26.12.2014 Views

N.R.P. BARTOLOMEU DIAS - Marinha de Guerra Portuguesa

N.R.P. BARTOLOMEU DIAS - Marinha de Guerra Portuguesa

N.R.P. BARTOLOMEU DIAS - Marinha de Guerra Portuguesa

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Generated by PDFKit.NET Evaluation<br />

HISTÓRIAS DA BOTICA (65)<br />

O rei das pequenas coisas<br />

Qual é a essência<br />

da alma portuguesa<br />

Se o leitor meditar naquela<br />

pergunta, assim,<br />

a seco e <strong>de</strong> rompante,<br />

várias i<strong>de</strong>ias lhe ocorrerão<br />

<strong>de</strong>certo – <strong>de</strong> forma<br />

a respon<strong>de</strong>r <strong>de</strong> forma<br />

acertada. A essência<br />

da alma portuguesa,<br />

dirão alguns, está bem<br />

representada no Fado –<br />

não só na canção, mas<br />

na genérica melancolia<br />

que nos caracteriza<br />

e pela qual somos internacionalmente<br />

conhecidos.<br />

Outros que<br />

não. Não terão sido o<br />

Fado, nem a melancolia.<br />

Foi, isso sim, o espírito<br />

aguerrido <strong>de</strong> uns<br />

quantos nobres, ao longo<br />

da história, que por<br />

artes da guerra e da política,<br />

ousaram manter<br />

Portugal livre dos seus<br />

opressores e construíram<br />

um Império que<br />

abrangeu todos os continentes.<br />

Talvez ambas<br />

estas i<strong>de</strong>ias estejam correctas.<br />

Contudo, eu, homem inculto e, as<br />

mais das vezes, irreflectido, ouso aqui expor<br />

o que consi<strong>de</strong>ro ser a principal característica<br />

dos homens e mulheres <strong>de</strong> Portugal.<br />

Assim ouse também o leitor paciente<br />

seguir com atenção a história que tenho<br />

para contar.<br />

A história começa há muitos anos quando<br />

<strong>de</strong>terminado jovem médico embarcou<br />

pela primeira vez. Perdido num mundo<br />

naval, para ele, quase <strong>de</strong>sconhecido. Foi<br />

conhecendo sítios e pessoas <strong>de</strong> uma cultura<br />

nova. Percebeu com espanto que, em<br />

qualquer porto do mundo, por mais exótico<br />

que ele fosse, se ao primeiro dia o navio<br />

tardava em dar licenças. Ao segundo dia<br />

já se encontravam marinheiros em muitos<br />

pontos. Nos cafés, nos supermercados. Já<br />

havia este ou aquele marujo que travara<br />

conhecimento com este ou aquele taxista.<br />

Combinara com ele, rapidamente, uma<br />

viagem preferencial <strong>de</strong> turismo, por que o<br />

marujo português ganha pouco e é simpático…<br />

ou, pura e simplesmente, conseguira<br />

<strong>de</strong>scontos previamente negociados a<br />

preços módicos, <strong>de</strong> qualquer lugar até ao<br />

cais <strong>de</strong> atracação. Esses e outros <strong>de</strong>scontos<br />

eram extensivos a todos os camaradas,<br />

acontecendo muitas vezes que bastava que<br />

Click here to unlock PDFKit.NET<br />

junto do condutor do táxi, ou ao balcão <strong>de</strong><br />

qualquer loja se percebesse que o cliente<br />

era português, ou o mesmo se i<strong>de</strong>ntificasse<br />

como tal, para atingir um patamar diferente<br />

<strong>de</strong> atendimento.<br />

Acontece que esse médico acabou por<br />

gostar, ele também, <strong>de</strong> sabores exóticos<br />

como <strong>de</strong>terminados licores <strong>de</strong> frutas – tal<br />

como o licor <strong>de</strong> maracujá. Aconteceu mesmo<br />

que em <strong>de</strong>terminada estadia num país<br />

da América do Sul, a Colômbia, <strong>de</strong>cidiu<br />

comprar uma garrafa para levar <strong>de</strong> recordação<br />

– era para o dia <strong>de</strong> anos do seu pai,<br />

que ele sabia ser apreciador <strong>de</strong> tais espíritos,<br />

digamos, quase medicinais. Ora ia precisamente<br />

o doutor materializar o acto <strong>de</strong><br />

compra <strong>de</strong> tal garrafa <strong>de</strong> licor <strong>de</strong> maracujá<br />

pelo valor que correspon<strong>de</strong>ria em dinheiro<br />

português <strong>de</strong> então a cerca <strong>de</strong> 1000 escudos,<br />

quando por milagre surgiu vindo do<br />

nada o Sr. Cabo Alcino – militar antigo <strong>de</strong><br />

ida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> muitos embarques. Este <strong>de</strong> imediato<br />

<strong>de</strong>svalorizou o produto, em frente do<br />

ven<strong>de</strong>dor. Que não prestava, que era azedo.<br />

Que a garrafa tinha resíduo. Não <strong>de</strong>ixou,<br />

portanto, o digníssimo clínico comprar<br />

o produto. Este jovem médico ficou a um<br />

tempo confuso e furioso, afinal tinha tudo<br />

muito bem planeado para fazer o negócio<br />

da sua vida e aquele Cabo, metediço e arreliador,<br />

gorara as suas expectativas. Fora<br />

da loja tomaram-se <strong>de</strong> razões, até que o<br />

velho Cabo sorrindo, sem dar gran<strong>de</strong> troco<br />

ao discípulo <strong>de</strong> Hipócrates, lá o foi arrastando<br />

por vielas escuras daquela também antiga<br />

cida<strong>de</strong> Colombiana. Pararam, por fim,<br />

numa tasca <strong>de</strong> aspecto pouco digno, suja<br />

até. Falou então o senhor Cabo num perfeito<br />

castelhano da Raia <strong>de</strong> Portugal, dirigindo­<br />

‐se a um rapazito que não aparentava mais<br />

<strong>de</strong> quinze anos:<br />

- Oiga Juanito, don<strong>de</strong> estan las botellitas<br />

O rapaz colombiano apresentou então,<br />

seis lustrosas garrafas, exactamente do mesmo<br />

produto licoroso e marca que o jovem<br />

médico queria levar como recordação. Estas<br />

estavam primorosamente embrulhadas<br />

em embalagem <strong>de</strong> bambu e, surpresa das<br />

surpresas, vendiam-se por menos <strong>de</strong> meta<strong>de</strong><br />

do preço que o médico esteve prestes a<br />

pagar por uma só garrafa…<br />

Encontrei este mesmo Cabo, que há muito<br />

tempo não via, por fortuito acaso, numa<br />

cama <strong>de</strong> um hospital estranho, pois o “manso”<br />

médico era eu. Não me falou logo. Li­<br />

‐lhe nos olhos o medo <strong>de</strong> que com os anos<br />

e a fraca memória <strong>de</strong> muitos, já não me<br />

Revista da Armada • JULHO 2009 31

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!