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N.R.P. BARTOLOMEU DIAS - Marinha de Guerra Portuguesa

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PIRATARIA MARÍTIMA – UMA PERSPECTIVA ACTUAL<br />

Reflexões sobre o combate à pirataria no séc. XXI<br />

A<br />

pirataria faz parte do imaginário cinematográfico<br />

associado a séculos passados mas, na<br />

realida<strong>de</strong>, nunca <strong>de</strong>sapareceu totalmente. O<br />

que sucedia é que a maior parte dos ataques verificados<br />

nas décadas mais recentes ocorria na Ásia –<br />

relativamente longe dos olhares oci<strong>de</strong>ntais. No entanto,<br />

este cenário mudou nos últimos anos.<br />

Por um lado, Indonésia, Singapura e Malásia associaram-se,<br />

a partir <strong>de</strong> 2004, em patrulhas tripartidas<br />

e a pirataria diminuiu drasticamente no estreito<br />

<strong>de</strong> Malaca, no estreito <strong>de</strong> Singapura, na Indonésia<br />

e na Malásia.<br />

Por outro lado, em África (no Golfo da Guiné e,<br />

sobretudo, na costa da Somália – mais perto portanto<br />

dos olhares oci<strong>de</strong>ntais), tem-se assistido a<br />

um aumento significativo da pirataria. No ano <strong>de</strong><br />

2008, 40% dos ataques relatados 1 em todo o Mundo<br />

ocorreu no Corno <strong>de</strong> África, sendo importante<br />

referir que a activida<strong>de</strong> pirata nesta<br />

área oscila, em gran<strong>de</strong> medida, ao ritmo<br />

das monções. Dessa forma tem-se<br />

verificado que os ataques piratas aumentam<br />

nos períodos entre monções,<br />

i.e. em Abril / Maio e em Outubro /<br />

Novembro. Trata-se <strong>de</strong> uma área extremamente<br />

sensível, representando a<br />

principal rota comercial entre a Europa<br />

e a Ásia, facto ilustrado pelos mais<br />

<strong>de</strong> 33.000 navios que passam todos<br />

os anos no Golfo <strong>de</strong> A<strong>de</strong>m. Em 2009,<br />

a pirataria intensificou-se ainda mais,<br />

com o número <strong>de</strong> ataques relatados<br />

nos primeiros 3 meses do ano a duplicar<br />

os valores <strong>de</strong> 2008.<br />

Face a esta realida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r-se-ia<br />

pensar que a indústria do transporte<br />

marítimo adoptasse uma rota alternativa, contornando<br />

África, em vez <strong>de</strong> seguir o atalho do Golfo<br />

<strong>de</strong> A<strong>de</strong>m / Mar Vermelho / Canal do Suez. No entanto,<br />

apesar da ameaça <strong>de</strong> pirataria, os operadores<br />

mercantes continuam a preferir a rota do Corno <strong>de</strong><br />

África. Tal <strong>de</strong>ve-se sobretudo a 2 motivos.<br />

Em primeiro lugar, a circum-navegação <strong>de</strong> África<br />

correspon<strong>de</strong> a um acréscimo na distância a percorrer<br />

que po<strong>de</strong> chegar a cerca <strong>de</strong> 5.000 milhas<br />

náuticas, o que significa que um navio mercante a<br />

12 nós <strong>de</strong>moraria mais 17 dias a fazer o percurso<br />

entre a Ásia e a Europa e vice-versa. Se tal viesse a<br />

acontecer, os custos do transporte marítimo aumentariam<br />

significativamente, o que teria um impacto<br />

enorme não só na indústria marítima, mas também<br />

e inevitavelmente no consumidor final, que veria os<br />

preços da maioria dos bens a aumentar.<br />

Em segundo lugar, embora estejamos a assistir a<br />

um aumento <strong>de</strong> ataques, a percentagem <strong>de</strong> incidência<br />

ainda é relativamente baixa face ao elevadíssimo<br />

número <strong>de</strong> navios que passam na área.<br />

Dessa forma, os operadores preferem o risco <strong>de</strong><br />

ter que pagar um resgate aos piratas, no caso <strong>de</strong> serem<br />

alvo <strong>de</strong> ataque (possibilida<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> tudo,<br />

não muito elevada), à alternativa <strong>de</strong> circum-navegar<br />

África e tornarem-se menos competitivos no mercado<br />

global.<br />

Parece assim evi<strong>de</strong>nte que o tráfego marítimo<br />

continuará a passar pelo Corno <strong>de</strong> África, pelo que<br />

não será pela ausência <strong>de</strong> potenciais vítimas que<br />

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o problema da pirataria se resolverá. A solução do<br />

problema <strong>de</strong>verá passar por duas linhas <strong>de</strong> acção<br />

concorrentes: um esforço da comunida<strong>de</strong> internacional<br />

para o state building na Somália, que mitigue<br />

as causas socioeconómicas que estão na raiz<br />

da pirataria, e um efectivo patrulhamento dos mares,<br />

que dissuada os ataques, fazendo os piratas perceber<br />

que os riscos que correm são superiores aos<br />

potenciais benefícios.<br />

No entanto, na actual conjuntura geo-estratégica,<br />

em que os EUA, bem como a NATO e a maioria dos<br />

países europeus, estão profundamente envolvidos<br />

na construção <strong>de</strong> Estados viáveis no Afeganistão e<br />

no Iraque, não parece haver capacida<strong>de</strong> disponível<br />

para uma intervenção <strong>de</strong> state building na Somália.<br />

Recor<strong>de</strong>-se que os EUA tentaram uma intervenção<br />

terrestre na Somália, em 1993, no tempo da administração<br />

Clinton, tendo retirado pouco <strong>de</strong>pois na<br />

O helicóptero orgânico das fragatas portuguesas é fundamental no combate<br />

à pirataria.<br />

sequência do célebre caso da queda <strong>de</strong> dois Black<br />

Hawk, em Mogadíscio.<br />

Neste enquadramento, parece claro que a melhor<br />

forma que a comunida<strong>de</strong> internacional tem para lidar<br />

com este problema é o reforço do patrulhamento<br />

por navios <strong>de</strong> guerra. Isto mesmo foi percebido pela<br />

NATO, pela UE, e por paises como a China, os EUA,<br />

o Japão e a Rússia, entre outros, que enviaram forças<br />

navais ou navios para a área.<br />

Estarão na área cerca <strong>de</strong> 40 navios <strong>de</strong> guerra, o que<br />

mostra bem a importância que os países <strong>de</strong>senvolvidos<br />

estão a atribuir a esta questão, pelas implicações<br />

que está a ter (e po<strong>de</strong>rá ainda vir a ter) na economia<br />

mundial. No entanto, este número é ainda insuficiente,<br />

principalmente por duas or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> razões: pela<br />

vastidão da área <strong>de</strong> actuação dos piratas e pela rapi<strong>de</strong>z<br />

com que eles executam os ataques.<br />

Relativamente à área <strong>de</strong> actuação, importa referir<br />

que só para patrulhar eficazmente o Golfo <strong>de</strong> A<strong>de</strong>m<br />

(que tem uma área <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 100 mil milhas quadradas)<br />

se estima serem necessários cerca <strong>de</strong> 60 navios<br />

2 , sendo que os piratas estão a actuar cada vez<br />

mais longe da costa e com crescente violência. Já<br />

houve ataques e tentativas <strong>de</strong> ataques a cerca <strong>de</strong> 700<br />

milhas da costa e, inclusive, em latitu<strong>de</strong>s abaixo das<br />

Seicheles. Isso significa que a área <strong>de</strong> actuação dos piratas<br />

somalis extravasou do Golfo <strong>de</strong> A<strong>de</strong>m e da costa<br />

da Somália para quase todo o Índico oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Relativamente à rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> execução dos ataques,<br />

cabe referir que há relatos <strong>de</strong> ataques perpetrados<br />

em cerca <strong>de</strong> 3 minutos, sendo que habitualmente<br />

não exce<strong>de</strong>m 15 minutos. Isso correspon<strong>de</strong> a<br />

dizer que o tempo <strong>de</strong> reacção dos navios <strong>de</strong> guerra<br />

é minímo, razão pela qual é requerida uma elevada<br />

<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> navios <strong>de</strong> guerra para que possam<br />

intervir atempadamente.<br />

Neste momento, já existem alguns navios mercantes<br />

que se juntam em pequenos grupos, <strong>de</strong><br />

forma a atravessarem, em companhia, o corredor<br />

<strong>de</strong> tráfego estabelecido no Golfo <strong>de</strong> A<strong>de</strong>m, habitualmente<br />

sob cobertura dos navios <strong>de</strong> guerra aí<br />

presentes. No entanto, os operadores mercantes<br />

têm mostrado relutância em organizar comboios<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> dimensão, para serem escoltados por<br />

navios <strong>de</strong> guerra, tal como suce<strong>de</strong>u na 2ª guerra<br />

mundial. Tal <strong>de</strong>ve-se fundamentalmente a dois motivos<br />

principais. Em primeiro lugar, isso obrigaria<br />

os navios a terem que se sujeitar aos horários dos<br />

comboios, o que po<strong>de</strong>ria obrigá-los a<br />

esperar largas horas, já que para este<br />

sistema ser eficiente a frequência dos<br />

comboios não po<strong>de</strong>ria ser muito elevada<br />

(eventualmente diária). Em segundo<br />

lugar, obrigaria todos os navios a navegar<br />

à velocida<strong>de</strong> do navio mais lento<br />

do comboio, provocando naturais<br />

atrasos. No entanto, em caso <strong>de</strong> agravamento<br />

do problema da pirataria, não<br />

é <strong>de</strong> excluir que a indústria do transporte<br />

marítimo reveja as suas reservas<br />

à navegação em comboio.<br />

Finalmente, gostaria <strong>de</strong> referir que,<br />

apesar da sua complexida<strong>de</strong>, as marinhas<br />

em geral, e a <strong>Marinha</strong> <strong>Portuguesa</strong><br />

em particular, estão preparadas para enfrentar<br />

este problema. A maior limitação<br />

acaba por resultar dos condicionamentos legais, tratados<br />

em artigo à parte. De qualquer maneira, é indubitável<br />

que a presença das marinhas <strong>de</strong> guerra no<br />

Corno <strong>de</strong> África é essencial para dissuadir esta activida<strong>de</strong>,<br />

que tão gran<strong>de</strong>s implicações po<strong>de</strong> vir a ter<br />

no dia-a-dia <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> nós. Os prejuízos anuais<br />

causados, actualmente, pela pirataria foram estimados<br />

em 12 mil milhões <strong>de</strong> euros, parte dos quais já<br />

estará a ser suportada pelos consumidores. No entanto,<br />

este valor multiplicar-se-á, com um impacto<br />

inimaginável nos preços <strong>de</strong> muitos bens, se a comunida<strong>de</strong><br />

internacional não conseguir pôr um travão à<br />

pirataria somali.<br />

<br />

Nuno Sardinha Monteiro<br />

CFR<br />

Notas<br />

1<br />

Segundo algumas fontes, o número <strong>de</strong> ataques relatados<br />

oscilará entre 10% a 50% do número <strong>de</strong> ataques<br />

real. De facto, os operadores evitam, sempre que<br />

po<strong>de</strong>m, comunicar às autorida<strong>de</strong>s que foram alvo <strong>de</strong><br />

um ataque pirata, pois isso po<strong>de</strong> implicar um aumento<br />

dos prémios <strong>de</strong> seguro e uma paragem do navio, para<br />

que as autorida<strong>de</strong>s investiguem a ocorrência.<br />

2<br />

Embora os 40 navios <strong>de</strong> guerra presentes na área já<br />

estejam a conseguir excelentes resultados, quase erradicando<br />

a pirataria no Golfo <strong>de</strong> A<strong>de</strong>m e obrigando os<br />

piratas a procurar outras áreas para actuarem.<br />

Agra<strong>de</strong>cimento<br />

Agra<strong>de</strong>ço os comentários e contributos do CMG Novo<br />

Palma, do CFR Neves Correia, do CFR Portela Gue<strong>de</strong>s e do<br />

CFR Cortes Lopes.<br />

Revista da Armada • JULHO 2009 19

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