Aula 11 - Rupturas e Revoluções
Aula 11 - Rupturas e Revoluções
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DISCIPLINA<br />
História e Filosofia da Ciência<br />
<strong>Rupturas</strong> e revoluções<br />
Autores<br />
Juliana Mesquita Hidalgo Ferreira<br />
André Ferrer P. Martins<br />
aula<br />
<strong>11</strong>
Governo Federal<br />
Presidente da República<br />
Luiz Inácio Lula da Silva<br />
Ministro da Educação<br />
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Divisão de Serviços Técnicos<br />
Catalogação da publicação na Fonte. Biblioteca Central Zila Mamede – UFRN<br />
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida<br />
sem a autorização expressa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Apresentação<br />
Na aula anterior, discutimos algumas das mais contundentes críticas ao pensamento<br />
indutivo, no terreno da Filosofia da Ciência, e apresentamos a perspectiva do<br />
refutacionismo ou falseacionismo, tendo como referência principal o nome de Karl<br />
Popper. Utilizamos esse referencial para interpretar certas passagens da História da Ciência,<br />
buscando elementos que reforçassem a análise popperiana.<br />
Finalizamos a aula com a seguinte pergunta: será que os cientistas, em seu trabalho<br />
cotidiano, procedem dessa maneira, isto é, preocupam-se em falsear as teorias<br />
Nesta aula, traremos um ponto de vista que confl ita, em muitos aspectos, com o de<br />
Popper e o refutacionismo. Veremos como o pensamento de Thomas Kuhn concebe o cientista<br />
não como um “refutador” que tenta “descartar” teorias, mas como um “conservador”.<br />
Apresentaremos uma nova perspectiva, segundo a qual o desenvolvimento histórico da ciência<br />
é visto como um processo de sucessivas rupturas e revoluções.<br />
Objetivos<br />
1<br />
2<br />
3<br />
Analisar as limitações do refutacionismo como proposta<br />
de interpretação do desenvolvimento histórico da ciência.<br />
Apresentar as principais características do pensamento<br />
de Thomas Kuhn.<br />
Abordar conceitos centrais da proposta kuhniana, tais<br />
como: paradigma, ciência normal, revolução científica e<br />
incomensurabilidade.<br />
4<br />
Reconhecer a possibilidade de uma “leitura kuhniana” de<br />
episódios da História da Ciência.<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência<br />
1
O refutacionismo em apuros:<br />
do lógico ao sociológico<br />
A<br />
proposta popperiana, inegavelmente, traz questões fundamentais ao entendimento da<br />
ciência como um corpo organizado do conhecimento humano. Sua crítica à indução,<br />
bem como a sugestão do método hipotético-dedutivo e da noção de refutação, vem em<br />
favor da tentativa de delimitar o que é e o que não é científico e, num certo sentido, “salvar” a<br />
racionalidade desse empreendimento que é a ciência.<br />
Em alguns aspectos, a perspectiva popperiana está de acordo, ainda, com uma visão de<br />
senso comum do cientista, que apresentamos no início da aula anterior. Nela, o cientista é visto<br />
como alguém imparcial e isento, de “mente aberta”, que está disposto a abrir mão de suas<br />
ideias em favor “do que diz a experiência”. Assim, se um determinado experimento refutar uma<br />
hipótese teórica, por exemplo, o cientista deve proceder de acordo com o que determinada a<br />
postura racional: afastar a hipótese falseada.<br />
Mas, podemos nos perguntar se é, de fato, dessa maneira que os cientistas procedem.<br />
Além disso, devemos nos perguntar se essa é uma imagem correta da ciência e de sua<br />
metodologia. Como vimos, o refutacionismo enfatiza o aspecto lógico da ciência, mas, quem<br />
sabe, tenha limitações quanto à descrição da ciência em suas características mais sociológicas.<br />
2<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência
No terreno da Filosofia da Ciência, a segunda metade do século XX viu surgir uma série<br />
de perspectivas diferentes que, de formas muitas vezes complementares, alargaram nossa<br />
compreensão da ciência e de seu desenvolvimento histórico. A própria ciência tornou-se cada<br />
vez mais complexa e valorizada nos últimos séculos, aumentando seu impacto sobre os meios<br />
de produção, com reflexos econômicos, políticos e sociais.<br />
Por outro lado – e justamente devido ao forte impacto do conhecimento científi co no<br />
meio social –, a ciência também passou a sofrer fortes críticas. Bombas atômicas, armas<br />
de destruição em massa, poluição ambiental etc. evidenciaram que a ciência pode trazer<br />
consequências nefastas para a sociedade, e que os cientistas não são seres “à parte” do meio<br />
em que vivem.<br />
A fi losofi a de Popper, ao privilegiar o aspecto lógico, deixa de lado uma análise mais<br />
profunda da prática cotidiana do cientista, não o realçando como um ser contextualizado histórica<br />
e socialmente. Surgiram, então, outras análises da ciência e de seu desenvolvimento, que<br />
procuraram, em certa medida, “humanizar” o cientista e evidenciar a ciência como prática social.<br />
O pensamento de Thomas S. Kuhn pode ser considerado um marco nessa linha. Kuhn<br />
era formado em Física, mas empreendeu estudos na área de História da Ciência. Publicou<br />
alguns trabalhos importantes nesse terreno, que ficaram bastante conhecidos, tais como: “A<br />
revolução copernicana”, de 1957, onde faz uma extensa análise da transição do geocentrismo<br />
ao heliocentrismo; o artigo “Conservação da energia como um exemplo de descoberta<br />
simultânea”, de 1959, em que descreve a complexidade histórica que envolveu a formulação<br />
do princípio de conservação da energia; entre muitos outros.<br />
No entanto, foi o livro “A Estrutura das Revoluções Científi cas”, de 1962, que causou<br />
o maior impacto no campo da Filosofia da Ciência. O que era para ser um pequeno “ensaio”<br />
transformou-se em algo realmente revolucionário, cuja infl uência transcendeu os círculos<br />
filosóficos e ganhou proporções inesperadas. É sobre essa obra e o pensamento de Kuhn que<br />
falaremos a seguir.<br />
Figura 1 – Thomas Kuhn (1922-1996)<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência 3
Thomas Kuhn:<br />
a prática da<br />
ciência normal<br />
Nesta e na próxima<br />
seção, apresentamos<br />
uma reelaboração<br />
de um texto escrito<br />
anteriormente por<br />
um de nós e que pode<br />
ser encontrado em<br />
Martins (1998).<br />
Thomas Kuhn: a prática<br />
da ciência normal<br />
Em “A Estrutura das Revoluções Científi cas”, Kuhn faz uma análise do conhecimento<br />
científi co fundamentado, muitas vezes, em passagens da História da Ciência. Ele<br />
defende que o desenvolvimento da ciência não se dá de uma forma linear, contínua<br />
e cumulativa (embora não tenha sido o primeiro fi lósofo a propor algo desse tipo). Isso<br />
signifi ca que a construção do conhecimento científi co não se assemelha à de um edifício,<br />
onde, “tijolo por tijolo”, o trabalho de uma geração é simplesmente acrescentado ao da<br />
anterior. O “desenho mágico” da ciência emerge de um processo em que há lugar para<br />
rupturas, crises e revoluções.<br />
Para compreendermos como essa visão é possível, devemos, antes, voltar nossos olhos<br />
para o trabalho cotidiano e para a educação dos cientistas. Esses, durante toda ou a maior<br />
parte de seu tempo, trabalham no que Kuhn denomina de ciência normal, uma atividade<br />
que não visa produzir novidades inesperadas. Ao contrário, a prática da ciência normal visa<br />
“articular” o conjunto de teorias, modelos e representações compartilhados pelos cientistas e<br />
que constituem sua particular “visão de mundo”. Esse conjunto de conhecimentos teóricos,<br />
equipamentos, técnicas, metodologias etc. compõe o que o autor chama de paradigma, um<br />
conceito fundamental em seu trabalho e estreitamente vinculado à ciência normal. É justamente<br />
a aceitação de um paradigma, por um determinado grupo de praticantes da ciência, que permite<br />
o desenvolvimento da ciência normal:<br />
Homens cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados estão comprometidos<br />
com as mesmas regras e padrões para a prática científica. Esse comprometimento e o<br />
consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a<br />
gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada. (KUHN, 1987, p. 30-31)<br />
O período anterior ao da aceitação de um paradigma por um grupo é denominado por<br />
Kuhn de fase “pré-paradigmática”, na qual diversos candidatos a paradigma concorrem,<br />
buscando a adesão de subgrupos cada vez maiores. O autor busca, na História da Ciência,<br />
exemplos que possam ilustrar esse período, como a óptica antes de Newton e a pesquisa de<br />
fenômenos elétricos na primeira metade do século XVIII. Em ambos os casos, diversas escolas<br />
com visões confl itantes procuravam enfatizar o conjunto de fenômenos que suas próprias<br />
teorias explicavam melhor. No entanto, é a firme adesão a um único paradigma que permite<br />
a “maturidade” de um campo de estudos. Durante esse processo, os demais candidatos a<br />
paradigma desaparecem:<br />
Quando, pela primeira vez no desenvolvimento de uma ciência da natureza, um indivíduo<br />
ou grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria dos praticantes de ciência da<br />
geração seguinte, as escolas mais antigas começam a desaparecer gradualmente.<br />
Seu desaparecimento é em parte causado pela conversão de seus adeptos ao novo<br />
4<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência
paradigma. Mas sempre existem alguns que se aferram a uma ou outra das concepções<br />
mais antigas; são simplesmente excluídos da profi ssão e seus trabalhos são ignorados.<br />
(KUHN, 1987, p. 39)<br />
O paradigma norteador do trabalho do cientista normal é, antes de tudo, uma promessa:<br />
a prática da ciência normal representa a atualização dessa promessa. Kuhn denomina isso de<br />
articulação do paradigma, que se dá tanto no nível teórico quanto experimental. A própria<br />
determinação de quais são os fenômenos passíveis de investigação (sendo, portanto,<br />
“científicos”), bem como a metodologia válida para a pesquisa, fazem parte desse amplo processo.<br />
É durante o desenvolvimento da ciência normal que o conhecimento acerca do mundo<br />
aprofunda-se. Imersos em atividades cada vez mais esotéricas, os cientistas buscam resolver<br />
“quebra-cabeças” altamente complexos. Essa analogia sugerida por Kuhn reforça o fato de que<br />
a ciência normal debruça-se sobre problemas que, a priori, acredita possuírem uma solução<br />
nos moldes defi nidos pelo paradigma vigente (da mesma forma que, num quebra-cabeças,<br />
a solução que deve ser encontrada já se encontra na capa!). Contudo, isso não signifi ca<br />
dizer que, só porque atua a partir de um paradigma já estabelecido, a ciência normal produz<br />
necessariamente algo comum e corriqueiro. A resolução dos quebra-cabeças da ciência normal<br />
é o que faz – durante a maior parte do tempo – avançar o conhecimento.<br />
O cientista kuhniano, nesse sentido, pode ser visto como um conservador: em seu<br />
laboratório, ele trabalha não para refutar, mas para confi rmar o paradigma. Ao resolver<br />
quebra-cabeças e articular o paradigma, o cientista não está em busca de algo realmente<br />
“novo”, no sentido de mudanças radicais em sua visão de mundo:<br />
A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na<br />
verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem<br />
são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas<br />
teorias; freqüentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em<br />
vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos<br />
e teorias já fornecidos pelo paradigma. (KUHN, 1987, p. 45).<br />
Há um aspecto importante apontado por Kuhn quanto à prática da ciência normal: ela<br />
estaria respaldada por uma formação dogmática dos cientistas. Os futuros profissionais da<br />
ciência são educados por meio de “manuais” (livros didáticos), cuja função é a perpetuação<br />
da ciência normal. Com eles, espera-se que o cientista possa, o mais rapidamente possível,<br />
compreender os princípios fundamentais, as metodologias etc. do paradigma vigente e saiba<br />
aplicá-lo a novos problemas (quebra-cabeças). Dessa maneira, seria mais “eficiente” apresentar<br />
uma reconstrução de um determinado campo do conhecimento, tendo como referência o<br />
paradigma atual, do que explorar, por exemplo, a complexidade histórica da construção desse<br />
mesmo campo. Explica-se, assim, por que os manuais trazem, de modo geral, uma ciência<br />
aparentemente linear e cumulativa, além de a-histórica.<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência 5
Transcrevemos, a seguir, um trecho mais longo do livro de Kuhn, onde o autor trata da<br />
questão dos manuais:<br />
Os manuais, por visarem familiarizar rapidamente o estudante com o que a comunidade<br />
científi ca contemporânea julga conhecer, examinam as várias experiências, conceitos,<br />
leis e teorias da ciência normal em vigor tão isolada e sucessivamente quanto possível.<br />
Enquanto pedagogia, essa técnica de apresentação está acima de qualquer crítica. Mas,<br />
quando combinada com a atmosfera geralmente a-histórica dos escritos científi cos<br />
e com as distorções ocasionais ou sistemáticas examinadas acima, existem grandes<br />
possibilidades de que essa técnica cause a seguinte impressão: a ciência alcançou seu<br />
estado atual através de uma série de descobertas e invenções individuais, as quais, uma<br />
vez reunidas, constituem a coleção moderna dos conhecimentos técnicos. O manual<br />
sugere que os cientistas procuram realizar, desde os primeiros empreendimentos<br />
científi cos, os objetivos particulares presentes nos paradigmas atuais. Num processo<br />
freqüentemente comparado à adição de tijolos a uma construção, os cientistas juntaram<br />
um a um os fatos, conceitos, leis ou teorias ao caudal de informações proporcionado<br />
pelo manual científico contemporâneo. (KUHN, 1987, p. 178).<br />
Atividade 1<br />
1<br />
2<br />
Qual a relação entre ciência normal e paradigma Dê um exemplo de<br />
um paradigma presente na história da Física.<br />
A prática do cientista normal envolve a resolução de quebra-cabeças.<br />
Você saberia dar um exemplo de um quebra-cabeça a ser resolvido<br />
pela ciência atual<br />
3<br />
Você concorda com a visão kuhniana acerca da formação dos cientistas<br />
e do papel dos manuais Escreva um pequeno texto refl exivo a esse<br />
respeito.<br />
Da ciência normal à revolução científica<br />
Como é possível, então, que uma atividade como a ciência normal gere novidades<br />
Segundo Kuhn, a prática orientada por um paradigma produz, de tempos em tempos, anomalias,<br />
que representam pontos onde a aplicação do paradigma apresentou problemas. As anomalias<br />
podem levar a descobertas e invenções que acabam por ser incorporadas ao paradigma:<br />
6<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência
A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o reconhecimento de<br />
que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que governam<br />
a ciência normal. Segue-se então uma exploração mais ou menos ampla da área onde<br />
ocorreu a anomalia. Esse trabalho somente se encerra quando a teoria do paradigma for<br />
ajustada, de tal forma que o anômalo se tenha convertido no esperado. (KUHN, 1987, p. 78)<br />
Vemos como o paradigma conduz à certa “rigidez” na ciência, fazendo com que a própria<br />
percepção de uma anomalia seja difícil para a maior parte dos cientistas. Por outro lado, são<br />
justamente os mais especializados pesquisadores aqueles capazes de reconhecê-la, pois sabem<br />
com precisão o que é esperado:<br />
A anomalia aparece somente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma.<br />
Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível este<br />
será como indicador de anomalias e, conseqüentemente, de uma ocasião para a mudança<br />
de paradigma. (KUHN, 1987, p. 92)<br />
A articulação do paradigma, portanto, tem um caráter aparentemente paradoxal: ela<br />
reforça o próprio paradigma, por um lado, mas pode gerar anomalias que levem a uma crise na<br />
ciência, por outro. Nos momentos de crise, o paradigma vigente deixa de oferecer respostas aos<br />
quebra-cabeças da ciência normal, criando uma situação de insegurança profissional. Mesmo<br />
assim, de modo algum se abandona o paradigma. A necessidade de modificá-lo, no entanto,<br />
permite, durante certo período, a flexibilização das regras e a oportunidade de desenvolvimento<br />
de novas teorias. Essa “proliferação” é, para Kuhn, um sintoma da crise.<br />
Não há razões objetivas que permitam estabelecer quando ou de que modo uma<br />
anomalia irá gerar uma crise. Entretanto, uma vez estabelecida, a crise pode encerrar-se de<br />
três maneiras, segundo Kuhn (1987): 1ª) a ciência normal acaba mostrando-se capaz de<br />
resolver o problema; 2ª) o problema é abandonado para ser resolvido por gerações futuras que<br />
disponham de equipamentos mais sofisticados; ou 3ª) por meio de uma revolução científica,<br />
com a emergência de um novo candidato a paradigma e uma batalha para sua aceitação.<br />
A revolução científica está longe de ser, para o autor, um processo de natureza cumulativa.<br />
Trata-se de uma transição entre o velho paradigma (em crise) e um novo, o que envolve,<br />
essencialmente, uma ruptura, com uma transformação radical da visão de mundo dos<br />
cientistas, de seus métodos e objetivos.<br />
Durante o período revolucionário, desenvolve-se o que Kuhn chama de “pesquisa<br />
extraordinária”, em que há espaço para criação de teorias especulativas, questionamentos de<br />
princípios básicos do campo de estudos em questão, flexibilização de regras, ou outras atitudes<br />
que se assemelham à imagem corrente do cientista. A História da Ciência nos forneceria<br />
exemplos desse tipo de pesquisa, tais como as difi culdades de Kepler com o movimento de<br />
Marte ou o desenvolvimento inicial da física de partículas que, inclusive, levou uma parte dos<br />
maiores cientistas da época a questionar a própria conservação da energia.<br />
A emergência e aceitação de um novo paradigma redefinem a prática científica normal em<br />
toda sua amplitude: os problemas válidos (o que “é” ou “não é” ciência), os padrões aceitos de<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência 7
solução, a linguagem adequada etc. Segundo Kuhn, o cientista passa a viver em “outro mundo”,<br />
incomensurável com o anterior: “A tradição científica normal que emerge de uma revolução<br />
científi ca é não somente incompatível, mas muitas vezes verdadeiramente incomensurável<br />
com aquela que a precedeu”. (KUHN, 1987, p. 138).<br />
Numa perspectiva kuhniana, seria incorreto, por exemplo, acreditar que a mecânica<br />
newtoniana é um caso particular da teoria da relatividade de Einstein. Ainda que as leis da<br />
primeira possam ser “deduzidas”, por via matemática, da última, de forma alguma os conceitos<br />
einsteinianos de massa, energia, tempo, espaço etc. correspondem aos conceitos newtonianos<br />
de mesmo nome.<br />
O conceito de incomensurabilidade é fundamental na obra de Kuhn. Ao olhar para um<br />
fenômeno, o cientista o faz através de um “óculos” conceitual que pressupõe, essencialmente,<br />
um paradigma. Ao analisar a própria percepção visual de figuras, Kuhn afirma suspeitar que<br />
algo semelhante a um paradigma seja seu pré-requisito: “O que um homem vê depende tanto<br />
daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual prévia o ensinou a<br />
ver”. (KUHN, 1987, p. 148).<br />
Dessa forma, um aristotélico não via o mesmo céu que um copernicano, do mesmo<br />
modo que um adepto da teoria da relatividade não o vê da mesma maneira que Newton. Essas<br />
alterações são tão profundas que não podemos dizer que os fatos permaneceram os mesmos,<br />
enquanto mudaram as interpretações. Mais do que isso, o próprio mundo no qual o cientista<br />
se encontra agora é outro:<br />
O historiador da ciência que examinar as pesquisas do passado a partir da perspectiva da<br />
historiografi a contemporânea pode sentir-se tentado a proclamar que, quando mudam<br />
os paradigmas, muda com eles o próprio mundo. Guiados por um novo paradigma,<br />
os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direções. E o<br />
que é ainda mais importante: durante as revoluções, os cientistas vêem coisas novas e<br />
diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já<br />
examinados anteriormente. É como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente<br />
transportada para um novo planeta, onde objetos familiares são vistos sob uma luz<br />
diferente e a eles se apregam objetos desconhecidos. (KUHN, 1987, p. 145-146).<br />
[...] Em vez de ser um intérprete, o cientista que abraça um novo paradigma é como o<br />
homem que usa lentes inversoras. Defrontado com a mesma constelação de objetos que<br />
antes e tendo consciência disso, ele os encontra, não obstante, totalmente transformados<br />
em muitos de seus detalhes. (KUHN, 1987, p. 157).<br />
Seria possível, no entanto, estabelecer critérios neutros capazes de levar um grupo de<br />
cientistas a decidir-se por um ou outro paradigma Como procedem os cientistas diante<br />
de teorias rivais Para Kuhn, a escolha entre paradigmas, nos momentos de crise, coloca<br />
questões que não podem ser resolvidas por quaisquer critérios da ciência normal. Os debates<br />
entre paradigmas assemelham-se, frequentemente, a um “diálogo de surdos”, que evidencia<br />
a ruptura que está por vir, e justifica o termo “revolução”:<br />
8<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência
Precisamente por tratar-se de uma transição entre incomensuráveis, a transição entre<br />
paradigmas em competição não pode ser feita passo a passo, por imposição da Lógica e<br />
de experiências neutras. Tal como a mudança da forma (Gestalt) visual, a transição deve<br />
ocorrer subitamente (embora não necessariamente num instante) ou então não ocorre<br />
jamais. (KUHN, 1987, p. 190).<br />
E, frequentemente, ela não ocorre. Há diversos exemplos históricos que corroboram<br />
essa visão. Dentre eles, poderíamos citar as dificuldades de aceitação das ideias de Copérnico,<br />
Newton, Darwin, Einstein, entre outros.<br />
Segundo Kuhn, a aceitação de um novo paradigma é um processo complexo que, no<br />
que se refere aos cientistas individuais, envolve razões aparentemente fora da esfera científica,<br />
como crenças e idiossincrasias pessoais. Podem existir também argumentos de natureza<br />
estética, como a “beleza” ou “simplicidade” da teoria.<br />
Isso tudo não significa, porém, que não existam “boas razões” para a adesão a um novo<br />
paradigma. A resolução de problemas cruciais que levaram o antigo paradigma à crise é uma<br />
delas, mas dificilmente seria suficiente, uma vez que, “desarticulado”, o novo paradigma ainda<br />
é uma promessa. A fé nessa promessa pode levar à adesão de um número cada vez maior de<br />
cientistas, que aperfeiçoarão o novo paradigma:<br />
Muitos cientistas serão convertidos e a exploração do novo paradigma prosseguirá.<br />
O número de experiências, instrumentos, artigos e livros baseados no paradigma<br />
multiplicar-se-á gradualmente. Mais cientistas, convencidos da fecundidade da nova<br />
concepção, adotarão a nova maneira de praticar a ciência normal, até que restem apenas<br />
alguns poucos opositores mais velhos. (KUHN, 1987, p. 199-200).<br />
O novo paradigma, embora incomensurável com aquele que o precedeu, deve garantir a<br />
preservação de boa parte das realizações científicas passadas, estabelecidas por paradigmas<br />
anteriores, e ao mesmo tempo permitir a solução de novos problemas, prometendo todo um<br />
conjunto de novos “quebra-cabeças” a serem atacados. A (nova) ciência normal será, uma<br />
vez mais, a “atualização dessa promessa”.<br />
A adesão a um paradigma, assim como a própria prática da ciência normal que dele<br />
decorre, embora sejam, por um lado, processos individuais, são, por outro, também coletivos,<br />
pois ocorrem no seio de uma comunidade científi ca. É esse grupo de profi ssionais que, de<br />
modo bastante esotérico, é capaz de abraçar um paradigma em detrimento de outro e resolver<br />
os quebra-cabeças da ciência normal. É em seu interior que ocorrem as revoluções:<br />
Os membros do grupo, enquanto indivíduos e em virtude de seu treino e experiência<br />
comuns, devem ser vistos como os únicos conhecedores das regras do jogo ou de algum<br />
critério equivalente para julgamentos inequívocos. [...] A comunidade científi ca é um<br />
instrumento extremamente eficaz para maximizar o número e a precisão dos problemas<br />
resolvidos por intermédio da mudança de paradigma. (KUHN, 1987, p. 2<strong>11</strong>).<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência 9
Atividade 2<br />
1<br />
2<br />
3<br />
Explique, com as suas palavras, de que modo a prática da ciência<br />
normal pode levar a uma revolução científica.<br />
O que significa dizer que dois paradigmas são incomensuráveis<br />
Qual o papel da comunidade científica na proposta kuhniana<br />
sua resposta<br />
1.<br />
2.<br />
3.<br />
10<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência
Antes e depois de Kuhn...<br />
Esperamos, até aqui, ter conseguido delinear uma visão (ainda que breve e incompleta)<br />
da atividade científica e do seu processo de desenvolvimento histórico, a partir do referencial<br />
de Thomas S. Kuhn. Vimos que esse autor faz uma análise da ciência bastante diferente da<br />
realizada por Popper, por exemplo.<br />
Em sua abordagem, Kuhn enfatiza o caráter de ruptura presente no desenvolvimento da<br />
ciência, compreendendo-o como uma sequência de períodos de “ciência normal” intercalados<br />
por “revoluções científicas”. Além desses dois conceitos, devemos a esse autor uma série de<br />
outros, tais como: comunidade científi ca, paradigma, incomensurabilidade. Outro aspecto<br />
interessante da filosofia de Kuhn (que muitos preferem chamar de “sociologia da ciência”...)<br />
é a atenção dada à História da Ciência em sua fundamentação.<br />
Como dissemos no início desta aula, “A estrutura das revoluções científi cas” teve um<br />
grande impacto no mundo da Filosofia da Ciência. Embora seja uma simplificação, não seria<br />
absurdo pensarmos em Filosofia da Ciência, no século XX, “antes” e “depois” de Kuhn.<br />
Conceitos kuhnianos transcenderam sua esfera de aplicação, tais como o de paradigma e<br />
o de revolução científica, que passaram a ser utilizados indiscriminadamente nas mais diversas<br />
situações e contextos. Muitos cientistas e fi lósofos enalteceram a análise de Kuhn, por sua<br />
clareza e contribuição à compreensão da ciência. Outros, por sua vez, sentiram-se atingidos<br />
por expressões como “ciência normal”, à qual atribuíram um tom pejorativo (afinal, quem quer<br />
ser um cientista “normal”).<br />
As décadas que se seguiram à publicação da “Estrutura” deixaram evidente que a<br />
contribuição de Kuhn foi significativa, embora alguns de seus conceitos tenham sido objeto<br />
de outras críticas e considerações – de caráter mais construtivo e menos emotivo...<br />
A falta de clareza em relação ao próprio conceito de paradigma, por exemplo, foi algo<br />
levantado por alguns críticos. Aparentemente, vários sentidos poderiam ser atribuídos ao termo<br />
‘paradigma’ a partir da leitura da obra. O próprio Kuhn assume, num Posfácio escrito em 1969,<br />
que há certa ambiguidade nessa conceituação. O autor procura discutir a questão e chega a<br />
propor outro conceito (o de “matriz disciplinar”) para esclarecer melhor a noção de paradigma.<br />
Um conceito kuhniano ainda mais controverso é o de incomensurabilidade. Os partidários<br />
de uma visão continuísta certamente não aceitam uma interpretação do desenvolvimento<br />
histórico da ciência que lance mão da ideia de ruptura. No entanto, mesmo entre os<br />
simpatizantes de uma visão descontinuísta há aqueles que consideram esse conceito pouco<br />
claro. Se levarmos a fundo o significado de ‘incomensurabilidade’, teremos que admitir que<br />
não se pode comparar, sob nenhum aspecto, dois paradigmas diferentes separados por<br />
uma revolução científi ca, tal como a mecânica de Newton e a relatividade de Einstein, por<br />
exemplo. Mas, o próprio Kuhn admite que um novo paradigma deve “preservar parte das<br />
realizações científi cas passadas”, dando um pequeno espaço para se pensar em algum tipo<br />
de “sobreposição” entre paradigmas distintos e sucessivos.<br />
Paradigma<br />
Não entraremos,<br />
aqui, nesse detalhe.<br />
Queremos apenas<br />
apontar alguns focos<br />
de críticas ao trabalho<br />
de Kuhn.<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência <strong>11</strong>
Ainda no terreno de algumas das críticas ao trabalho de Kuhn, cabe dizer que, para muitos,<br />
sua abordagem acabaria promovendo certa “irracionalidade”, ao levar para o terreno científi co<br />
aspectos das relações humanas que colaborariam para passar uma imagem menos racional e<br />
lógica do empreendimento científico. Por exemplo, a ideia de “adesão” a um paradigma pelos<br />
membros de uma comunidade científica, que pode ocorrer – na visão de Kuhn – por questões<br />
estéticas, de crenças etc. Ou, então, a defesa arraigada que os adeptos de um paradigma – e<br />
praticantes da ciência normal – fazem do mesmo, tornando-se “cegos” a novas evidências<br />
e anomalias. Numa leitura kuhniana, o cientista deixa de ser visto como um ser estritamente<br />
racional, guiado por princípios lógicos e aberto à crítica.<br />
Trouxemos algumas críticas ao trabalho de Kuhn para que você possa perceber<br />
que, em Filosofi a da Ciência, todas as abordagens podem ser controversas! Entretanto,<br />
consideramos a perspectiva trazida por esse autor como extremamente poderosa na análise<br />
desse empreendimento humano chamado “ciência”. A obra de Kuhn infl uenciou e continua<br />
infl uenciando discussões atuais sobre a natureza do conhecimento científi co, assim como<br />
aspectos relativos ao ensino da ciência em todos os níveis.<br />
Aliás, há uma questão interessante que decorre da obra de Kuhn e que diz respeito<br />
diretamente à utilização da História e da Filosofi a da Ciência no ensino de ciências. Existem<br />
leituras completamente antagônicas no que se refere àquilo que o autor defenderia para a<br />
educação de um cientista: por um lado, está claro na “Estrutura” que a formação do cientista<br />
tem um caráter dogmático, como vimos. Desse modo, a História da Ciência seria prejudicial<br />
em cursos de formação, pois poderia levar os futuros pesquisadores a duvidar e questionar os<br />
fundamentos, métodos etc. de sua área de atuação. Segundo essa concepção, a formação deve<br />
mesmo ser uma espécie de “treinamento” no paradigma, aumentando sua eficiência na medida<br />
em que se limite a preparar o cientista, por meio dos manuais, para resolver os quebra-cabeças<br />
da ciência normal. Para aqueles que defendem essa leitura, a História deve ser evitada.<br />
Por outro lado, os mesmos argumentos podem ser usados para se defender a presença<br />
da História da Ciência! Ora, tornar o futuro cientista conhecedor do desenvolvimento histórico<br />
de sua própria área e crítico de seus fundamentos pode ser algo desejável. E isso não<br />
necessariamente enfraqueceria a convicção no paradigma (ao menos não há fortes evidências de<br />
que isso aconteça). Para aqueles que se posicionam desse lado, a obra de Kuhn faz uma crítica<br />
aos manuais e ao ensino a-histórico, embora reconheça a eficiência desse tipo de formação.<br />
Nós, autores desta disciplina, concordamos com essa segunda leitura da obra de Kuhn.<br />
Para fi nalizar essa seção, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que, mais<br />
recentemente, surgiram trabalhos em Filosofia da Ciência e na área de Didática das Ciências<br />
que procuram resgatar o pensamento de outro autor que, em certo sentido, teria “antecipado”<br />
algumas das ideias kuhnianas. Trata-se de Ludwig Fleck (1896-1961), um médico polonês que<br />
produziu seus principais trabalhos na primeira metade do século XX. No Prefácio da “Estrutura”,<br />
Kuhn chega a admitir a influência dos trabalhos de Fleck em sua obra.<br />
Não iremos discutir em detalhes as ideias de Fleck. No entanto, valeria a pena fazer uma<br />
breve referência a algumas delas. A partir de uma análise da história e da filosofia da medicina,<br />
12<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência
Fleck propõe uma visão acerca da produção do conhecimento que enfatiza a não neutralidade<br />
dos sujeitos e a infl uência de fatores sociais, históricos, antropológicos e culturais. Cunha<br />
as categorias estilo de pensamento e coletivo de pensamento. A primeira delas refere-se a<br />
uma determinada atitude, modo de pensar e agir compartilhado por um determinado grupo.<br />
A segunda categoria remete exatamente a esse grupo, ou seja, a uma comunidade de pessoas<br />
que compartilha um estilo de pensamento.<br />
Fleck discute de que modo um estilo de pensamento é estendido durante certo período<br />
(uma fase que ele denomina de “harmonia das ilusões”), mas pode sofrer complicações em<br />
outro (“período das exceções”). Tais complicações podem levar à transformação do estilo de<br />
pensamento. Para o autor, estilos de pensamento diferentes apresentam incomensurabilidades<br />
(ou incongruências) entre si.<br />
Mesmo que brevemente, os parágrafos precedentes deixam evidente a similaridade entre<br />
a proposta kuhniana e algumas ideias de Fleck. Nas palavras de Delizoicov et al (2002, p. 64):<br />
Assim, paradigma tem paralelo com estilo de pensamento; comunidade científi ca com<br />
coletivo de pensamento; ciência normal com extensão do estilo de pensamento; revolução<br />
científi ca com transformação do estilo de pensamento e anomalias do paradigma com<br />
complicações da teoria dominante.<br />
Um aprofundamento da sociogênese do conhecimento de Fleck pode ser encontrado<br />
mais adiante, nas “Sugestões de leitura” desta aula.<br />
Atividade 3<br />
Resgate alguma das críticas endereçadas à obra de Thomas Kuhn, apresentadas na<br />
seção anterior, dizendo se você concorda ou não com ela. Justifique sua resposta.<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência<br />
13
Uma leitura kuhniana da História<br />
Podemos fazer uma leitura kuhniana da História da Ciência, assim como tentamos fazer<br />
leituras empiristas e refutacionistas Sim, nós podemos.<br />
Um setor bastante propício a isso (usado, aliás, pelo próprio Kuhn) é a História da<br />
Mecânica, particularmente no que diz respeito à passagem do geocentrismo ao heliocentrismo.<br />
A visão de mundo dominante na Antiguidade e na Idade Média era a geocêntrica. Fruto das ideias<br />
de diversos pensadores, como Platão, Aristóteles e Ptolomeu, vimos como o geocentrismo<br />
consolidou-se, ao longo de séculos, como um paradigma. É comum, inclusive, encontrarmos<br />
referências a ele como paradigma aristotélico-ptolomaico.<br />
Numa perspectiva kuhniana, a superação desse modelo de mundo pelo heliocentrismo,<br />
decorrente do trabalho de diversos outros pensadores, tais como Copérnico, Bruno, Galileu,<br />
Kepler, Descartes e Newton, dá-se por meio de uma revolução científi ca. Tal revolução,<br />
inclusive, costuma ser denominada de “revolução científi ca do século XVII” ou “revolução<br />
da ciência moderna”. Ela representa a passagem de um paradigma a outro: do aristotélicoptolomaico<br />
ao newtoniano.<br />
Uma série de elementos da proposta de Kuhn podem ser utilizados na interpretação<br />
desse episódio. Podemos, por exemplo, ver os praticantes de cada paradigma como “cientistas<br />
normais”, cada qual apegado a sua respectiva tradição e trabalhando em sua articulação.<br />
O próprio Ptolomeu pode ser visto desse modo, na medida em que os diversos mecanismos<br />
que cria para dar conta do movimento dos astros (epiciclos, equantos etc.) representariam<br />
uma tentativa de articular o modelo geocêntrico e ajustar os dados de observação ao modelo<br />
teórico. Da mesma forma, assim que o paradigma newtoniano se instaura, pesquisadores dos<br />
séculos XVIII e XIX, por exemplo, expandirão as fronteiras dessa particular visão de mundo,<br />
aplicando o paradigma para resolver quebra-cabeças em diversas áreas (na própria mecânica,<br />
mas também na óptica, na eletricidade, no estudo do calor etc.).<br />
Outros, como Galileu, podem ser considerados “personagens de transição”, atuantes no<br />
que Kuhn denomina de “período revolucionário”. Geralmente, são personagens muito ricos do<br />
ponto de vista da análise histórica, pois refletem as incertezas do período e as dificuldades no<br />
tratamento das anomalias. Galileu é exemplo de tudo isso. Suas observações telescópicas, na<br />
perspectiva de Kuhh, evidenciam como os defensores de paradigmas conflitantes vivem em<br />
mundos diferentes: muitos não viam (literalmente) o que Galileu afirmava ver com a luneta...<br />
E o que ele observou – satélites em Júpiter, fases de Vênus, manchas solares, crateras na Lua<br />
– serviu de material para fomentar a crise do paradigma anterior.<br />
A resistência à adesão a uma nova visão de mundo e o conservadorismo relacionado à<br />
prática da ciência normal pode ser ilustrado, ainda com referência a Galileu, com a dificuldade<br />
da aceitação do heliocentrismo na época em que foi proposto e pela repressão a essas ideias por<br />
parte da Igreja Católica. Os julgamentos de Bruno e Galileu são emblemáticos a esse respeito.<br />
14<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência
Para Kuhn, a transição do geocentrismo ao heliocentrismo é uma transição entre<br />
paradigmas incomensuráveis. Com a revolução, os conceitos anteriores encontram-se<br />
reestruturados e devem ser vistos sob nova ótica. Podemos exemplificar isso com o conceito<br />
de movimento, que tem para Aristóteles um sentido muito mais genérico do que assumirá no<br />
contexto newtoniano.<br />
A transição entre o geocentrismo e o heliocentrismo pode ser, portanto, vista sob a<br />
ótica kuhniana e interpretada à luz de conceitos como paradigma, revolução científi ca,<br />
incomensurabilidade etc. Outros momentos da história da Física poderiam ser lembrados<br />
aqui, tais como o surgimento das Teorias da Relatividade e da Mecânica Quântica, na virada<br />
do século XIX para o século XX, que representaram revoluções científicas e instauraram novos<br />
paradigmas, em oposição à denominada Física Clássica.<br />
Atividade 4<br />
1<br />
O trecho a seguir é uma fala do físico Max Planck, um dos principais<br />
nomes associado ao surgimento da Mecânica Quântica:<br />
“[...] uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes<br />
e fazendo com que vejam a luz, mas porque seus oponentes fi nalmente<br />
morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela.” (PLANCK apud<br />
KUHN, 1987, p. 191)<br />
Analise e discuta esse trecho, considerando o referencial kuhniano de<br />
análise do desenvolvimento científico, apresentado nesta aula.<br />
2<br />
Cite um aspecto em que a fi losofi a de Kuhn pode representar uma<br />
oposição à abordagem de Popper, tratada na aula anterior.<br />
1.<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência<br />
15
2.<br />
Leituras complementares<br />
DELIZOICOV et al. Sociogênese do conhecimento e pesquisa em ensino: contribuições a partir<br />
do referencial Fleckiano. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 19, p. 50-66, mar. 2002.<br />
Número especial. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2009.<br />
Nesse artigo, os autores apresentam uma introdução ao pensamento de Ludwig Fleck,<br />
procurando apontar as relações de suas ideias com a proposta de Thomas Kuhn. Além<br />
disso, abordam algumas das contribuições de Fleck ao entendimento de questões da área<br />
de ensino de ciências.<br />
MOZENA, E. R. A história e a filosofia da ciência nos manuais didáticos sobre o problema da<br />
radiação de corpo negro (PRCN): por que não oferecer a física como cultura In: MARTINS,<br />
A. F. P. (Org.). Física ainda é cultura São Paulo: Editora Livraria da Física, 2009. p. 231-258.<br />
Esse capítulo de livro traz uma discussão sobre a análise kuhniana dos “manuais<br />
didáticos” e do papel desses instrumentos na formação de cientistas. Em especial, a autora<br />
discute o modo pelo qual a temática da radiação de corpo negro surge nesses manuais.<br />
OLIVEIRA, B. J. Kuhn contra os kuhnianos. In: MARTINS, R. A. et al (Ed.). Filosofia e história<br />
da ciência no Cone Sul: 3º encontro. Campinas: AFHIC, 2004. p. 74-80.<br />
O artigo aborda a crítica do próprio Kuhn aos historiadores da ciência que radicalizaram<br />
algumas de suas idéias, bem como a revisão que esse autor faz de conceitos centrais de seu<br />
pensamento, como as noções de incomensurabilidade e de revolução científica.<br />
OSTERMANN, F. A epistemologia de Kuhn. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 13,<br />
n. 3, p. 184-196, dez. 1996. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2009.<br />
16<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência
A autora apresenta os principais conceitos da epistemologia de Kuhn, procurando situar<br />
o pensamento desse autor no campo da Filosofi a da Ciência e apontar sua importância no<br />
entendimento de questões de ensino.<br />
PEDUZZI, L. O. Q. Sobre continuidades e descontinuidades no conhecimento científico: uma<br />
discussão centrada na perspectiva kuhniana. In: SILVA, C. C. (Org.). Estudos de história e<br />
fi losofi a das ciências: subsídios para aplicação no ensino. São Paulo: Editora Livraria da<br />
Física, 2006. p. 59-83.<br />
Tendo como referência a obra de Thomas Kuhn, o autor analisa as perspectivas de ruptura<br />
e de continuidade do conhecimento científico.<br />
Resumo<br />
Nesta aula, abordamos o pensamento de Thomas S. Kuhn e os principais<br />
conceitos de sua filosofia: ciência normal, paradigma, revolução científica,<br />
incomensurabilidade, comunidade científica. Vimos como a abordagem desse autor<br />
reforça o fazer científico como uma prática social, enfatizando aspectos sociológicos<br />
do desenvolvimento do conhecimento. Analisamos a importância e o impacto de<br />
sua obra no terreno da Filosofia da Ciência. Apontamos, por fim, a possibilidade de<br />
realizarmos uma leitura kuhniana de episódios da História da Ciência.<br />
Autoavaliação<br />
Com base na leitura desta aula e nas Atividades desenvolvidas por você, reflita sobre as<br />
seguintes questões:<br />
1<br />
2<br />
Sou capaz de perceber as principais características da filosofia de Thomas Kuhn<br />
Compreendo os conceitos centrais da análise kuhniana da ciência<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência<br />
17
3<br />
4<br />
Sei comparar as fi losofi as de Kuhn e de Popper, estabelecendo semelhanças e<br />
diferenças<br />
Consigo realizar uma leitura da História da Ciência embasada na perspectiva de Kuhn<br />
Referências<br />
CHALMERS, A. F. O que é ciência, afinal São Paulo: Brasiliense, 1993.<br />
DELIZOICOV et al. Sociogênese do conhecimento e pesquisa em ensino: contribuições a partir<br />
do referencial Fleckiano. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 19, p. 50-66, mar. 2002.<br />
Número especial. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2009.<br />
KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.<br />
MARTINS, A. F. P. O ensino do conceito de tempo: contribuições históricas e epistemológicas.<br />
1998. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação/Instituto de Física, Universidade de<br />
São Paulo, São Paulo, 1998.<br />
OSTERMANN, F. A epistemologia de Kuhn. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 13,<br />
n. 3, p. 184-196, dez. 1996. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2009.<br />
ZANETIC, J. FMT405 - Evolução dos conceitos da física: notas de aula. São Paulo: Instituto<br />
de Física da USP, 2008. Mimeo.<br />
18<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência
Anotações<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência<br />
19
Anotações<br />
20<br />
<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência