílios – PNAD-IBGE 4 , que,<br />

mesmo que assuma características específicas, se assemelha aos utilizados nos estudos<br />

sobre setor informal e informali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

4<br />

Tais limitações metodológicas são inerentes às diversas fontes <strong>de</strong> informação estatística. Seria elevado o<br />

custo para que esse tipo <strong>de</strong> fonte pu<strong>de</strong>sse captar amplamente a gama <strong>de</strong> situações ocupacionais encontra<strong>da</strong>s<br />

no mercado <strong>de</strong> trabalho brasileiro. Mesmo assim, as limitações não impe<strong>de</strong>m a caracterização <strong>de</strong>ssa situação<br />

<strong>de</strong> heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> ocupacional, <strong>de</strong> modo a se explicitar características básicas <strong>de</strong> conformação <strong>de</strong> nosso<br />

mercado <strong>de</strong> trabalho.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 21<br />

Gráfico 7 - Composição <strong>da</strong> Ocupação Não Agrícola<br />

Brasil, 2001<br />

100,0<br />

90,0<br />

80,0<br />

70,0<br />

60,0<br />

50,0<br />

40,0<br />

30,0<br />

20,0<br />

10,0<br />

0,0<br />

População Ocupa<strong>da</strong><br />

Indústria <strong>da</strong> Transformação<br />

Indústria <strong>da</strong> Construção<br />

Terciário - Pessoas<br />

Terciário - Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Terciário - Empresas<br />

Homens<br />

População Ocupa<strong>da</strong><br />

Indústria <strong>da</strong> Transformação<br />

Indústria <strong>da</strong> Construção<br />

Terciário - Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Terciário - Empresas<br />

Terciário - Pessoas<br />

Mulheres<br />

Gran<strong>de</strong> Setor Pequeno Setor Contratado Pequeno Setor Não Contratado<br />

Fonte: Pnad, Ibge. Elaboração do autor.<br />

A análise <strong>da</strong> estrutura ocupacional brasileira aponta uma maior incorporação <strong>da</strong> mulher no<br />

Pequeno Setor Não Contratado (Gráfico 7). A maior representativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sse segmento na<br />

estrutura ocupacional feminina é encontra<strong>da</strong> no setor <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> caracterizado pela maior<br />

recorrência <strong>de</strong> vínculos <strong>de</strong> trabalho não regulamentados, isto é, o terciário para pessoas e<br />

famílias. A baixa remuneração e a reduzi<strong>da</strong> regulamentação do contrato <strong>de</strong><br />

trabalho/prestação <strong>de</strong> serviço nesse setor é fun<strong>da</strong>mental para a sobrevivência <strong>de</strong> um<br />

conjunto amplo <strong>de</strong> ocupações. As condições <strong>de</strong>sfavoráveis <strong>de</strong> trabalho nesse setor<br />

articulam-se a uma baixa presença sindical, que pu<strong>de</strong>sse forçar uma maior regulamentação<br />

dos contratos.<br />

Se em vários setores a taxa <strong>de</strong> sindicalização não apresenta gran<strong>de</strong>s diferenças para homens<br />

e mulheres, nota-se que ela é significativa no terciário para pessoas. A baixa taxa <strong>de</strong><br />

sindicalização, em geral, encontra<strong>da</strong> nesse setor, é ain<strong>da</strong> mais reduzi<strong>da</strong> para as mulheres


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 22<br />

(Gráfico 8). Enquanto, a taxa <strong>de</strong> sindicalização <strong>da</strong>s mulheres equivale a 5% no terciário<br />

para pessoas, constata-se que a dos homens correspon<strong>de</strong> a 13%.<br />

Gráfico 8 - Taxa <strong>de</strong> Sindicalização<br />

Brasil, 2001<br />

30,0<br />

25,0<br />

Em Porcentagem<br />

20,0<br />

15,0<br />

10,0<br />

5,0<br />

0,0<br />

Agricultura<br />

Indústria <strong>da</strong> Transformação<br />

Indústria <strong>da</strong> Construção<br />

Terciário - Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Terciário - Empresas<br />

Terciário - Pessoas<br />

Homens<br />

Outras<br />

<strong>de</strong>sempregados<br />

total<br />

Agricultura<br />

Indústria <strong>da</strong> Transformação<br />

Indústria <strong>da</strong> Construção<br />

Terciário - Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Terciário - Empresas<br />

Terciário - Pessoas<br />

Outras<br />

Mulheres<br />

<strong>de</strong>sempregados<br />

Total<br />

Fonte: Pnad, Ibge, 2001. Elaboração: Claudio S. De<strong>de</strong>cca, IE/Unicamp.<br />

Po<strong>de</strong>-se afirmar que o quadro analítico construído, até o presente momento, para<br />

caracterizar a inserção <strong>da</strong> mulher no mercado <strong>de</strong> trabalho brasileiro expurga uma outra<br />

invisibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, que foi trata<strong>da</strong> anteriormente para os países <strong>de</strong>senvolvidos. Aquela manifesta<br />

na órbita <strong>da</strong> organização para a reprodução social. O que é possível se dizer em relação a<br />

essa questão Como se coloca o trabalho para organização social e familiar no Brasil<br />

Existem diferenças na utilização <strong>de</strong>sse tempo entre homens e mulheres<br />

Recentemente, a Pesquisa Nacional por Amostra <strong>de</strong> Domicílios introduziu alguns quesitos<br />

que permitem avaliar a recorrência e extensão do trabalho em afazeres domésticos, que<br />

<strong>de</strong>nominaremos com trabalho para reprodução social. Essa perspectiva amplia a noção <strong>de</strong><br />

trabalho, incorporando tanto aquele <strong>de</strong> interesse econômico ou voltado para consumo


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 23<br />

próprio como o realizado para o funcionamento sistemático <strong>da</strong>s famílias e domicílios. A<br />

adoção <strong>de</strong>sses novos quesitos pela PNAD-IBGE permite enten<strong>de</strong>r o uso do trabalho no<br />

Brasil, havendo a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alguma comparação com os resultados anteriormente<br />

apresentados para os países <strong>de</strong>senvolvidos. Analisemos um pouco o quê esses resultados<br />

nos informam.<br />

Em 2001, 42% dos homens <strong>de</strong>clarou realizar afazeres domésticos contra 90% <strong>da</strong>s mulheres.<br />

Essa diferenciação era observa<strong>da</strong> para todos os setores <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica, não<br />

sugerindo que aqueles segmentos com maior grau <strong>de</strong> regulamentação ou presença sindical<br />

apresentem menor discriminação no uso do tempo entre homens e mulheres.<br />

Enquanto se observa que parte prepon<strong>de</strong>rante <strong>da</strong>s mulheres realiza trabalho em afazeres<br />

domésticos, menos <strong>da</strong> meta<strong>de</strong> dos homens <strong>de</strong>stina seu tempo para essa forma <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, essa diferenciação já sugere uma menor responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do homem na<br />

organização familiar, cabendo relativamente mais às mulheres este tipo <strong>de</strong> ônus social. A<br />

mulher ten<strong>de</strong>, portanto, a conhecer melhor a organização social <strong>da</strong> família. A<strong>de</strong>mais, a<br />

situação brasileira não se diferencia <strong>da</strong>quela encontra<strong>da</strong> nos países <strong>de</strong>senvolvidos – ver<br />

Gráfico 2.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 24<br />

Gráfico 9 - Porcentagem <strong>da</strong> PEA-R que realiza trabalho <strong>de</strong> afazeres domésticos<br />

Brasil, 2001<br />

100,0<br />

90,0<br />

80,0<br />

Em Porcentagem<br />

70,0<br />

60,0<br />

50,0<br />

40,0<br />

30,0<br />

20,0<br />

10,0<br />

0,0<br />

agrícola<br />

domestico<br />

sem rendimento<br />

autônomo<br />

empregados<br />

empregador<br />

Homens<br />

emprego publico<br />

<strong>de</strong>sempregado<br />

total<br />

agrícola<br />

domestico<br />

sem rendimento<br />

autônomo<br />

empregados<br />

Mulheres<br />

empregador<br />

emprego publico<br />

<strong>de</strong>sempregado<br />

total<br />

Fonte: Pnad, Ibge. Elaboração do autor.<br />

Essa maior responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> se traduz em um uso do tempo profun<strong>da</strong>mente <strong>de</strong>sigual entre<br />

homens e mulheres. Apesar <strong>da</strong> tendência <strong>de</strong> uma menor jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> caráter<br />

econômico exerci<strong>da</strong> pelas mulheres, elas possuem uma jorna<strong>da</strong> total superior à dos homens<br />

– ver Gráfico 10.<br />

Ambos realizam jorna<strong>da</strong>s totais <strong>de</strong> trabalho extensas, contudo as mulheres respon<strong>de</strong>m por<br />

uma jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho em afazeres domésticos, em média, três vezes superior àquela<br />

realiza<strong>da</strong> pelos homens. É espantoso que essa diferenciação seja observa<strong>da</strong> inclusive na<br />

condição <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego, quando o trabalho <strong>de</strong> caráter econômico não se faz presente.<br />

Também é importante observar que as jorna<strong>da</strong>s <strong>de</strong> trabalho em afazeres domésticos não se<br />

diferenciam segundo condição <strong>de</strong> ocupação. Estar <strong>de</strong>sempregado não significa uma maior<br />

jorna<strong>da</strong> em afazeres domésticos. Por outro lado, para as mulheres, o ingresso no mercado<br />

<strong>de</strong> trabalho não representa uma menor jorna<strong>da</strong> em afazeres domésticos.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 25<br />

70<br />

Gráfico 10 - Jorna<strong>da</strong> Semanal Média no <strong>Trabalho</strong> e em Afazeres Domésticos <strong>da</strong> PEA-R<br />

Brasil, 2001<br />

60<br />

50<br />

40<br />

30<br />

20<br />

10<br />

0<br />

agrícola<br />

domestico<br />

sem rendimento<br />

autônomo<br />

empregados<br />

empregador<br />

emprego publico<br />

Total <strong>de</strong> Ocupados<br />

<strong>de</strong>sempregado<br />

agrícola<br />

domestico<br />

sem rendimento<br />

autônomo<br />

empregados<br />

empregador<br />

emprego publico<br />

Total <strong>de</strong> Ocupados<br />

Número <strong>de</strong> horas que <strong>de</strong>dicava normalmente por semana aos afazeres domésticos<br />

Número <strong>de</strong> horas trabalha<strong>da</strong>s por semana<br />

Fonte: Pnad, Ibge, 2001. Elaboração do autor.<br />

<strong>de</strong>sempregado<br />

Po<strong>de</strong>-se afirmar que a maior recorrência <strong>da</strong> mulher no mercado <strong>de</strong> trabalho não lhe propicia<br />

uma jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho menos intensa em afazeres domésticos 5 . Cabe explicitar, portanto,<br />

que uma maior igual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> caráter econômico entre sexos, que<br />

significaria uma elevação <strong>da</strong> mesma para as mulheres, reforçaria a lógica <strong>da</strong> dupla jorna<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> trabalho que elas cotidianamente realizam. Também, po<strong>de</strong>-se esperar que uma maior<br />

flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do tempo econômico amplie as tenções existentes na composição do uso do<br />

tempo pelas mulheres.<br />

5 Des<strong>de</strong> 1992, a PNAD mensura o tempo gasto com transporte entre trabalho e domicílio. Os resultados para<br />

2001 não apresentam diferença significativa ente sexos. Os tempos médios <strong>de</strong> transporte gastos entre homens<br />

e mulheres, que realizavam trabalho em afazeres domésticos, eram <strong>de</strong> 1:50h e 1:45h, respectivamente.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 26<br />

70,00<br />

60,00<br />

Gráfico 11 - Uso do <strong>Tempo</strong> segundo Sexo e Condição na Família<br />

Horas/Semana<br />

50,00<br />

40,00<br />

30,00<br />

20,00<br />

10,00<br />

-<br />

Homens Mulheres mulher com<br />

menos <strong>de</strong> 45<br />

anos sem<br />

filhos<br />

mulher com<br />

menos <strong>de</strong> 45<br />

anos, com pelo<br />

menos um<br />

filho < 5 anos<br />

mulher com<br />

menos <strong>de</strong> 45<br />

anos com<br />

filhos entre 5 e<br />

15 anos<br />

mulher maior<br />

<strong>de</strong> 45 anos sem<br />

filhos<br />

Número <strong>de</strong> horas que <strong>de</strong>dicava normalmente por semana aos afazeres domésticos<br />

Número <strong>de</strong> horas trabalha<strong>da</strong>s por semana nesse trabalho<br />

Média geral<br />

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra <strong>de</strong> Domicílios PNAD-IBGE. Micro<strong>da</strong>dos. Elaboração própria.<br />

Essa tensão ten<strong>de</strong> ser maior, inclusive, para as mulheres com filhos com i<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> até 15<br />

anos, pois <strong>de</strong>stinam parcela superior <strong>de</strong> seu tempo para a realização <strong>de</strong> afazeres domésticos.<br />

Essa situação se assemelha parcialmente com aquela encontra<strong>da</strong> nos países <strong>de</strong>senvolvidos.<br />

Lá como aqui, as mulheres com filhos com menos <strong>de</strong> 15 anos realizam jorna<strong>da</strong>s totais <strong>de</strong><br />

trabalho mais eleva<strong>da</strong>s que aquelas sem filho e os homens. Entretanto, as mulheres com<br />

filhos <strong>de</strong> menos <strong>de</strong> 15 anos no Brasil realizam, em média, jorna<strong>da</strong>s totais <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> 12<br />

horas dias, contra uma outra <strong>de</strong> 9 horas nos países <strong>de</strong>senvolvidos. Constata-se, <strong>de</strong>ste modo,<br />

que tanto a jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> caráter econômico como para a reprodução social <strong>da</strong>s<br />

famílias são mais eleva<strong>da</strong>s no Brasil. A baixa regulamentação do trabalho no país permite<br />

uma jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> caráter econômico mais extensa para as mulheres, em<br />

comparação com aquela que elas realizam nos países <strong>de</strong>senvolvidos. Portanto, as tensões<br />

entre as dimensões <strong>de</strong> uso do tempo são maiores aqui.<br />

Seria interessante integrar a análise do uso do tempo com aspectos <strong>da</strong> dinâmica<br />

<strong>de</strong>mográfica, como a evolução do número <strong>de</strong> filhos <strong>da</strong>s mulheres inseri<strong>da</strong>s no mercado <strong>de</strong>


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 27<br />

trabalho. Infelizmente, esse esforço escapa <strong>da</strong> amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse ensaio, ao menos nesse<br />

momento. Somente com o objetivo <strong>de</strong> explicitar a importância <strong>de</strong>sse tema, apresenta-se<br />

uma pequena referência. Segundo a PNAD, o número <strong>de</strong> mulheres ocupa<strong>da</strong>s com filhos<br />

menores <strong>de</strong> 14 anos caiu <strong>de</strong> 33% para 27% entre 1992 e 2001. Nesse mesmo período, as<br />

mulheres ocupa<strong>da</strong>s sem filho aumentaram somente <strong>de</strong> 10% para 11%. Não parece que o<br />

maior ingresso <strong>da</strong> mulher no mercado <strong>de</strong> trabalho esteja acompanhado pela <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> não<br />

ter filhos. Os <strong>da</strong>dos sugerem que o movimento observado orienta-se, ain<strong>da</strong>, para um menor<br />

número <strong>de</strong> filhos.<br />

Essa tendência po<strong>de</strong> estar relaciona<strong>da</strong> às tensões entre o uso do tempo em suas diversas<br />

formas, mas também <strong>de</strong>ve estar relaciona<strong>da</strong> com o padrão <strong>de</strong> remuneração, marcado por<br />

uma <strong>de</strong>terioração durante os anos 90. Nesse sentido, é interessante observar que, segundo a<br />

PNAD, as mulheres inseri<strong>da</strong>s nos mercado <strong>de</strong> trabalho e que realizam afazeres domésticos<br />

ten<strong>de</strong>m auferir uma remuneração menor que aquelas não realizam afazeres domésticos<br />

(Gráfico 12). Essa diferenciação <strong>de</strong> remuneração não é encontra<strong>da</strong> entre os homens.<br />

Nota-se que a dupla jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho ten<strong>de</strong> estar associa<strong>da</strong> à baixa remuneração. É<br />

razoável esse resultado, pois a maior ren<strong>da</strong> permite à mulher inseri<strong>da</strong> no mercado <strong>de</strong><br />

trabalho, em princípio, contratar uma pessoa que realize boa parte dos afazeres domésticos.<br />

Ao contrário, a mulher inseri<strong>da</strong> no mercado <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> menor remuneração é<br />

constrangi<strong>da</strong> a realizar diretamente os afazeres domésticos, sendo mais intensivamente<br />

submeti<strong>da</strong> à dupla jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 28<br />

Gráfico 12 - Relação entre Rendimentos <strong>da</strong> PEA entre os que realizam afazeres domésticos<br />

e aqueles que não realizam (1)<br />

Brasil, 2001<br />

1,6<br />

1,4<br />

1,2<br />

1,0<br />

0,8<br />

0,6<br />

0,4<br />

0,2<br />

0,0<br />

agrícola<br />

domestico<br />

autônomo<br />

empregados<br />

empregador<br />

Homens<br />

emprego publico<br />

total<br />

agrícola<br />

domestico<br />

autônomo<br />

empregados<br />

empregador<br />

Mulheres<br />

emprego publico<br />

total<br />

(1) Rendimento Hora<br />

Fonte: Pnad, Ibge, 2001. Elaboração do autor.<br />

6. Algumas Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />

O objetivo <strong>de</strong>sse ensaio foi apresentar alguns elementos <strong>de</strong> reflexão sobre a relação entre<br />

trabalho e uso do tempo no capitalismo, explicitando esse movimento no âmbito <strong>da</strong><br />

discussão sobre gênero.<br />

A crise <strong>de</strong> trabalho observa<strong>da</strong> na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista, nesses últimos 20 anos, tem<br />

sistematicamente reafirmado a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> flexibilização <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong> trabalho como<br />

meio privilegiado para a sua superação. A política <strong>de</strong> flexibilização <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra suas<br />

implicações sobre a organização sócio-econômica no capitalismo atual (De<strong>de</strong>cca, 2000). A<br />

reorganização <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho explicita, claramente, a visão restritiva que a política<br />

<strong>de</strong> flexibilização tem sobre o uso do tempo no capitalismo.<br />

De um lado, aparecem os <strong>de</strong>fensores <strong>da</strong> flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho, em geral,<br />

fun<strong>da</strong>mentados no argumento sobre a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> racionalização do uso dos<br />

equipamentos flexíveis na nova era tecnológica. De outro, encontra-se a posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />

<strong>da</strong> redução <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho com certa aceitação <strong>de</strong> sua flexibilização como


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 29<br />

instrumento <strong>de</strong> combate ao <strong>de</strong>semprego. Ambas as posições, dominantes no <strong>de</strong>bate atual,<br />

discutem exclusivamente as implicações <strong>da</strong> flexibilização para o uso do tempo <strong>de</strong> trabalho<br />

<strong>de</strong> caráter econômico. Encontram-se aprisiona<strong>da</strong>s a uma concepção do uso do tempo<br />

vincula<strong>da</strong> a lógica <strong>de</strong> maior eficiência microeconômica. Isto é, crêem que a maior<br />

plastici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho à lógica <strong>da</strong> eficiência e <strong>da</strong> concorrência capitalista <strong>da</strong><br />

empresa é portadora <strong>de</strong> uma maior capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho.<br />

Desconsi<strong>de</strong>ram, portanto, possíveis disfunções que esta plastici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho<br />

cria para outras dimensões <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m econômica e social. Na órbita exclusivamente<br />

econômica amplia-se, por exemplo, a <strong>de</strong>man<strong>da</strong> por energia elétrica, em razão <strong>da</strong> abertura<br />

do comércio nos finais <strong>de</strong> semana. Também, há necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um maior funcionamento <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> financeira em razão do maior volume <strong>de</strong> transações bancárias em horários<br />

excepcionais. Por outro lado, ampliam-se os constrangimentos sobre o tempo <strong>de</strong><br />

reprodução social <strong>da</strong>s famílias, gerando, em certos casos, aumentos <strong>de</strong> seus gastos correntes<br />

com serviços <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>dos à infância.<br />

A flexibilização <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho ten<strong>de</strong> a produzir choques crescentes entre as<br />

dimensões <strong>de</strong> uso do tempo, com uma visível <strong>de</strong>svalorização <strong>da</strong>quele voltado para a<br />

reprodução social (Appelbaum, E. et alli, 2002:36; e Bluestone & Rose, 1998). As pressões<br />

sobre suas diversas dimensões se fazem crescentemente presentes, notando-se sistemática<br />

intensificação <strong>de</strong> seu uso. Aumenta sua intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> tanto na esfera econômica como social.<br />

Em uma situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho medíocre do capitalismo, a intensificação do uso do<br />

tempo é parte indutiva do crescimento do <strong>de</strong>semprego. Nesse sentido, a flexibilização <strong>da</strong><br />

jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho ten<strong>de</strong>, ao contrário do afirmado, agravar o problema <strong>de</strong> emprego, ao<br />

provocar uma distribuição <strong>de</strong>sigual em seu uso. Os que trabalham ampliam e intensificam o<br />

uso dos tempos econômico e social. Em um contexto <strong>de</strong> baixo crescimento, isto somente<br />

po<strong>de</strong> se fazer com o comprometimento <strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> outrem.<br />

Esta falta <strong>de</strong> sincronismo entre as dimensões econômica e social é ca<strong>da</strong> vez mais visível. A<br />

máquina <strong>de</strong> progresso encontra-se enfraqueci<strong>da</strong>, causando <strong>de</strong>sequilíbrios sociais crescentes.<br />

Esse comportamento disfuncional melhor analisado nas economias <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s, é<br />

estabelecido em socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s com maior grau <strong>de</strong> organização política e, ain<strong>da</strong>, com maior<br />

regulação <strong>da</strong>s relações econômicas e <strong>de</strong> seus efeitos sobre a organização social.


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 30<br />

Gráfico 13 - Jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>Trabalho</strong> Semanal<br />

Países Selecionados - 1999<br />

50<br />

45<br />

40<br />

35<br />

30<br />

25<br />

20<br />

15<br />

10<br />

5<br />

0<br />

Argentina<br />

Brasil<br />

Chile<br />

Mexico<br />

Alemanha<br />

Espanha<br />

Estados Unidos<br />

França<br />

Holan<strong>da</strong><br />

Itália<br />

Reino Unido<br />

Suécia<br />

Japão<br />

Korea<br />

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra <strong>de</strong> Domicílios, PNAD-IBGE; e Organização Internacional do <strong>Trabalho</strong>, OIT.<br />

Elaboração do autor.<br />

Esta não é a situação encontra<strong>da</strong> no Brasil. A Regulação econômica e social é restrita e o<br />

mercado <strong>de</strong> trabalho nacional tem como características fun<strong>da</strong>mentais a precarie<strong>da</strong><strong>de</strong> e a<br />

<strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>. É maior a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma flexibilização <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho se<br />

traduzir em maior tensão entre as diversas dimensões do uso do tempo. Em especial, se<br />

levado em conta que o país não se caracteriza por uma baixa jorna<strong>da</strong> média semanal <strong>de</strong><br />

trabalho. Isto é, permitir que a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a extensão <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho se amplie<br />

significa impor um constrangimento ain<strong>da</strong> maior do tempo para reprodução social <strong>da</strong>s<br />

famílias.<br />

Nesse sentido, é preciso abor<strong>da</strong>r o uso do tempo <strong>de</strong> modo mais abrangente, analisando<br />

articula<strong>da</strong>mente suas diversas dimensões. Em especial, quando está se tratando <strong>de</strong> seus<br />

impactos para as condições <strong>de</strong> reprodução <strong>da</strong> mulher. A per<strong>da</strong> <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>sse movimento<br />

<strong>de</strong>ve ratificar o caráter masculino do mercado <strong>de</strong> trabalho e o feminino <strong>da</strong> organização<br />

familiar. Em suma, tudo indica que a maior flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong> trabalho tem nas


<strong>Tempo</strong>, <strong>Trabalho</strong> e Gênero, Claudio S. De<strong>de</strong>cca 31<br />

mulheres as gran<strong>de</strong>s per<strong>de</strong>doras. A análise do uso do tempo explicita a dimensão <strong>de</strong>sse<br />

risco. O estudo <strong>da</strong> situação brasileira sugere que essas per<strong>da</strong>s serão ain<strong>da</strong> maiores em países<br />

com menor regulação social.<br />

Portanto, é preciso tratar do tempo <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> modo mais amplo. Cabe explicitar,<br />

entretanto, que a regulação social a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> <strong>de</strong> seu uso que não favoreça a maior<br />

<strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica e social, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> políticas sociais que atuem sobre a dinâmica<br />

<strong>da</strong> reprodução social.<br />

V.1 –27.Janeiro .04<br />

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