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Untitled - Repositório Científico do Instituto Politécnico do Porto

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3<br />

polissema<br />

Revista de Letras<br />

<strong>do</strong> <strong>Instituto</strong> Superior de Contabilidade e Administração <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />

2003 / Nº 3<br />

Direcção:<br />

Cristina Pinto da Silva<br />

Paula Ramalho Almeida<br />

Conselho Editorial:<br />

Clara Sarmento<br />

Joana Castro Fernandes<br />

Manuela Veloso<br />

Manuel Moreira da Silva<br />

Maria <strong>do</strong> Céu Pontes<br />

Sara Cerqueira<br />

Suzana Noronha Cunha<br />

Revisão: Luísa Langford, Marco Furta<strong>do</strong>, Maria Clara Carvalho, Maria da<br />

Conceição Pontes, Maria de Fátima Ferreira, Maria de Lurdes Guimarães, Pedro<br />

Ruiz, Sandra Ribeiro.<br />

Direcção e Edição<br />

Polissema<br />

<strong>Instituto</strong> Superior de Contabilidade e Administração <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />

Rua Jaime Lopes Amorim<br />

4465-111 S. Mamede de Infesta<br />

Tel: 22 905 00 82<br />

Fax: 22 902 58 99<br />

Correio electrónico: polissema@iscap.ipp.pt<br />

Solicita e corresponderá a permuta com outras publicações.<br />

Depósito legal nº:<br />

ISSN: 1645-1937<br />

Tiragem: 500 ex.<br />

Composição e paginação: Polissema<br />

Impressão: Marca AG_<strong>Porto</strong>_Junho.2002<br />

Design gráfico da capa: Steven Sarson


ÍNDICE<br />

PREÂMBULOS<br />

Agradecimentos<br />

Editorial<br />

Traduzir de Novo / Dalila Lopes<br />

Traduzir é Preciso / Alberto Manuel Carneiro <strong>do</strong> Couto<br />

TRADUZIR<br />

A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude, de Paul Auster / Clara<br />

Sarmento<br />

Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation from German into<br />

Portuguese / Dalila Lopes<br />

Linguística Funcional e Tradução / Kai Immig<br />

Breakfast in America é só “Um Mata-Bicho à Americana”? / M. Helena A. G.<br />

Anacleto<br />

A Queda de Ícaro, de Brueghel e Schimmernde Inselchen im Meer, de Robert<br />

Walser – Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica / Maria Helena<br />

Guimarães<br />

Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução / Maria José Almeida<br />

TRADUÇÕES<br />

Michel Houellebecq – “Consolation Technique”<br />

Elisabete Teixeira da Cunha<br />

Heinrich Böll – “Die Waage der Baleks”<br />

Álvaro Ferreira e Paula Cruz<br />

Ingrid Noll – “Stich für Stich”<br />

Micaela Marques Moura e Rosa Duarte e Silva<br />

Connie Zweig e Jeremiah Abrams – “The Sha<strong>do</strong>w” (excertos)<br />

Liliana Cruz<br />

Alice Walker – “The Flowers” (excerto)<br />

Sofia Morais d‟Almeida


5<br />

Marilyn Krysl – “The Thing Around Them” (excerto)<br />

Ana Maria Salgueiro Barbosa<br />

Edgar Allan Poe – “The Black Cat”<br />

Maria da Assunção Norinho e Sérgio Alves<br />

José Eduar<strong>do</strong> Agualusa – “Dos Perigos <strong>do</strong> Riso”<br />

Marilene Ribeiro<br />

Saúl Dias – “Retrato”<br />

Paula Ramalho Almeida<br />

TRADUÇÃO E MULTIMÉDIA<br />

A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> – Da Arte à Linha de Montagem /<br />

Alexandra Albuquerque e Maria de Lurdes Guimarães<br />

Sistemas Multimédia Aplica<strong>do</strong>s ao Ensino da Tradução – Estu<strong>do</strong> de um Caso /<br />

Manuel F. Moreira da Silva<br />

A Nova Torre de Babel – Que Futuro para a Tradução Automática? / Sara<br />

Cerqueira<br />

Alguns Recursos em Linha / Filipe Pinto<br />

RECENSÕES<br />

“Translators as Hostages of History”, de Theo Hermans e Ubal<strong>do</strong> Stecconi /<br />

Carla de Jesus<br />

Samurai: Nome de Código, de Neal Stephenson / Clara Sarmento<br />

The Dante Club, de Matthew Pearl / Clara Sarmento<br />

Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus, et al. / Joana<br />

Castro Fernandes<br />

EM ANEXO<br />

Relatório de Actividades 2002/2003


preâmbulos


AGRADECIMENTOS<br />

Agradecemos o apoio essencial <strong>do</strong> Conselho Directivo <strong>do</strong> ISCAP, o<br />

subsídio generoso da Caixa Geral de Depósitos, assim como a contribuição<br />

valiosa <strong>do</strong> Dr. Júlio Costa, <strong>do</strong> Gabinete de Comunicação e Relações Públicas<br />

<strong>do</strong> ISCAP.


EDITORIAL<br />

Chama-se este terceiro volume da Polissema “Traduzir”. Assim mesmo,<br />

no infinito, forma verbal que nos remete para o processo de tradução, caminho<br />

árduo <strong>do</strong>s que se situam entre palavras, o princípio de todas as coisas, e entre<br />

textos, entre línguas, entre culturas. Damos conta de alguns <strong>do</strong>s múltiplos<br />

desafios que os tradutores enfrentam, tocan<strong>do</strong> em muitas áreas, das novas<br />

tecnologias à semiótica, da literatura à linguística.<br />

Esta é uma revista académica e científica, mas serve também de<br />

testemunho <strong>do</strong> percurso que professores e alunos da Licenciatura em Tradução<br />

Especializada <strong>do</strong> ISCAP vão fazen<strong>do</strong> em conjunto. Daí o número significativo<br />

de traduções, de excelente qualidade, feitas por alunos, prova de um entusiasmo<br />

pela actividade tradutiva, que muito promete. Somos um conselho editorial<br />

privilegia<strong>do</strong>: não é só para os alunos que trabalhamos; é, de facto, com eles que<br />

esta revista se faz.<br />

Tem a última palavra o poeta, onde vislumbramos a essência da relação<br />

polissémica entre o tradutor, o autor, o texto e a linguagem:<br />

Não meu, não meu é quanto escrevo.<br />

A quem o devo?<br />

De quem sou o arauto na<strong>do</strong>?<br />

Porque engana<strong>do</strong>,<br />

Julguei ser meu o que era meu?<br />

Fernan<strong>do</strong> Pessoa<br />

Saudações aos nossos leitores.<br />

O conselho editorial<br />

A direcção


9<br />

TRADUZIR DE NOVO<br />

Dalila Lopes<br />

Como Presidente <strong>do</strong> Conselho Científico, congratulo-me com a saída da<br />

POLISSEMA 3, uma iniciativa <strong>do</strong>s <strong>do</strong>centes da área de Línguas e Culturas <strong>do</strong><br />

ISCAP (nos quais aliás me incluo), iniciativa que dignifica o nosso <strong>Instituto</strong>, na<br />

medida em que divulga o trabalho de investigação <strong>do</strong>s nossos <strong>do</strong>centes e<br />

alunos.<br />

É sabi<strong>do</strong> que manter a periodicidade de uma revista é uma tarefa tão ou<br />

mais complexa <strong>do</strong> que manter a sua qualidade. A POLISSEMA vai agora no seu<br />

número 3, cumprin<strong>do</strong> a periodicidade anual a que se propôs no início; quanto à<br />

qualidade, esta está à vista de to<strong>do</strong>s e aberta ao julgamento <strong>do</strong>s seus leitores.<br />

A POLISSEMA 3 tem como temática “Traduzir”. Esta temática dá conta<br />

<strong>do</strong>s progressos feitos por <strong>do</strong>centes e alunos a nível de investigação, e também<br />

<strong>do</strong> esforço de actualização feito pelo ISCAP nos últimos tempos, a nível de<br />

equipamento de apoio à actividade tradutiva.<br />

Saú<strong>do</strong>, por isso, não só to<strong>do</strong>s os que, no <strong>Instituto</strong>, contribuíram e<br />

contribuem para a actualização (e por que não dizê-lo?) para a criação de uma<br />

certa linha de vanguarda nos estu<strong>do</strong>s sobre tradução e na sua prática, como<br />

também, e muito em particular, os que directamente trabalharam e trabalham<br />

para o êxito da POLISSEMA, que, rapidamente, passou de um projecto a uma<br />

realidade.<br />

Em nome <strong>do</strong> Conselho Científico, os nossos sinceros parabéns.


TRADUZIR É PRECISO<br />

Alberto Manuel Carneiro <strong>do</strong> Couto 1<br />

Em nome <strong>do</strong> Conselho Directivo, quero felicitar, mais uma vez, to<strong>do</strong>s<br />

aqueles – da equipa editorial aos autores, passan<strong>do</strong> por todas as preciosas<br />

colaborações – que tornaram possível o lançamento <strong>do</strong> 3º volume da Revista<br />

Polissema, a revista de letras <strong>do</strong> ISCAP. Reitero também o voto de confiança que<br />

já tive oportunidade de exprimir anteriormente, bem como a disposição de<br />

manter total apoio a este projecto. Sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>cente da Área de Línguas e<br />

Culturas, liga<strong>do</strong> desde sempre à Licenciatura em Tradução e Interpretação<br />

Especializada, na sua designação mais recente, o tema deste número da Revista<br />

Polissema – “Traduzir” – interessa-me particularmente. Aproveitan<strong>do</strong> esta<br />

oportunidade, gostaria de deixar aqui umas breves reflexões sobre o tema.<br />

Traduzir é geralmente defini<strong>do</strong>, em senti<strong>do</strong> restrito, como uma operação<br />

de transposição de códigos linguísticos, com todas os problemas que esta<br />

aparentemente simples operação envolve. Mas é reconheci<strong>do</strong> pelos teóricos da<br />

tradução que essa operação implica também a passagem de um universo<br />

cultural para outro. Em senti<strong>do</strong> mais amplo poder-se-ia até ousar pretender que<br />

traduzir é passar, através da mediatização <strong>do</strong> signo linguístico, de um universo<br />

para outro, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real ao das representações mentais, numa palavra, <strong>do</strong><br />

físico ao metafísico. Afinal, nomear é conhecer.<br />

Traduzir pode ser também um acto de consequências concretas, de uma<br />

importância que pode transcender as intenções <strong>do</strong> tradutor. Gostaria apenas de<br />

recordar o exemplo, de to<strong>do</strong>s conheci<strong>do</strong>, mas raramente visto como contributo<br />

da tradução para toda a humanidade: a famosa Pedra da Roseta. Se um tradutor<br />

não tivesse regista<strong>do</strong> aquela tradução, talvez nunca tivesse si<strong>do</strong> encontrada a<br />

chave que abriria as portas ao conhecimento da civilização egípcia.<br />

Finalmente, traduzir não é só trabalhar sobre texto. É muitas vezes<br />

esquecida a outra grande vertente da tradução, a interpretação, em todas as suas<br />

modalidades. É uma actividade que incide sobre o discurso, a comunicação<br />

imediata, efémera, sobre palavras que vento leva… ainda que as ideias fiquem.<br />

O aspecto mais ingrato desta profissão da Tradução vem <strong>do</strong> facto que, quanto<br />

mais bem executa<strong>do</strong>, menos se dá por ele. As Torres de Babel <strong>do</strong> nosso tempo<br />

só são possíveis pelo trabalho destes agulheiros da língua, como alguém já lhes<br />

chamou.<br />

Na aldeia tout court to<strong>do</strong>s falam a mesma língua, ou a mesma variante<br />

diatópica, sen<strong>do</strong> esse o elemento aglutina<strong>do</strong>r que cria o sentimento de pertença<br />

à comunidade. Na aldeia global, não podemos esperar pelo aparecimento da<br />

Língua Universal, por muito promete<strong>do</strong>ras que sejam as candidatas que se<br />

perfilam. Recordemos simplesmente o que aconteceu ao Latim, língua oficial e<br />

universal <strong>do</strong> Império Romano. Dada a inevitabilidade da globalização, com<br />

todas as vantagens e inconvenientes que lhe queiramos ver, traduzir é preciso…<br />

1 Vice-Presidente <strong>do</strong> Conselho Directivo <strong>do</strong> ISCAP.


traduzir


A TRADUÇÃO REINVENTADA EM THE INVENTION OF SOLITUDE,<br />

DE PAUL AUSTER<br />

Clara Sarmento<br />

A obra de Paul Auster, desde os primeiros poemas e ensaios até à mais<br />

recente ficção, reflecte constantemente sobre o trabalho da escrita enquanto<br />

acto de criação literária ou de recriação por meio da tradução, centra<strong>do</strong> no seu<br />

protagonista, o personagem-escrevente, tanto escritor como tradutor. A<br />

designação advém da característica tipicamente austeriana de acompanhar esse<br />

personagem-escrevente nos seus dramas e movimentos, dentro de um espaço<br />

exposto ao olhar <strong>do</strong> leitor. Sen<strong>do</strong> o trabalho da escrita o tópico central da sua<br />

reflexão em prosa, poesia ou ensaio, o sujeito edifica<strong>do</strong>r dessa escrita será o<br />

personagem principal <strong>do</strong> texto de Auster. O personagem-escrevente<br />

protagoniza a ficção, é analisa<strong>do</strong> no ensaio e expressa-se na poesia, veiculan<strong>do</strong><br />

as vivências <strong>do</strong> próprio Auster, que tantas vezes não consegue evitar a anotação<br />

autobiográfica ou um qualquer significativo jogo onomástico. Mas de que<br />

forma encara Paul Auster esse personagem, seu duplo? Através de que imagens<br />

verbais transpõe a génese da obra escrita para essa mesma obra escrita?<br />

Na esquematização comparativa das características <strong>do</strong> modernismo e <strong>do</strong><br />

pós-modernismo, Ihab Hassan contrapõe o processo (performance/happening)<br />

pós-moderno ao objecto artístico como finished work <strong>do</strong> modernismo. Enquanto<br />

que o modernismo é lisible (readerly), o pós-moderno é scriptible (writerly),<br />

activamente focaliza<strong>do</strong> na escrita 1 . Com efeito, Auster, escritor integra<strong>do</strong> no<br />

perío<strong>do</strong> pós-moderno, equaciona metaficcional e metalinguisticamente o<br />

problema da escrita enquanto acto, permitin<strong>do</strong> ao leitor acompanhar esse<br />

processo de construção. A dinâmica de um texto na sua construção deve ser o<br />

princípio <strong>do</strong>minante da forma, definin<strong>do</strong> a sua estrutura em termos de cinética.<br />

Sen<strong>do</strong> o processo uma continuidade generativa, através da qual uma percepção<br />

conduz directamente a outra, a composição constitui um campo aberto capaz<br />

de admitir elementos apreendi<strong>do</strong>s durante o acto de escrita, sem pressupostos<br />

rígi<strong>do</strong>s em termos de técnica ou assunto. O leitor desfruta assim <strong>do</strong> conceito<br />

pós-moderno de participação, oposto ao da distância modernista, uma vez que<br />

Auster disseca o processo da escrita, <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s em criação, oferecen<strong>do</strong> livre<br />

acesso à mente <strong>do</strong> personagem-escrevente.<br />

The Invention of Solitude (1982) é simultaneamente uma arte poética<br />

inspirada na experiência efectiva <strong>do</strong> sujeito e o trabalho seminal da prosa de


A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 15<br />

Paul Auster. Podemos considerá-lo como um romance-manifesto em duas<br />

partes (Portrait of an Invisible Man e The Book of Memory), para o qual to<strong>do</strong>s os<br />

livros posteriores remetem. The Invention of Solitude não é apenas uma confissão<br />

autobiográfica mas antes uma poderosa meditação acerca de questões comuns à<br />

humanidade, com especial incidência na exploração analítica da cena da escrita,<br />

utilizan<strong>do</strong> o escritor-tradutor e suas vivências como cobaia neste processo de<br />

auto e hetero-conhecimento:<br />

The Invention of Solitude is autobiographical, of course, but I <strong>do</strong>n‟t feel that I was<br />

telling the story of my life so much as using myself to explore certain questions<br />

that are common to us all: how we think, how we remember, how we carry our<br />

pasts around with us at every moment. I was looking at myself in the same way a<br />

scientist studies a laboratory animal. 2<br />

A subjectividade revela-se essencial para alcançar o conhecimento, para<br />

visualizar a projecção <strong>do</strong> sujeito e daí retirar conclusões objectivas e<br />

verdadeiras. Auster coloca a escrita no centro da vida e a vida no centro da<br />

escrita. Confronta<strong>do</strong> com a situação de “a man sitting alone in a room and<br />

writing a book” 3 , Auster faz dela um campo de meditação extremamente rico,<br />

onde profun<strong>do</strong>s temas intelectuais, históricos e pessoais emergem e fazem-se<br />

ouvir. O protagonista de The Invention of Solitude, A. (porque “The Invention of<br />

Solitude is autobiographical, of course”) confere um enorme potencial à<br />

linguagem, imaginan<strong>do</strong>-a como a matriz <strong>do</strong> ser, a matéria genética <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

(re)cria<strong>do</strong> entre as quatro paredes <strong>do</strong> quarto, uma vez que, e com inspiração em<br />

Heidegger, a linguagem é o mo<strong>do</strong> como nós existimos no mun<strong>do</strong>. O livro é um<br />

espaço alquímico onde Auster espera transformar a morte em palavras de vida,<br />

seguin<strong>do</strong> o pensamento de Arthur Schopenhauer:<br />

The word is the most enduring substance of the human race. Once a poet has<br />

properly embodied his most fleeting emotion in the most appropriate words, then<br />

this emotion will continue to live on through these words for millennia and will<br />

flourish anew in every sensitive reader. 4<br />

The Invention of Solitude desenrola-se preferencialmente dentro <strong>do</strong>s espaços<br />

fecha<strong>do</strong>s e solitários da criação literária, espaços que contêm em si toda uma<br />

potencial cosmogonia: “The world ends at that barricaded <strong>do</strong>or. For the room<br />

is not a representation of solitude, it is the substance of solitude itself” 5 . E a<br />

solidão é a substância deste livro, desde o título até à personagem motriz,<br />

passan<strong>do</strong> pelas circunstâncias biográficas da sua escrita. Mas esta solidão é<br />

inventada pelo sujeito, não é produto de uma metafísica universal, passa pela<br />

meditação, pela escrita e pela construção <strong>do</strong>s seus espaços, transforma<strong>do</strong>s no


16<br />

Traduzir<br />

local da busca insaciável: “A man sits alone in a room and writes. Whether the<br />

book speaks of loneliness or companionship, it is necessarily a product of<br />

solitude” 6 .<br />

Para Paul Auster, o termo solitude é por demais complexo e não apenas<br />

um sinónimo para o isolamento físico, carrega<strong>do</strong> de implicações disfóricas. Tal<br />

complexidade acarreta evidentes dificuldades na tradução <strong>do</strong> conceito, que tem<br />

de ter em conta a seguinte distinção: enquanto que a expressão inglesa<br />

loneliness veicula um sentimento de aban<strong>do</strong>no (“eu não quero estar só, eu<br />

ressinto-me <strong>do</strong> far<strong>do</strong> da solidão, eu quero estar com os outros”), relevan<strong>do</strong> a<br />

emoção, a sensação, o termo solitude é semanticamente neutro. Trata-se<br />

simplesmente da descrição de um esta<strong>do</strong>: estar só. Como nas palavras de<br />

Maurice Blanchot: “l‟absolu d‟un Je suis qui veut s‟affirmer sans les autres. C‟est<br />

là ce qu‟on appelle généralement solitude (au niveau du monde). [...] Écrire,<br />

c‟est se livrer à la fascination de l‟absence de temps. Nous approchons sans<br />

<strong>do</strong>ute ici de l‟essence de la solitude. L‟absence de temps n‟est pas un mode<br />

purement négatif” 7 . A tradução portuguesa para A Solidão Reinventada 8 dá-se<br />

conta da polissemia da língua inglesa, face à comparativa escassez lexical <strong>do</strong><br />

português, onde os sinónimos para “solidão” contêm invariavelmente<br />

conotações negativas. Para tal, foi necessário “reinventar” a solidão, com a<br />

tradução de invention por “reinventada”, reforçan<strong>do</strong> assim a noção patente ao<br />

longo da obra numa perspectiva dúplice, consoante o personagem focaliza<strong>do</strong>.<br />

Em Portrait of an Invisible Man vemos a solidão <strong>do</strong> personagem pai, na<br />

terceira pessoa, solidão inconsciente de alguém que vive o seu monótono<br />

quotidiano alhea<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros, não por uma qualquer opção ideológica mas<br />

antes por um sentimento inato de indiferença e neutralidade: “Solitary. But not<br />

in the sense of being alone. [...] Solitary in the sense of retreat. In the sense of<br />

not having to see himself, or not having to see himself being seen by anyone<br />

else” 9 . O isolamento apresenta-se em termos objectivos, na descrição da<br />

própria personagem.<br />

Em The Book of Memory, a perspectiva altera-se: Auster (A.) contempla a<br />

sua própria relação com o filho, na primeira pessoa, analisan<strong>do</strong> o seu percurso<br />

existencial e o isolamento auto-imposto <strong>do</strong> escritor em busca de si mesmo. A.<br />

reinventa a solidão através da metáfora recorrente <strong>do</strong> confinamento de Jonas<br />

no ventre da baleia, de Pinóquio e Gepeto dentro <strong>do</strong> tubarão e da obsessão<br />

pelo espaço claustrofobicamente delimita<strong>do</strong> <strong>do</strong> quarto. Descreve<br />

meticulosamente os quartos diversos e sempre exíguos onde habitou durante<br />

um percurso atribula<strong>do</strong> ou, então, a forma como vários cria<strong>do</strong>res artísticos<br />

encararam esse mesmo tema. Para Auster-filho, a solidão é consciente,


A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 17<br />

racionalizada, analisada, mesmo dissecada nas suas implicações. O quarto,<br />

como espaço de solidão envolvente nas suas quatro paredes, está anima<strong>do</strong>,<br />

povoa<strong>do</strong> de pensamentos: “Each time he goes out, he takes his thoughts with<br />

him, and during his absence the room gradually empties of his efforts to inhabit<br />

it. When he returns, he has to begin the process all over again, and that takes<br />

work, real spiritual work” 10 .<br />

A entrevista concedida por Paul Auster a Larry McCaffery e Sinda<br />

Gregory (1989-90) ilustra mais claramente a problemática conceptual de solitude:<br />

Let‟s talk a bit about the question of “solitude”. It‟s a word that comes up<br />

often in your works – and of course it appears in the title of your first book of<br />

prose, The Invention of Solitude. It‟s a concept that seems to contain a lot of<br />

different resonances for you, both personal and aesthetic.<br />

PA: Yes, I suppose there‟s no getting rid of it. But solitude is a rather<br />

complex term for me; it‟s not just a synonym for loneliness or isolation. Most<br />

people tend to think of solitude as a rather gloomy idea, but I <strong>do</strong>n‟t attach any<br />

negative connotations to it. It‟s simply a fact, one of the conditions of being<br />

human, and even if we‟re surrounded by others, we essentially live our lives alone:<br />

real life takes place inside us. We‟re not <strong>do</strong>gs, after all. We‟re not driven solely by<br />

instincts and habits; we can think, and because we think, we‟re always in two<br />

places at the same time. 11<br />

“Solitude became a passageway into the self, an instrument of<br />

discovery” 12 , lemos em The Locked Room, a propósito <strong>do</strong> percurso literário de<br />

Fanshawe (tão semelhante ao de Paul Auster que começa até por um Ground<br />

Work poético), no qual a noção/esta<strong>do</strong> de solitude surge não só como motor<br />

da obra mas também como demarcação da maturidade artística <strong>do</strong><br />

protagonista. A solidão propicia a criação: o personagem-escrevente crê naquilo<br />

a que Keats chamou the truth of imagination. Toda a escrita possui elementos<br />

de solidão, mas poucos escritores norte-americanos acreditaram tanto no<br />

potencial dessa “verdade da imaginação” como Auster. Auster encara a solidão<br />

como um facto simples e inerente à condição humana, que se faz sentir mesmo<br />

no meio da multidão, deriva<strong>do</strong> da certeza de que as verdadeiras vivências<br />

ocorrem no interior de cada um. O olhar introspectivo proporciona mais <strong>do</strong><br />

que o autoconhecimento. Dentro de si próprio, em solidão, o personagemescrevente<br />

encontra o mun<strong>do</strong> inteiro, numa escrita simultaneamente solitária e<br />

solidária: “L‟oeuvre est solitaire: cela ne signifie pas qu‟elle reste<br />

incommunicable, que le lecteur lui manque. Mais qui la lit entre dans cette<br />

affirmation de la solitude de l‟oeuvre, comme celui qui l‟écrit appartient au<br />

risque de cette solitude” 13 .


18<br />

Traduzir<br />

Na sua investigação da cena da escrita, Auster invoca a tradução como<br />

imagem daquilo que ocorre quan<strong>do</strong> alguém entra no espaço de criação <strong>do</strong> livro:<br />

“Every book is an image of solitude [...] A. sits <strong>do</strong>wn in his own room to<br />

translate another man‟s book, and it is as though he were entering that man‟s<br />

solitude and making it his own” 14 . O tradutor espera que o resulta<strong>do</strong> efectivo<br />

<strong>do</strong> seu trabalho de “invasão” seja um texto consentâneo com a riqueza <strong>do</strong><br />

original. O tradutor surge assim como um fantasma temporaria e<br />

voluntariamente encerra<strong>do</strong> no espaço <strong>do</strong> livro, impressão ainda mais visível em<br />

The Book of Memory, que efectua a fusão entre a vida e a escrita de A. Ao<br />

escrever o livro, original ou tradução, o personagem-escrevente cria um<br />

universo paralelo de palavras onde pode movimentar-se a seu bel-prazer, sem<br />

na realidade sair <strong>do</strong> espaço delimita<strong>do</strong> pela mente, mas sem excluir também a<br />

possibilidade de comunicar com o mun<strong>do</strong> circundante: “As he writes, he feels<br />

that he is moving inward (through himself) and at the same time moving<br />

outward (towards the world)” 15 . Porque se escrever é comunicar, levar uma<br />

mensagem a outrem, também traduzir é traducere, fazer passar de um la<strong>do</strong> ou de<br />

um esta<strong>do</strong> para outro, conduzir, transportar, atravessar as pontes linguísticas<br />

que separam a humanidade.<br />

Na juventude, Paul Auster traduziu numerosos autores, como Sartre,<br />

Joubert, Blanchot, Mallarmé, Char, Dupin, de forma a descobrir a literatura e os<br />

escritores, a participar das suas palavras, num lento perío<strong>do</strong> de maturação e<br />

formação, em que escrever sobre os outros serviu para melhor se compreender<br />

a si próprio e para melhor escrever: “Traduire... c‟est briser le texte et le<br />

détruire, puis, à nouveau, le reconstruire entièrement. Au cours d‟un tel travail,<br />

on apprend autant sur soi que sur la poésie” 16 . O trabalho de Paul Austertradutor<br />

é rigorosamente contemporâneo <strong>do</strong> trabalho de Paul Auster-poeta, tal<br />

como se depreende da leitura desta passagem de The Invention of Solitude, onde o<br />

trabalho da tradução é descrito em termos metafóricos e em sintonia com o<br />

conceito de solidão plena e cria<strong>do</strong>ra, reinventa<strong>do</strong> na obra:<br />

For most of his adult life, he has earned his living by translating the books of<br />

other writers. He sits at his desk reading the book in French and then picks up his<br />

pen and writes the same book in English. It is both the same book and not the<br />

same book, and the strangeness of this activity has never failed to impress him.<br />

Every book is an image of solitude. It is a tangible object that one can pick up, put<br />

<strong>do</strong>wn, open, and close, and its words represent many months, if not many years,<br />

of one man‟s solitude, so that with each word one reads in a book one might say<br />

to himself that he is confronting a particle of that solitude. A man sits alone in a<br />

room and writes. Whether the book speaks of loneliness or companionship, it is<br />

necessarily a product of solitude. A. sits <strong>do</strong>wn in his own room to translate<br />

another man‟s book,... and it is as though he were entering that man‟s solitude and


A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 19<br />

making it his own. But surely that is impossible. For once a solitude has been<br />

breached, once a solitude has been taken on by another, it is no longer solitude,<br />

but a kind of companionship. Even though there is only one man in the room,<br />

there are two. A. imagines himself as a kind of ghost of that other man, who is<br />

both there and not there, and whose book is both the same and not the same as<br />

the one he is translating. Therefore, he tells himself, it is possible to be alone and<br />

not alone at the same moment.<br />

A word becomes another word, a thing becomes another thing. In this way, he<br />

tells himself, it works in the same way that memory <strong>do</strong>es. He imagines an<br />

immense Babel inside him. There is a text, and it translates itself into an infinite<br />

number of languages. Sentences spill out of him at the speed of thought, and each<br />

word comes from a different language, a thousand tongues that clamor inside him<br />

at once, the din of it echoing through a maze of rooms, corri<strong>do</strong>rs, and stairways,<br />

hundreds of stories high. He repeats. In the space of memory, everything is both<br />

itself and something else. 17<br />

A tradução, motivo central da crítica literária de Auster, conduz o cria<strong>do</strong>r à<br />

exploração <strong>do</strong>s seus limites linguísticos e da linguagem em geral. Auster<br />

também se serve da tradução para explorar literariamente as ambiguidades da<br />

sua própria identidade biográfica e literária, pois a tradução tem o poder de<br />

des<strong>do</strong>brar o autor. Mas será a tradução uma forma de criação mascarada?<br />

Escrever é sempre traduzir, sugere Auster ao longo <strong>do</strong>s seus textos. A tradução<br />

coloca em prática textual o tema da originalidade, <strong>do</strong> duplo e, mais<br />

genericamente, a questão da identidade, cujo enigma está no cerne de The<br />

Invention of Solitude. A. tenta entrar na solidão <strong>do</strong> pai e descodificar os seus<br />

silêncios, num processo semelhante ao da tradução, o seu ofício. Traduzir é<br />

entrar na solidão <strong>do</strong> outro e, consequentemente, essa solidão desvanece-se ou<br />

transforma-se numa solidão palimpsesto, a várias vozes. O tradutor é um<br />

escritor fantasma que, duplican<strong>do</strong> as vozes <strong>do</strong>s outros, duplica-se a si mesmo e<br />

descobre até que ponto o seu próprio sujeito é um estranho, um outro,<br />

traduzi<strong>do</strong> a partir de uma língua estrangeira.<br />

“New York Babel” é um ensaio de 1974 sobre a obra Le Schizo et les<br />

Langues, escrita em francês por Louis Wolfson, um esquizofrénico novaiorquino,<br />

nasci<strong>do</strong> em 1931, que não tolerava ouvir ou pronunciar uma única<br />

palavra na sua língua materna. Neste ensaio, Auster confessa o fascínio que<br />

sente por tal livro e pelo acto de tradução em geral, que Wolfson leva ao limite<br />

extremo:<br />

To say that it is a work written in the margins of literature is not enough: its place,<br />

properly speaking, is in the margins of language itself. Written in French by an<br />

American, it has little meaning unless it is considered an American book; and yet<br />

[…] it is also a book that excludes all possibility of translation. It hovers


20<br />

Traduzir<br />

somewhere in the limbo between the two languages, and nothing will ever be able<br />

to rescue it from this precarious existence. For what we are presented with here is<br />

not simply the case of a writer who has chosen to write in a foreign language. The<br />

author of this book has written in French precisely because he had no choice. It is<br />

the result of brute necessity, and the book itself is nothing less than an act of<br />

survival. 18<br />

Este excerto recorda as personagens atormentadas de The New York Trilogy,<br />

como Quinn, o detective involuntário de City of Glass, que é confronta<strong>do</strong> com o<br />

mistério de Peter Stillman, o jovem encerra<strong>do</strong> pelo próprio pai durante anos<br />

nas trevas e no silêncio, na esperança vã de que um dia viesse a falar<br />

espontaneamente a linguagem divina anterior a Babel:<br />

Peter kept the words inside him. All those days and months and years. There in<br />

the dark, little Peter all alone, and the words made noise in his head and kept him<br />

company. This is why his mouth <strong>do</strong>es not work right. Poor Peter. Boo hoo. Such<br />

are his tears. The little boy who can never grow up. Peter can talk like people<br />

now. But he still has the other words in his head. They are God‟s language, and<br />

no one else can speak them. They cannot be translated. That is why Peter lives so<br />

close to God. That is why he is a famous poet. 19<br />

Encontramos nestes projectos insanos um eco <strong>do</strong> pensamento de Octavio<br />

Paz, para quem aprender a falar será aprender a traduzir. A linguagem perde a<br />

sua universalidade e revela-se como uma pluralidade de línguas, todas elas<br />

estranhas e ininteligíveis entre si. A universalidade <strong>do</strong> espírito é a resposta a esta<br />

confusão babélica: há muitas línguas mas o senti<strong>do</strong> é único e a tradução será o<br />

veículo de todas as singularidades 20 . Auster mostra-se ciente desta problemática<br />

também na entrevista que Gérard de Cortanze intitulou significativamente de<br />

“Le monde est dans ma tête, mon corps est dans le monde”:<br />

Les arts et les littératures de chaque pays possèdent des caractéristiques qui leur<br />

sont propres, c‟est un fait. Mais on participe aussi d‟un courant plus vaste: celui de<br />

la littérature mondiale. Les traductions existent depuis l‟aube de l‟imprimerie. Les<br />

écrivains subissent des influences extérieures à celles de leur pays d‟origine. [...]<br />

Flaubert, le Français, a beaucoup influencé l‟Irlandais Joyce, qui a beaucoup<br />

influencé l‟Américain Faulkner, qui a beaucoup influencé le Sud-Américain<br />

Gabriel Garcia Marquez, qui a beaucoup influencé Toni Morrison. Ces frontières<br />

sont absurdes. 21<br />

Posteriormente, ainda em City of Glass, e a propósito <strong>do</strong> Quijote de<br />

Cervantes, Quinn discute com Paul Auster (o personagem-escritor inseri<strong>do</strong> na<br />

ficção criada pelo escritor homónimo não personagem) a questão da tradução<br />

como corrupção da veracidade <strong>do</strong> texto e dupla alteração da realidade. Há na<br />

escrita um ideal linguístico jamais alcança<strong>do</strong>, a utopia <strong>do</strong>s tradutores. Com


A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 21<br />

efeito, a utopia última <strong>do</strong> tradutor será a busca <strong>do</strong> paraíso perdi<strong>do</strong>, com a sua<br />

linguagem universal, evocan<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s jogos de linguagem que Ludwig<br />

Wittgenstein comparava ao estu<strong>do</strong> das línguas primitivas, ao buscar igualmente<br />

a natureza última da linguagem, com a sua gramática logicamente correcta. No<br />

conceito base de Wittgenstein, a linguagem reproduz a realidade à maneira de<br />

um quadro: a proposição é uma espécie de representação pictórica daquilo que<br />

descreve e as relações entre os elementos dessa imagem reflectem as relações<br />

existentes entre os constituintes da realidade descrita. Numa proposição<br />

elementar, os nomes estabelecem uma correspondência bi-unívoca com os<br />

objectos determina<strong>do</strong>s, comprovan<strong>do</strong> que a língua e a realidade estão, entre si,<br />

numa relação projectiva de isomorfia. Por isso, uma série de personagens<br />

austerianas procura encontrar respostas através da observação da linguagem<br />

com que se exprimem, buscan<strong>do</strong> a compreensão através da descrição<br />

minuciosa, com as palavras mais adequadas. Escrever uma narrativa – e a maior<br />

parte das personagens de Auster são escritores num determina<strong>do</strong> momento – é<br />

uma forma de ganhar controlo sobre o caos em que se encontram submergi<strong>do</strong>s.<br />

Mas, muitas vezes, os acontecimentos ultrapassam a capacidade de alcance e<br />

fluência das palavras.<br />

Algo semelhante sucede com a tradução, quan<strong>do</strong> os recursos de uma<br />

determinada língua (ou de um determina<strong>do</strong> tradutor) não correspondem ao<br />

alcance e fluência das palavras <strong>do</strong> original a traduzir. Auster-tradutor partilha e<br />

verbaliza essa experiência em ensaios como “The Poetry of Exile” 22 , sobre as<br />

dificuldades de tradução para inglês de um original em alemão de Paul Celan,<br />

ou “Twentieth-Century French Poetry”, de 1981, onde lemos:<br />

Its purpose is not only to present the work of french poets in French, but to offer<br />

translations of that work as our own poets have re-imagined and re-presented it.<br />

(…) Many of these differences reside in the disparities between the two languages.<br />

Although English is in large part derived from French, it still holds fast to its<br />

Anglo-Saxon origins. Against the gravity and substantiality to be found in the<br />

work of our greatest poets (Milton, say, or Emily Dickinson), which embodies an<br />

awareness of the contrast between the thick emphasis of Anglo-Saxon and the<br />

nimble conceptuality of French/Latin – and to play one repeatedly against the<br />

other – French poetry often seems almost weightless to us, to be composed of<br />

ethereal puffs of lyricism and little else. French is necessarily a thinner medium<br />

than English. But that <strong>do</strong>es not mean it is weaker. If English writing has staked<br />

out as its territory the world of tangibility, of concrete presence, of surface<br />

accident, French literary language has largely been a language of essences.<br />

Whereas Shakespeare, for example, names more than five hundred flowers in his<br />

plays, Racine adheres to the single word “flower”. In all, the French dramatist‟s<br />

vocabulary consists of roughly fifteen hundred words, while the word count in<br />

Shakespeare‟s plays runs upward of twenty-five thousand. 23


22<br />

Traduzir<br />

Auster afirma não ter o hábito de seguir uma meto<strong>do</strong>logia consistente nas<br />

suas traduções. Apesar de a maior parte das traduções que assina ser bastante<br />

fiel ao original, algumas há que não passam de simples adaptações. A tradução<br />

de poesia, então, é para Auster algo de muito vago, livre de regras e opções<br />

meto<strong>do</strong>lógicas. Prefere utilizar o seu “instinto poético”, o ouvi<strong>do</strong>, a experiência,<br />

optan<strong>do</strong> sempre pela liberdade criativa quan<strong>do</strong> confronta<strong>do</strong> com a escolha fatal<br />

entre literalidade e literariedade. Enquanto tradutor de francês, Auster prefere<br />

oferecer aos seus leitores a experiência <strong>do</strong> poema “como poema” e não uma<br />

rigorosa versão palavra-a-palavra <strong>do</strong> original. Porque a experiência <strong>do</strong> poema<br />

reside não só nas suas palavras mas também na interacção entre essas mesmas<br />

palavras – a musicalidade, os silêncios, as formas – e se o leitor não tiver a<br />

oportunidade de partilhar da plenitude dessa experiência, ficará para sempre<br />

priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> verdadeiro espírito <strong>do</strong> original. É por essa razão que Paul Auster<br />

defende que a poesia deve ser traduzida por poetas. A esta afirmação, o ensaio<br />

de Octavio Paz “Traducción, Literatura y Literalidad”, de 1970, parece<br />

contrapor:<br />

En teoría, sólo los poetas deberían traducir poesía; en la realidad, pocas veces los<br />

poetas son buenos traductores. No lo son porque casi siempre usan el poema<br />

ajeno como un punto de partida para escribir su poema. El buen traductor se<br />

mueve en una dirección contraria: su punto de llegada es un poema análogo, ya<br />

que no idéntico, al poema original. No se aparta del poema sino para seguirlo más<br />

de cerca. El buen traductor de poesía es un traductor que, además, es un poeta o<br />

un poeta que, además, es un buen traductor. 24<br />

Para Octavio Paz, a razão da incapacidade de muitos poetas para traduzir<br />

poesia não é de ordem puramente psicológica, se bem que o egocentrismo<br />

desempenhe aqui um certo papel, pelo menos funcional. A tradução poética é<br />

uma operação análoga à criação poética, só que se desenvolve em senti<strong>do</strong><br />

inverso. Paz conclui que tradução e criação literária são operações gémeas, mas<br />

com identidades claramente distintas:<br />

El punto de partida del traductor no es el lenguaje en movimiento, materia prima<br />

del poeta, sino el lenguaje fijo del poema. Lenguaje congela<strong>do</strong> y, no obstante,<br />

perfectamente vivo. Su operación es inversa a la del poeta: no se trata de construir<br />

con signos móviles un texto inamovible, sino desmontar los elementos de ese<br />

texto, poner de nuevo en circulación los signos y devolverlos al lenguaje. Hasta<br />

aquí, la actividad del traductor es parecida a la del lector y a la del crítico: cada<br />

lectura es una traducción, y cada crítica es, o comienza por ser, una interpretación.<br />

Pero la lectura es una traducción dentro del mismo idioma y la crítica es una<br />

versión libre del poema o, más exactamente, una trasposición. Para el crítico el


A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 23<br />

poema es un punto de partida hacia otro texto, el suyo, mientras que el traductor,<br />

en otro lenguaje y con signos diferentes, debe componer un poema análogo al<br />

original. Así, en su segun<strong>do</strong> momento, la actividad del traductor es paralela a la del<br />

poeta, con esta diferencia capital: al escribir, el poeta no sabe como será su poema;<br />

al traducir, el traductor sabe que su poema deberá reproducir el poema que tiene<br />

bajo los ojos. En sus <strong>do</strong>s momentos la traducción es una operación paralela,<br />

aunque en senti<strong>do</strong> inverso, a la creación poética. El poema traduci<strong>do</strong> deberá<br />

reproducir el poema original que, como ya se ha dicho, no es tanto su copia como<br />

su trasmutación. El ideal de la traducción poética, según alguna vez lo definió Paul<br />

Valéry de manera insuperable, consiste en producir con medios diferentes efectos<br />

análogos. 25<br />

Auster desenvolve o princípio desta analogia entre tradução e criação<br />

literária em “Translations: An Interview with Stephen Rodefer” (1985), onde<br />

novamente preconiza a tradução como méto<strong>do</strong> de aprendizagem para a escrita<br />

poética, servin<strong>do</strong>-se de exemplos autobiográficos:<br />

Stephen Rodefer: When did you begin <strong>do</strong>ing translations?<br />

Paul Auster: Back when I was nineteen or twenty years old, as an<br />

undergraduate at Columbia. They gave us various poems to read in French class –<br />

Baudelaire, Rimbaud, Verlaine – and I found them terribly exciting, even if I<br />

didn‟t always understand them. The foreignness was daunting to me – as though a<br />

work written in a foreign language was somehow not real – and it was only by<br />

trying to put them into English that I began to penetrate them. […] I was driven<br />

by a need to appropriate these works, to make them part of my own world.<br />

S.R.: Were you writing poetry of your own at that time, too?<br />

P.A.: Yes. But like most young people, I had no idea what I was <strong>do</strong>ing.<br />

One‟s ambitions at that stage are so enormous, but you <strong>do</strong>n‟t necessarily have the<br />

tools to carry them out. It leads to frustration, a deep sense of your own<br />

inadequacy. I struggled along during those years to find my own way, and in the<br />

process I discovered that translation was an extremely helpful exercise. Pound<br />

recommends translation for young poets, and I think that shows great<br />

understanding, on his part. You have to begin slowly. Translation allows you to<br />

work on the nuts and bolts of your craft, to learn how to live intimately with<br />

words, to see more clearly what you are actually <strong>do</strong>ing. […] A young poet will<br />

learn more about how Rilke wrote sonnets by trying to translate one than by<br />

writing an essay about it.<br />

[…] My first translations years ago of modern French poets were real acts of<br />

discovery, labors of love. Then I went through a long period when I earned my<br />

living by <strong>do</strong>ing translations. […] For the past five or six years, I‟ve tried to limit<br />

myself to things that I am passionately interested in – works that I have<br />

discovered and want to share with other people. If those books are not exactly<br />

connected to my writing, they still belong to my inner world. […] There are<br />

sublimely talented translators out there in America today – Manheim, Rabassa,<br />

Wilbur, Mandelbaum, to name just a few. But I <strong>do</strong>n‟t think of myself as belonging<br />

to the fraternity of translators. I‟m just someone who likes to follow his nose, and<br />

more often than not this leads me into some odd corners. 26


24<br />

Traduzir<br />

Auster compreende a função da tradução como princípio basilar da<br />

comunicação intercultural, numa nova sintonia com o pensamento de Octavio<br />

Paz, que começa por afirmar: “En el interior de cada civilización renacen las<br />

diferencias: las lenguas que nos sirven para comunicarnos también nos<br />

encierran en una malla invisible de soni<strong>do</strong>s y significa<strong>do</strong>s, de mo<strong>do</strong> que las<br />

naciones son prisioneras de las lenguas que hablan. Dentro de cada lengua se<br />

reproducen las divisiones: épocas históricas, clases sociales, generaciones. En<br />

cuanto a las relaciones entre indivíduos aisla<strong>do</strong>s y que pertenecen a la misma<br />

comunidad: cada uno es un empareda<strong>do</strong> vivo en su propio yo” 27 .<br />

Descartes encetou a busca individual da verdade, afastan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s <strong>do</strong>gmas<br />

da sua época e cultura. Descobriu que a mente humana estava preparada para<br />

encontrar a verdade por si mesma e que o espírito humano seria o ponto de<br />

partida e de chegada de to<strong>do</strong> o conhecimento. Em última análise, incorrer-se-ia<br />

numa espécie de solitary confinement: “If you accept the cognitive authenticity<br />

of nothing other than your own directly accessible data, in the end you are<br />

confined to a prison whose limits are indeed those data. If they are constituted<br />

by your immediate consciousness, by yourself in effect, then your self<br />

eventually becomes your prison. The self is your world, the world is your<br />

self” 28 . Ou seja, de novo: cada um está empareda<strong>do</strong> vivo no seu próprio ser,<br />

como afirma Paz, ou no seu próprio espaço fecha<strong>do</strong>, como os personagens de<br />

Auster.<br />

Mas Octavio Paz (e Paul Auster) compreendem que a escrita, a criação –<br />

ou a tradução – de novos mun<strong>do</strong>s liberta a mente e sintoniza-a com a<br />

humanidade e o universo, cumprin<strong>do</strong> a referida função de comunicação<br />

intercultural:<br />

To<strong>do</strong> esto debería haber desanima<strong>do</strong> a los traductores. No ha si<strong>do</strong> así: por un<br />

movimiento contradictorio y complementario, se traduce más y más. La razón de<br />

esta para<strong>do</strong>ja es la siguiente: por una parte la traducción suprime las diferencias<br />

entre una lengua y otra; por la otra, las revela más plenamente: gracias a la<br />

traducción nos enteramos de que nuestros vecinos hablan y piensan de un mo<strong>do</strong><br />

distinto al nuestro. En un extremo el mun<strong>do</strong> se nos presenta como una colección<br />

de heterogeneidades; en el otro, como un superposición de textos, cada uno<br />

ligeramente distinto al anterior: traducciones de traducciones de traducciones.<br />

Cada texto es único y, simultáneamente, es la traducción de otro texto. Ningún<br />

texto es enteramente original porque el lenguaje mismo, en su esencia, es ya una<br />

traducción: primero, del mun<strong>do</strong> no-verbal y, después, porque cada signo y cada<br />

frase es la traducción de otro signo y de otra frase. Pero ese razonamiento puede<br />

invertirse sin perder validez: to<strong>do</strong>s los textos son originales porque cada<br />

traducción es distinta. Cada traducción es, hasta cierto punto, una invención y así<br />

constituye un texto único. 29


A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 25<br />

Na língua espanhola, informa Octavio Paz, a tradução literal é<br />

significativamente chamada de tradução servil. Não que a tradução literal seja<br />

impossível, mas não deverá ser considerada como a verdadeira tradução. Será<br />

antes um dispositivo, geralmente composto por uma sucessão de palavras, que<br />

ajuda à compreensão <strong>do</strong> texto na sua língua original, num processo mais<br />

próximo <strong>do</strong> dicionário <strong>do</strong> que da tradução, que é sempre uma operação<br />

literária. De qualquer forma, e sem excluir aqueles casos em que é apenas<br />

necessário traduzir o conteú<strong>do</strong> informativo <strong>do</strong> texto, como nas obras<br />

científicas, a tradução implica invariavelmente a transformação <strong>do</strong> original.<br />

Georges Mounin defende que é possível traduzir os significa<strong>do</strong>s denotativos de<br />

um texto, mas nunca os conotativos 30 . Paz e Auster não concordam: feita de<br />

ecos, reflexos e correspondências entre som e senti<strong>do</strong>, a poesia é um teci<strong>do</strong> de<br />

conotações e seria, numa tal perspectiva, intraduzível. “E as „máquinas‟ que<br />

traduzem?”, pergunta Octavio Paz:<br />

Cuan<strong>do</strong> estos aparatos logren realmente traducir, realizarán una operación<br />

literaria; no harán nada distinto a lo que hacen ahora los traductores: literatura. La<br />

traducción es una tarea en la que, desconta<strong>do</strong>s los indispensables conocimientos<br />

lingüísticos, lo decisivo es la iniciativa del traductor, sea éste una máquina<br />

“programada” por un hombre o un hombre rodea<strong>do</strong> de diccionarios. Para<br />

convencernos oigamos al poeta británico Arthur Waley: “A French scholar wrote<br />

recently with regard to translators: „Qu‟ils s‟effacent derrière les textes et ceux-ci,<br />

s‟ils ont été vraiment compris, parleront d‟eux-mêmes‟. Except in the rather rare<br />

case of plain concrete statements such as „The cat chases the mouse‟ there are<br />

sel<strong>do</strong>m sentences that have exact word-to-word equivalents in another language.<br />

It becomes a question of choosing between various approximations... I have<br />

always found that it was I, not the texts, that had to <strong>do</strong> the talking”. 31<br />

Também Walter Benjamin, no ensaio de 1923 “The Task of the<br />

Translator”, defende pontos de vista que, de certo mo<strong>do</strong>, parecem contrariar a<br />

proximidade que Paz e Auster encontram entre tradução e criação literária:<br />

Unlike a work of literature, translation <strong>do</strong>es not find itself in the center of the<br />

language forest but on the outside facing the wooded ridge, it calls into it without<br />

entering, aiming at that single spot where the echo is able to give, in its own<br />

language, the reverberation of the work in the alien one. Not only <strong>do</strong>es the aim of<br />

translation differ from that of a literary work – it intends language as a whole,<br />

taking an individual work in an alien language as a point of departure – but it is a<br />

different effort altogether. 32<br />

O esforço poderá ser pontualmente distinto. No entanto, são inúmeras as<br />

ocasiões em que o tradutor, tal como o escritor (ambos personagensescreventes),<br />

mergulha, explora e se perde no coração da “floresta da


26<br />

Traduzir<br />

linguagem”, ao tentar cumprir a imensa tarefa que Benjamin considera ser the<br />

task of the translator: “to release in his own language that pure language which<br />

is under the spell of another, to liberate the language imprisoned in a work in<br />

his re-creation of that work. For the sake of pure language, he breaks through<br />

decayed barriers of his own language” 33 .<br />

Em The Invention of Solitude, Auster demonstra como a tradução é uma<br />

forma de libertar o espírito cria<strong>do</strong>r de um autor de língua estrangeira, encerra<strong>do</strong><br />

dentro das páginas de um livro ilegível até ao momento da intervenção discreta<br />

(quase espectral) mas imprescindível <strong>do</strong> tradutor. Na sua obra, Auster-tradutor<br />

e Auster-escritor, observa<strong>do</strong>r e observa<strong>do</strong>, equaciona(m) o problema da escrita<br />

enquanto acto, permitin<strong>do</strong> ao leitor acompanhar e participar desse processo de<br />

construção. A narrativa e a linguagem intelectualizam-se, tornam-se<br />

conscientes, algo que, no caso presente, possibilita uma reflexão e uma<br />

aproximação privilegiadas ao ensino da tradução de textos literários, através da<br />

própria literatura. Porque a missão <strong>do</strong> tradutor é, em conclusão, e tal como<br />

John Dryden já escrevera no século XVII, “to make his author appear as<br />

charming as possibly he can, provided he maintains his character, and makes<br />

him not unlike himself. Translation is a kind of drawing after the life” 34 .<br />

________<br />

1 Hassan, Ihab, “Postface 1982: Towards a Concept of Postmodernism” in<br />

Trachtenberg, Stanley (ed.), Critical Essays on American Postmodernism, New York,<br />

G.K.Hall and Co., 1995, p. 87.<br />

2 Auster, Paul, The Art of Hunger: Essays, Prefaces, Interviews, Los Angeles, Sun &<br />

Moon Press, 1992, p. 292.<br />

169.<br />

3 Auster, Paul, The New York Trilogy, Lon<strong>do</strong>n, Faber and Faber, 1992 1987, p.<br />

4 Schopenhauer, Arthur, “On Language and Words” cita<strong>do</strong> por: Schulte, Rainer;<br />

Biguenet, John (eds.), Theories of Translation: An Anthology of Essays from Dryden to Derrida,<br />

University of Chicago Press, 1992, p. 32.<br />

5 Auster, Paul, The Invention of Solitude, Lon<strong>do</strong>n, Penguin, 1988 1982, p. 143.<br />

6 Idem, p. 136.<br />

7 Blanchot, Maurice, L‟Espace Littéraire, Paris, Gallimard, 1955, pp. 342 e 22.<br />

8 Auster, Paul, A Solidão Reinventada, trad. Ana Luísa Faria, Venda Nova, Bertrand<br />

Editora, 1994.<br />

9 Auster, Paul, The Invention of Solitude, pp. 16-17.


A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 27<br />

10 Idem, p. 77.<br />

11 Auster, Paul, The Art of Hunger, p. 299.<br />

12 Auster, Paul, The New York Trilogy, pp. 277-8.<br />

13 Blanchot, Maurice, L´Espace Littéraire, p. 11.<br />

14 Auster, Paul, The Invention of Solitude, p. 136.<br />

15 Idem, p. 139.<br />

16 Auster, Paul, Introdução ao “Dossier Jacques Dupin”, Les Cahiers de la Table<br />

Ronde, automne 1995.<br />

17 Auster, Paul, The Invention of Solitude, p. 136.<br />

18 Auster, Paul, Ground Work: Selected Poems and Essays 1970- 1979, Lon<strong>do</strong>n, Faber<br />

and Faber, 1991 1990, p. 120.<br />

19 Auster, Paul, The New York Trilogy, p. 20.<br />

20 A este propósito consultar: Paz, Octavio. Traducción, Literatura y Literalidad,<br />

Barcelona, Tusquets Editores, 1990 [1971].<br />

21 Cortanze, Gérard de (ed.), “Dossier Paul Auster: de la Trilogie New-Yorkaise à<br />

Smoke”, Magazine Littéraire 338, Décembre 1995, p. 21.<br />

22 Auster, Paul, The Art of Hunger, pp. 82-94.<br />

23 Idem, pp. 195-6. Ver também a seguinte passagem: “Samuel Beckett, who has<br />

spent the greater part of his life writing in both languages, translating his own work<br />

from French into English and from English into French, is no <strong>do</strong>ubt our most reliable<br />

witness to the capacities and limitations of the two languages. In one of his letters from<br />

the mid-fifties, he complained about the difficulty he was having in translating Fin de<br />

partie (Endgame) into English. The line Clov addresses to Hamm, “Il n‟y a plus de<br />

roues de bicyclette” was a particular problem. In French, Beckett contended, the line<br />

conveyed the meaning that bicycle wheels as a category had ceased to exist, that there<br />

were no more bicycle wheels in the world. The English equivalent, however, “There are<br />

no more bicycle wheels” meant simply that there were no more bicycle wheels available,<br />

that no bicycle wheels could be found in the place where they happened to be. A world<br />

of difference is embedded here beneath apparent similarity. Just as the Eskimos have<br />

more than twenty words for snow (a frequently cited example), which means they are<br />

able to experience snow in ways far more nuanced and elaborate than we are – literally<br />

to see things we cannot see – the French live inside their language in ways that are<br />

somewhat at odds with the way we live inside English” (idem, p. 197).<br />

24 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, p. 20.<br />

25 Idem, pp. 22-3.<br />

26 Auster, Paul, The Art of Hunger, pp. 253-5.<br />

27 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, p. 12.<br />

28 Gellner, Ernest, “Wittgenstein: the loneliness of the long-distance empiricist” in<br />

Language and Solitude: Wittgenstein, Malinowski and the Habsburg Dilemma, Cambridge<br />

University Press, 1999 [1998], p. 43. Ver também as proposições de Ludwig<br />

Wittgenstein: “The world and life are one”; “I am my world (the microcosm)”; “There<br />

is no such thing as the subject that thinks or entertains ideas”; “The subject <strong>do</strong>es not


28<br />

Traduzir<br />

belong to the world but rather, it is a limit of the world”; “Here it can be seen that<br />

solipsism, when its implications are followed out strictly, coincides with pure realism.<br />

The self of solipsism shrinks to a point without extension, and there remains the reality<br />

co-ordinated with it” (Wittgenstein, Ludwig, Tractatus Logico-Philosophicus, trad. D. F.<br />

Pears e B. F. McGuinness, Lon<strong>do</strong>n, Routledge, 1974 [1921], propositions 5.621, 5.63,<br />

5.631, 5.632, 58 e 5.64).<br />

29 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, pp. 12-13.<br />

30 Consultar: Mounin, Georges, Problèmes Théoriques de la Traduction, Paris,<br />

Gallimard, 1963.<br />

31 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, p. 19.<br />

32 Benjamin, Walter, “The Task of the Translator”, cita<strong>do</strong> por: Schulte e Biguenet<br />

(eds.), Theories of Translation, p. 77.<br />

33 Idem, p. 80.<br />

34 Dryden, John, “On Translation”, cita<strong>do</strong> por: Schulte e Biguenet (eds.), Theories<br />

of Translation, p. 23.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

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A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 29


PRONOUN-DROPPING OR ZERO ANAPHORA IN TRANSLATION<br />

FROM GERMAN INTO PORTUGUESE<br />

Dalila Lopes<br />

1. Subject Personal Pronouns and Subject-Dropping<br />

1.1 When contrasting the use of subject personal pronouns in translation<br />

from Portuguese into German, Koller (1982) found out that in narrative texts<br />

there occur 60% cases of subject-dropping in Portuguese against only 15%<br />

cases of subject-dropping in German. Subject-dropping in Portuguese is a wellknown<br />

practice, and the explanation for this phenomenon lays, according to<br />

most linguists like Mateus et al. (1992 3 :211) or Cunha/Cintra (1996 12 :284), in<br />

the fact that the verbal flexion in Portuguese is rich enough to enable the<br />

listener/reader to identify 1st, 2nd and 3rd persons, thus making the use of the<br />

subject pronoun redundant.<br />

Nevertheless, a closer analysis of the phenomenon of subject-dropping in<br />

Portuguese reveals that this explanation <strong>do</strong>es not account for the fact that<br />

subject-dropping also occurs in Portuguese when, for example, 1st and 3rd<br />

person singular are served by the same verbal form, as happens in the case of<br />

the Imperfect Indicative: a form like „andava‟ („walked‟) admits a 1st person<br />

singular subject (eu andava) and two 3rd person singular subjects, a masculine<br />

and a feminine pronoun (ele/ela andava). And yet, as Wandruszka (1969:258-<br />

259) points out, subject-dropping remains a tendency even in these cases. He<br />

argues that subject-dropping in such cases is allowed when context or co-text<br />

give us enough clues to identify who (or what) the subject is.<br />

1.2 Koller (1982) goes a bit further in the explanation of this<br />

phenomenon. He addresses the issue by means of the theme-rheme distinction,<br />

or rather, by means of the analysis of topic continuity/discontinuity in<br />

discourse. He claims that subject-dropping is prevailing in Portuguese if there<br />

is topic continuity in the 2nd sentence of a sequence of two, while in the case<br />

of topic discontinuity the subject pronoun must necessarily be expressed in the<br />

second sentence 1 ; otherwise the reference in the 2nd sentence of the sequence<br />

will be ambiguous.


Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation 31<br />

2. Subject Personal Pronouns and Subject-Dropping in the Translation of<br />

Anaphora<br />

2.1 The tendencies/rules just referred to may be illustrated by means of<br />

examples selected from Heinrich Böll‟s novel Haus ohne Hüter and its<br />

translation into Portuguese by Jorge Rosa with the title Casa Indefesa.<br />

In example [1],<br />

[1] (German) Wenn Nella Besuch mitbrachte, rief sie Albert […]. (p. 94)<br />

the translator, following the subject-dropping rule in topic continuity just<br />

referred to, omits the subject pronoun in the 2nd sentence (zero anaphora):<br />

[1] (Portuguese) Quan<strong>do</strong> Nella aparecia em casa com visitas, [ø] chamava<br />

Albert […]. (p. 99)<br />

In the case of topic discontinuity, as in example [2],<br />

[2] (German) […] wenn er [Glum] mit Tata auf dem Bett lag, erzählte sie<br />

ihm alles […]. (p. 163)<br />

the translator uses the subject pronoun in the 2nd sentence:<br />

[2] (Portuguese) […] quan<strong>do</strong> [ø] estava deita<strong>do</strong> com Tata, ela falava-lhe em<br />

tu<strong>do</strong> […]. (p. 170)<br />

In cases of topic discontinuity similar to example [2], the translator<br />

sometimes uses referential definite NPs rather than pronominal forms:<br />

[3] (German) Martin nahm Wilma wieder auf den Schoß. Sie steckte den<br />

Daumen in den Mund […]. (p. 257)<br />

[3] (Portuguese) Martin tornou a pegar em Wilma ao colo. A garota meteu o<br />

polegar na boca […]. (p. 271)<br />

2.2 Examples [1], [2] and [3] involve references to persons. When dealing<br />

with references to objects, the subject-dropping tendency in Portuguese seems<br />

to be even stronger. In example [4],


32<br />

Traduzir<br />

[4] (German) […] manchmal waren gar keine Zigaretten im Haus, und<br />

Onkel Albert mußte […] mit seinem Auto in die Stadt fahren um welche zu<br />

holen […]. “Oh, sie müssen aber frisch sein, lieber Junge” […] (p. 7)<br />

there is topic discontinuity. Onkel Albert is the topic of the 2nd and 3rd<br />

sentences and the pronoun sie in the 4th sentence refers to Zigaretten.<br />

Nevertheless, the translator follows the subject-dropping tendency and so there<br />

is zero anaphora in the 4th sentence:<br />

[4] (Portuguese) […] e muitas vezes não havia mesmo cigarros em casa, e o<br />

tio Albert não tinha outro remédio senão […] ir no carro até à cidade comprálos<br />

[…] “Oh, mas [ø] devem ser frescos, meu rapaz” […]. (pp. 7-8)<br />

The tendency to drop the subject personal pronoun in Portuguese when<br />

referring to objects is really all prevailing. An analysis of the translation of the<br />

whole novel reveals only one case of the use of a subject personal pronoun<br />

when referring to objects. That is example [5]:<br />

[5] (German) [...] [Martin] brachte den Schlüssel an der Schnur so heftig<br />

zum Pendeln, daß er links am Ohr vorbei um den Kopf herum auf die rechte<br />

Wange schlug. (p. 64)<br />

[5] (Portuguese) […] [Martin] fez pender a chave com tanta violência que<br />

ela lhe passou junto à orelha esquerda. (p. 67)<br />

3. Non-Subject Personal Pronouns in Translation<br />

As for non-subject personal pronouns in anaphoric uses, pronoundropping<br />

or zero anaphora is extremely rare. Personal pronouns functioning as<br />

direct, indirect or prepositional objects in the German source text sentences<br />

are, as a rule, translated by means of their correspondents in Portuguese.<br />

However, the analysis of the Portuguese translation of this novel shows that<br />

there is a tendency to avoid the repetition of identical forms in near co-text.<br />

This applies both to pronouns and to nominal forms.<br />

In example [6],


Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation 33<br />

[6] (German) Nachmittags war er meistens mit ihr allein und dann war sie<br />

ruhig und weinte nie. (p. 89)<br />

the pronoun form ihr is translated into Portuguese by means of a nominal<br />

form, a pequena, in order to avoid the repetition of the identical form „ela‟ in the<br />

near co-text:<br />

[6] (Portuguese) Da parte da tarde, era quase sempre ele quem ficava<br />

sòzinho [sic] com a pequena, e então ela mostrava-se tranquila, nunca chorava.<br />

(p. 92).[ ≠ (...) era quase sempre ele quem ficava com ela, e então<br />

ela mostrava-se tranquila (...)].<br />

4. Possessives<br />

4.1 In a contrastive analysis of the possessive pronoun system and use in<br />

both German and Portuguese, Sousa-Möckel (1997) showed that there is a<br />

tendency in Portuguese to avoid the use of possessives in a number of cases in<br />

which they are compulsory in German. These cases involve, among others,<br />

references to body parts, objects of normal use, family members and usual<br />

habits. In these cases, the possessive pronoun in Portuguese is implicit rather<br />

than explicit.<br />

That is why in example [7],<br />

[7] (German) Als der Lehrjunge gegangen war, legte der Bäcker wieder seine<br />

Hand auf ihre Hand. (p. 266)<br />

the German possessive seine is not translated into Portuguese:<br />

[7] (Portuguese) Quan<strong>do</strong> o aprendiz se foi embora, o pasteleiro tornou a<br />

pousar a [ø] mão na dela. (p. 281)<br />

4.2 At the same time, Sousa-Möckel also points out that the Portuguese<br />

system of possessives allows for a more precise distinction of the gender of the<br />

possessor than the German system. This is achieved by means of the so-called<br />

analytical forms like „dele‟, „dela‟, „deles‟, „delas‟. This is clear in example [7],<br />

where the analytical form dela is used, rather than the synthetical form „sua‟ that<br />

<strong>do</strong>es not allow for gender distinction of the possessor.


34<br />

Traduzir<br />

4.3 The tendency to avoid repetition of identical forms in the near co-text<br />

referred to above sometimes leads to translations where parts of the sentence,<br />

which are not essential to its interpretation, are omitted. This can be seen in<br />

example [8],<br />

[8] (German) […] legte er seine Hand auf ihre Hand und sie ließ seine<br />

Hand <strong>do</strong>rt liegen. (p. 266)<br />

where the Portuguese translation omits the segment in bold:<br />

[8] (Portuguese) […] ele pousou a sua mão na dela e ela consentiu. (p.<br />

281)<br />

[… que a mão dele assim ficasse]<br />

4.4 This tendency to avoid repetition of identical forms in the near co-text<br />

can also lead to other solutions in translation rather than omitting parts of the<br />

sentence. In example [9],<br />

[9] (German) Sie steckte den Daumen in den Mund und legte ihren Kopf<br />

auf seine Brust. (p. 257)<br />

both possessives, ihren and seine, are not symmetrically translated in the target<br />

text. The translator prefers to use the dative form of the personal pronoun, lhe,<br />

rather than the possessive:<br />

[9] (Portuguese) A garota meteu o polegar na boca e encostou-lhe a cabeça<br />

ao peito. (p. 271)<br />

This and other solutions for translation problems seem to point to the fact<br />

that pronominal sub-systems (personal pronouns, possessives, demonstratives<br />

and so forth) function in complementarity, thus forming a cohesive<br />

pronominal system: where a particular pronoun <strong>do</strong>es not seem suitable for any<br />

sort of reason, another type of pronoun steps in, allowing for an acceptable<br />

translation.<br />

5. Unsolved Problems


Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation 35<br />

5.1 In spite of the tendencies and rules explained and exemplified in this<br />

article, we are still left with some problems that can not be solved within the<br />

scope of syntax and/or semantics.<br />

Let us leave translation problems aside for a while and concentrate on<br />

anaphor in a particular language. Sentences containing structures of the type<br />

F because PRO<br />

are a case in point, where F contains two antecedents of the same gender, like<br />

in example [10]:<br />

[10] (English) The policeman hit the suspect because he was trying to escape.<br />

To interpret examples like [10], that is, to solve the anaphoric use of he in<br />

the 2nd sentence, some linguists seem to claim that the rule of topic<br />

continuity/discontinuity <strong>do</strong>es not apply here, because the 1st sentence contains<br />

a verb with a bias. Some verbs like „envy‟, „blame‟ or „hit‟ would have a bias<br />

towards the direct object. So, in example [10], the subject of the 2nd sentence,<br />

he, would be co-referent with the direct object of the 1st sentence, the suspect<br />

(and not the policeman).<br />

5.2 And yet, as Reboul (1994) notes, we can still find enough examples<br />

where neither the rule of topic continuity/discontinuity, nor the rule of verbs<br />

with a bias seem to apply. Examples [11] and [12] of the structure<br />

F because PRO<br />

[11] (English) The policeman hit the suspect because he is a Jew.<br />

[12] (English) The policeman hit the suspect because he is an Arab.<br />

both containing the verb „hit‟ in the 1st sentence – a verb supposedly with a<br />

bias towards the direct object – would necessarily have different interpretations<br />

and different anaphor resolutions. If [11] and [12] were to be uttered by<br />

Palestinians, the subject of the 2nd sentence would necessarily have different<br />

interpretations and different anaphor resolutions: in [11], he would refer to the<br />

policeman, whereas in [12], he would refer to the suspect. The same examples


36<br />

Traduzir<br />

would have exactly the opposite interpretation and the opposite anaphor<br />

resolution if they were to be uttered by Israelis.<br />

These examples seem then to prove that syntactic rules alone can not<br />

account for anaphor resolution in a number of cases. Pragmatics and cultural<br />

knowledge/world knowledge will necessarily have to step in to solve problems<br />

such as these.<br />

________<br />

1 If the personal pronoun is not enough to avoid ambiguity, one would necessarily<br />

have to resort to stronger forms, such as NPs containing a noun.<br />

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português de Jorge Rosa (s/ data): Casa indefesa, Lisboa: Livros <strong>do</strong> Brasil.<br />

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WANDRUSZKA, Mario (1969), Sprachen vergleichbar und unvergleichlich, München: Piper<br />

& Co.


LINGUÍSTICA FUNCIONAL E TRADUÇÃO<br />

Kai Immig<br />

INTRODUÇÃO<br />

No âmbito da tradução nas suas múltiplas vertentes e face às diferentes<br />

abordagens que nem sempre se articulam de maneira inequívoca, é conveniente<br />

termos referências bem definidas. A linguística na linha de André Martinet 1 , que<br />

elabora sobre o funcionamento de um sistema linguístico de forma simples e<br />

não-normativa, parece-nos fornecer uma excelente base para quem estuda e<br />

trabalha em tradução e, em geral, na área das Línguas. A abordagem em questão<br />

é aplicável aos fenómenos linguísticos, nomeadamente aos níveis fonológico e<br />

morfo-sintáctico. A ponte para abordagens de carácter semântico-pragmático<br />

pode estabelecer-se através <strong>do</strong> plano da axiologia – área intermédia entre sintaxe<br />

e semântica – em que conseguimos operar com elementos discretos, intimamente<br />

liga<strong>do</strong>s aos processos da significação. Veremos, no esboço que se segue, como<br />

se pode, num primeiro momento, analisar um determina<strong>do</strong> fenómeno<br />

gramatical existente em <strong>do</strong>is sistemas linguísticos. Vamos concentrar-nos no<br />

conjuntivo em alemão e em português, ten<strong>do</strong> em linha de conta os princípios da<br />

linguística martinetiana.<br />

UM ESQUEMA PARA O SINTAGMA VERBAL PORTUGUÊS<br />

O enquadramento sintáctico <strong>do</strong> verbo português que apresentamos a<br />

seguir foi desenvolvi<strong>do</strong> por Barbosa 2 . Vinte e uma manifestações formais <strong>do</strong><br />

verbo português caracterizam-se inequivocamente através da determinação<br />

sintáctica <strong>do</strong> monema verbal por diferentes monemas gramaticais, mais<br />

precisamente, por modalidades verbais. Distinguem-se quatro classes dessas<br />

modalidades verbais: classe <strong>do</strong> “tempo”, da “perspectiva”, <strong>do</strong> “aspecto” e <strong>do</strong><br />

“mo<strong>do</strong>” 3 . Com a introdução da classe da “perspectiva” tornou-se possível uma<br />

caracterização puramente sintáctica das formas verbais existentes no sistema<br />

linguístico português 4 .<br />

Salienta-se que os nomes das classes não devem ser confundi<strong>do</strong>s com usos<br />

desses mesmos nomes em outros contextos de investigação linguística ou<br />

científica em geral. É pertinente esta observação não só pelo facto de uma<br />

vertente <strong>do</strong> presente trabalho ser de ordem contrastiva e dar-se conta das


Linguística Funcional e Tradução 39<br />

abordagens alemãs cuja concepção de «tempo», («perspectiva»), «aspecto» e<br />

«mo<strong>do</strong>» é diferente. Geralmente, no âmbito da gramática tradicional, esses<br />

conceitos são aborda<strong>do</strong>s sob pontos de vista mistos, isto é, características<br />

semânticas e/ou pragmáticas entram na descrição e explicação das formas<br />

verbais. Na abordagem funcionalista são tomadas em consideração a<br />

manifestação formal e o valor das modalidades em causa. Neste senti<strong>do</strong>,<br />

podemos entender as quatro classes de modalidades verbais (que poderiam ter<br />

os nomes: classes 1, 2, 3 e 4) como classes de monemas que transportam traços<br />

pertinentes, que atribuem valores distintos ao monema verbal com o qual estão<br />

em relação funcional. Sob uma perspectiva funcionalista o mais interessante<br />

não é o senti<strong>do</strong> que as modalidades verbais evocam em combinação com o<br />

monema verbal, mas sim o facto de elas transportarem valores (traços, ou<br />

conjuntos de traços) diferentes. As possíveis combinações <strong>do</strong>s monemas das<br />

quatro classes constituem uma „grelha delimita<strong>do</strong>ra‟, a nível <strong>do</strong>s valores<br />

axiológicos, que, em ligação com qualquer monema verbal, possibilita o pleno<br />

„desabrochar‟ de senti<strong>do</strong> contextualiza<strong>do</strong>. O esquema desenvolvi<strong>do</strong> por<br />

Barbosa, que trabalha com treze unidades distintas para a determinação <strong>do</strong><br />

monema verbal 5 , apresenta-se da seguinte forma:<br />

tempo perspectiva aspecto mo<strong>do</strong><br />

1 ama<br />

2 amava passa<strong>do</strong><br />

3 amou pretérito<br />

4 amara passa<strong>do</strong> anterior<br />

5 amará posterior<br />

6 amaria passa<strong>do</strong> posterior<br />

7 tem ama<strong>do</strong> perfeito<br />

8 tinha ama<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> perfeito<br />

9 terá ama<strong>do</strong> posterior perfeito<br />

10 teria ama<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> posterior perfeito<br />

11 ame conjuntivo<br />

12 amasse passa<strong>do</strong> conjuntivo<br />

13 amar posterior conjuntivo<br />

14 tenha ama<strong>do</strong> perfeito conjuntivo<br />

15 tivesse ama<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> perfeito conjuntivo<br />

16 tiver ama<strong>do</strong> posterior perfeito conjuntivo<br />

17 amar infinitivo<br />

18 ter ama<strong>do</strong> perfeito infinitivo<br />

19 aman<strong>do</strong> gerúndio<br />

20 ten<strong>do</strong> ama<strong>do</strong> perfeito gerúndio<br />

21 ama imperativo<br />

(Quadro 1: Esquema de determinação sintáctica <strong>do</strong> monema verbal português segun<strong>do</strong> Barbosa)


40<br />

Traduzir<br />

Em suma: o monema verbal português é compatível com os monemas das<br />

cinco classes de tempo, perspectiva, mo<strong>do</strong>, aspecto e pessoa. Cada forma verbal é<br />

inequivocamente determinada e, portanto, identificável através da presença ou<br />

ausência <strong>do</strong>s monemas pertencentes às referidas classes. Note-se que a<br />

determinação <strong>do</strong> monema verbal por um monema da classe de “pessoa” é<br />

obrigatória. O “infinitivo”, o “imperativo” e o “gerúndio” são identifica<strong>do</strong>s<br />

como “modalidades verbais” e enquadram-se no esquema. O “conjuntivo” não<br />

é “mo<strong>do</strong>” mas, sim, monema da classe <strong>do</strong> mo<strong>do</strong>.<br />

APLICABILIDADE AO SINTAGMA VERBAL ALEMÃO<br />

As abordagens alemãs diferem fundamentalmente da concepção que se<br />

tem vin<strong>do</strong> a desenvolver no ramo da linguística funcionalista. Seja relembra<strong>do</strong> o<br />

facto de a tradução <strong>do</strong>s Elementos para a língua alemã já não ser reeditada desde<br />

1987. No que respeita à língua alemã, a investigação recorre à categorização<br />

tradicional que distingue, em primeiro lugar, entre formas «finitas» e «infinitas»<br />

<strong>do</strong> verbo 6 . As formas «finitas» são caracterizadas pela existência das cinco<br />

«categorias» 7 de pessoa (1ª a 3ª); número («singular» e «plural»); mo<strong>do</strong> («indicativo» e<br />

«conjuntivo» e, por vezes, «imperativo» 8 ); tempo («Präsens» – «presente»; «Futur<br />

I» – «futuro I»; «Präteritum» – «pretérito»; «Perfekt» – «perfeito»;<br />

«Plusquamperfekt» – «mais-que-perfeito»; «Futur II» – «futuro II» 9 ) e género <strong>do</strong><br />

verbo («genus verbi»; «voz activa» e «voz passiva»). As formas «infinitas» são<br />

caracterizadas pela ausência de «pessoa» e «número», as outras «categorizações»<br />

estão, segun<strong>do</strong> Radtke 1998: 24, “representadas só rudimentarmente (“nur<br />

rudimentär vertreten”)” 10 . O esquema das «categorias» <strong>do</strong> verbo alemão<br />

apresenta-se como segue:<br />

verbal<br />

Numerus<br />

Modus<br />

Singular Plural Indikativ (Imper.) Konjunktiv<br />

Person Tempus Genus verbi<br />

1ª 2ª 3ª Präsens Futur II Aktiv Passiv<br />

Präteritum Plusquamperfekt<br />

Futur I Perfekt<br />

(Quadro 2: “As «categorias de unidade» <strong>do</strong> verbo (finito) alemão” 11 )


Linguística Funcional e Tradução 41<br />

Radtke discute os conceitos de formas «finitas» e «infinitas» em relação ao<br />

conceito de «flexão», o que resulta no seguinte esquema, basea<strong>do</strong> em Wurzel 12 ,<br />

em que são inseri<strong>do</strong>s os «infinitivos» e os «particípios»:<br />

Verb/”verbo”<br />

grammatische Marker/ “marca<strong>do</strong>res gramaticais”<br />

Person Numerus Tempus Modus Genus verbi Infinitive Partizipien<br />

1ª 2ª 3ª Sg Pl Präs Fut II Ind Imp Akt Pass<br />

Prät Fut Konj<br />

Perf Pqperf<br />

(Quadro 3: Categorização <strong>do</strong> verbo alemão segun<strong>do</strong> Wurzel)<br />

Não consideraremos, no âmbito desta reflexão, o «género <strong>do</strong> verbo», pelo<br />

simples facto de esta «categoria» ser dispensável no ramo de uma descrição e<br />

explicação <strong>do</strong> funcionamento <strong>do</strong> conjuntivo, tema central <strong>do</strong> presente artigo.<br />

Dispensamos, também, a «categoria» <strong>do</strong> «número», optan<strong>do</strong> por uma contagem<br />

da 1ª à 6ª pessoa, como se tem vin<strong>do</strong> a fazer no ramo da linguística funcional 13 .<br />

As abordagens, teórica e meto<strong>do</strong>logicamente diferentes, são postas em<br />

comparação no seguinte esquema:<br />

verbo alemão<br />

marca<strong>do</strong>res gramaticais<br />

“categorias”: pessoa: tempos: ( ) ( ) mo<strong>do</strong>s: infinitivos: particípios:<br />

1ª a 6 a seis ind conj imp quatro 14 I e II 15<br />

monema verbal português<br />

determina<strong>do</strong> por/compatível com<br />

classes: pessoa tempo persp. aspecto mo<strong>do</strong> ( ) ( )<br />

mod. verbais: (1ª-6 a ) (pr ps --) (an po --) (pf --) (-- conj imp inf ger)<br />

(Quadro 4: Esquematização das abordagens alemã (tradicional)<br />

e portuguesa (funcional) <strong>do</strong> verbo/sintagma verbal em comparação)<br />

Esboçamos, brevemente, as diferenças e semelhanças relevantes para o<br />

presente estu<strong>do</strong>:


42<br />

Traduzir<br />

1) A contagem “1 a à 6 a pessoa” aplica-se sem problemas à língua alemã.<br />

2) A percepção da «categoria» <strong>do</strong> «tempo» no esquema alemão é, na sua<br />

estrutura elementar, parecida com a percepção <strong>do</strong> «tempo» manifestada na<br />

gramática portuguesa tradicional 16 . No ramo da investigação linguística alemã<br />

da «categoria» <strong>do</strong> «tempo», Reichenbach é geralmente ponto de referência com<br />

a sua divisão <strong>do</strong> «tempo» em „point of event‟ (tE), „point of reference‟ (tR) e<br />

„point of speech‟ (tS) 17 . Em Eisenberg, notam-se as dificuldades relativamente à<br />

delimitação de „point of event‟ (“Betrachtzeit”) 18 . Salienta-se que toda essa<br />

concepção <strong>do</strong> conceito <strong>do</strong> «tempo» é diferente <strong>do</strong> tempo linguístico utiliza<strong>do</strong> no<br />

âmbito <strong>do</strong> funcionalismo, em que esse constitui uma classe sintáctica 19 .<br />

3) A classe da perspectiva permite, como já se salientou, uma abordagem<br />

puramente sintáctica <strong>do</strong> sintagma verbal português. De certa forma, encontrase<br />

a “perspectiva” integrada na «categoria» <strong>do</strong> «tempo» tradicional (cf. pág. 16,<br />

nota 14). Não nos foi possível encontrar o conceito, assim concebi<strong>do</strong>, nos<br />

registos da investigação linguística alemã.<br />

4) Relativamente à discussão <strong>do</strong> aspecto, constatamos que não há consenso<br />

sobre o conceito entre os linguistas que investigam a língua alemã. Thierhoff<br />

(1992) parte <strong>do</strong> princípio que o alemão é uma língua “sem categorias de<br />

aspecto‟‟ 20 e P. ten Cate (1998), na mesma linha de pensamento, afirma que<br />

“não se deixam atribuir funções aspectuais próprias a qualquer tempo verbal” 21 .<br />

Eisenberg (1989), por sua parte, defende a existência da «categoria» <strong>do</strong><br />

«aspecto» 22 . Em Vater (1997) lemos que, “em língua alemã (e em língua<br />

francesa), a categoria <strong>do</strong> tempo é <strong>do</strong>minante sobre o aspecto, enquanto em<br />

língua russa o aspecto é <strong>do</strong>minante sobre o tempo” 23 . A divisão de opiniões<br />

sobre o assunto é nítida. Relembre-se que essas reflexões juntam os diferentes<br />

planos (sintáctico e semântico-pragmático, até cognitivo) numa só abordagem 24 .<br />

5) «Indicativo», «conjuntivo» e «imperativo» são, na abordagem alemã,<br />

considera<strong>do</strong>s «mo<strong>do</strong>s» e têm, portanto, estatuto de «categoria gramatical». Na<br />

abordagem funcional <strong>do</strong> sintagma verbal português o “conjuntivo” e o<br />

“imperativo” são, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> “infinitivo” e <strong>do</strong> “gerúndio”, considera<strong>do</strong>s<br />

monemas pertencentes à classe <strong>do</strong> mo<strong>do</strong>. O estatuto <strong>do</strong> “indicativo” é visto de formas<br />

diferentes. Vieira Santos (1999: 377-383) defende a existência de um monema<br />

“indicativo” (tal como a existência de um monema “presente”). Segun<strong>do</strong> a<br />

posição „clássica‟ <strong>do</strong> funcionalismo martinetiano, o monema verbal em<br />

“indicativo” caracteriza-se através da ausência de determinação pelos outros<br />

quatro monemas da classe <strong>do</strong> “mo<strong>do</strong>”. Ten<strong>do</strong> em linha de conta uma possível<br />

remodelação teórica <strong>do</strong> sintagma verbal alemão sob uma perspectiva


Linguística Funcional e Tradução 43<br />

funcionalista (ver quadro 4) seria preciso, relativamente ao “mo<strong>do</strong>”, clarificar<br />

até que ponto se justificaria a introdução <strong>do</strong> “infinitivo” (particularmente a<br />

construção sintáctica de „zu + infinitivo‟) como monema na classe <strong>do</strong> “mo<strong>do</strong>”.<br />

Seria igualmente necessário esclarecer o estatuto <strong>do</strong> «Partizip Präsens»<br />

(«particípio <strong>do</strong> presente»). Ele poderia eventualmente obter o mesmo estatuto<br />

que o “gerúndio” tem em português. O estatuto <strong>do</strong> «Partizitp II» teria de ser<br />

discuti<strong>do</strong>. Seria, ainda, necessária a discussão <strong>do</strong> “imperativo”. A problemática<br />

não parece ser substancialmente diferente da problemática na língua<br />

portuguesa.<br />

Não pode fazer parte deste trabalho uma análise comparativa, em termos<br />

exaustivos, das treze unidades válidas para o sistema linguístico português com<br />

os critérios aplica<strong>do</strong>s ao verbo alemão. Em princípio, encontram-se os valores e<br />

os diferentes senti<strong>do</strong>s por eles despoleta<strong>do</strong>s também no sistema linguístico<br />

alemão, como salientámos supra. Devi<strong>do</strong> à estrutura da língua alemã, porém,<br />

nem sempre serão transporta<strong>do</strong>s através <strong>do</strong> próprio sintagma verbal. Toda a<br />

problemática das relações entre „«tempos verbais», «advérbios temporais»,<br />

«aspectos», «modalidades de acção» 25 , «mo<strong>do</strong>s» e «mo<strong>do</strong>s verbais»„ 26 teria de ser<br />

analisada sob a luz <strong>do</strong> pensamento funcionalista. Entraria também a discussão<br />

sobre a referenciação espacial, temporal, social («Deixis» (deítica) e «Distanz»<br />

(distância)), realizada até ao momento, no ramo da investigação linguística<br />

alemã 27 .<br />

No que respeita ao tema <strong>do</strong> presente trabalho, salientamos que é<br />

perfeitamente possível identificar a manifestação formal <strong>do</strong> monema <strong>do</strong><br />

“conjuntivo” no sintagma verbal alemão 28 , facto que justifica a sua abordagem<br />

sob uma perspectiva funcionalista. Seguiremos com uma primeira análise de<br />

ordem comparativa entre sintagmas verbais portugueses e alemães.<br />

PRIMEIRO MOMENTO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA<br />

É óbvio que cada sistema linguístico organiza as suas formas verbais de<br />

forma particular. É igualmente óbvio que a comparação de <strong>do</strong>is sistemas deve<br />

recorrer a um único méto<strong>do</strong> de abordagem. Compararemos, num primeiro<br />

momento de análise, as formas verbais portuguesas com as respectivas<br />

traduções alemãs, seguin<strong>do</strong> o esquema de Barbosa. Manteremos a enumeração<br />

(1 a 21) aplicada ao esquema (cf. capítulo I.2.1., quadro 1). Inseriremos os<br />

sintagmas verbais em frases. Indicaremos, no caso <strong>do</strong>s sintagmas verbais<br />

portugueses, quais os monemas das quatro classes que determinam o monema<br />

verbal em causa. Não aplicaremos essa classificação aos sintagmas verbais<br />

alemães. Não é nosso objectivo a apresentação de um esquema completo das


44<br />

Traduzir<br />

possibilidades de tradução, mas sim a delimitação das diferenças fundamentais<br />

entre os <strong>do</strong>is sistemas, nomeadamente no que toca aos usos <strong>do</strong> “conjuntivo”.<br />

Marcaremos essas formas com negritos:<br />

O monema verbal português não determina<strong>do</strong> por um <strong>do</strong>s monemas<br />

pertencentes às quatro classes em causa tem, na tradução para língua alemã, a<br />

sua correspondência no «tempo verbal» <strong>do</strong> «Präsens»:<br />

tem per asp md<br />

(1) O João ama a Joana. -- -- -- --<br />

(1t) João liebt Joana.<br />

(1') “Amanhã vou ao cinema.”<br />

(1't) “Morgen gehe ich ins Kino.”<br />

(1'') “Ontem fui ao teatro. E quem encontro? Miguel.”<br />

(1''t) “Gestern bin ich ins Theater gegangen. Und wen treffe ich da? Miguel.”<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “passa<strong>do</strong>” pode<br />

ser traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt» (2'ta) ou com o «Präteritum» ((2t), (2't))<br />

(dependente de diferentes factores). Quan<strong>do</strong> actualiza um senti<strong>do</strong> potencial é<br />

traduzi<strong>do</strong> com o « Konjunktiv II-Futur I» (a forma de „würden + infinitivo‟; (2''t),<br />

(2'''t)). O uso da forma simples («Konjunktiv II-Präteritum» (2''ta)) que coincide,<br />

formalmente, com o «Indikativ-Präteritum» parece, nesse contexto, antiqua<strong>do</strong>:<br />

(2) O João cantava bem. ps -- -- -- --<br />

(2t) João sang gut.<br />

(2') O João cantava sempre bem.<br />

(2't) João sang immer gut.<br />

(2'ta) João hat immer gut gesungen.<br />

(2'') O João visitava a Joana se ela estivesse sozinha.<br />

(2''t) João würde Joana besuchen, wenn sie alleine wäre.<br />

(2''ta) João besuchte Joana, wenn sie alleine wäre.<br />

(2''') “Passava-me o sal, por favor?”<br />

(2'''t) “Würden Sie mir bitte das Salz reichen?”


Linguística Funcional e Tradução 45<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “pretérito” pode<br />

ser traduzi<strong>do</strong> com o «Präteritum» ((3t): „war‟, (3''t)) ou com o «Perfekt» ((3t): „bin<br />

gegangen‟, (3't), (3''ta)) (dependen<strong>do</strong> de diferentes factores):<br />

(3) “Ontem fui ao cinema. O filme foi péssimo.” pr -- -- --<br />

(3t) “Gestern bin ich ins Kino gegangen. Der Film war total schlecht”.<br />

(3') “Não sei se a bebé já comeu ou não.”<br />

(3't) “Ich weiß nicht, ob das Baby schon gegessen hat oder nicht.”<br />

(3'') Ele viveu no <strong>Porto</strong> até 1952 e depois foi para Lisboa.<br />

(3''t) Er lebte bis 1952 in <strong>Porto</strong> und ging dann nach Lissabon.<br />

(3''ta) Er hat bis 1952 in <strong>Porto</strong> gelebt und ist... gegangen.<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>” e<br />

“anterior” é traduzi<strong>do</strong> com o «Plusquamperfekt»:<br />

(4) O João amara a Joana. ps an -- --<br />

(4t) João hatte Joana geliebt.<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “posterior” é<br />

traduzi<strong>do</strong> com o «Futur I». Mesmo na actualização de um senti<strong>do</strong> de dúvida<br />

pode manter-se esse «tempo verbal» na tradução, isto é, o «Futur I» em língua<br />

alemã pode servir o mesmo propósito (de actualização de um senti<strong>do</strong> de<br />

incerteza) que o «futuro» em língua portuguesa:<br />

(5) Depois <strong>do</strong> verão, João irá para França. -- po -- --<br />

(5t) Nach dem Sommer wird João nach Frankreich gehen.<br />

(5') “Está a tocar. Será Matilde?”<br />

(5't) “Es klingelt. Wird das Matilde sein?”<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>” e<br />

“posterior” é traduzi<strong>do</strong> com o «Konjuntiv II-Futur I» ((6t), (6''t), (6'''t)) (possível,<br />

também, o „antiqua<strong>do</strong>‟ «Konjunktiv II-Präteritum» (6ta)) ou o «Konjunktiv II-<br />

Plusquamperfekt» ((6't), (6''t)):<br />

(6) O João convidaria a Joana se ela fosse mais simpática. ps po -- --<br />

(6t) João würde Joana einladen, wenn sie netter wäre.


46<br />

Traduzir<br />

(6ta) João lüde Joana ein, wenn sie netter wäre.<br />

(6') “A bola iria para fora, mas o guarda-redes não viu.”<br />

(6't) “Der Ball wäre ins Aus gegangen, aber der Torwart hatte das nicht gesehen.”<br />

(6'') “Quem diria que ela iria para Tóquio?”<br />

(6''t) “Wer hätte gedacht, dass sie nach Tokio gehen würde?”<br />

(6''') Sentia-se nos ossos que o tempo iria mudar.<br />

(6'''t) Man spürte es in den Knochen, dass das Wetter umschlagen würde. 29<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “perfeito” é<br />

traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt»:<br />

(7) O João tem ama<strong>do</strong> a Joana desde o primeiro dia. -- -- pf --<br />

(7t) João hat Joana vom ersten Tag an geliebt.<br />

(7') “Tenho canta<strong>do</strong> em Paris.”<br />

(7't) “Ich habe (oft) in Paris gesungen.”<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>” e<br />

“perfeito” é traduzi<strong>do</strong> com o «Plusquamperfekt»:<br />

(8) Até àquele dia, o rapaz tinha confia<strong>do</strong> cegamente no padre. ps -- pf --<br />

(8t) Bis zu jenem Tag hatte der Junge dem Pfarrer blind vertraut.<br />

(8') “Desculpa, mas tinha-me esqueci<strong>do</strong> completamente!”<br />

(8't) “Entschuldige, aber das hatte ich völlig vergessen!”<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “posterior” e<br />

“perfeito” é traduzi<strong>do</strong> com o «Futur II» ((9t), (9't)). Quan<strong>do</strong> actualiza um senti<strong>do</strong><br />

de incerteza é, por vezes, traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt» ((9'ta), (9''t)):<br />

(9) Quan<strong>do</strong> eles chegarem já ela terá canta<strong>do</strong>. -- po pf --<br />

(9t) Wenn sie ankommen, wird sie schon gesungen haben.<br />

(9') “Onde terá i<strong>do</strong> ele ontem?”<br />

(9't) “Wo wird er gestern hingegangen sein?”<br />

(9'ta) “Wo ist er wohl gestern hingegangen?”<br />

(9'') “Não sei se a bebé já terá comi<strong>do</strong>.”<br />

(9''t) “Ich weiß nicht, ob das Baby schon gegessen hat.”<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>”,<br />

“posterior” e “perfeito” é traduzi<strong>do</strong> com o «Konjunktiv II-Plusquamperfekt» (10t), com


Linguística Funcional e Tradução 47<br />

o «Konjunktiv II- Futur II» (10't) ou, numa versão simplificada, com o «Konjunktiv<br />

II-Präteritum» (10'ta). Note-se que a frase (10') e as respectivas traduções são de<br />

tipo «discurso indirecto» («indirekte Rede»; ver capítulo II.2.):<br />

(10) “Se o João não tivesse me<strong>do</strong> de sair à noite teríamos i<strong>do</strong> ao cinema.” ps po pf --<br />

(10t) “Wenn João keine Angst hätte, nachts rauszugehen, wären wir ins Kino<br />

gegangen.”<br />

(10') “Disse-me que ao meio-dia já teria chega<strong>do</strong>.”<br />

(10't) “Er sagte mir, dass er zu Mittag schon angekommen sein würde.”<br />

(10'ta) “Er sagte mir, dass er zu Mittag schon da wäre.” 30<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “conjuntivo” pode<br />

ser traduzi<strong>do</strong> com o «Präsens» (11t, 11't, 11''ta), com o «Konjunktiv I-Präsens»<br />

(11'ta, 11''t, 11'''t) ou com o «Konjunktiv II-Präteritum» (11'tb). A frase (11) não<br />

pode ser traduzida com «Konjunktiv» (11ta*):<br />

(11) “Lamento que cantes tão mal.” -- -- -- con<br />

(11t) “Ich bedaure, dass du so schlecht singst.”<br />

(11ta) * “Ich bedaure, dass du so schlecht singest/sängest.”<br />

(11') O João deseja que a Joana esteja com ele.<br />

(11't) João wünscht, dass Joana bei ihm ist.<br />

(11'ta) João wünscht, dass Joana bei ihm sei. 31<br />

(11'tb) João wünscht, dass Joana bei ihm wäre.<br />

(11'') “Queira Deus!”<br />

(11''t) “So Gott wolle!”<br />

(11''ta) “So Gott will!”<br />

(11''') “Cantemos!”<br />

(11'''t) “Lass(e)t uns singen!”<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>” e<br />

“conjuntivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com o «Konjunktiv II-Präteritum» (12t), o<br />

«Konjunktiv II-Plusquamperfekt» (12ta) ou com o «Konjunktiv II-Futur I» (12't):<br />

(12) O João desejava que a Joana estivesse com ele. ps -- -- con<br />

(12t) João wünschte, dass Joana bei ihm wäre.<br />

(12ta) João wünschte, dass Joana bei ihm gewesen wäre.<br />

(12') Se ela se casasse com o Francisco não lhe faltariam motivos de preocupação.<br />

(12't) Wenn sie Francisco heiraten würde, hätte sie reichlich Grund zur Sorge.


48<br />

Traduzir<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “posterior” e<br />

“conjuntivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com o «Präsens» ((13t), (13't), (13''t), (13'''t)) ou<br />

com a „construção com verbo modal em «Konjunktiv»‟ ((13tb), (13''ta)), mas não com o<br />

«Konjunktiv» „típico‟ (13ta*):<br />

(13) Quan<strong>do</strong> o João, um dia, tiver filhos, será feliz. -- po -- con<br />

(13t) Wenn João eines Tages Kinder hat, dann wird er glücklich sein.<br />

(13ta) *Wenn João eines Tages Kinder habe/hätte, dann wird er glücklich sein.<br />

(13tb) Wenn João eines Tages Kinder haben sollte 32 ,...<br />

(13') “Quan<strong>do</strong> fores para Coimbra, avisa-me!”<br />

(13't) “Wenn du nach Coimbra fährst, sage mir Bescheid!”<br />

(13'') “Se fores para Coimbra, avisa-me!”<br />

(13''t) “Falls du nach Coimbra fährst, sage mir Bescheid!”<br />

(13''ta) “Falls du nach Coimbra fahren solltest,...”<br />

(13''') “Quan<strong>do</strong> acabares os deveres podes ver televisão.”<br />

(13'''t) “Wenn du die Hausaufgaben fertig hast, darfst du fernsehen.”<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “perfeito” e<br />

“conjuntivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt» ((14t), (14't), (14''t), (14'''t),<br />

(14''''t)), com o «Konjunktiv II-Plusquamperfekt» ((14'ta)), com „construção com verbo<br />

modal em «Konjunktiv»‟ (14'''ta), ou com „construção com verbo modal em «Indikativ»‟<br />

(14''''ta). A frase (14) não pode ser traduzida com «Konjunktiv» (14ta*):<br />

(14) “Não acredito que o João tenha ama<strong>do</strong> a Joana.” -- -- pf con<br />

(14t) “Ich glaube nicht, dass João Joana geliebt hat.”<br />

(14ta) * “Ich glaube nicht, dass João Joana geliebt habe/hätte/ haben sollte.”<br />

(14') “Não posso dizer que o João a tenha ama<strong>do</strong>.”<br />

(14't) “Ich kann nicht sagen, dass João sie geliebt hat.” 33<br />

(14'ta) “Ich kann nicht sagen, dass João sie geliebt hätte.”<br />

(14'') “Não é verdade que o João a tenha ama<strong>do</strong>.”<br />

(14''t) “Es stimmt nicht, dass João sie geliebt hat.”<br />

(14''') “Caso a bebé já tenha comi<strong>do</strong> posso eu jantar agora.”<br />

(14'''t) “Wenn das Baby schon gegessen hat, kann ich jetzt essen.”<br />

(14'''ta) “Wenn das Baby (tatsächlich) schon gegessen haben sollte 34 , dann kann ich<br />

jetzt essen.”<br />

(14'''') “Temos que aceitar que tenha si<strong>do</strong> assim.” 35<br />

(14''''t) “Wir müssen akzeptieren, dass dem so gewesen ist.”


Linguística Funcional e Tradução 49<br />

(14''''ta) “Wir müssen akzeptieren, dass dem so gewesen sein soll.” 36<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>”,<br />

“perfeito” e “conjuntivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt» (15t), com o<br />

«Plusquamperfekt» (15ta) ou com o «Konjunktiv II <strong>do</strong> Plusquamperfekt» ((15't),<br />

(15''t)). A frase (15) não pode ser traduzida com «Konjunktiv» (15tb*):<br />

(15) “Não acredito que o João tivesse ama<strong>do</strong> a Joana verdadeiramente.”ps -- pf con<br />

(15t) “Ich glaube nicht, dass João Joana wirklich geliebt hat.”<br />

(15ta) “Ich glaube nicht, dass João Joana wirklich geliebt hatte.”<br />

(15tb) * “Ich glaube nicht, dass João Joana wirklich geliebt habe/ hätte.”<br />

(15') “Não acredito que Portugal tivesse joga<strong>do</strong> melhor com um segun<strong>do</strong> ponta de lança.”<br />

(15't) “Ich glaube nicht, dass Portugal mit einem zweiten Stürmer besser gespielt hätte.”<br />

(15'') Se ela se tivesse casa<strong>do</strong> com o Francisco não lhe faltariam motivos de preocupação.<br />

(15''t) Wenn sie Francisco geheiratet hätte, hätte sie reichlich Grund zur Sorge.<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “posterior”,<br />

“perfeito” e “conjuntivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt» ((16t), (16't), (16''t)) ou<br />

com „construção com verbo modal em «Konjunktiv»‟ ((16'ta), (16''ta)). A frase (16) não<br />

pode ser traduzida com «Konjunktiv» (16ta*):<br />

(16) “Quan<strong>do</strong> tiveres acaba<strong>do</strong> os deveres podes ver televisão.” -- po pf con<br />

(16t) “Wenn du die Hausaufaben fertig (gemacht) hast, darfst du fernsehen.”<br />

(16ta) * “Wenn du die Hausaufaben fertig (gemacht) habest/ hättest, darfst du<br />

fernsehen.”<br />

(16') “Se tiveres acaba<strong>do</strong> o trabalho na sexta-feira, avisa-me.”<br />

(16't) “Wenn/falls du die Arbeit Freitag schon fertig (gemacht) hast, sag mir<br />

Bescheid.”<br />

(16'ta) “Wenn/falls du die Arbeit Freitag schon fertig (gemacht) haben solltest 37 , sag<br />

mir Bescheid.”<br />

(16'') “Se a bebé já tiver comi<strong>do</strong>...”<br />

(16''t) “Wenn/falls das Baby schon gegessen hat...”<br />

(16''ta) “Wenn/falls das Baby schon gegessen haben sollte...”<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “infinitivo” pode<br />

ser traduzi<strong>do</strong> com o «Infinitiv Präsens» (17t), com „zu‟ + «Infinitiv Präsens» (17t) ou<br />

com o «Präsens» (17't):<br />

(17) “Mergulhar é amar o mar.” -- -- -- inf


50<br />

Traduzir<br />

(17t) “Tauchen bedeutet das Meer zu lieben.”<br />

(17') “Antes de ires para a escola, toma o leite.”<br />

(17't) “Bevor du zur Schule gehst, trinke deine Milch.”<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “perfeito” e<br />

“infinitivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com „zu‟ + «Infinitiv Perfekt» (18t), com o<br />

«Plusquamperfekt» (18't), com o «Futur II» (18''t) ou com o «Perfekt» (18''ta):<br />

(18) Ter fala<strong>do</strong> com a Joana foi importante para o João. -- -- pf inf<br />

(18t) Mit Joana gesprochen zu haben war wichtig für João.<br />

(18') Depois de ter fala<strong>do</strong> com a Joana, João sentiu-se feliz.<br />

(18't) Nachdem er mit Joana gesprochen hatte, fühlte João sich glücklich.<br />

(18'') Depois de ter fala<strong>do</strong> com a Joana, João sentir-se-á feliz.<br />

(18''t) Nachdem (wenn) er mit Joana gesprochen haben wird, wird João sich glücklich<br />

fühlen.<br />

(18''ta) Wenn (nachdem) er mit Joana gesprochen hat, wird João sich glücklich fühlen.<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “gerúndio” pode<br />

ser traduzi<strong>do</strong> com o «Partizip I» ((19ta), (19'ta)), no entanto não costuma ser<br />

usa<strong>do</strong> em contextos de língua corrente. O SV português também pode ser<br />

traduzi<strong>do</strong> com o «Präsens» ((19t), (19tb)) (modificação <strong>do</strong> contexto sintáctico<br />

necessária), ou com „zu + «Infinitiv Präsens»‟ (19't):<br />

(19) Aman<strong>do</strong> a Joana, o João viverá feliz. -- -- -- ger<br />

(19t) Indem er Joana liebt, wird João glücklich leben.<br />

(19ta) Joana liebend wird João glücklich leben.<br />

(19tb) João wird Joana lieben und glücklich leben.<br />

(19') Eles passam a vida falan<strong>do</strong> de futebol.<br />

(19't) Sie verbringen ihr Leben damit, über Fußball zu reden.<br />

(19'ta) Über Fußball redend verbringen sie ihr Leben.<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “perfeito” e<br />

“gerúndio” é traduzi<strong>do</strong> com o «Plusuqamperfekt»:<br />

(20) Ten<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> em Angola durante anos, João sentiu dificuldades em adaptar-se à<br />

vida na Europa. -- -- pf ger<br />

(20t) Weil/nachdem João jahrelang in Angola gelebt hatte, hatte er Schwierigkeiten,<br />

sich an das Leben in Europa zu gewöhnen.


Linguística Funcional e Tradução 51<br />

O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “imperativo” é<br />

traduzi<strong>do</strong> com o «Imperativ»:<br />

(21) “Abre a porta, por favor!” -- -- -- imp<br />

(21t) “Mach bitte die Tür auf!”<br />

A análise de exemplos <strong>do</strong>s 21 grupos mostra as diferenças entre usos <strong>do</strong><br />

“conjuntivo” em língua portuguesa e em língua alemã. Observámos casos em<br />

que a tradução de uma frase em língua portuguesa com o monema verbal<br />

determina<strong>do</strong> pelo monema <strong>do</strong> “conjuntivo” ([SVconj]) tem de ser feita,<br />

obrigatoriamente, com o monema verbal alemão igualmente determina<strong>do</strong> pelo<br />

monema <strong>do</strong> “Konjunktiv”. Um exemplo é o tipo de frase «condicional irreal»<br />

(«irrealer Konditionalsatz») ((12')-(12't)). Verificámos que há casos em que a<br />

manutenção <strong>do</strong> [SVconj] é possível mas não obrigatória (frases <strong>do</strong>s grupos 11; 13; 14;<br />

15; 16). Constatámos, nesse contexto, a possibilidade de constituição <strong>do</strong><br />

[SVconj] em língua alemã através de uma „construção com «verbo modal» em<br />

«Konjunktiv»‟ ((13''ta); (13tb); (14'''ta), (16'ta); (16''ta)). Nas gramáticas<br />

tradicionais, esse tipo de construção sintáctica não se encontra regista<strong>do</strong> como<br />

«forma de conjuntivo», todavia não se opõe a uma classificação formal como tal<br />

(cf. nota 29). Identificámos, também, casos em que é impossível manter o [SVconj]<br />

na tradução para língua alemã ((11ta); (13ta); (14ta); (15tb); (16ta)). Num caso,<br />

constatámos uma „modalização‟ através <strong>do</strong> uso de „construção com verbo modal em<br />

«Indikativ»‟ (14''''ta). Reparámos, em alguns exemplos, que frases em língua<br />

portuguesa com o monema verbal não determina<strong>do</strong> pelo monema <strong>do</strong> “conjuntivo”<br />

([SVind]) traduzidas para alemão resultam ou obrigatória ou facultativamente em<br />

frases alemãs com [SVconj]. Encontrámos, entre esses exemplos, novamente<br />

frases consideradas «condicionais irreais» (frases <strong>do</strong>s grupos 2, 6 e 10). Ainda<br />

verificámos em frases de tipo «discurso indirecto» («indirekte Rede»), que a língua<br />

alemã, contrariamente à língua portuguesa, dispõe, nesse contexto, da<br />

possibilidade de determinação <strong>do</strong> SV através <strong>do</strong> monema <strong>do</strong> “Konjunktiv”.<br />

Encontram-se exemplos no grupo 10, mas poder-se-iam encontrar em outros<br />

grupos também.<br />

OBSERVAÇÃO FINAL<br />

A análise acima apresentada constitui o primeiro de três momentos<br />

empíricos para uma classificação funcional de um fenómeno gramatical – o<br />

conjuntivo –, presente em <strong>do</strong>is sistemas linguísticos, o alemão e o português.


52<br />

Traduzir<br />

A meto<strong>do</strong>logia em vigor pode, não só, ser aplicada a estu<strong>do</strong>s de ordem<br />

comparativa e contrastiva de mais <strong>do</strong> que <strong>do</strong>is sistemas, mas, também, ser<br />

transferida para a análise de outros fenómenos linguísticos existentes noutros<br />

sistemas. Proporciona, por conseguinte, uma mais-valia na análise, na<br />

percepção e na categorização tanto <strong>do</strong> funcionamento da língua materna como<br />

de outras línguas e das respectivas correspondências funcionais, razão pela qual<br />

se torna uma ferramenta preciosa, também no âmbito da tradução.<br />

________<br />

1 Da vasta produção de obras de André Martinet sejam, aqui, referidas Martinet<br />

1973, 1980 e 1989.<br />

2 Barbosa 1998: 82.<br />

3 Aspas altas (“...”) assinalam noções da teoria funcionalista, aspas baixas («...»)<br />

assinalam conceitos usa<strong>do</strong>s nas gramáticas tradicionais.<br />

4 Nunes de Silva 1998: 49: "... onde a gramática tradicional vislumbrava difusos<br />

senti<strong>do</strong>s temporais, há, segun<strong>do</strong> a perspectiva funcional, duas classes de monemas que<br />

designamos por "tempo" e por "perspectiva".<br />

5 Constatamos na classe de "tempo" três unidades (<strong>do</strong>is monemas – passa<strong>do</strong> e<br />

pretérito – e a ausência deles), na classe de "perspectiva" três (<strong>do</strong>is monemas – anterior<br />

e posterior – e a ausência deles), na classe de "aspecto" duas (um monema – perfeito –<br />

e a ausência dele), na classe de "mo<strong>do</strong>" cinco (quatro monemas – conjuntivo, infinitivo,<br />

imperativo e gerúndio – e a ausência deles). Obtemos um total de treze unidades<br />

distribuídas por quatro classes.<br />

6 Cf. Duden, vol. 4. 1984: 114.<br />

7 Todas as abordagens alemãs, a que tivemos acesso, baseiam-se na existência a<br />

priori de «categorias» <strong>do</strong> verbo. Essas abordagens diferem, por isso mesmo,<br />

substancialmente <strong>do</strong> funcionalismo. Na linha da tradição gramatical latina, o verbo<br />

alemão tem si<strong>do</strong> categoriza<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> os 5 critérios referi<strong>do</strong>s (cf. Thierhoff 1992: 3).<br />

8 A questão da pertença <strong>do</strong> «imperativo» em língua alemã à «categoria» <strong>do</strong> «mo<strong>do</strong>»<br />

tem si<strong>do</strong> discutida devi<strong>do</strong> à sua semântica (no ramo da sintaxe funcionalista interessa<br />

identificar a sua manifestação formal e o seu valor) e por causa <strong>do</strong> facto de só existirem<br />

duas formas; uma pertencente ao «singular», outra ao «plural» (cf. Eisenberg 1989: 108,<br />

109). A questão mantém-se em aberto.<br />

9 Esta divisão em seis «tempos verbais» está na tradição latina e é, habitualmente,<br />

referência geral, não só no ramo <strong>do</strong> ensino. Há, no entanto, diferentes propostas para a<br />

«categorização» <strong>do</strong> verbo alemão, por exemplo a de Thierhoff que trabalha com dez<br />

«tempos verbais» (os 'clássicos' mais o «perfeito II» e o «mais-que-perfeito II», tal como<br />

<strong>do</strong>is «pretéritos <strong>do</strong> futuro») e a proposta de Mugler que só identifica um «tempo<br />

verbal», o «Präteritum», não toman<strong>do</strong> em consideração os ditos «tempos compostos»<br />

(cf. Thierhoff 1992: 62-64, 276).


Linguística Funcional e Tradução 53<br />

10 Esta formulação é algo ambígua. Na nossa perspectiva sintáctica, uma<br />

«categoria» ou está presente e manifesta-se, por conseguinte, ao nível formal, ou não<br />

está, de to<strong>do</strong>, presente. Para o linguista funcionalista interessava, nesse contexto,<br />

identificar as manifestações formais das "categorias rudimentarmente presentes" (as<br />

quais necessitavam de ser reorganizadas em «classes» adequadas) e atribuir-lhes valores<br />

axiológicos, tarefa que, no entanto, extrapolaria o âmbito <strong>do</strong> presente trabalho.<br />

11 Eisenberg 1989: 108: "Die Einheitenkategorien des Verbs".<br />

12 Apesar das diferenças com a abordagem funcionalista, Wurzel, discuti<strong>do</strong> e<br />

ilustra<strong>do</strong> por Radtke 1998: 29-42, aproxima-se <strong>do</strong> enquadramento <strong>do</strong> verbo feito por<br />

Barbosa, na medida em que parte da manifestação formal. Wurzel distingue ao nível<br />

morfológico entre «morfemas básicos», «morfemas de derivação» e «morfemas<br />

gramaticais».<br />

13 Acerca <strong>do</strong> número, ver Barbosa 1994: 17/8 e Silva 1998: 54-57.<br />

14 O Duden 1984: 191, distingue entre quatro «formas de infinitivo» em «voz<br />

activa». São as «formas» de «Präsens» (lieben), «Perfekt» (geliebt haben), «Futur I»<br />

(lieben werden), «Futur II» (geliebt haben werden).<br />

15 O sistema linguístico alemão dispõe de <strong>do</strong>is «particípios» diferentes: o<br />

«particípio I» (wissend), comparável, embora com ressalvas, com o "gerúndio" em língua<br />

portuguesa (saben<strong>do</strong>), e o «particípio II» (gewusst), usa<strong>do</strong> principalmente em «tempos<br />

compostos» e comparável com o «particípio» em língua portuguesa (sabi<strong>do</strong>) (vd.<br />

exemplos <strong>do</strong>s grupos (19) e (20).<br />

16 Nas gramáticas tradicionais encontramos as seguintes designações para os<br />

«tempos verbais» (constituí<strong>do</strong>s com o «verbo finito»): «presente», «pretérito imperfeito»,<br />

«pretérito perfeito», «pretérito mais-que-perfeito», «futuro» e «condicional» (cf. Vilela<br />

1999: 83). No que toca à língua alemã, a questão da «categorização» <strong>do</strong>s «condicionais»<br />

está em discussão (cf. Thierhoff 1992: 56).<br />

17 Apud Thierhoff 1992: 53.<br />

18 Eisenberg 1989: 120. Toda a discussão <strong>do</strong> «tempo» segun<strong>do</strong> o ponto de vista de<br />

Reichenbach tem levanta<strong>do</strong> opiniões, por vezes, bastante controversas (cf. Thierhoff<br />

1992: 80 e seguintes).<br />

19 É, neste contexto, notável a dificuldade teórica e meto<strong>do</strong>lógica que existe<br />

devi<strong>do</strong> às abordagens <strong>do</strong> sistema linguístico alemão 'mistas'. Diferentes linguistas<br />

alemães, nos anos 80, exigiram, por isso mesmo, uma "nítida distinção entre 'sistema <strong>do</strong><br />

tempo' e 'usos de tempo'": "... favorisieren neuere linguistische Ansätze den Gedanken<br />

einer klaren Unterscheidbarkeit zwischen Tempussystem und Tempusgebrauch."<br />

(Itálico nosso.) Cf. Eisenberg 1989: 126.<br />

20 Thierhoff 1992: 78: "..., eine Sprache ohne Aspekt-Kategorien ist... das<br />

Deutsche." Esta afirmação refere-se ao sintagma verbal. É obvio, na nossa opinião, que<br />

um sistema linguístico, na sua globalidade, tenha possibilidades de referenciação<br />

aspectual. A questão é como uma língua manifesta essas referências formalmente<br />

manifestas no próprio sintagma verbal, em outras 'partes' da frase ou em outros planos<br />

<strong>do</strong> discurso. Leiss 1992 argumenta, que "muitas línguas dispõem de categorias não<br />

visíveis" e resume que "não se deve, precipitadamente, concluir que uma língua não


54<br />

Traduzir<br />

disponha de uma determinada categoria gramatical só por esta não ser transparente<br />

através <strong>do</strong>s padrões/meios habituais": "[...] viel Sprachen über unsichtbare Kategorien<br />

verfügen [...] Man sollte einer Sprache eine grammatische Kategorie nicht vorschnell<br />

absprechen, nur weil sie nicht in den gewohnten Mustern transparent wird." (Apud<br />

Vater 1997: 62.) Este excerto mostra, na nossa opinião, a dificuldade que se estabeleceu<br />

devi<strong>do</strong> à falta de uma base teórica e meto<strong>do</strong>lógica claramente definida. No ramo da<br />

sintaxe funcionalista parte-se da manifestação formal. Caso haja formas ambíguas, serve<br />

o teste da comutação para mostrar a existência de uma classe ou de um monema.<br />

Aquilo que não tem manifestação formal própria não será ti<strong>do</strong> em consideração<br />

linguística.<br />

21 P. ten Cate 1998: 33 "In dieser Arbeit wird davon ausgegangen, daß keiner<br />

Tempusform eine inhärente aspektuale Funktion zugeschrieben werden kann."<br />

22 Eisenberg parte <strong>do</strong> princípio que a «categoria» <strong>do</strong> «tempo» também assinala o<br />

«aspecto»: "...schreiben wir dem Tempus auch die Funktion zu, die (Nicht-)<br />

Abgeschlossenheit eines Vorgangs zu signalisieren" e distingue, explicitamente, entre<br />

«aspecto» e «Aktionsart» (modalidade de acção), característica semântica <strong>do</strong> verbo (cf.<br />

Eisenberg 1989: 122/3).<br />

23 Vater 1997: 62 "So ist im Russischen Aspekt über Tempus <strong>do</strong>minant, im<br />

Deutschen und Französischen Tempus über Aspekt."<br />

24 Idem: cf. introdução; pág. i, vi.<br />

25 «Aktionsarten»; cf. Eisenberg 1989: 121-123, Vater 1997: 62-65, Bußmann 1990:<br />

59-61 e 103.<br />

26 Cf. Vater 1997: ii.<br />

27 Idem 53-56, ten Cate: 1998, Thierhoff 1992: 274-299.<br />

28 Cf. Immig: 2002: 38-48.<br />

29 Na investigação linguística alemã está a ser discuti<strong>do</strong> se, no contexto em causa,<br />

a forma 'umschlagen würde', deveria ser considerada «indicativo <strong>do</strong> pretérito <strong>do</strong> futuro<br />

I» («Indikativ-FuturPräteritum I»). Os critérios aplica<strong>do</strong>s são de natureza semânticosintáctica<br />

(cf. Thierhoff 1992: 151 e 239). Constatamos que o SV em causa é,<br />

formalmente, um "conjuntivo".<br />

30 A retroversão dessa tradução 'pragmática' resultaria em: "Disse-me que ao<br />

meio-dia já lá estava/estaria."<br />

31 A frase parece pouco usual em linguagem corrente. No entanto, encontramos<br />

esse tipo de construção frequentemente na literatura alemã; assim, a título ilustrativo,<br />

em Nietzsche (Also sprach Zarathustra – Von Kind und Ehe): "Ich will, daß dein Sieg<br />

und deine Freiheit sich nach einem Kinde sehne." ("Eu quero, que a tua vitória e a tua<br />

liberdade desejem um filho."), in: Friedrich Nietzsche - Werke in drei Bänden, Phai<strong>do</strong>n<br />

Verlag, Kettwig 1990: 185.<br />

32 Está em discussão a integração de verbos como 'sollen' e 'wollen' na «categoria»<br />

<strong>do</strong>s «verbos auxiliares» (cf. Eisenberg 1989: 137). Consideran<strong>do</strong> 'sollen' «verbo auxiliar»<br />

podemos «categorizar» as formas 'haben sollte' (13tb) e 'fahren solltest' (13''ta) como<br />

«Konjunktiv II-Futur I». No caso da frase (13tb), a retroversão resultaria em: "Se o<br />

João, um dia, tiver filhos, será feliz."


Linguística Funcional e Tradução 55<br />

33 Quase 'automaticamente', traduz-se a frase (14') dessa forma. No entanto,<br />

resulta a retroversão em „Não posso dizer que o João a tem ama<strong>do</strong>‟. Ten<strong>do</strong>, nos <strong>do</strong>is<br />

sistemas linguísticos, a escolha entre determinação <strong>do</strong> monema verbal pelo monema <strong>do</strong><br />

"conjuntivo" ou pela ausência dele, consideramos (14'ta) a tradução mais adequada.<br />

Interessante, neste contexto, é o facto de a frase (14) não ter possibilidade de tradução<br />

para alemão com "Konjunktiv" (*14ta).<br />

34 Consideran<strong>do</strong> 'sollen' «verbo auxiliar» (cf. nota 41), podemos «categorizar»<br />

'gegessen haben sollte' (14'''ta) como «Konjunktiv II-Futur II» e 'gewesen sein<br />

soll'(14''''ta) como «Futur II».<br />

35 Valentim Loureiro, em entrevista televisiva, acerca <strong>do</strong> penalty contra Portugal no<br />

jogo das ½-finais Portugal-França, Campeonato Europeu 2000.<br />

36 Não é possível uma tradução de (14'''') para língua alemã com "Konjunktiv".<br />

Repare-se na 'modalização' através <strong>do</strong> «verbo modal» 'sollen' no «Indikativ» ((14''''ta).<br />

37 Consideran<strong>do</strong> 'sollen' «verbo auxiliar» (cf. nota 41), podemos «categorizar»<br />

(16'ta) e (16''ta) como «Konjunktiv II-Futur II».<br />

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VILELA, Mário (1999), Gramática da língua portuguesa, 2ª ed., Coimbra, Almedina.


Linguística Funcional e Tradução 57


BREAKFAST IN AMERICA É SÓ UM “MATA-BICHO À AMERICANA”?<br />

M. Helena A. G. Anacleto<br />

I. PROPOSTA PARA UMA NOBILIDADE TRADUTIVA<br />

Breakfast in America foi um disco marginal que esteve no centro das<br />

atenções da geração europeia e norte-americana que atingiu agora a casa <strong>do</strong>s<br />

trinta, quarenta anos de idade. De um grupo da era <strong>do</strong> vinil, tão assumidamente<br />

marginal que escolheu para seu nome “SuperTramp”, a letra da faixa que deu o<br />

título ao disco, Breakfast in America, será comparativamente analisada com a sua<br />

tradução, aliás criada para o efeito.<br />

A criação de uma tradução lírica é deveras um desafio, constituin<strong>do</strong> uma<br />

tipologia à parte dentro da tradução literária. É assumidamente reconheci<strong>do</strong> por<br />

tradutores de todas as eras e áreas de trabalho que a tradução literária é uma das<br />

mais complexas, pois a dimensão semântica polissémica de determina<strong>do</strong>s<br />

vocábulos ou expressões que comportam conotações interpretativas e/ou<br />

dimensões simbólicas ao texto literário é uma constante. É mesmo essa a<br />

natureza <strong>do</strong> discurso literário: a construção interpretativa que o leitor faz <strong>do</strong><br />

texto provém da riqueza <strong>do</strong>s termos e da sua rede de relações conotativas que<br />

provoca o prazer da leitura.<br />

A tradução literária de um conto parece-me ser “menos nobre” dentro da<br />

tradução literária latu sensu. Passo a explicar porquê: a unidade <strong>do</strong> conto é, em<br />

termos de número de palavras, a mais económica da tipologia literária. Mas a<br />

tradução de um conto pode (e certamente é o que acontece) oferecer menos<br />

desafios de investigação tradutológica <strong>do</strong> que a tradução de um romance ou de<br />

uma novela, devi<strong>do</strong> não só à curta extensão <strong>do</strong> texto, mas também, e<br />

sobretu<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong> à relativa e menor complexidade interpretativa que as<br />

relações inter-palavras nas construções frásicas e nos segmentos de senti<strong>do</strong><br />

poderão oferecer.<br />

Na realidade, a dimensão simbólica de um romance ou novela é<br />

nitidamente superior à <strong>do</strong> conto, tornan<strong>do</strong>-se assim um desafio maior para o


Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”? 59<br />

tradutor que se propõe traduzir ou até retroverter um romance ou novela,<br />

preterin<strong>do</strong> a tradução de um conto.<br />

Temos assim que, numa “cadeia de nobilidade de tradução”, (termo que<br />

proponho mas que é discutível e portanto não postulável como sen<strong>do</strong> perfeito<br />

na totalidade), o conto traduzi<strong>do</strong> é o “menos nobre” e o romance e a novela<br />

são “mais ou menos nobres” nas suas dimensões tradutivas. No topo da<br />

“nobilidade tradutiva”, está, quanto a mim, a Poesia.<br />

Na realidade, a Poesia, quer seja de natureza intimista ou concreta, quer<br />

seja exclusivamente subjectivista ou de carácter interpretavelmente realista,<br />

pode e deve ser traduzida. Não partilho em absoluto <strong>do</strong>s pu<strong>do</strong>res<br />

tradutológicos de alguns tradutores literários que se dizem “atrever” a traduzir<br />

um conto, uma novela ou um romance, “mas Poesia, isso é que não”.<br />

Reconheço que a métrica, a rima, o ritmo, a dimensão fónica ou de<br />

pronunciação, possam oferecer dificuldades acrescidas ao tradutor literário; no<br />

entanto, essas dificuldades devem ser vistas como estímulo a um desafio<br />

superior e não como obstáculos intransponíveis.<br />

II. RETROVERSÃO VERSUS TRADUÇÃO LITERÁRIA?<br />

Se atentarmos na natureza <strong>do</strong> trabalho tradutológico, temos de considerar<br />

que é, também ele, um trabalho menos complexo <strong>do</strong> que aquele que um<br />

retrovertor terá de fazer. Trata-se de traduzir da Língua de Partida (LP) para<br />

uma Língua de Chegada (LC) que não é a língua materna <strong>do</strong> tradutor. Mas será<br />

este um óbice para o seu trabalho? É óbvio que não é, pois um bom tradutor<br />

deverá ser igualmente proficiente nas duas línguas – pelo menos numa situação<br />

ideal. Embora um tradutor deva estar bem apetrecha<strong>do</strong> linguisticamente para<br />

<strong>do</strong>minar os seus textos de partida e conceber os seus textos de chegada, é<br />

fundamental distinguir as áreas: se acerca da tradução literária muito se pode<br />

dizer, acerca da tradução técnica e científica, também. No caso da tradução<br />

técnica, em concreto, há a apontar que a questão das equivalências, tal como é<br />

proposta pela maioria <strong>do</strong>s críticos tradutivos, é muito mais óbvia <strong>do</strong> que no<br />

caso literário. A saber, a transposição de uma LP para uma outra LC é muito<br />

mais directa, pois um vocábulo costuma ter apenas um equivalente ou um<br />

número reduzi<strong>do</strong> de equivalentes. No texto literário, há uma necessidade de<br />

escolha mais criteriosa ainda. Ou seja, a ajuda de glossários, quer em suporte de


papel que o tradutor vai compilan<strong>do</strong> a partir de todas as suas tarefas<br />

tradutológicas, quer aos que ele vai ten<strong>do</strong> acesso em linha, não é tão imperiosa<br />

como no caso da tradução de um manual técnico ou de um artigo científico. As<br />

traduções jurídicas e económicas configuram uma necessidade intermédia de<br />

glossários, isto é, há termos de equivalência directa e, por isso, os glossários são<br />

fundamentais. Porém, tal como os próprios sistemas culturais, económicos e<br />

principalmente jurídicos são diferentes, também os glossários não conseguem<br />

responder a necessidades ipsis verbis, que são mais facilmente resolúveis no<br />

caso da tradução técnica e mesmo científica.<br />

Mas reflectia sobre a tradução e a retroversão. É fundamental notar que a<br />

tradução é notoriamente mais fácil que a retroversão, pois na retroversão há<br />

uma transposição de personalidade <strong>do</strong> tradutor. Isto é, o tradutor de uma língua<br />

materna X tem de se “pôr na pele” de um determina<strong>do</strong> falante da língua Y. Isto<br />

implica como que um processo mental de “re-encarnação”, como se se tratasse<br />

de um intérprete. Este processo tem tanto de criativo, quanto de<br />

potencialmente patológico, já que, se por um la<strong>do</strong>, tem a ver com a riqueza de<br />

uma performance, como se de um actor a desempenhar um papel no palco se<br />

tratasse, por outro la<strong>do</strong>, há uma nítida característica que ronda as raias da<br />

esquizofrenia patológica. Um bom tradutor deve estar acima de todas estas<br />

problemáticas acerca das quais os bons teoriza<strong>do</strong>res das actividades<br />

tradutológicas gostam de discorrer; realmente, um tradutor profissional não tem<br />

tempo para reflectir sobre o acto tradutivo, ela ou ele têm é de produzir um<br />

texto coerente, que responda às necessidades <strong>do</strong> cliente que os remunerará,<br />

mais ou menos generosamente, mais ou menos atempadamente, consoante as<br />

cláusulas que o tradutor impõe quan<strong>do</strong> aceitou tomar conta da encomenda de<br />

tradução. Os processos mentais de um bom tradutor têm de ser tão versáteis<br />

quanto as suas actividades são variáveis: o tradutor é um ser polivalente, que<br />

hoje de manhã pode estar a traduzir um texto de contabilidade, um relatório de<br />

um parecer económico vin<strong>do</strong> de uma empresa americana, por exemplo, e logo<br />

de tarde pode ter de acompanhar em missão de interpretação um empresário<br />

alemão que se deslocou a uma feira de exposições; amanhã de manhã, esse<br />

mesmo tradutor poderá começar a traduzir um manual de instruções de uma<br />

máquina corta<strong>do</strong>ra de metal, por exemplo, e, para variar o seu trabalho, de<br />

tarde, lança-se num projecto de tradução literária mais criativo ainda. Este é um<br />

cenário real: no princípio de carreira, um bom tradutor não pode ser muito


Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”? 61<br />

criterioso nas suas recusas de trabalho; pelo contrário, os tradutores que se<br />

lançam no merca<strong>do</strong> devem aceitar qualquer tarefa de tradução, desde que esteja<br />

ao seu alcance fazer um bom trabalho e satisfazer o cliente. Só quan<strong>do</strong> criar<br />

nome no merca<strong>do</strong> é que um tradutor se poderá dar ao luxo de escolher as suas<br />

encomendas de tradução e de retroversão e delegar os trabalhos que não lhe<br />

agradam em assistentes de tradução ou estagiários que contrata para o efeito. É<br />

claro que, neste segun<strong>do</strong> caso, o tradutor que é um bom gestor da sua empresa<br />

de tradução deverá rever muito criteriosamente o trabalho de tradução <strong>do</strong>s seus<br />

assistentes mais inexperientes, pois se o trabalho de revisão é sempre<br />

importante, torna-se fundamental quan<strong>do</strong> se trata de colmatar lacunas<br />

provocadas pela inexperiência ou pela menor exposição a tarefas de tradução<br />

que os principiantes necessariamente terão.<br />

III. TRADUÇÃO E RETROVERSÃO DAS LETRAS DE CANÇÕES: UM GRANDE<br />

DESAFIO<br />

De acor<strong>do</strong> com o conceito de “nobilidade tradutiva” já proposto e na<br />

mesma linha de pensamento, considero que há uma nobilidade tradutiva da lírica<br />

que é superior à nobilidade tradutiva da ficção. Quan<strong>do</strong> se trata de Poesia, há um<br />

desafio significativo para o tradutor que quer produzir um texto, mais ou<br />

menos fiel, àquele que o poeta engendrou. A questão da fidelidade no que toca<br />

à tradução de Poesia é para nós muito discutível. Imaginemos a seguinte<br />

situação: o poeta A produz um poema (P), resulta<strong>do</strong> da sua inspiração e da sua<br />

capacidade de engendrar um poema que é um jogo fónico, métrico, rimático,<br />

ritma<strong>do</strong> – é ele ou ela o autor; o tradutor B, além de ser o autor da sua<br />

tradução, ainda tem o trabalho da transposição da LP para a LC. Ou seja, além<br />

de poeta, deve ser linguista na sua actividade de tradutor. Trata-se de uma tarefa<br />

que requer uma perspectiva polifacetada, multidisciplinar e, portanto, mais<br />

completa. No fim <strong>do</strong> trabalho tradutivo <strong>do</strong> tradutor B, o texto traduzi<strong>do</strong> (TT)<br />

deverá ser “fiel” ao texto produzi<strong>do</strong> por A? Deverá, pelo contrário, assumir-se<br />

como entidade distinta de P? Afinal de contas, o TT e o P pertencem a sistemas<br />

linguísticos diferentes, como no caso concreto que passarei brevemente a<br />

ensaiar, onde P é em inglês e o nosso TT é em português. E não é só uma<br />

questão de os sistemas linguísticos serem diferentes; temos de considerar que o<br />

texto poético se constrói também, e sobretu<strong>do</strong>, não só com a subjectividade <strong>do</strong><br />

poeta que escreveu, mas com a subjectividade <strong>do</strong> leitor que o está a ler – afinal,


para que serve um Poema? Serve na medida em que provoca prazer no leitor,<br />

tal como outras formas de arte. Serve na medida da sua actualização através da<br />

leitura, interpretação e extrapolação conotativo-interpretativa de que o leitor é<br />

detentor na sua especificidade de indivíduo. As memórias e as ideologias de<br />

cada leitor são diferentes e, por isso, as interpretações são também diferentes.<br />

Quan<strong>do</strong> se fala da interpretação <strong>do</strong> Poema P e <strong>do</strong> seu texto traduzi<strong>do</strong> TT, a<br />

problemática da fidelidade complica-se: os sistemas individuais já são de si<br />

diferentes; quan<strong>do</strong> se trata <strong>do</strong>s sistemas linguísticos, eles também são diferentes<br />

– a interpretação <strong>do</strong> TT terá de ter em conta a memória colectiva de toda uma<br />

comunidade linguística, de to<strong>do</strong> um povo falante da mesma língua, que é<br />

diferente <strong>do</strong> povo que produziu o poeta, que por sua vez produziu o poema P.<br />

Então, na discussão da necessidade de fidelidade na transposição linguística de<br />

P para TT (ou na negação dessa fidelidade), a<strong>do</strong>ptei uma posição reservada, por<br />

me parecer que, de facto, essa é uma falsa questão – não se trata de necessidade,<br />

trata-se antes de possibilidade, ou não, dessa fidelidade. Na realidade, e como<br />

preten<strong>do</strong> demonstrar em seguida, temos de ter em conta que a fidelidade tem a<br />

ver com a traduzibilidade ou intraduzibilidade de poemas. Há poemas mais<br />

factuais, na sua escolha de vocábulos vernaculares, que apresentam uma<br />

dificuldade que lhes é específica; há poemas que pertencem aos chama<strong>do</strong>s ismos<br />

– realismo ou concretismo. Também têm dificuldades tradutivas que lhes são<br />

inerentes. Passar um texto de uma língua para a outra assim o exige. Então, qual<br />

é o enquadramento da tradução de poemas musica<strong>do</strong>s no panorama da<br />

tradução lírica em geral e na problemática que tenho vin<strong>do</strong> presentemente a<br />

expor?<br />

Por vezes, e por necessidade de merca<strong>do</strong>, o tradutor português tem de<br />

traduzir letras de canções de inglês para português. O caso específico de filmes<br />

destina<strong>do</strong>s ao merca<strong>do</strong> infantil, por exemplo, é assinalável. Referimo-nos em<br />

concreto aos filmes de Anime japoneses, ou, mais próximo de nós, os filmes<br />

das produções Walt Disney. Um caso muito recente é o de “Planeta<br />

Encanta<strong>do</strong>”, exibi<strong>do</strong> nos cinemas portuenses há muito pouco tempo.<br />

A nossa escolha <strong>do</strong> álbum discográfico Breakfast in America prende-se com<br />

factos de natureza distinta. Se, por um la<strong>do</strong>, houve uma escolha subjectiva deste<br />

álbum, já que em a<strong>do</strong>lescente fui aprecia<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> grupo SuperTramp, por um<br />

outro la<strong>do</strong>, a edição recente em Portugal de um disco-compacto <strong>do</strong> tipo “Best<br />

Of”, decerto um prazer para as gerações mais novas, assim o justifica.


Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”? 63<br />

Quanto às tendências musicais deste grupo rock, o crítico musical francês<br />

James Petit afirmou: “[les] influences pop, jazzy et progressives se mêlent dans<br />

des compositions imparables, aux arrangements particulièrement bien sentis,<br />

illustrant une vision plutôt ironique des Etats Unis.”<br />

É preciso referir a necessidade <strong>do</strong> conhecimento das culturas das línguas<br />

de partida e de chegada para que o agente translatório, vulgarmente chama<strong>do</strong><br />

“il tradittore”, consiga apresentar um produto final fiel ao original e ao mesmo<br />

tempo criativamente significativo para o público da língua de chegada. Estas<br />

reflexões partem de uma perspectiva (infelizmente já não tão?) marginal... Tal<br />

como os SuperTramp eram marginais, o seu público por excelência assumia-se<br />

também ele como marginal, ou, pelo menos, de tendências não alinhadas.<br />

Mas será que o poema da faixa discográfica de Breakfast in America <strong>do</strong>s<br />

SuperTramp será mesmo só “Um almoço-pequeno na América”? Um pequenoalmoço<br />

na América, na realidade é diferente de um pequeno-almoço em<br />

Portugal; o menú tradicional português será composto por uma chávena de café<br />

com leite e uma torrada com manteiga <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s. Este conceito é muito<br />

mais alarga<strong>do</strong> nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s: um verdadeiro breakfast pressupõe um bom<br />

copo de sumo de laranja, um café fraco numa chávena grande, ovos mexi<strong>do</strong>s<br />

com bacon frito; as variantes possíveis são French toast ou flocos de aveia, ou<br />

panquecas com molho <strong>do</strong>ce. Como se vê, a evocação cultural nos <strong>do</strong>is leitores,<br />

português e norte-americano, é diferente. O “mata-bicho” português, assim<br />

chama<strong>do</strong> no país profun<strong>do</strong>, é um copinho de aguardente, o qual, embora já a<br />

entrar em desuso nas aldeias portuguesas devi<strong>do</strong> às campanhas anti-alcoolismo,<br />

é dificilmente comparável ao conceito <strong>do</strong> Breakfast in America. Metaforicamente,<br />

os SuperTramp comeram a América, deglutin<strong>do</strong> as suas incoerências e, numa<br />

perspectiva irónica, não ficaram propriamente “a chorar por mais”, para usar<br />

uma expressão bem portuguesa.<br />

As evocações gastronómicas que os títulos exercem na mente <strong>do</strong>s públicos<br />

receptores são diferentes, porque os arquétipos mentais e socio-culturais de<br />

“pequeno-almoço” são muito distintos – o quebrar <strong>do</strong> jejum à americana não é<br />

propriamente um “matar o bicho” à portuguesa.<br />

Breakfast in America é uma criação cultural da tantas vezes intitulada com<br />

desprezo “pop culture” que critica a sociedade americana urbana estabelecida<br />

<strong>do</strong>s anos 70 <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>. Proponho que os leitores façam uma análise


contrastiva <strong>do</strong> poema original de uma das faixas mais passadas na rádio e da sua<br />

tradução, aliás criada para o efeito, e que transcrevo de imediato:<br />

Breakfast in America<br />

Mata-bicho americano<br />

Take a look at my girlfriend<br />

She‟s the only one I got<br />

Not much of a girlfriend<br />

Never seem to get a lot<br />

Take a jumbo cross the water<br />

Like to see America<br />

See the girls in California<br />

I‟m hoping it‟s going to come true<br />

But there‟s not a lot I can <strong>do</strong><br />

Could we have kippers for breakfast<br />

Mummy dear, Mummy dear<br />

They got to have „em in Texas<br />

„Cos everyone‟s a millionaire<br />

I „m a winner, I‟m a sinner<br />

Do you want my autograph<br />

I‟m a loser, what a joker<br />

I‟m playing my jokes upon you<br />

While there‟s nothing better to <strong>do</strong><br />

Don‟t you look at my girlfriend<br />

She‟s the only one I got<br />

Not much of a girlfriend<br />

Never seem to get a lot<br />

Take a jumbo cross the water<br />

Like to see America<br />

See the girls in California<br />

I‟m hoping it‟s going to come true<br />

But there‟s not a lot I can <strong>do</strong>.<br />

Olha p‟rà minha miúda<br />

É aquela que eu tenho<br />

Não que preste p‟ra muito<br />

Ela nunca „stá contente<br />

Vai p‟rò outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong><br />

Quero ver a América<br />

Ver as miúdas na Califórnia<br />

Eu „spero que se realize<br />

Mas não há muito a fazer<br />

– Dá-me bolinhos ao almoço<br />

Qu‟rida Mãe, qu‟rida Mãe<br />

Há muitos no Texas<br />

Porque to<strong>do</strong>s são ricaços<br />

Eu ganho, eu peco<br />

Se quiseres <strong>do</strong>u-t‟o autógrafo<br />

Eu perco, mas que gozo<br />

Eu „stou a gozar é contigo<br />

Sem nada mais que fazer…<br />

Não olhes p‟rà miúda<br />

É aquela que eu tenho<br />

Não que preste p‟ra muito<br />

Ela nunca „stá contente<br />

Vai p‟rò outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong><br />

Quero ver a América<br />

Ver as miúdas na Califórnia<br />

Eu „spero que se realize<br />

Mas não há muito a fazer<br />

(LyricsFreak.com)<br />

James Petit comentou também quanto a Roger Hog<strong>do</strong>n e Richard Davies:<br />

“[…] entre le sens de la mélodie du premier et la maîtrise du rythme et des


Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”? 65<br />

arrangements du second aura été la clé magique de ce Breakfast in America de<br />

légende”.<br />

Numa entrevista publicada na Internet, Richard Davies afirmou quanto à<br />

escrita das letras das canções:<br />

[…] when you are <strong>do</strong>ing lyrics for example, sometimes I <strong>do</strong> lyrics without really<br />

knowing what I‟m writing about. Just basing it on if the line works, and then – it‟s<br />

almost like a subconscious thing – and then you sort of build it up from that, and<br />

then you try to find lines that would match something you‟d liked but you weren‟t<br />

sure what it meant. It‟s kind of... so there‟s a few kind of slightly abstract things<br />

on this record, that are just <strong>do</strong>ne around lines that seem to work, as opposed to<br />

any deep meaning to them.<br />

Um autor de letras de canções pode dar-se ao luxo de afirmar que a<br />

criação lírica é algo “que tem a ver com o subconsciente”; o tradutor <strong>do</strong> poema<br />

musica<strong>do</strong> tem, pelo contrário, de estar consciente quan<strong>do</strong> faz a tradução desse<br />

mesmo poema. Foi isso que tentei fazer quan<strong>do</strong> produzi uma possível tradução<br />

da faixa de Breakfast in America.<br />

O título escolhi<strong>do</strong> é bastante polémico: porque não simplesmente<br />

“Pequeno-almoço na América”? Exactamente por as evocações psicológicas e<br />

emotivas suscitadas no leitor e na tradução serem diferentes daquelas que são<br />

provocadas no leitor <strong>do</strong> poema de partida, pois ambos possuem uma herança<br />

cultural diferente.<br />

De notar que a tradução lírica de Breakfast in America privilegiou o seu<br />

enquadramento na música com o ritmo, esquecen<strong>do</strong> um pouco a rima. Há<br />

desrespeito por equivalências de um poema para o outro, devi<strong>do</strong> exactamente a<br />

essa causa – tentou-se enquadrar o poema português na melodia original da<br />

faixa <strong>do</strong>s SuperTramp.<br />

“The lyrics on that [album] sort of, are really about these days [...]”,<br />

afirmou Rick Davies na entrevista já citada. De facto, esta faixa é ao mesmo<br />

tempo irónica e crítica da realidade americana e está directamente relacionada<br />

com a vivência <strong>do</strong> autor da letra em Los Angeles – daí a referência à Califórnia:<br />

“Well, I love the atmosphere of being out in this part of the world [Long Island<br />

– Esta<strong>do</strong> de Nova Iorque], because it has seasons. The old cliché where people<br />

in L. A. miss the seasons and all that – that‟s true […]”.<br />

A tradução lírica é deveras um desafio que o tradutor deve encarar como<br />

uma possibilidade de exercício tradutológico fundamental, pois requer uma


grande disciplina tradutiva e um talento lírico que nem to<strong>do</strong>s os tradutores têm<br />

coragem de ousar exercitar.<br />

“I‟ll always love to write songs and just see what I can create”, afirmou<br />

Rick Davies. O mesmo se aplica à criação de traduções líricas por parte <strong>do</strong><br />

tradutor.<br />

PÁGINAS CONSULTADAS<br />

http://www.amazon.fr/exec/obi<strong>do</strong>s/ASIN/B000024RQV/<br />

http://www.LyricsFreak.com<br />

http://www.supertramp.com/interview/2002jan_rick2.shtml


Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”? 67


A QUEDA DE ÍCARO, DE BRUEGHEL E SCHIMMERNDE INSELCHEN<br />

IM MEER, DE ROBERT WALSER –<br />

UMA VIAGEM AO MUNDO DA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA<br />

Maria Helena Guimarães<br />

En vain j‟ai voulu de l‟espace<br />

Trouver la fin et le milieu;<br />

Sous je ne sais quel oeil de feu<br />

Je sens mon aile qui se casse;<br />

Charles Baudelaire, Les plaintes d‟un Icare.<br />

1. O mito: um pouco de história<br />

Seguin<strong>do</strong> a classificação criada por Lévi-Strauss (1996: 225-250), Ícaro é<br />

um mitema, isto é, estamos perante uma unidade constitutiva <strong>do</strong> mythos,<br />

porta<strong>do</strong>ra de uma função significante. Para este autor, cada unidade constitutiva<br />

tem a natureza de uma relação, relação essa que não é isolada; ela é, sim, um<br />

grupo de relações, de cuja combinação resulta, aliás, a função significante das<br />

referidas unidades constitutivas. Lévi-Strauss afirma ainda “que le mythe fait<br />

partie intégrante de la langue; c‟est par la parole qu‟on le connaît, il relève du<br />

discours” (ibid.: 230), isto é, a langue pertence, segun<strong>do</strong> ele, ao <strong>do</strong>mínio de um<br />

tempo reversível, enquanto a parole, àquele de um tempo irreversível. O mito<br />

define-se, assim, por um sistema temporal que combina as propriedades de <strong>do</strong>is<br />

outros tempos. Um mito refere-se sempre a acontecimentos passa<strong>do</strong>s, mas o<br />

seu valor intrínseco resulta <strong>do</strong> facto de os acontecimentos desenrola<strong>do</strong>s num<br />

determina<strong>do</strong> momento <strong>do</strong> tempo formarem uma estrutura permanente, a qual,<br />

como diz este autor, “[...] se rapporte simultanément au passé, au présent et au<br />

futur” (ibid: 231).<br />

A substância <strong>do</strong> mito não se encontra nem no estilo, nem no mo<strong>do</strong> de<br />

narração, nem na sintaxe, mas na „história‟ que é contada: “le mythe est<br />

langage” (ibid: 232), “[...] le mythe reste mythe aussi longtemps qu‟il est perçu<br />

comme tel” (ibid: 240). Lévi-Strauss chama ainda a nossa atenção para a<br />

estrutura sincro-diacrónica <strong>do</strong> mito, que nos permite ordenar os seus elementos<br />

em sequências diacrónicas, a serem li<strong>do</strong>s e considera<strong>do</strong>s em termos sincrónicos.<br />

De forma a podermos, no entanto, analisar as metamorfoses <strong>do</strong> mito ao<br />

longo <strong>do</strong>s tempos, creio ser necessário definir, de uma forma simples e o mais<br />

lata possível (na esteira de Mircea Eliade), a complexa realidade cultural que é o


Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 69<br />

mito. Ele é, antes de tu<strong>do</strong>, um relato da origem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s acontecimentos<br />

que tiveram lugar num tempo primordial, isto é, conta-nos como, graças à<br />

intervenção de seres sobrenaturais, uma realidade passou a existir, ou, de uma<br />

forma mais alargada ainda, “[...] <strong>do</strong>rt, wo lebendiges Geschehen alles in sich<br />

aufnimmt und sozusagen restlos in sich selber aufgeht, [...], da wird Geschehen<br />

Mythe” (Jolles, 1982: 123).<br />

O mito, um saber por histórias, dava ao homem primitivo uma certa<br />

segurança, já que, pela “repetição periódica daquilo que foi feito in illo tempore,<br />

impõe-se a certeza de que qualquer coisa existe de uma maneira absoluta”<br />

(Eliade, 1989: 119). To<strong>do</strong>s os actos <strong>do</strong> comportamento consciente <strong>do</strong> homem<br />

arcaico são, assim, “uma repetição ininterrupta de gestos inaugura<strong>do</strong>s por<br />

outros” (Eliade, 1985: 19).<br />

Os contextos originais <strong>do</strong>s mitos não são, no entanto, reconstituíveis, já<br />

que a sua origem se perde nos tempos. Dispomos apenas de uma organização<br />

estrutural de elementos míticos, que não estão presos a ideias e que flutuam<br />

livremente face ao mito original, cujo contexto primitivo não é possível<br />

restabelecer.<br />

A mitologia grega e a mitologia romana constituem a base <strong>do</strong>s referentes<br />

míticos no mun<strong>do</strong> ocidental. Segun<strong>do</strong> Platão, a mitologia é um género da<br />

ποιησις (poiesis) que “tem por material histórias sobre „deuses, seres divinos,<br />

heróis e viagens ao além‟” (Jesi, 1988: 14). Nenhum mito grego foi, contu<strong>do</strong>,<br />

transmiti<strong>do</strong> no seu contexto cultural. Eles foram-nos transmiti<strong>do</strong>s no esta<strong>do</strong> de<br />

<strong>do</strong>cumentos literários e artísticos, já que o mito inspirou não só a poesia épica,<br />

a tragédia e a comédia, mas também as artes plásticas. O mito, métaphore géante<br />

(Lotman/Gasparov, 1979: 83), é exemplo lapidar de que, fora da<br />

intertextualidade, a obra literária (e não só) seria, muito simplesmente,<br />

incompreensível, pois “la citation représente la pratique première du texte, au<br />

fondement de la lecture et de l‟écriture; citer, c‟est répéter le geste archaïque du<br />

découper-coller, [...], un mode de la signification et de la communication<br />

linguistique” (Compagnon, 1979: 34). São os factos intertextuais que nos fazem<br />

voltar, por um processo de ananmese intelectual, ao(s) pré-texto(s) que lhes<br />

estão subjacentes, abrin<strong>do</strong> o espaço semântico <strong>do</strong> texto. Embora modifica<strong>do</strong>, o<br />

mito vai manter-se vivo, se bem que sob formas diferentes. Assim, os deuses<br />

gregos vão sobreviver, durante toda a Idade Média, camufla<strong>do</strong>s sob as mais<br />

variadas formas (o Anticristo, por exemplo, poderá ser visto como símbolo de<br />

um regresso ao Caos) e tolera<strong>do</strong>s como manifestações de uma época<br />

ultrapassada, para serem finalmente salvos, no Renascimento, por poetas e<br />

artistas.


70<br />

Traduzir<br />

Os mitos mantiveram-se flexíveis, abertos à reciclagem, tanto em detalhes<br />

da narrativa como no significa<strong>do</strong> que deles pode ser extraí<strong>do</strong> (caso <strong>do</strong> mito de<br />

Ícaro). O seu poder formativo variou, por isso mesmo, grandemente. Nos sécs.<br />

XVII e XVIII, eles eram principalmente um ornamento convencional ofereci<strong>do</strong><br />

pelo autor ao seu leitor, enquanto, no perío<strong>do</strong> romântico, eles foram<br />

novamente trata<strong>do</strong>s como matéria-prima, e isto mostrou-se mais liberta<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

que restritivo, como o provam poetas como Hölderlin. Com os importantes<br />

desenvolvimentos regista<strong>do</strong>s nas áreas da antropologia e da psicologia são<br />

atribuí<strong>do</strong>s aos mitos novos senti<strong>do</strong>s, profusamente explora<strong>do</strong>s pelos autores<br />

modernistas, conscientes de que o mito é um sistema de comunicação, uma<br />

mensagem [...], um mo<strong>do</strong> de significação (Barthes, 1988: 181).<br />

2. A metamorfose <strong>do</strong>s mitemas: Dédalo e Ícaro ou o vôo e a queda<br />

As imagens dinâmicas da queda são, porventura, fonte de uma das mais<br />

antigas angústias <strong>do</strong> Homem face à temporalidade. De facto, “la chute apparaît<br />

même comme la quintessence vécue de toute la dynamique des ténèbres”<br />

(Durand, 1992: 122). Por outro la<strong>do</strong>, o vôo simboliza a ascensão, a<br />

transcendência, o ultrapassar da condição humana: o vôo proclama que o peso<br />

foi aboli<strong>do</strong>, que se efectuou uma mutação ontológica no próprio ser humano<br />

(Eliade, 1987: 149). Ao mesmo tempo que símbolo de poder, o vôo é também<br />

um desejo de ultrapassar os deuses, os únicos então capazes de voar. Existia<br />

tanto uma imaginação da queda, como uma imaginação <strong>do</strong> vôo, símbolo de<br />

liberdade; só que da queda existia também uma experiência temporal e<br />

existencial, o que levaria Bachelard a escrever “nous imaginons l‟élan vers le<br />

haut et nous connaissons la chute vers le bas” (apud Durand, 1992: 123).<br />

O mito de Ícaro é constituí<strong>do</strong> por vários mitologemas, correspondentes a<br />

outras tantas tentativas de questionar o mun<strong>do</strong>: Dédalo, que constrói as asas<br />

que lhe permitirão sair <strong>do</strong> labirinto; Ícaro, seu filho, que, inebria<strong>do</strong> por poder<br />

voar, se aproxima demasia<strong>do</strong> <strong>do</strong> Sol, cujo calor lhe derrete as asas; a fuga <strong>do</strong><br />

labirinto, etc. No caso de Ícaro, é importante salientar o aspecto catastrófico da<br />

vertigem e da queda: desfeitas as suas asas pelo Sol, Ícaro precipita-se no mar.<br />

O horror <strong>do</strong> vôo interrompi<strong>do</strong> e a queda na água são aqui <strong>do</strong>is factores<br />

importantes que põem em evidência os símbolos que formam a própria<br />

semântica <strong>do</strong> mito, mito que contém em si mesmo o seu próprio senti<strong>do</strong>:<br />

“recherche du temps perdu, et surtout effort compréhensif de réconciliation<br />

avec un temps euphémisé et avec la mort vaincue ou transmuée en aventure<br />

paradisiaque, tel apparaît bien le sens inducteur dernier de tous les grands<br />

mythes” (Durand, 1992: 433).


Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 71<br />

Conforme as épocas, as ideologias, as correntes literárias e artísticas, assim<br />

os mitemas e mitologemas formativos <strong>do</strong> mito em análise foram sofren<strong>do</strong><br />

transformações de vária ordem. Uma vez é dada maior importância a Dédalo<br />

pela sua prudência e pela sua inventiva técnica; noutros casos assistimos a uma<br />

culpabilização ou, pelo contrário, ao encómio de Ícaro pelo seu arrojo e desejo<br />

de libertação, enquanto outros exaltam o processo de individuação presente em<br />

Ícaro, não sen<strong>do</strong> poucos os que vêem nele um símbolo da curiosidade humana,<br />

da poetologia, da liberdade.<br />

3. Descontextualização <strong>do</strong> mito na obra literária e artística<br />

Como já vimos, os contextos originais <strong>do</strong>s mitos perderam-se no tempo.<br />

A literatura e a arte, tal como o mito, questionam-se sobre o mun<strong>do</strong> e as<br />

origens. Neste processo, quer a literatura quer a arte vão socorrer-se, vezes sem<br />

fim, de elementos míticos que descontextualizam a nível social, num<br />

movimento de libertação próprio das mesmas, conforme os fins que se<br />

propõem atingir e as épocas em que se inserem. A recontextualização é<br />

posteriormente feita a nível <strong>do</strong> receptor. Os mitos, tal como os conhecemos,<br />

são eles também recontextualizações, isto é, interpretações de outras<br />

interpretações.<br />

Desde o final da Antiguidade que os mitos foram veicula<strong>do</strong>s pelas criações<br />

literárias e artísticas e por elas, não raras vezes, seculariza<strong>do</strong>s e até mesmo<br />

desmitifica<strong>do</strong>s, em parte através da sua descontextualização social, em parte<br />

através <strong>do</strong>s contextos de produção das obras, já que “não há nenhuma fixidez<br />

nos conceitos míticos: eles podem formar-se, alterar-se, desfazer-se,<br />

desaparecer completamente” (Barthes, 1988: 191).<br />

Poder-se-ia até dizer que a tentativa de libertação literária <strong>do</strong>s autores ao<br />

longo <strong>do</strong>s séculos (que os levou a recorrer aos mitos como forma de se<br />

libertarem <strong>do</strong> tempo histórico para assim poderem mergulhar num tempo<br />

desconheci<strong>do</strong>), é, por si só, um comportamento mitológico, na medida em que se<br />

sai <strong>do</strong> tempo histórico e pessoal e se mergulha num tempo fabuloso. A obra<br />

literária ou artística não tem acesso ao tempo primordial <strong>do</strong>s mitos, mas, na<br />

medida em que narra ou descreve uma história plausível, ela utiliza um tempo<br />

que dispõe de todas as liberdades <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s imaginários, pelo que a<br />

descontextualização <strong>do</strong>s mitos acaba por ser uma constante nas várias obras<br />

literárias e artísticas.


72<br />

Traduzir<br />

4. O processo estético-literário como veículo de projecção de arquétipos:<br />

„Paisagem com a queda de Ícaro‟ de Pieter Brueghel, uma<br />

recontextualização <strong>do</strong> mito<br />

O Mito é, pois, um objecto de reminiscência. Os elementos míticos são<br />

eleva<strong>do</strong>s à categoria de arquétipos. Basta uma simples alusão/imagem para<br />

introduzir, num texto, um senti<strong>do</strong>, uma história, que passa, assim, a estar<br />

virtualmente presente na obra, sem que seja necessário enunciá-la na sua<br />

totalidade.<br />

Mas detenhámo-nos agora na análise da obra de Brueghel Paisagem com a<br />

queda de Ícaro. Esta pintura data de 1555, sen<strong>do</strong> a única obra deste pintor que<br />

tem um tema retira<strong>do</strong> da mitologia. Dois esboços realiza<strong>do</strong>s pelo autor sobre o<br />

mesmo tema provam, contu<strong>do</strong>, o interesse <strong>do</strong> pintor por este mito. Em to<strong>do</strong>s<br />

os casos, no entanto, o mito constitui a estrutura primária, o pano de fun<strong>do</strong>,<br />

sobre o qual Brueghel vai desenvolver uma série de interpretações<br />

suplementares, dan<strong>do</strong>-nos <strong>do</strong> mito uma perspectiva sincro-diacrónica, fazen<strong>do</strong><br />

passar, constantemente, o nosso olhar da intemporalidade <strong>do</strong> mito para o<br />

tempo, quase idílico, de uma paisagem flamenga renascentista, em que a<br />

atenção se centra na representação das principais actividades produtivas da<br />

época: a exploração da terra e <strong>do</strong>s mares. De Ícaro, apenas vemos as pernas a<br />

lutarem contra a força da água que, vorazmente, o engole. To<strong>do</strong>s os outros<br />

mitemas que integram este mito encontram-se subentendi<strong>do</strong>s na obra, já que<br />

este quadro é uma transposição; poder-se-ia mesmo dizer, uma quase imitação<br />

(tão cara aos renascentistas), na tela, da obra As Metamorfoses de Ovídio, texto<br />

que o artista segue quase à letra.<br />

Assim, o ceifeiro, o pesca<strong>do</strong>r e o pastor de que nos fala Ovídio aparecem<br />

to<strong>do</strong>s representa<strong>do</strong>s no quadro:<br />

hos aliquis tremula dum captat harundine pisces,<br />

aut pastor baculo stivave innixus arator<br />

vidit et obstipuit, quique aethera carpere possent<br />

credidit esse deos. et iam Iunonia laeva 1<br />

É, todavia, curioso verificar que o sol, descen<strong>do</strong>, e já no ocaso, se<br />

encontra, no poema, alto e ardente no céu, como se depreende <strong>do</strong>s versos<br />

seguintes:<br />

[...] rapidi vicinia Solis<br />

mollit o<strong>do</strong>ratas, pennarum vincula, ceras 2


Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 73<br />

Esta alteração permite a Brueghel dar maior coesão à recontextualização<br />

que ele próprio faz <strong>do</strong> mito, permitin<strong>do</strong>-lhe, por outro la<strong>do</strong>, articulá-lo com<br />

outro pré-texto, um provérbio holandês, que vem reforçar a mensagem moral<br />

que Brueghel tenta aqui transmitir em forma de alegoria.<br />

Quan<strong>do</strong> comparamos as duas obras, verifica-se ainda ser da<strong>do</strong> por<br />

Brueghel maior significa<strong>do</strong> ao motivo <strong>do</strong> camponês com o ara<strong>do</strong>, ao introduzir<br />

a representação <strong>do</strong> cadáver de um velho, pouco visível, jazen<strong>do</strong> nas moitas, à<br />

esquerda, e que se refere ao provérbio flamengo, nenhuma charrua pára por um<br />

homem morrer, pormenor interessante, já que chama a nossa atenção quer para o<br />

recurso frequente, por parte <strong>do</strong> pintor, a provérbios flamengos para, a partir<br />

deles, edificar as suas obras, por exemplo, o quadro Os Provérbios Holandeses, de<br />

1559, quer para a mensagem moral que ele tenta sempre transmitir ao leitor <strong>do</strong>s<br />

seus textos plásticos. Brueghel, fiel à sua época, acreditava que a arte deveria ter<br />

uma finalidade didáctica, ajudan<strong>do</strong> os homens a levarem uma vida mais moral.<br />

Assim, a referência ao provérbio holandês funciona como comentário icónico<br />

<strong>do</strong> comportamento irreflecti<strong>do</strong> e louco de Ícaro, reduzin<strong>do</strong> o seu acto heróico a<br />

uma acção única, sem senti<strong>do</strong>, que em nada pode mudar o curso <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

A pintura deste autor é, sem dúvida, não só uma re-escrita recontextualizada da<br />

leitura/recontextualização que o próprio Ovídio faz <strong>do</strong> mito de Ícaro, como é<br />

também uma re-enunciação de um provérbio holandês, o que, evidentemente,<br />

dá a esta obra um forte poder alegórico e metafórico, nascen<strong>do</strong> o seu<br />

significa<strong>do</strong> da conjunção recíproca <strong>do</strong> sub-texto verbal, o título, que nos<br />

convida a uma revisitação <strong>do</strong> mito pela pena de Ovídio com o sub-texto<br />

pictórico que nos remete, por sua vez, para outro pré-texto: o provérbio. Ao<br />

lermos este quadro somos, pois, leva<strong>do</strong>s a rememorar os seus pré-textos, numa<br />

tentativa de decifrar a relação intertextual com o modelo antigo e as<br />

transformações/interligações operadas pelo texto centraliza<strong>do</strong>r que é o quadro<br />

em si, mudanças/assimilações estas que conferem unidade de senti<strong>do</strong> à obra,<br />

que ganha, assim, uma nova dimensão interpretativa, tornan<strong>do</strong>-se, pela<br />

transposição mediática e respectivo processo transformativo, autónoma em<br />

relação aos textos que lhe estão na origem. Como em qualquer outro processo<br />

tradutivo, o texto de Ovídio é-nos apresenta<strong>do</strong> sem nunca de facto estar<br />

presente, já que é impossível transmitir qualquer texto intacto, sem<br />

modificações resultantes da leitura/interpretação que o próprio tradutor faz da<br />

obra.<br />

No caso deste texto pictórico, pode-se, pois, falar de intertextualidade em<br />

termos de mudança de medium, de transposição de um texto de um sistema de<br />

signos para outro, ou de intermedialidade. Isto é, estamos na presença de um


74<br />

Traduzir<br />

poema de Ovídio (séc. I) transposto para a tela por um pintor flamengo <strong>do</strong> séc.<br />

XVI. Mas, porque representação de uma leitura, ela não é uma mera transfusão;<br />

ela é, acima de tu<strong>do</strong>, uma representação de uma interpretação, ganhan<strong>do</strong>, deste<br />

mo<strong>do</strong>, novo(s) senti<strong>do</strong>(s). Assim, para além das diferenças já assinaladas, é de<br />

referir ainda que, enquanto Ovídio faz, no seu poema, referência especial a<br />

Dédalo, dada a importância <strong>do</strong> la<strong>do</strong> técnico <strong>do</strong> vôo como forma de <strong>do</strong>mínio da<br />

Natureza (servin<strong>do</strong>-se, para tal, <strong>do</strong>s elementos míticos por ele recolhi<strong>do</strong>s<br />

noutros pré-textos, o que, aliás, explica também a ambivalência da relação Pai-<br />

Filho 3 ), Brueghel, por razões que, em parte, se prendem com o código estético<br />

específico das artes plásticas, vai preocupar-se com certos aspectos culturais e<br />

formais característicos <strong>do</strong> Renascimento, como seja o senti<strong>do</strong> de perspectiva<br />

(de notar, o ponto de fuga eleva<strong>do</strong> e a cidade que se avista ao longe) e o<br />

naturalismo das cenas retratadas, aparecen<strong>do</strong>-nos o mito numa posição<br />

aparentemente secundária e em traços que nos permitem claramente falar de<br />

uma recontextualização quer <strong>do</strong> mito, quer <strong>do</strong> poema.<br />

A ideia de intertextualidade com mudança de medium, por alguns<br />

contestada 4 , obriga à aceitação de um conceito mais alarga<strong>do</strong> de<br />

intertextualidade. Kristeva, na sua teoria de intertextualidade, havia já<br />

considera<strong>do</strong> a possibilidade de transposição/passagem de um sistema<br />

significante para outro 5 . Concordan<strong>do</strong> com o conceito universal de<br />

intertextualidade desta autora, parece-me, no entanto, por razões que se<br />

prendem com o processo heurístico, ser necessário, no que respeita à análise<br />

comparada de textos, restringir a sua aplicação aos pré-textos verbais ou<br />

artísticos em relação mais directa com a(s) obra(s) analisada(s). Só assim, creio,<br />

se poderá (em particular no caso da intermedialidade, que exige uma nova<br />

articulação da posicionalidade enunciativa e denotativa) estabelecer os graus de<br />

referencialidade, comunicabilidade, autoreflexividade e dialogicidade<br />

relativamente ao(s) seu(s) pré-texto(s), tarefa impossível de realizar, caso se<br />

considerasse a totalidade das relações intertextuais, a polifonia de textos, de<br />

facto, presentes numa obra.<br />

No caso da pintura, estamos perante um medium cujo sistema de signos é<br />

relativamente concreto em termos semânticos, mas que só pode, de forma<br />

limitada, reproduzir uma acção, pelo que, só através da relação intertextual em<br />

si, é possível, por exemplo, captar to<strong>do</strong>s os mitemas subentendi<strong>do</strong>s no quadro<br />

de Brueghel. No caso das artes plásticas, o problema reside, pois, muitas vezes,<br />

a nível da marcação da referência ao pré-texto, já que o pintor, de forma a<br />

realizar essa transposição para um espaço concreto limita<strong>do</strong>, a tela, se vê<br />

obriga<strong>do</strong> a recorrer ao uso de metáforas visuais, a jogos de luz e sombra, à cor,


Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 75<br />

à perspectiva e ao jogo de planos para transmitir conceitos, relações espáciotemporais,<br />

inserir o diacrónico no sincrónico.<br />

5. „Schimmernde Inselchen im Meer‟ de Robert Walser: a construção <strong>do</strong><br />

Eu textual no lugar <strong>do</strong> Outro – de novo a questão da intertextualidade<br />

Kristeva, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> o prima<strong>do</strong> da intersubjectividade, equacionará a<br />

problemática da criação sob o conceito de intertextualidade, o que faz<br />

pressupor uma desvalorização <strong>do</strong> Sujeito em favor de uma valorização <strong>do</strong><br />

discurso que adquire força e lógica próprias. O Sujeito, deixan<strong>do</strong> de ser<br />

conceptualiza<strong>do</strong> na sua subjectividade de Sujeito-Pessoa, passará a ser<br />

postula<strong>do</strong> como uma palavra textual ambivalente, dupla, isto é, comportan<strong>do</strong> o<br />

discurso <strong>do</strong> Outro dentro de si, resultan<strong>do</strong> este de um trabalho de fusão e<br />

reescrita de outro(s) texto(s) 6 .<br />

O texto literário reflecte, assim, uma dupla actividade de leitura e escrita.<br />

Ele não releva de um processo de mera imitação, mas constrói-se pela leitura,<br />

vista como exercício de apropriação e transformação que o texto opera<br />

relativamente a um corpus, anterior ou sincrónico: o intertexto.<br />

No caso <strong>do</strong> poema de Robert Walser estamos, conforme o próprio afirma<br />

claramente, perante um texto/poema resultante de um pré-texto proveniente de<br />

um outro medium, a pintura: [...] “was ich hier schrieb, verdanke ich einem<br />

Brueghelbild, [...]” 7 (Walser, 1990: 286). O intertexto resultante deste trabalho<br />

de Walser parece, a uma primeira leitura, muito próximo <strong>do</strong> pré-texto<br />

bruegheliano, que é li<strong>do</strong> como obra autónoma. Em lugar algum <strong>do</strong> poema<br />

aparece qualquer referência aos textos de que aquele é transposição. Mas, ao<br />

verter o texto de um sistema de signos, que é a pintura, para outro que é a lexis,<br />

além de se perder a referencialidade ao(s) pré-texto(s) transpostos para a tela (só<br />

possível de se estabelecer, caso se conheça a obra) perde-se ainda, em grande<br />

medida, o efeito não só físico, mas também psíquico, que a cor provoca no<br />

leitor <strong>do</strong> quadro. Assim, como em qualquer outra tradução, lê-se um texto,<br />

neste caso, uma obra plástica, que, na verdade, não podemos ler, porque a<br />

tradução/transposição é, antes de tu<strong>do</strong>, uma promessa de comunicação, onde,<br />

por definição, ela não pode ter lugar, pois o quadro é posto perante os nossos<br />

olhos sem o estar.<br />

Mas olhemos um pouco mais de perto para o poema. A minúcia descritiva<br />

é grande; a tal ponto, que Walser reflecte mesmo sobre a hora <strong>do</strong> dia a que a<br />

cena representada se passa<br />

so gegen neunzehn bis zwanzig Uhr


76<br />

Traduzir<br />

abends mag‟s sein,<br />

<strong>do</strong>ch nein<br />

noch nicht so spät, denn [...]<br />

(Walser, 1990: 286)<br />

mas, ao contrário da obra de Brueghel, Walser utiliza essa minúcia para nos dar<br />

um quadro da (pequena) burguesia, cheio de fina ironia (“so ein emsiger<br />

Batzenzummenrackerer,/arbeitet noch auf seinem Feld/als landwirtschaflticher<br />

Held”). Aparentemente, Walser limita-se a descrever o que vê, um herói <strong>do</strong><br />

trabalho da terra, um herói real e não um herói mítico ou sonha<strong>do</strong>r, em<br />

aparente consonância com o texto original. Contu<strong>do</strong>, Walser ignora o corpo <strong>do</strong><br />

homem morto, em que talvez nem tenha repara<strong>do</strong>, contrapon<strong>do</strong> à mensagem<br />

moralista de Brueghel a afirmação de que “annerkennenswert sind immerhin<br />

die Gaben der Unternehmungslust” (ibid.: 286). À passividade, à organização e à<br />

rotina da burguesia, Walser vai contrapor o sonho, o vôo, o risco:<br />

Allem Streben,<br />

über das gemeine Leben<br />

uns emporzuheben,<br />

ist ein Ziel gesetzt im Leben.<br />

(Walser, 1990: 287)<br />

Para Walser, o „vôo‟ era artístico, poético. E, segun<strong>do</strong> ele, vale a pena. Vale<br />

a pena sonhar, tentar ir mais longe e ver no mar/mun<strong>do</strong> que, “mit höchstem<br />

Gezier” 8 , troça <strong>do</strong> desejo de Ícaro de se unir “mit der göttlichen Schönheit der<br />

Azur” 9 , de se transformar numa daquelas pequenas ilhas cintilantes que não se<br />

deixam engolir pelo mar.<br />

6. Conclusão<br />

O poema de Walser é um simples exemplo, entre muitos, de<br />

intertextualidade/intermedialidade de um mesmo pré-texto: Paisagem com a<br />

queda de Ícaro, de Pieter Brueghel. Wolf Biermann, Albin Zollinger, Michael<br />

Hamburger, William Carlos William são apenas alguns <strong>do</strong>s autores que<br />

tentaram traduzir para a lexis a eloquência pictoral de Brueghel. O resulta<strong>do</strong> são<br />

diferentes interpretações/traduções, são novos textos, que testemunham da<br />

possibilidade impossível de apresentar um texto que, na realidade, está sempre<br />

ausente.<br />

Die Schwerkraft der Erde zog den entflügelten Jünglingskörper<br />

immerhin mit einer Beschleunigung von


Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 77<br />

g = 9,807 m/sec2 in die Tiefe.<br />

Wolf Biermann, «à la lanterne! à la lanterne!»<br />

________<br />

1 Tradução livre: Eles (Dédalo e Ícaro) são vistos por alguém que apanha peixes<br />

com a sua cana oscilante, ou por um pastor que se apoia em seu caja<strong>do</strong>, ou ainda um<br />

lavra<strong>do</strong>r apoia<strong>do</strong> a seu ara<strong>do</strong>[...].<br />

2 Tradução livre: [...]. A proximidade <strong>do</strong> sol ardente depressa faz derreter a cera<br />

perfurmada que prende as suas asas.<br />

3 Por um la<strong>do</strong>, o vôo de Ícaro significa um desafio à autoridade paternal, pois ele<br />

não segue as instruções que lhe são dadas pelo pai, sen<strong>do</strong>, assim, a sua queda, uma<br />

punição, por outro la<strong>do</strong>, a sua morte, no entanto, surge, simultaneamente, como um<br />

acto heróico, sen<strong>do</strong> o seu corpo recolhi<strong>do</strong> e sepulta<strong>do</strong> por Dédalo, seu pai, e o seu<br />

nome para sempre eterniza<strong>do</strong>, já que o mar em que se despenha toma o seu nome.<br />

4 Cf. G. Genette, Palimpsestes, Seuil, 1982, pp. 435-6. Este autor não considera os<br />

sistemas de signos de outros meios como texto.<br />

5 Cf. J. Kristeva, La Révolution du Langage Poétique, Seuil, 1974, p. 60.<br />

6 Cf. J. Kristeva, (1969), Σημειοτιĸη, Seuil, 1969, pp. 137-147.<br />

7 Tradução: o que aqui escrevo, o devo a um quadro de Brueghel.<br />

8 Tradução: com grande afectação.<br />

9 Tradução: com a beleza divina <strong>do</strong> Azul <strong>do</strong> céu.<br />

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LEVI-STRAUSS, Claude (1996), Anthropologie Structurale, Paris, Plon.<br />

––––– (1997), Mito e Significa<strong>do</strong>, Lisboa, Edições 70.


Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 79<br />

Metamorphoses<br />

[...]<br />

Daedalus interea Creten longumque perosus<br />

exilium, tactusque loci natalis amore,<br />

clausus erat pelago. “terras licet” inquit “et undas<br />

obstruat, at caelum certe patet; ibimus illac:<br />

omnia possideat, non possidet aera Minos.”<br />

Dixit, et ignotas animum dimittit in artes<br />

naturamque novat. nam ponit in ordine pennas<br />

ut clivo crevisse putes. sic rustica quondam<br />

fistula disparibus paulatim surgit avenis.<br />

tum lino medias et ceris alligat imas<br />

atque ita compositas parvo curvamine flectit<br />

ut veras imitetur aves. puer Icarus una<br />

stabat et, ignarus sua se tractare pericla,<br />

ore renidenti mo<strong>do</strong> quas vaga moverat aura<br />

captabat plumas, flavam mo<strong>do</strong> pollice ceram<br />

mollibat, lusuque suo mirabile patris<br />

impediebat opus. postquam manus ultima coepto<br />

imposita est, geminas opifex libravit in alas<br />

ipse suum corpus, motaque pependit in aura.<br />

Instruit et natum, “medio” que ut limite curras,<br />

Icare, “ait” moneo, ne, si demissior ibis,<br />

unda gravet pennas, si celsior, ignis adurat.<br />

inter utrumque vola! nec te spectare Booten<br />

aut Helicen iubeo strictumque Orionis ensem:<br />

me duce carpe viam! “Pariter praecepta volandi<br />

tradit et ignotas umeris accommodat alas.<br />

inter opus monitusque genae maduere seniles,<br />

et patriae tremuere manus. pennisque levatus<br />

ante volat comitique timet, velut ales, ab alto<br />

quae teneram prolem produxit in aera ni<strong>do</strong>,<br />

hortaturque sequi, damnosasque erudit artes,<br />

et movet ipse suas et nati respicit alas.<br />

hos aliquis tremula dum captat harundine pisces,<br />

aut pastor baculo stivave innixus arator<br />

vidit et obstipuit, quique aethera carpere possent<br />

credidit esse deos. et iam Iunonia laeva<br />

parte Samos (fuerant Delosque Parosque relictae),<br />

dextra Lebinthos erat fecundaque melle Calymne,<br />

cum puer audaci coepit gaudere volatu<br />

deseruitque ducem, caelique cupidine tactus


80<br />

Traduzir<br />

altius egit iter. rapidi vicinia solis<br />

mollit o<strong>do</strong>ratas, pennarum vincula, ceras:<br />

tabuerant cerae; nu<strong>do</strong>s quatit ille lacertos<br />

remigioque carens non ullas percipit auras,<br />

oraque cerulea patrium clamantia nomen<br />

excipiuntur acqua, quae nomen traxit ab illo.<br />

At pater infelix, nec iam pater, “Icare,” dixit,<br />

“Icare,” dixit “ubi es? qua te regione requiram?”<br />

“Icare” dicebat: pennas aspexit in undis,<br />

devovitque suas artes, corpusque sepulcro<br />

condidit, et tellus a nomine dicta sepulti.<br />

[...]<br />

Ovídio, Liber VIII 152-259<br />

Schimmernde Inselchen im Meer<br />

Schimmernde Inselchen im Meer<br />

Fregatten kommen von irgendwoher,<br />

auf den Inseln gibt‟s anscheinend viel Kultur,<br />

so gegen neunzehn bis zwnzig Uhr<br />

abends mag‟s sein,<br />

<strong>do</strong>ch nein,<br />

noch nicht so spät, denn ein Ackerer,<br />

so ein emsiger Batzenzusammenrackerer,<br />

arbeitet noch auf dem Feld<br />

als landwirtschaftlicher Held,<br />

der spielt sein Spiel, verdient sien bisschen Geld,<br />

die Erde ist schwärzlich braun.<br />

Einer mit Flügeln will sich anvertau‟n<br />

den Lüften, wir werden später<br />

sehen, wie er wedelt im Äther.<br />

Wunderbar verschmitzt<br />

schaut der Mond aus, einer sitzt<br />

staunend ob dem Tempel der Natur<br />

auf einem vorgeschichtlichen Stein,<br />

betrachtet weiter nur<br />

ein singendes, fliegendes, in‟s Zwitschern verliebtes Vögelein,<br />

indes seine Schafe, sich selbst überlassen,<br />

friedlich im blassen,<br />

rötlich geschmückten Abendland<br />

weiden. O weh, eine Hand<br />

gestikuliert in stürzendem, stummem Hilfeschrei‟n<br />

von oben herunter,


Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 81<br />

und wie der Meeresbusen munter<br />

lächelt mit höchstem Gezier, denn der schwur,<br />

er wolle die Schwere<br />

nun überm Meere<br />

besiegen, sich mit der götlichen Schönheit im Azur<br />

selig vermählen und Wurzeln<br />

am Lande verlachen, nun wird er im Purzeln<br />

zum ausgezeichneten Meisterlein<br />

und wird sich jetzt verhältnismäβig klein<br />

vorzukommen haben.<br />

Anerkennenswert sind immerhin die Gaben<br />

der Unternehmungslust, was ich hier schrieb,<br />

verdanke ich einem Brueghelbild, das im Gedächtnis mir blieb<br />

und wenn ich die höchste Achtung zahlt‟,<br />

weil mir schien, es sei vortrefflich gemalt.<br />

Allem Streben,<br />

über das gemeine Leben<br />

uns emporzuheben,<br />

ist ein Ziel gesetzt im Leben.<br />

Robert Walser, Aus dem Bleistiftgebiet, Mikrogramme 1926/27, Vol. 4, p. 286-287.


OS VALORES SOCIAIS NO PLANO INTERCULTURAL DA TRADUÇÃO<br />

Maria José Almeida<br />

A actividade tradutiva inscreve-se sempre na fronteira entre uma língua de<br />

partida e uma língua de chegada. Trata-se, assim, de um plano intercultural que<br />

cruza universos valorativos diferencia<strong>do</strong>s. Ora, constitui-se como objectivo <strong>do</strong><br />

tradutor atingir a equivalência possível, numa perspectiva de compromisso, no<br />

âmbito semântico e ideológico. É o que sucede, com especial relevância, nos<br />

casos da tradução de textos literários, económicos e, até mesmo, científicos e<br />

técnicos.<br />

Por tal motivo, além de ter de dispor de competências relativas ao <strong>do</strong>mínio<br />

das duas línguas em questão, nos planos lexical e sintáctico, condição<br />

fundamental mas não suficiente, o tradutor deverá ainda determinar, com<br />

particular acuidade, o senti<strong>do</strong> que orienta o discurso, bem como o quadro<br />

ideológico subjacente.<br />

De facto, a obtenção de uma equivalência supõe uma clara identificação <strong>do</strong><br />

trajecto semântico que atravessa o discurso na língua de partida, de mo<strong>do</strong> a que,<br />

na língua de chegada, se possa manter essa mesma orientação. Mas, para além<br />

disso, não nos podemos esquecer de que qualquer texto nos remete sempre<br />

para um da<strong>do</strong> campo de valores a que a tradução não poderá ficar alheia. Deste<br />

mo<strong>do</strong>, a análise <strong>do</strong>s valores presentes no discurso, que permite identificar a<br />

orientação ideológica aí inscrita, revela-se particularmente útil no plano<br />

intercultural da tradução.<br />

A ser assim, importa ao tradutor/intérprete munir-se de um quadro de<br />

análise susceptível de o fazer aceder a essas duas componentes. Trata-se de um<br />

processo hermenêutico de descodificação de senti<strong>do</strong>(s), entendi<strong>do</strong>(s) como<br />

direcção, nos planos semântico e ideológico. Neste caso, há que recorrer a um<br />

modelo teórico que não se restrinja a uma linguística <strong>do</strong> signo, redutora de uma<br />

análise mais ampla <strong>do</strong> discurso, de mo<strong>do</strong> a abranger a problemática ideológica.<br />

Claro que isso não prejudica a complementaridade de outras vertentes de<br />

análise, e até das perspectivas lexicográfica e lexicológica, úteis mas<br />

insuficientes, a nosso ver, neste aspecto.<br />

Entendida a tradução no âmbito mais amplo da comunicação – e não<br />

poderá deixar de ser assim, desde logo porque se destina, em princípio, à<br />

divulgação <strong>do</strong> texto de partida e porque qualquer texto se inscreve num plano


Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução 83<br />

comunicante e relacional – há que privilegiar um quadro de análise integra<strong>do</strong>r<br />

dessa dimensão fundamental. Ora, como refere M. de L. Martins, a<br />

comunicação não deverá reduzir-se a uma semiótica <strong>do</strong> signo: “Colocar a<br />

comunicação à ordem <strong>do</strong> signo (linguístico, filosófico, antropológico, teológico,<br />

ou outro), é constituí-la, de facto, como um objecto intelectual, independente<br />

<strong>do</strong> acto que a confirma como relação, como aliança, como compromisso; é<br />

isolá-la e fixá-la como mera representação, como um dizer que nada faz” 1 .<br />

Deverá, então, optar-se por uma concepção mais abrangente e com outra<br />

amplitude, fundada numa análise <strong>do</strong> discurso em ordem a integrar a dimensão<br />

comunicacional.<br />

É certo que a determinação das duas componentes, que atrás referimos<br />

(senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> discurso e da ideologia), poderá ser feita em função de vários<br />

enquadramentos 2 mas, na nossa opinião, é a perspectiva de Oswald Ducrot,<br />

constituinte de uma Pragmática integrada na Semântica, que melhor se ajusta à<br />

análise <strong>do</strong> discurso com estes objectivos 3 . Estamos perante um quadro teórico<br />

que permite abranger as duas vertentes: por um la<strong>do</strong>, determinar o senti<strong>do</strong>,<br />

vector fundamental, no caso da tradução, entendi<strong>do</strong> como orientação<br />

argumentativa inscrita nas estruturas linguísticas, por outro, através <strong>do</strong>s<br />

princípios de argumentação convoca<strong>do</strong>s, coincidentes com o recorte<br />

ideológico, aceder aos valores presentes no universo discursivo.<br />

De facto, inscrevemo-nos numa dimensão intersubjectiva da linguagem,<br />

adquirin<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong>, como veremos, um carácter interlocutivo, enquanto<br />

diálogo entre pontos de vista diferencia<strong>do</strong>s 4 . Trata-se pois de uma concepção<br />

que se opõe ao carácter meramente representacionista ou denotativo <strong>do</strong>s<br />

enuncia<strong>do</strong>s em que a linguagem se limitaria a descrever uma dada realidade.<br />

A título de exemplo, e no seguimento de uma perspectiva tradicional, no<br />

enuncia<strong>do</strong> Este livro é interessante, procura-se apenas descrever uma realidade<br />

exterior. Segun<strong>do</strong> uma concepção argumentativa <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, aponta-se para<br />

uma conclusão que poderá ser, implicitamente, convidar o interlocutor à sua<br />

leitura e, logo, a um da<strong>do</strong> comportamento ou atitude. Uma das sequências<br />

plausíveis seria Então vou lê-lo. Neste caso, o segmento inicial constitui-se como<br />

argumento para a conclusão, adquirin<strong>do</strong> o seu valor semântico nessa totalidade.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> a concepção argumentativa da linguagem, a<br />

perspectiva <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> é vertical, adquirin<strong>do</strong> um carácter polifónico enquanto<br />

sobreposição de várias “vozes”, opon<strong>do</strong>-se ao postula<strong>do</strong> tradicional da<br />

“unicidade <strong>do</strong> sujeito falante”. De acor<strong>do</strong> com Anne Reboul, “Si, selon Ducrot,<br />

il faut rejeter le postulat de l‟unicité du sujet parlant et si, pour ce faire, il<br />

introduit diverses entités, il faut noter que ces diverses entités correspondent à


84<br />

Traduzir<br />

des êtres théoriques et non à des individus dans le monde. Ducrot établit ainsi<br />

une frontière infranchissable entre le sujet parlant, c‟est-à-dire l‟individu dans le<br />

monde qui produit l‟énoncé, et le locuteur et les énonciateurs qui restent des êtres<br />

théoriques et qui ne s‟incarnent pas” 5 .<br />

Há, então, a considerar, como instâncias <strong>do</strong> discurso, diversas entidades:<br />

em primeiro lugar, o sujeito empírico, autor ou produtor <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>, a seguir<br />

o locutor (L), responsável <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> e <strong>do</strong> agenciamento de enuncia<strong>do</strong>res,<br />

marca<strong>do</strong> linguisticamente pela primeira pessoa e, finalmente, os enuncia<strong>do</strong>res<br />

(E), perspectivas ou pontos de vista presentes no enuncia<strong>do</strong>. Acresce ainda a<br />

posição <strong>do</strong> locutor, relativamente a estes últimos, que poderá ser de aprovação<br />

de identificação ou de rejeição. Será assim, a partir <strong>do</strong> agenciamento de<br />

enuncia<strong>do</strong>res, realiza<strong>do</strong> pelo locutor, e da posição deste face às várias<br />

perspectivas, que se vai desenhan<strong>do</strong> a direcção ou trajecto argumentativo.<br />

Desta forma, um tipo de negação caracterizada por Ducrot como<br />

polémica 6 , seja o caso <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> Não chove, remete-nos para um debate entre<br />

<strong>do</strong>is enuncia<strong>do</strong>res, E1 e E2. O primeiro sustenta um ponto de vista afirmativo,<br />

sen<strong>do</strong> contradita<strong>do</strong> por E2 e identifican<strong>do</strong>-se o locutor com o último.<br />

Constitui-se, deste mo<strong>do</strong>, o ponto de partida, argumento para a sequência<br />

ulterior ou conclusão <strong>do</strong> tipo: Então vamos sair.<br />

Este entendimento <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> como debate entre pontos de<br />

vista contrapostos é extensível à dimensão discursiva, onde adquire a sua<br />

máxima amplitude. A sua aplicação à totalidade <strong>do</strong> discurso permite aceder ao<br />

diálogo ou cruzamento de perspectivas mais ou menos dissonantes que o<br />

atravessam, bem como determinar a respectiva directriz argumentativa.<br />

A consciência deste corte vertical <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, como “vozes” sobrepostas,<br />

contribui, a nosso ver, para um entendimento mais claro e preciso <strong>do</strong>s vectores<br />

fundamentais de orientação semântica, com um enfoque nos conectores que<br />

articulam a sequência discursiva. Muni<strong>do</strong> deste quadro de análise, o<br />

tradutor/intérprete pode assim aceder às conclusões fundamentais a que se<br />

dirige o discurso, aten<strong>do</strong>-se à orientação argumentativa que o rege e atingin<strong>do</strong>,<br />

de mo<strong>do</strong> mais seguro, uma equivalência semântica na língua de chegada.<br />

Por seu turno, na ligação entre argumento e conclusão, inscrevem-se<br />

princípios gerais, comuns e escalares 7 , convoca<strong>do</strong>s pelos enuncia<strong>do</strong>res. Estes<br />

princípios, topoi, de acor<strong>do</strong> com a designação aristotélica, obedecem, então, a<br />

várias características. A característica da generalidade deve-se ao facto de não se<br />

aplicarem apenas a uma dada situação mas a qualquer uma que seja análoga. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, o topos é também comum, isto é, constitui-se como objecto de<br />

partilha pela colectividade. Finalmente, é gradual, já que, por um la<strong>do</strong>,


Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução 85<br />

estabelece uma relação entre duas escalas, figuran<strong>do</strong> a primeira como<br />

antecedente (P), e a segunda como consequente (Q). Por outro la<strong>do</strong>, a relação<br />

é, em si mesma, gradual, poden<strong>do</strong> qualquer uma das escalas ser percorrida num<br />

senti<strong>do</strong> ascendente ou descendente.<br />

Seja o caso <strong>do</strong> exemplo: Está bom tempo, vamos passear. Como se pode<br />

constatar, cumpre as três características apontadas, já que poderá ocorrer<br />

sempre que o bom tempo se faça sentir, é pacificamente aceite e, em princípio,<br />

quanto melhor estiver o tempo, mais facilmente se dará um passeio e viceversa.<br />

Há, assim, um trajecto entre argumento e conclusão que é assegura<strong>do</strong><br />

pelo topos. No discurso, o topos é convoca<strong>do</strong> no quadro de uma determinada<br />

apreensão argumentativa de uma situação, orientan<strong>do</strong> o trajecto discursivo para<br />

uma dada conclusão.<br />

Se no plano semântico se define, deste mo<strong>do</strong>, a direcção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>,<br />

cumpre agora determinar a articulação com o plano ideológico e, mais<br />

especificamente, com os valores, inserin<strong>do</strong>-nos no âmbito intercultural da<br />

tradução. A conjunção que se estabelece entre ambos (discurso e ideologia),<br />

realiza-se através da coincidência <strong>do</strong>s topoi com os valores. Como refere A.<br />

Alves, “(...) para reconhecer a sua proximidade e até coincidência, será bastante<br />

sublinhar que os traços específicos <strong>do</strong>s topoi se encontram também nos valores<br />

sociais. De mo<strong>do</strong> simplifica<strong>do</strong>, diríamos que o que constitui a<br />

argumentatividade ou a força imperativa <strong>do</strong> topos é o que constitui a força<br />

imperativa <strong>do</strong> valor social. Tal como o topos, o valor social é, por definição,<br />

comum a uma comunidade (mesmo que não seja total e unanimemente aceite) e<br />

é geral, ou seja, aplica-se a uma multiplicidade de situações; ao carácter gradual<br />

<strong>do</strong> topos pode, pelo menos, associar-se o carácter polar <strong>do</strong> valor/antivalor e a sua<br />

gradualidade nos aspectos da realização e da adesão que alcançam” 8 .<br />

No entanto, há ainda que definir o que se entende por ideologia,<br />

destacan<strong>do</strong>-se alguns elementos que convém sublinhar. Embora seja uma<br />

noção de contornos pouco precisos, e que poderá ser entendida em função de<br />

várias acepções, cremos que se articula em torno de <strong>do</strong>is pólos fundamentais,<br />

manifestan<strong>do</strong> uma dualidade que lhe é inerente 9 .<br />

De facto, a ideologia parece constituir-se sempre a partir da tensão entre<br />

<strong>do</strong>is eixos, valores vs. representações sociais, apreensão da realidade e projecto<br />

de futuro, interpretação <strong>do</strong> interesse geral como obra de um grupo particular,<br />

etc. Ora, se por um la<strong>do</strong>, em certos casos, a ideologia surge como uma<br />

representação falseada, devi<strong>do</strong> a uma interpretação errónea ou parcial <strong>do</strong>s<br />

factos, por outro, desde que revele um des<strong>do</strong>bramento crítico, poderá


86<br />

Traduzir<br />

desempenhar um papel de orientação da acção, no senti<strong>do</strong> de uma maior<br />

consciência social.<br />

A ideologia perspectiva-se, assim, de mo<strong>do</strong> dialéctico, como tensão<br />

permanente enquanto consciência progressiva direccionada à consciência social<br />

e, ao mesmo tempo, como risco de reificação dessa mesma consciência.<br />

Formula-se, pois, como síntese de um processo representativo e de orientação<br />

da acção. Além disso, e de um ponto de vista sociológico, segun<strong>do</strong> a concepção<br />

de Guy Rocher, a ideologia apresenta-se como um sistema, um conjunto<br />

organiza<strong>do</strong> de percepções e de representações, que permite explicar o<br />

funcionamento social e propor orientações para a acção histórica, distinguin<strong>do</strong>se<br />

da ciência, principalmente pelo facto de se referir a valores.<br />

De acor<strong>do</strong> com este autor, “[...] le Nous de l‟idéologie sert en règle générale<br />

à symboliser et à cristalliser les valeurs auxquelles l‟idéologie fait appel. Ces<br />

valeurs peuvent être celles d‟un passé plus ou moins lointain, elles peuvent être<br />

actuelles ou elles peuvent être nouvelles.<br />

Soulignons le fait que l‟idéologie est un des lieux principaux où se créent les<br />

valeurs nouvelles. Souvent diffuses ou latentes, ces nouvelles valeurs trouvent<br />

finalement leur formulation dans un schéma idéologique qui les explicite” 10 . A<br />

ideologia inscreve-se, pois, na dimensão cultural e define-se em função de<br />

vários elementos, designadamente <strong>do</strong>s valores, das situações históricas ou <strong>do</strong>s<br />

diferentes grupos. A cultura é, deste mo<strong>do</strong>, apreendida e partilhada por um<br />

conjunto de pessoas e constitui-as, de forma objectiva e simbólica, em<br />

colectividade distinta 11 .<br />

Ora, os valores participam também de uma dupla dimensão já que, numa<br />

perspectiva relacional, articulam, através <strong>do</strong> que é desejável, sujeito e objecto.<br />

Como refere L. Lavelle, “Nul ne peut mettre en <strong>do</strong>ute, semble-t-il, la liaison<br />

entre la valeur et le désir. […] Car on peut dire d‟une chose qu‟elle est tout ce<br />

sur quoi quelque désir aspire à se poser. […] De telle sorte que l‟on comprend<br />

sans peine comment on a pu identifier la valeur avec la désirabilité” 12 .<br />

Por outro la<strong>do</strong>, e também de mo<strong>do</strong> dual, apresentam uma dimensão ideal,<br />

virtual ou paradigmática, basta para tal pensar em valores como o Bem, a<br />

Justiça ou a Felicidade, e isso não invalida que se manifestem ou concretizem<br />

na relação que se estabelece com o sujeito (individual ou colectivo), de forma<br />

diferenciada, isto é, relativa 13 . O facto de nessa apreensão se abrangerem novos<br />

aspectos ou elementos não implica que eles deixem de ser subsumíveis a uma<br />

configuração ideal 14 . De mo<strong>do</strong> diferencial, quase diríamos de forma<br />

oposicional, enquanto tensão entre essa bipolaridade, a definição de cada uma<br />

das vertentes exige a presença da outra.


Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução 87<br />

Pode, assim, afirmar-se que os valores se exprimem numa dupla dimensão<br />

– as duas perspectivas em que ela se des<strong>do</strong>bra são complementares e copresentes,<br />

uma vez que os valores se configuram nessa relação entre a sua<br />

projecção ideal e a sua manifestação, assumin<strong>do</strong> um carácter relativo segun<strong>do</strong> o<br />

mo<strong>do</strong> como essa relação se define.<br />

Então, ten<strong>do</strong> em conta os diversos elementos aponta<strong>do</strong>s, e seguin<strong>do</strong> a<br />

perspectiva de G. Rocher, os valores apresentam-se como uma determinada<br />

forma de ser ou de agir reconhecida como ideal por uma colectividade<br />

tornan<strong>do</strong>-se, por tal motivo, naquilo que é desejável. Trata-se, pois, de uma<br />

representação da realidade social e orientação <strong>do</strong> seu agir.<br />

A concepção relacional ou posicional <strong>do</strong> valor permite, deste mo<strong>do</strong>, a sua<br />

manifestação como actividade simultaneamente participante e cria<strong>do</strong>ra,<br />

concretizan<strong>do</strong>-se na acção. Ora, a presença de uma vontade de adesão, como<br />

desejo, por parte <strong>do</strong> sujeito equivale a um reconhecimento intersubjectivo,<br />

fundamento dessa adesão que, apesar de tu<strong>do</strong>, não deixa de ser construída e<br />

elaborada através das próprias relações entre os indivíduos, desenhan<strong>do</strong> uma<br />

identidade colectiva. Os valores constituem-se como objecto dessas relações,<br />

adquirem aí a sua configuração e representam o horizonte <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> em que se<br />

projecta a acção comum, inscreven<strong>do</strong>-se nos discursos da própria sociedade.<br />

É precisamente para se poder aceder aos valores presentes no discurso da<br />

língua de partida, reconstituin<strong>do</strong>-os na língua de chegada, que se recorre a um<br />

modelo teórico capaz de funcionar como ponto de articulação entre as duas<br />

vertentes.<br />

Através da determinação <strong>do</strong>s princípios argumentativos, topoi, convoca<strong>do</strong>s<br />

ao longo <strong>do</strong> texto e das configurações que se estabelecem entre os diferentes<br />

enuncia<strong>do</strong>res, será possível traçar o recorte ideológico <strong>do</strong> discurso.<br />

Entendemos que estas configurações poderão ser de vária ordem, surgin<strong>do</strong><br />

como fundamentais as relações de associação, de conexão e de oposição. Se<br />

considerarmos o contexto económico de âmbito empresarial, podemos referir a<br />

título de exemplo de relações de associação, desenvolvimento e crescimento económicos,<br />

globalização e competitividade, qualidade e reconhecimento. Como exemplos de relações<br />

de conexão, lucro mas protecção <strong>do</strong> ambiente, tradição mas inovação, dificuldades mas<br />

recuperação, asseguran<strong>do</strong> o conector “mas” a articulação entre os <strong>do</strong>is valores. E<br />

finalmente, como relações de oposição, podemos referir, fusão/não fusão,<br />

inércia/acção, tradição/inovação 15 . Consideramos que estes diferentes tipos de<br />

relação vão também precisan<strong>do</strong>, ao longo de to<strong>do</strong> o discurso, certas linhas de<br />

orientação ideológica, remeten<strong>do</strong>-nos para um quadro fundamental, desenha<strong>do</strong><br />

num recorte de identidades e diferenças.


88<br />

Traduzir<br />

Poderemos agora retomar a noção de valor de acor<strong>do</strong> com as noções que<br />

apresentámos e estabelecer um cruzamento com o plano semiótico. Os valores<br />

apresentam-se como virtuais, situa<strong>do</strong>s num eixo paradigmático, actualizan<strong>do</strong>-se<br />

na actividade discursiva. Ao seguirmos como méto<strong>do</strong> de análise a perspectiva<br />

de O. Ducrot, surge-nos como fundamental a relação argumentativa. É nos<br />

princípios argumentativos que esta se inscreve, enquanto apreensão<br />

argumentativa e, logo, preferencial, positiva ou negativa, de um da<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de<br />

coisas, ou seja, como eixo entre um sujeito e objecto.<br />

Estabelece-se, pois, uma afirmação enquanto desejo e adesão a um valor<br />

ou, pelo contrário, como atitude de recusa, face ao desvalor ou antivalor, de<br />

acor<strong>do</strong> com o princípio convoca<strong>do</strong> e com a atitude <strong>do</strong> locutor – atende-se,<br />

portanto, a uma relação accional entre sujeito e objecto.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, e como vimos, no quadro de uma teoria polifónica da<br />

enunciação, estamos na presença de uma pluralidade de vozes, contrarian<strong>do</strong>-se<br />

uma visão monolítica <strong>do</strong> sujeito falante. A presença de vários enuncia<strong>do</strong>res<br />

traduz-se numa visão multifacetada, constituída pela afirmação de vozes<br />

discordantes, mais ou menos distanciadas, e objecto de atitudes diversas por<br />

parte <strong>do</strong> locutor. Deste mo<strong>do</strong>, a convocação de topoi no discurso segue o<br />

agenciamento estabeleci<strong>do</strong> pelo locutor, configura<strong>do</strong> como ideólogo,<br />

constituin<strong>do</strong>-se, assim, uma decisão de convocação de valores a partir da<br />

própria decisão <strong>do</strong> locutor que define ou recorta o quadro ideológico.<br />

Vimos igualmente que a concepção argumentativa da língua, que considera<br />

a argumentação inscrita nas estruturas linguísticas, estabelece uma distância<br />

relativamente ao mun<strong>do</strong> referencial, que é apreendi<strong>do</strong> argumentativamente,<br />

assinalan<strong>do</strong>-se, nessas várias apreensões, relações de identidade e de diferença.<br />

Ora, para que a pluralidade de sujeitos se possa constituir como comunidade,<br />

torna-se fundamental a negociação dessa distância ou diferença através de uma<br />

vertente argumentativa que adquire uma projecção accional. O sujeito dialógico<br />

é, assim, produto de uma negociação constante 16 .<br />

A convocação de princípios argumentativos diversifica<strong>do</strong>s coincide, então,<br />

com quadros ideológicos diversos, por vezes diametralmente opostos, que<br />

afirmam a sua identidade nessa alteridade ou diferença e que se confrontam e<br />

modificam, ao longo da sequência discursiva, na própria evolução <strong>do</strong>s topoi<br />

convoca<strong>do</strong>s. Estes ora se aproximam, ora se distanciam de um ponto de<br />

equilíbrio 17 , que poderemos considerar como ponto de mediação ética entre os<br />

topoi presentes, num processo de negociação, contínuo e implícito, permitin<strong>do</strong> a<br />

re-actualização da geografia na linha <strong>do</strong> horizonte <strong>do</strong> universo valorativo. Deste<br />

mo<strong>do</strong>, na direcção argumentativa <strong>do</strong> discurso, traçada pela correlação <strong>do</strong>s


Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução 89<br />

elementos atrás referi<strong>do</strong>s, encontramos a respectiva orientação ou direcção<br />

ideológica, assinalada pelos topoi.<br />

O tradutor/intérprete pode assim chegar a uma equivalência semântica e<br />

ideológica, no plano intercultural, que sempre se inscreve na prática tradutiva,<br />

constituin<strong>do</strong>-se a análise <strong>do</strong> discurso, segun<strong>do</strong> esta perspectiva, como um<br />

instrumento váli<strong>do</strong> e eficaz para o seu trabalho.<br />

________<br />

1 A Linguagem, a Verdade e o Poder, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para<br />

a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e da Tecnologia, 2002, p. 24.<br />

2 Veja-se a este propósito a concepção de T. van Dijk enquanto interface entre<br />

ideologia e discurso.<br />

3 Acerca da relação entre “os elementos e estruturas da comunicação com os<br />

elementos e estruturas sociais”, ver A. Alves, “Argumentação e análise <strong>do</strong> discurso na<br />

perspectiva de Oswald Ducrot”, Revista de Comunicação e Linguagens, Maio 2001, nº 29,<br />

Lisboa, Relógio D‟Água Editores, pp. 117-35.<br />

4 Cf. O. Ducrot, “Esquisse d‟une théorie polyphonique de l‟énonciation”, in Le<br />

Dire et le Dit, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984, pp. 171-233.<br />

5 A. Reboul, J. Moeschler, Dictionnaire Encyclopédique de Pragmatique, Paris, Editions<br />

du Seuil, 1994, p. 326. O negrito é da autora.<br />

6 Cf. O. Ducrot, “Esquisse d‟une théorie polyphonique de l‟énonciation”, pp. 215-<br />

17.<br />

7 Cf. O. Ducrot, “Topoї et formes topiques”, in J. C. Anscombre [et al.], Théorie des<br />

Topoї, Paris, Éditions Kimé, 1995, pp. 86-7.<br />

8 Argumentação e análise <strong>do</strong> discurso na perspectiva de Oswald Ducrot, p. 132. O<br />

itálico é <strong>do</strong> autor.<br />

9 A propósito das diferentes acepções acerca da ideologia e <strong>do</strong> seu carácter dual,<br />

ver A. Alves, Presse Régionale et Émigration, Louvain-La-Neuve, Cabay, Libraire Éditeur,<br />

1984, pp. 53-62.<br />

10 Introduction à la Sociologie, Vol. 3, Paris, Éditions HMH, 1968b, p. 90.<br />

11 Cf. G. Rocher, Introduction à la sociologie, Vol. 1, Paris, Éditions HMH, 1968a, p.<br />

111. O itálico é <strong>do</strong> autor.<br />

12 Traité des Valeurs, Tome premier, Paris, P.U.F., 1951, p. 197. O itálico é <strong>do</strong><br />

autor.<br />

13 A propósito da dimensão ideal <strong>do</strong> valor e da sua manifestação tangível, ver A.<br />

Alves, Presse régionale..., 1984, p. 66.<br />

14 De facto, a concepção que possuímos hoje da Justiça é distinta da que<br />

imperava, por exemplo, no séc. XVIII. Podemos até admitir a coexistência, numa única<br />

sociedade, ou em sociedades diferentes, de actualizações ou concretizações opostas,


90<br />

Traduzir<br />

inscritas em universos ideológicos diferencia<strong>do</strong>s e, no entanto, subsumíveis a um único<br />

valor virtual ou paradigmático.<br />

15 Escolhemos propositadamente os mesmos valores de inovação e de tradição<br />

apenas para sublinhar que o diferente agenciamento de enuncia<strong>do</strong>res e a respectiva<br />

posição <strong>do</strong> locutor podem constituí-los em relações diversas; isto é, podem ser<br />

equaciona<strong>do</strong>s de mo<strong>do</strong> antagónico, no quadro de uma relação de oposição, de acor<strong>do</strong><br />

com este último exemplo, ou de mo<strong>do</strong> complementar, sen<strong>do</strong> inseri<strong>do</strong>s, neste caso,<br />

numa relação de conexão definida pelo conector.<br />

16 Cf. J. M. O. Mendes, “O desafio das identidades”, in Globalização – Fatalidade ou<br />

utopia?, B. de S. Santos (Org.), <strong>Porto</strong>, Ed. Afrontamento, 2001, pp. 489-523.<br />

17 A propósito da noção de fronteira como figura de mediação, ver A. S. Ribeiro,<br />

“A retórica <strong>do</strong>s limites. Notas sobre o conceito de fronteira”, in Globalização – Fatalidade<br />

ou utopia?, B. de S. Santos (Org.), <strong>Porto</strong>, Ed. Afrontamento, 2001, pp. 463-88.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

ALVES, A., Presse régionale et émigration, Louvain-La-Neuve, Cabay, Libraire Éditeur,<br />

1984.<br />

––––– , A., “Argumentação e análise <strong>do</strong> discurso na perspectiva de Oswald<br />

Ducrot”, Revista de Comunicação e Linguagens, Maio 2001, nº 29, Lisboa, Relógio D‟Água<br />

Editores, pp. 117-135.<br />

DUCROT, O., “Esquisse d‟une théorie polyphonique de l‟énonciation”, in Le dire et<br />

le dit, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984, pp. 171-233.<br />

–––––, “Topoї et formes topiques”, in J. C. Anscombre [et al.], Théorie des Topoї,<br />

Paris, Éditions Kimé, 1995, pp. 85-99.<br />

LAVELLE, L., Traité des valeurs, Tome premier, Paris, P.U.F., 1951.<br />

MARTINS, M. de L., A linguagem, a verdade e o poder, Fundação Calouste Gulbenkian,<br />

Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e da Tecnologia, 2002.<br />

MENDES, J. M. O., “O desafio das identidades”, in Globalização – Fatalidade ou<br />

utopia?, B. de S. Santos (Org.), <strong>Porto</strong>, Ed. Afrontamento, 2001, pp. 489-523.<br />

MOESCHLER, J.; A. Reboul, Dictionnaire Encyclopédique de Pragmatique, Paris, Editions<br />

du Seuil, 1994.<br />

RIBEIRO, A. S., “A retórica <strong>do</strong>s limites. Notas sobre o conceito de fronteira”, in<br />

Globalização – Fatalidade ou utopia?, B. de S. Santos (Org.), <strong>Porto</strong>, Ed. Afrontamento,<br />

2001, pp. 463-488.<br />

ROCHER, G., Introduction à la sociologie, Vol. 1, Paris, Éditions HMH, 1968a.<br />

––––– , Introduction à la sociologie, Vol. 3, Paris, Éditions HMH, 1968b.


Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução 91


traduções


94<br />

Traduções<br />

CONSOLAÇÃO TÉCNICA<br />

Michel Houellebecq<br />

CONSOLATION TECHNIQUE, 2002<br />

Não gosto de mim. Sinto pouca simpatia e ainda menos estima por mim<br />

mesmo; aliás, não me interesso muito por mim próprio. Há já muito tempo que<br />

conheço as minhas principais características, e acabei por me cansar delas.<br />

Quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente, jovem ainda, falava de mim, pensava em mim, estava<br />

como que cheio de mim próprio; tal já não acontece. Abstraí-me <strong>do</strong>s meus<br />

pensamentos, e a simples perspectiva de ter que contar uma história pessoal<br />

mergulha-me num tédio próximo da catalepsia. Quan<strong>do</strong> a isso sou<br />

absolutamente obriga<strong>do</strong>, minto.<br />

No entanto, para<strong>do</strong>xalmente, nunca me arrependi de me ter reproduzi<strong>do</strong>.<br />

Pode mesmo dizer-se que amo o meu filho, e que o amo ainda mais, sempre<br />

que nele reconheço a marca <strong>do</strong>s meus próprios defeitos. Vejo como eles se<br />

manifestam, ao longo <strong>do</strong> tempo, com um determinismo implacável, e rejubilo.<br />

Alegro-me, sem pu<strong>do</strong>r, ao ver repetirem-se e, por isso mesmo, eternizarem-se,<br />

características pessoais que nada têm de especialmente interessante; que são até,<br />

não raras vezes, desprezíveis; que, na realidade, não têm qualquer outro mérito<br />

senão o facto de serem as minhas; aliás, nem sequer são realmente minhas.<br />

Estou perfeitamente consciente de que algumas foram copiadas, tal e qual, da<br />

personalidade <strong>do</strong> meu pai, esse estúpi<strong>do</strong> ignóbil. Mas, estranhamente, isso não<br />

afecta em nada a minha alegria. Esta alegria é mais <strong>do</strong> que egoísmo; é mais<br />

profunda, mais indiscutível. Tal como um volume é mais <strong>do</strong> que a sua<br />

projecção sobre uma superfície plana e um corpo vivo é mais <strong>do</strong> que a sua<br />

sombra.<br />

Pelo contrário, o que me entristece no meu filho é vê-lo manifestar<br />

(Influência da mãe? Diferença de gerações? Pura individualidade?) os traços de<br />

uma personalidade autónoma, na qual não me revejo de forma alguma, que me<br />

é estranha. Longe de me sentir fascina<strong>do</strong>, apercebo-me de que não deixarei<br />

senão uma imagem incompleta e enfraquecida de mim próprio; por breves<br />

segun<strong>do</strong>s, sinto mais claramente o cheiro a morte. E, posso confirmá-lo: a<br />

morte tresanda.<br />

A Filosofia Ocidental favorece pouco a expressão de tais sentimentos; eles<br />

não deixam espaço ao progresso, à liberdade, ao individualismo, ao devir; eles


Michel Houellebecq 95<br />

não visam senão a eterna e imbecil repetição <strong>do</strong> mesmo. De mais a mais, estes<br />

sentimentos nada têm de original; eles são partilha<strong>do</strong>s por quase toda a<br />

Humanidade, e mesmo pela maior parte <strong>do</strong> reino animal; não são mais <strong>do</strong> que a<br />

memória sempre activa de um instinto biológico esmaga<strong>do</strong>r. A Filosofia<br />

Ocidental é um mecanismo de adestramento, longo, paciente e cruel, que tem<br />

por objectivo persuadir-nos de algumas ideias falsas. A primeira, a de que<br />

devemos respeitar os outros, pelo facto de serem diferentes de nós; a segunda, a<br />

de que ganhamos alguma coisa com a morte.<br />

Actualmente, graças à tecnologia ocidental, este verniz de conveniências<br />

está rapidamente a estalar. Como é óbvio, far-me-ei clonar, desde que possível;<br />

como é óbvio, to<strong>do</strong>s se farão clonar, desde que possível. Irei às Bahamas, à<br />

Nova Zelândia ou às ilhas Caimão; pagarei o preço que for preciso (nunca os<br />

imperativos morais nem financeiros tiveram um peso significativo, se<br />

compara<strong>do</strong>s com os da reprodução). Terei provavelmente <strong>do</strong>is ou três clones,<br />

da mesma forma que se tem <strong>do</strong>is ou três filhos; entre os seus nascimentos,<br />

respeitarei um intervalo adequa<strong>do</strong> (nem demasia<strong>do</strong> próximos, nem demasia<strong>do</strong><br />

espaça<strong>do</strong>s); homem já maduro, comportar-me-ei como um pai responsável.<br />

Assegurarei aos meus clones uma boa educação; depois, morrerei. Morrerei sem<br />

prazer, porque não desejo morrer; no entanto, até prova em contrário, a isso<br />

sou obriga<strong>do</strong>. Através <strong>do</strong>s meus clones, terei atingi<strong>do</strong> uma certa forma de<br />

sobrevivência – de mo<strong>do</strong> algum suficiente, mas superior àquela que me teriam<br />

trazi<strong>do</strong> os filhos. Até à data, é o máximo que a tecnologia ocidental me pode<br />

oferecer.<br />

No preciso momento em que escrevo estas linhas, é-me impossível prever<br />

se os meus clones nascerão fora <strong>do</strong> ventre de uma mulher. O que ao profano<br />

parecia tecnicamente simples (as trocas nutritivas pelo intermediário da placenta<br />

encerram à partida um mistério menor <strong>do</strong> que o que rodeia o acto da<br />

fecundação) revela-se o mais difícil de reproduzir. Se houver um progresso<br />

significativo da técnica, os meus futuros filhos, os meus clones, viverão o início<br />

da sua existência num frasco; isso entristece-me um pouco. Eu a<strong>do</strong>ro a rata das<br />

mulheres, sinto-me feliz dentro <strong>do</strong> seu ventre, na suavidade elástica da sua<br />

vagina. Compreen<strong>do</strong> os motivos de segurança, os imperativos técnicos;<br />

compreen<strong>do</strong> as razões que levarão progressivamente a uma gestação in vitro;<br />

apenas tomo a liberdade, a este propósito, de manifestar uma leve nostalgia.<br />

Terão eles, os meus queridinhos nasci<strong>do</strong>s tão longe dela, terão ainda o gosto da<br />

rata? Espero que sim, por eles, espero-o de to<strong>do</strong> o meu coração. Há imensas<br />

alegrias neste mun<strong>do</strong>, mas há poucos prazeres – e tão poucos os que nenhum<br />

mal fazem. Fim <strong>do</strong> parêntesis humanista.


96<br />

Traduções<br />

Se eles se desenvolverem dentro de um frasco, os meus clones nascerão,<br />

evidentemente, sem umbigo. Desconheço quem terá utiliza<strong>do</strong> pela primeira<br />

vez, com senti<strong>do</strong> depreciativo, este conceito de “literatura umbilicalista”; o que<br />

sei é que este chavão fácil sempre me desagra<strong>do</strong>u. Qual seria o interesse de uma<br />

literatura que pretendesse falar da humanidade excluin<strong>do</strong> qualquer consideração<br />

pessoal? Hã? Os seres humanos são mais pareci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que julgam, na sua<br />

pretensão cómica; é muito mais fácil <strong>do</strong> que imaginamos atingir o universal,<br />

falan<strong>do</strong> de si. Aqui reside um segun<strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo: falar de si é uma actividade<br />

fastidiosa, e mesmo repugnante; escrever sobre si é, na literatura, a única coisa<br />

que tem valor, a tal ponto que avaliamos – habitualmente e com precisão – o<br />

valor <strong>do</strong>s livros pelo nível de envolvimento pessoal <strong>do</strong> seu autor. É grotesco, é<br />

mesmo de uma indiscrição demencial, mas é assim.<br />

Ao escrever estas linhas, observo, efectivamente, e na prática, o meu<br />

umbigo. Normalmente, é raro pensar nele, e ainda bem que assim é. Esta prega<br />

de carne traz consigo a marca evidente <strong>do</strong> corte de um laço prematuro; é a<br />

lembrança <strong>do</strong> corte da tesoura que, na falta de qualquer outro processo, me<br />

projectou para o mun<strong>do</strong>; intima<strong>do</strong> a desenrascar-me sozinho. Tal como eu,<br />

você não escapará a esta lembrança; velho, muito velho mesmo, conservará<br />

sempre intacto, no centro <strong>do</strong> ventre, o vestígio desse corte. Através deste<br />

orifício mal fecha<strong>do</strong>, os seus órgãos podem, a qualquer instante, evadir-se e<br />

apodrecer na atmosfera. Poderá, a qualquer momento, esvaziar-se das suas<br />

entranhas, em plena luz <strong>do</strong> dia; e agonizar como um peixe, abati<strong>do</strong> com um<br />

pontapé em plena espinha <strong>do</strong>rsal. Não será nem o primeiro, nem sequer o mais<br />

ilustre. Lembre-se das palavras <strong>do</strong> poeta:<br />

O cadáver de Deus<br />

Retorce-se aos olhos meus<br />

Qual peixe trazi<strong>do</strong> pela maré<br />

Que desfazemos ao pontapé<br />

Chegareis brevemente, crianças sem consequência. Sereis como deuses – e<br />

isso não será suficiente. Os vossos clones não terão umbigo, mas terão uma<br />

“literatura umbilicalista”. Também vós sereis “umbilicalistas”; sereis mortais. O<br />

vosso umbigo encher-se-á de porcaria, e tu<strong>do</strong> será dito. Lançaremos terra sobre<br />

a vossa cara.<br />

Trad. de Elisabete Teixeira da Cunha


A BALANÇA DOS BALEK<br />

Heinrich Böll<br />

DIE WAAGE DER BALEKS, 1958<br />

Na terra <strong>do</strong> meu avô, a maioria das pessoas vivia <strong>do</strong> trabalho nas fiações<br />

de linho. Há cinco gerações que respiravam o pó que saía <strong>do</strong>s caules parti<strong>do</strong>s e<br />

se deixavam matar lentamente; gerações pacientes e alegres que comiam queijo<br />

de cabra e batatas e que, por vezes, matavam um coelho. À noite, fiavam e<br />

tricotavam nas suas casas, cantavam, bebiam chá de hortelã e eram felizes.<br />

Durante o dia amaciavam o linho em máquinas antigas, à mercê <strong>do</strong> pó e <strong>do</strong><br />

calor que saíam <strong>do</strong>s fornos. Nas suas casas existia uma única cama em forma de<br />

armário, reservada aos pais e os filhos <strong>do</strong>rmiam em bancos à sua volta. Pela<br />

manhã, as casas cheiravam muito a sopa. Aos <strong>do</strong>mingos, comia-se puré e as<br />

caras <strong>do</strong>s filhos ficavam rosadas de alegria quan<strong>do</strong>, nos dias de festa, o café de<br />

bolota preto ia-se tingin<strong>do</strong>, cada vez mais claro, com o leite que as mães<br />

despejavam, com um sorriso, nas suas canecas de café.<br />

Os pais iam ce<strong>do</strong> para o trabalho e a lida da casa ficava entregue às<br />

crianças: eram elas que varriam, arrumavam, lavavam a louça e descascavam<br />

batatas, fruto amarelo e precioso, cujas cascas finas tinham que apresentar aos<br />

pais para dissipar qualquer dúvida de desperdício ou leviandade.<br />

Quan<strong>do</strong> as crianças chegavam da escola, tinham que ir para os bosques e,<br />

conforme a estação <strong>do</strong> ano, apanhavam cogumelos e ervas: aspérula e tomilho,<br />

cominhos e hortelã, também dedaleira e, no Verão, quan<strong>do</strong> tinham ceifa<strong>do</strong> o<br />

feno <strong>do</strong>s campos, apanhavam as flores. Recebiam um pfennig por cada quilo de<br />

flores campestres, que eram vendidas nas farmácias da cidade, a senhoras<br />

nervosas, a vinte pfennig o quilo. Os preciosos cogumelos rendiam vinte pfennig o<br />

quilo e eram vendi<strong>do</strong>s nas lojas da cidade a um marco e vinte. No Outono,<br />

quan<strong>do</strong> a humidade fazia sair os cogumelos da terra, as crianças embrenhavamse<br />

mais na escuridão verde <strong>do</strong>s bosques e quase todas as famílias tinham os seus<br />

lugares para apanhar cogumelos, lugares esses que eram segreda<strong>do</strong>s de geração<br />

em geração.<br />

Os bosques, bem como as fiações de algodão, pertenciam aos Balek que<br />

tinham um castelo na terra <strong>do</strong> meu avô. A <strong>do</strong>na da casa tinha, ao la<strong>do</strong> da<br />

cozinha, uma pequena loja onde eram pesa<strong>do</strong>s e pagos os cogumelos, as ervas e<br />

as flores <strong>do</strong> campo. Era aí que estava, em cima de uma mesa, a grande balança


98<br />

Traduções<br />

<strong>do</strong>s Balek, um objecto antiquíssimo, cheia de arabescos e pintada a bronze<br />

<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>, em frente à qual já os avós <strong>do</strong>s meus avós tinham esta<strong>do</strong>, com os<br />

cestos de cogumelos e os sacos de papel das flores campestres nas mãos sujas,<br />

ansiosos por verem quantos pesos a senhora Balek tinha que pôr na balança até<br />

que o ponteiro oscilante parasse mesmo em cima <strong>do</strong> traço preto, aquela linha<br />

fina da justiça que tinha de ser repintada to<strong>do</strong>s os anos. A senhora Balek, então,<br />

pegava no grande livro encaderna<strong>do</strong> a couro, registava o peso e pagava pfennig<br />

ou groschen e, muito raramente, um marco. Quan<strong>do</strong> o meu avô era criança existia<br />

lá um frasco grande com rebuça<strong>do</strong>s amargos, que custavam um marco o quilo,<br />

e a Senhora Balek daquela altura, quan<strong>do</strong> estava bem disposta, metia lá a mão e<br />

dava um rebuça<strong>do</strong> a cada uma das crianças. As caras das crianças ficavam<br />

rosadas de alegria, tal como quan<strong>do</strong> a mãe lhes punha, em dias de festa, leite no<br />

café, leite que tingia o café de claro, cada vez de mais claro, até ficar tão claro<br />

como as tranças das raparigas.<br />

Uma das leis ditada à aldeia pelos Balek dizia: ninguém pode ter uma<br />

balança em casa. Esta lei já era tão antiga que ninguém questionava como e<br />

quan<strong>do</strong> tinha surgi<strong>do</strong>. Tinha que ser cumprida, pois quem a desrespeitasse era<br />

despedi<strong>do</strong> da fiação e nunca mais lhe compravam um cogumelo, um ramo de<br />

tomilho ou umas flores <strong>do</strong> campo. O poder <strong>do</strong>s Balek era tão grande que<br />

mesmo nas aldeias vizinhas ninguém daria trabalho ao infractor, nem lhe<br />

compraria as ervas <strong>do</strong> bosque. Mas desde a época em que os avós <strong>do</strong> meu avô,<br />

quan<strong>do</strong> crianças pequenas, colhiam e vendiam cogumelos, quer para temperar<br />

os assa<strong>do</strong>s das pessoas ricas de Praga, quer para cozê-los nas empadas, ninguém<br />

pensava em quebrar esta lei. Para medir a farinha existia a rasa, os ovos podiam<br />

ser conta<strong>do</strong>s, o linho fia<strong>do</strong> era medi<strong>do</strong> em varas e, assim como assim, a balança<br />

<strong>do</strong>s Balek, antiga e decorada a bronze <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>, não aparentava poder não estar<br />

certa. Já cinco gerações tinham confia<strong>do</strong> ao oscilante ponteiro preto o que, na<br />

sua azáfama infantil, colhiam nos bosques.<br />

Embora houvesse, entre essas pessoas tranquilas, algumas que<br />

desprezavam a lei – caça<strong>do</strong>res furtivos que cobiçavam ganhar numa noite mais<br />

<strong>do</strong> que num mês inteiro a trabalhar na fiação – parecia que mesmo nenhum<br />

deles alguma vez se lembrara de comprar ou construir uma balança. O meu avô<br />

foi o primeiro temerário a testar a justiça <strong>do</strong>s Balek, que moravam no castelo,<br />

que tinham <strong>do</strong>is coches e que costumavam pagar a um <strong>do</strong>s rapazes da aldeia os<br />

estu<strong>do</strong>s de Teologia, no seminário de Praga. O padre ia a casa <strong>do</strong>s Balek, todas<br />

as quartas-feiras, para jogar tarock. Pelo ano novo, eram visita<strong>do</strong>s pelo juíz da


Heinrich Böll 99<br />

comarca, com o brasão real grava<strong>do</strong> no coche. O Impera<strong>do</strong>r, pelo ano novo de<br />

1900, atribuiu-lhes o título de nobreza.<br />

O meu avô era diligente e esperto. Penetrava mais fun<strong>do</strong> no bosque <strong>do</strong><br />

que as crianças anteriores da sua família. Embrenhava-se na densidão <strong>do</strong><br />

bosque onde, de acor<strong>do</strong> com a lenda, vivia Bilgan, o gigante que vigiava o<br />

refúgio <strong>do</strong>s Balderer. Mas o meu avô não tinha me<strong>do</strong> <strong>do</strong> Bilgan. Já em rapaz se<br />

entranhava profundamente no mato espesso e trazia muitos cogumelos e até<br />

trufas, as quais a senhora Balek pagava a 30 pfennig por meio quilo. O meu avô<br />

anotava nas costas de um calendário tu<strong>do</strong> o que vendia aos Balek, cada meio<br />

quilo de cogumelos, cada grama de tomilho e, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> direito, escrevia, na sua<br />

letra de criança, quanto tinha recebi<strong>do</strong>. Dos sete aos <strong>do</strong>ze anos, ele apontava<br />

cada pfennig que recebia. Quan<strong>do</strong> tinha <strong>do</strong>ze anos, no ano de 1900, os Balek<br />

ofereceram a cada família da aldeia 125 gramas de café verdadeiro, daquele que<br />

vem <strong>do</strong> Brasil, porque o Impera<strong>do</strong>r lhes tinha conferi<strong>do</strong> um título de nobreza.<br />

Também ofereceram cerveja e tabaco aos homens e no castelo foi dada uma<br />

grande festa. Muitos coches estavam na alameda <strong>do</strong>s choupos, que ia <strong>do</strong> portão<br />

até ao castelo.<br />

Mas já no dia anterior à grande festa fora distribuí<strong>do</strong> o café na loja em que<br />

se encontrava, há quase cem anos, a balança <strong>do</strong>s Balek, que agora se chamavam<br />

Balek de Bilgan, porque, de acor<strong>do</strong> com a lenda Bilgan, o Gigante tinha um<br />

castelo onde agora estavam os edifícios <strong>do</strong>s Balek.<br />

O meu avô contou-me várias vezes que foi lá no fim da escola para ir<br />

buscar o café para quatro famílias: para os Cech, os Weidler, os Vohla e para a<br />

sua própria família, os Brücher. Era a véspera da passagem de ano. As casas<br />

tinham que ser decoradas, os bolos tinham que ser feitos e, por isso, não<br />

queriam dispensar quatro rapazes para irem to<strong>do</strong>s ao castelo buscar 125 gramas<br />

de café cada um.<br />

E assim, o meu avô estava senta<strong>do</strong> no pequeno e estreito banco de<br />

madeira na lojinha enquanto Gertrud, a empregada, contava os quatro pacotes<br />

de 125 gramas de café e olhava para a balança, em cujo prato esquer<strong>do</strong> tinha<br />

fica<strong>do</strong> o peso de meio quilo. A Sra. Balek de Bilgan estava ocupada com os<br />

preparativos da festa. Quan<strong>do</strong> a Gertrud quis ir ao frasco <strong>do</strong>s rebuça<strong>do</strong>s<br />

amargos, para dar um ao meu avô, verificou que este estava vazio; o frasco era<br />

cheio to<strong>do</strong>s os anos e levava um quilo, que equivalia a um marco.<br />

A Gertrud sorriu e disse:<br />

– Espera que eu vou buscar os novos.<br />

O meu avô ficou com os quatro pacotes de 125 gramas de café, que<br />

tinham si<strong>do</strong> embala<strong>do</strong>s e sela<strong>do</strong>s na fábrica, em frente à balança na qual alguém


100<br />

Traduções<br />

tinha deixa<strong>do</strong> ficar o peso de meio quilo. O meu avô pegou nos quatro pacotes<br />

de café, pousou-os no prato vazio da balança e o seu coração bateu com muita<br />

força quan<strong>do</strong> viu que o ponteiro preto da justiça ficou para<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> traço, ou seja, o prato com o peso de meio quilo ficou em baixo e o meio<br />

quilo de café bem levanta<strong>do</strong> no ar a baloiçar. O seu coração batia mais forte <strong>do</strong><br />

que se estivesse no bosque deita<strong>do</strong> por trás de uma moita à espera de Bilgan, o<br />

Gigante. Tirou <strong>do</strong> bolso pedrinhas, que sempre trazia consigo para atirar com a<br />

fisga aos pardais que picavam as couves da mãe. Teve que colocar três, quatro,<br />

cinco pedrinhas ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pacotes de café até o prato com o peso de meio<br />

quilo se elevar e o ponteiro ficar finalmente mesmo em cima <strong>do</strong> traço. O meu<br />

avô tirou os pacotes de café da balança e embrulhou as cinco pedrinhas num<br />

pano. A Gertrud regressou com o saco de quilo cheio <strong>do</strong>s rebuça<strong>do</strong>s amargos,<br />

que tinham que chegar para mais um ano, para levar o rosa<strong>do</strong> da alegria à cara<br />

das crianças. Enquanto despejava os rebuça<strong>do</strong>s para dentro <strong>do</strong> frasco, o<br />

rapazote pequeno e páli<strong>do</strong> estava ali como se nada tivesse aconteci<strong>do</strong>. O meu<br />

avô só pegou em três <strong>do</strong>s pacotes e a Gertrud ficou a olhar admirada e<br />

assustada para o rapaz páli<strong>do</strong> que atirou o rebuça<strong>do</strong> para o chão, o calcou e<br />

disse:<br />

– Eu quero falar com a senhora Balek.<br />

– Balek de Bilgan, se faz favor, – disse a Gertrud.<br />

– Muito bem, Senhora Balek de Bilgan.<br />

Mas a Gertrud riu-se dele e ele, na escuridão, regressou à aldeia, levou o<br />

café aos Cech, aos Weidler e aos Vohla e depois disse que ainda tinha que ir ao<br />

padre.<br />

Mas embrenhou-se na noite, com as suas cinco pedrinhas dentro <strong>do</strong> lenço.<br />

Tinha que andar muito até encontrar alguém que tivesse uma balança, que<br />

estivesse autoriza<strong>do</strong> a ter uma. Sabia que nas aldeias Blaugrau e Bernau<br />

ninguém tinha uma balança e atravessou-as até que ao fim de uma caminhada<br />

de duas horas chegou à pequena cidade de Dielheim onde vivia o farmacêutico<br />

Honig. Da casa <strong>do</strong> Honig saía o cheiro a panquecas acabadas de fazer e o hálito<br />

<strong>do</strong> Honig, quan<strong>do</strong> abriu a porta ao rapaz enregela<strong>do</strong>, cheirava a ponche e ele<br />

segurava o charuto húmi<strong>do</strong> entre os lábios finos. Por instantes, segurou as<br />

mãos frias <strong>do</strong> rapaz nas suas e disse:<br />

– E então, os pulmões <strong>do</strong> teu pai pioraram?<br />

– Não, eu não venho buscar medicamentos, eu queria...<br />

O meu avô abriu o lenço, tirou as cinco pedrinhas, estendeu-as ao Sr.<br />

Honig e disse:<br />

– Queria que me pesasse isto.


Heinrich Böll 101<br />

Olhou amedronta<strong>do</strong> para a cara <strong>do</strong> Honig, mas como este não disse nada,<br />

não se zangou e também não perguntou nada, o meu avô disse:<br />

– É o que falta à justiça.<br />

Só agora, ao entrar na casa quente, é que o meu avô se apercebia quão<br />

molha<strong>do</strong>s estavam os seus pés. A neve tinha trespassa<strong>do</strong> os sapatos de fraca<br />

qualidade e, no bosque, os ramos tinham despeja<strong>do</strong> neve, que agora começava a<br />

derreter em cima dele. Estava cansa<strong>do</strong> e esfomea<strong>do</strong> e, de repente, ao lembrar-se<br />

de to<strong>do</strong>s os cogumelos, ervas e plantas que tinham si<strong>do</strong> pesadas na balança à<br />

qual faltavam cinco pedrinhas para a justiça, começou a chorar. Quan<strong>do</strong> o<br />

Honig, a abanar a cabeça, chamou a mulher, o meu avô lembrou-se <strong>do</strong>s<br />

antepassa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s seus pais, os seus avós, que tinham ti<strong>do</strong> de pesar to<strong>do</strong>s os<br />

seus cogumelos e plantas na balança. Sentiu-se invadi<strong>do</strong> por uma enorme onda<br />

de injustiça e começou a chorar ainda mais. Sentou-se, sem ser convida<strong>do</strong> para<br />

tal, num <strong>do</strong>s bancos da casa <strong>do</strong> Honig, e nem reparou na panqueca e na<br />

chávena de café quente que a bon<strong>do</strong>sa e gorda senhora Honig lhe tinha posto à<br />

frente. Só parou de chorar quan<strong>do</strong> o próprio Honig regressou da loja e,<br />

seguran<strong>do</strong> as pedrinhas na mão e abanan<strong>do</strong> a cabeça, disse para a mulher:<br />

– Exactamente 5 decagramas e meio.<br />

O meu avô fez a caminhada de duas horas de volta a casa, levou uma<br />

tareia, fican<strong>do</strong> em silêncio, quan<strong>do</strong> lhe perguntaram pelo café. Não disse uma<br />

única palavra. Durante toda a noite fez contas no papel onde tinha anota<strong>do</strong><br />

tu<strong>do</strong> o que tinha vendi<strong>do</strong> à actual senhora Balek de Bilgan. Quan<strong>do</strong> bateu a<br />

meia-noite, ouviram-se os petar<strong>do</strong>s <strong>do</strong> palácio, a gritaria em toda a aldeia e o<br />

barulho das relas. Toda a família se beijou e abraçou e ele disse no meio <strong>do</strong><br />

silêncio <strong>do</strong> novo ano:<br />

– Os Balek devem-me 18 marcos e 32 pfennig.<br />

Mais uma vez, pensou nas muitas crianças que viviam na aldeia, no seu<br />

irmão Fritz, que tinha apanha<strong>do</strong> muitos cogumelos, na sua irmã Ludmila.<br />

Pensou nas centenas de crianças que tinham apanha<strong>do</strong> cogumelos, ervas e<br />

plantas para os Balek, mas desta vez não chorou e contou tu<strong>do</strong> sobre a sua<br />

descoberta aos pais e irmãos.<br />

Quan<strong>do</strong>, no dia de Ano Novo, os Balek de Bilgan chegaram à igreja para a<br />

missa, já com o novo brasão, onde figurava um gigante aninha<strong>do</strong> por baixo de<br />

um pinheiro, grava<strong>do</strong> a azul e <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> no coche, viram as caras pálidas e duras<br />

das pessoas que olhavam fixamente para eles. Estavam à espera de enfeites na<br />

aldeia, de uma musiquinha pela manhã, de vivas e gritos de alegria, mas quan<strong>do</strong><br />

passaram pela aldeia, esta estava como que aban<strong>do</strong>nada. Na igreja, os<br />

semblantes páli<strong>do</strong>s das pessoas olhavam para eles, caladas e com ódio. Quan<strong>do</strong>


102<br />

Traduções<br />

o padre subiu ao púlpito para fazer a homilía, sentiu o frio das caras<br />

normalmente tão caladas e serenas, pelo que a fez a custo e regressou ao altar, a<br />

pingar suor. Quan<strong>do</strong> os Balek de Bilgan iam a sair da igreja, no fim da missa,<br />

passaram por um corre<strong>do</strong>r de semblantes cala<strong>do</strong>s e páli<strong>do</strong>s. No entanto, a<br />

jovem Senhora Balek de Bilgan parou à frente, junto ao banco das crianças,<br />

procurou a cara <strong>do</strong> meu avô, o pequeno e páli<strong>do</strong> Franz Brücher, e perguntoulhe:<br />

– Porque é que não levaste o café da tua mãe?<br />

O meu avô levantou-se e disse:<br />

– Porque a senhora me deve tanto dinheiro que dava para comprar cinco<br />

quilos de café.<br />

E tirou as cinco pedrinhas <strong>do</strong> bolso, estendeu-as à jovem senhora e disse:<br />

– Tanto quanto isto, 5 decagramas e meio, é o que falta em meio quilo da<br />

sua justiça.<br />

Ainda antes da mulher poder dizer alguma coisa, os homens e mulheres<br />

que estavam na igreja entoaram a canção: “Justiça da Terra, ó Senhor, matoute...”<br />

Enquanto os Balek estavam na igreja, Wilhelm Vohla, o caça<strong>do</strong>r furtivo,<br />

tinha entra<strong>do</strong> na pequena loja, rouba<strong>do</strong> a balança e o livro grande, grosso e<br />

encaderna<strong>do</strong> a couro, no qual estava regista<strong>do</strong> cada quilo de cogumelos, cada<br />

quilo de flores campestres, tu<strong>do</strong> o que os Balek tinham compra<strong>do</strong> na aldeia.<br />

Durante toda a tarde <strong>do</strong> dia de Ano Novo, os homens da aldeia estiveram na<br />

casa <strong>do</strong>s meus bisavôs a fazer contas. Fizeram as contas de um décimo de tu<strong>do</strong><br />

o que tinha si<strong>do</strong> compra<strong>do</strong>, mas quan<strong>do</strong> já tinham feito as contas a muitos<br />

milhares de taler, e ainda não tinham chega<strong>do</strong> ao fim, chegaram os guardas.<br />

Entraram aos tiros e a golpes de baioneta na casa <strong>do</strong> meu bisavô e foram<br />

buscar, à força, a balança e o livro. A irmã <strong>do</strong> meu avô, a pequena Ludmila, foi<br />

morta, alguns homens foram feri<strong>do</strong>s e um <strong>do</strong>s guardas foi apunhala<strong>do</strong> pelo<br />

Wilhelm Vohla, o caça<strong>do</strong>r furtivo.<br />

Não foi só na nossa aldeia que houve desacatos, também em Blaugau e<br />

Bernau, o trabalho nas fiações de linho esteve para<strong>do</strong> durante quase uma<br />

semana. Mas chegaram muitos guardas e os homens e mulheres foram<br />

ameaça<strong>do</strong>s com a prisão. Os Balek obrigaram o padre a mostrar na escola,<br />

publicamente, a balança e a provar que o ponteiro da justiça não estava erra<strong>do</strong>.<br />

Os homens e as mulheres voltaram ao trabalho na fiação de linho. Mas<br />

ninguém foi à escola para ver o padre. Este estava lá completamente só,<br />

impotente e triste, com os seus pesos, a balança e os pacotes de café.


Heinrich Böll 103<br />

As crianças voltaram a apanhar cogumelos, voltaram a apanhar tomilho,<br />

flores e dedaleira, mas to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mingos na igreja, assim que os Balek<br />

entravam, era entoada a canção: “Justiça da Terra, ó Senhor, matou-te...”, até<br />

que o juiz da comarca man<strong>do</strong>u anunciar em todas as aldeias que era proibi<strong>do</strong><br />

cantar essa canção.<br />

Os pais <strong>do</strong> meu avô tiveram de deixar a aldeia, ainda a campa da sua<br />

pequena filha estava fresca. Tornaram-se cesteiros, não paran<strong>do</strong> muito tempo<br />

em lugar nenhum, pois <strong>do</strong>ía-lhes ver como, em la<strong>do</strong> algum, o ponteiro da<br />

justiça batia certo. Atrás da carroça, que rolava lentamente pelas estradas rurais,<br />

puxavam a magra cabra, e quem passasse pela carroça por vezes ouvia como lá<br />

dentro se cantava: “Justiça da Terra, ó Senhor, matou-te...”. E quem os quisesse<br />

escutar podia ouvir a história <strong>do</strong>s Balek de Bilgan a cuja justiça faltava um<br />

décimo. Mas quase ninguém os escutava.<br />

Trad. de Álvaro Ferreira e Paula Cruz 1<br />

1 Alunos da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />

Tradução Especializada.


PONTO POR PONTO<br />

Ingrid Noll<br />

STICH FÜR STICH,1997<br />

Deve ser de família: a minha avó e a minha mãe bordaram até à exaustão.<br />

Naquele tempo, trabalhos deste género eram leva<strong>do</strong>s a sério e não eram<br />

apelida<strong>do</strong>s, com desprezo, passatempo ou terapia ocupacional. A minha avó<br />

bor<strong>do</strong>u o seu monograma em to<strong>do</strong> o seu enxoval, jogos de cama e atoalha<strong>do</strong>s,<br />

camisas de noite e roupa interior; a minha mãe era mestre em borda<strong>do</strong> inglês,<br />

tu<strong>do</strong> a branco. Talvez por essa razão tenham ambas perdi<strong>do</strong> progressivamente<br />

a visão, apesar <strong>do</strong> meu oftalmologista afirmar que isso não está comprova<strong>do</strong>.<br />

Resta saber se faz algum senti<strong>do</strong> abrir orifícios em toalhas brancas para depois<br />

os bordar ou se é necessário ter um monograma em to<strong>do</strong>s os panos de cozinha.<br />

No que me diz respeito, admito que bor<strong>do</strong> por prazer. E nunca me<br />

contentaria com orifícios brancos ou com monogramas vermelhos –<br />

simplesmente enfa<strong>do</strong>nho. Os borda<strong>do</strong>s têm de ser colori<strong>do</strong>s, cheios de fantasia<br />

e expressivos. Os meus começos foram modestos; com um motivo bordava<br />

ponto de cruz em estamenha: florzinhas em aventais, florzinhas em toalhas,<br />

florzinhas em almofadas. Devo, aliás, admitir que os borda<strong>do</strong>s ficavam um<br />

pouco simples, mas também queri<strong>do</strong>s e alegres e eu, afinal, ainda era muito<br />

jovem.<br />

Depois destes sucessos iniciais, ganhei coragem e aprendi o ponto pé de<br />

flor e o ponto cheio. Cheguei a estar horas a fio em retrosarias a colocar la<strong>do</strong> a<br />

la<strong>do</strong> linhas de retrós coloridas ou de bordar e a fazer combinações. Azul e rosapêssego,<br />

turquesa e amarelo-mel, vermelho-salmão e castanho-chocolate,<br />

pratea<strong>do</strong> e azul escuro, marfim e verde-jade. As minhas fronhas já não eram<br />

lisas nem embelezadas com rosinhas dispersas, mas sim um único mar de<br />

flores.<br />

Mas o expoente máximo é o ponto gobelim. Uma colega jugoslava<br />

mostrou-me um catálogo por onde se poderiam encomendar os motivos de<br />

quadros famosos para depois os transformar – com o trabalho de um ano –<br />

num borda<strong>do</strong> impressionante. Entusiasmei-me. O catálogo também continha<br />

motivos para trabalhos mais pequenos, tais como cobertas para banquinhos e<br />

cruzetas, que se transformavam em presentes encanta<strong>do</strong>res. Desde então,


Ingrid Noll 105<br />

nunca mais tive serões a ver televisão, passeios aos <strong>do</strong>mingos, palavras cruzadas<br />

ou idas ao cinema.<br />

Quan<strong>do</strong> chego a casa <strong>do</strong> emprego, despacho rapidamente as minhas<br />

tarefas <strong>do</strong>mésticas, coloco o meu jantar pré-prepara<strong>do</strong> no micro-ondas e, nos<br />

cinco minutos até o jantar estar aqueci<strong>do</strong>, dispo a roupa <strong>do</strong> trabalho, enfio um<br />

fato de treino e ligo o rádio. Não desperdiço tempo a fazer telefonemas,<br />

compras, leituras de jornais ou visitas à família. Deveres sociais para com<br />

colegas ou familiares, resolvo com um presente no Natal. Quan<strong>do</strong> recebem<br />

capas para livros, pequenos quadros, marca<strong>do</strong>res de livros, almofadas<br />

aromáticas ou abafa<strong>do</strong>res de bule borda<strong>do</strong>s, têm dificuldade em acreditar que<br />

investi tanto tempo na amizade. “Quanto tempo demorou a fazer isto?” é a<br />

pergunta da praxe. Eu registo tu<strong>do</strong>. Conforme o grau de parentesco ou o tipo<br />

de relação com os colegas, conto entre 20 a 400 horas de trabalho. Isto<br />

impressiona. Afirmam que não podem aceitar o meu presente nem retribuí-lo.<br />

No ano seguinte, não devo repetir, tenho de prometer. Eu sorrio<br />

enigmaticamente e digo: “Vamos ver!”.<br />

Provavelmente, nunca teria desenvolvi<strong>do</strong> uma paixão tão grande por<br />

trabalhos manuais, se, aos 17 anos, quan<strong>do</strong> os amigos da minha idade iam nadar<br />

no Verão e dançar no Inverno, não tivesse a<strong>do</strong>eci<strong>do</strong> com hepatite. Tinha de me<br />

curar, ficar em casa e descansar muito. Teria si<strong>do</strong> enfa<strong>do</strong>nho se não tivesse, por<br />

acaso, encontra<strong>do</strong> no cesto de costura da minha mãe um borda<strong>do</strong> que ela tinha<br />

inicia<strong>do</strong>. A minha mãe ficou um pouco admirada por eu mostrar interesse por<br />

jogos de paciência como este; no entanto, aju<strong>do</strong>u-me o suficiente para que esta<br />

primeira peça saísse bastante bem.<br />

De resto, mesmo depois da minha convalescença, ainda fiquei com a saúde<br />

debilitada, por assim dizer um meio quilo de gente, com pouca força e com<br />

dificuldades de relacionamento com os outros. Estudei Contabilidade com<br />

pouco entusiasmo, mas consciente <strong>do</strong>s meus deveres. Pode-se confiar em mim<br />

a cem por cento, algo que é valoriza<strong>do</strong> pelo meu chefe. Para além disso, os<br />

meus colegas sabem que devem respeitar a minha necessidade de sossego e<br />

solidão. No meu gabinete não se entra sem uma razão convincente e muito<br />

menos sem bater à porta. No fun<strong>do</strong>, têm pena de mim porque não tenho<br />

família – mas eu não sinto falta de nada, acreditem ou não. Antes pelo<br />

contrário, seria muito perturba<strong>do</strong>r para os meus serões se não me pudesse<br />

concentrar na minha verdadeira vocação.<br />

Há muito tempo que arrumei os meus primeiros quadros – motivos com<br />

cavalos, gatos e flores <strong>do</strong>s Alpes; quan<strong>do</strong> não estou a bordar um presente<br />

decorativo, mas útil, ocupo-me essencialmente com a arte clássica. Na sala de


106<br />

Traduções<br />

estar, tenho pendura<strong>do</strong>s quadros borda<strong>do</strong>s de Rembrandt, Lukas Cranach,<br />

Miguel Ângelo; no quarto de <strong>do</strong>rmir, Ma<strong>do</strong>nas de quatro séculos; na cozinha,<br />

impressionistas franceses, só para referir alguns. Infelizmente, não tenho espaço<br />

suficiente para tornar to<strong>do</strong>s os meus sonhos realidade. Seria bonito, por<br />

exemplo, pendurar o quadro “Criança com pomba” de Picasso sobre a minha<br />

mesa de jantar, mas aí já se encontram os meninos a comer uvas de Murillo e os<br />

girassóis de Van Gogh.<br />

Aliás, foi com este holandês genial que apliquei, pela primeira vez, a minha<br />

invenção favorita – melhorei as cores originais. To<strong>do</strong>s conhecem girassóis<br />

amarelo-<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, assim como castanho-murchos. Mas azuis são<br />

absolutamente invulgares, e este quadro ganhou muito com a minha ideia.<br />

Entretanto, já utilizei o meu truque mais vezes e consegui, deste mo<strong>do</strong>, efeitos<br />

novos e admiráveis. No entanto, senti algum aborrecimento durante muitos<br />

dias quan<strong>do</strong> soube <strong>do</strong>s cavalos vermelhos de Franz Marc. Não é que este<br />

sujeito teve a mesma ideia que eu, só que mais ce<strong>do</strong>!<br />

Necessitava de um apartamento maior, mas, infelizmente, isso é também<br />

um problema financeiro. Estou a pensar alugar uma garagem, apesar de não<br />

possuir nem carta de condução, nem carro. Mas há qualquer coisa de<br />

espectacular em transformar, com quadros clássicos, quatro paredes brancas<br />

num pequeno museu. Até agora, ainda não encontrei nenhuma garagem que<br />

pudesse satisfazer as minhas necessidades especiais.<br />

Mas um dia aconteceu uma alteração desagradável no meu ritmo de vida<br />

tão regular. Numa manhã de sába<strong>do</strong>, caí no supermerca<strong>do</strong>. Estava calor e eu<br />

estava com pressa, quan<strong>do</strong> subitamente vi tu<strong>do</strong> preto. Só na ambulância<br />

recuperei de novo os senti<strong>do</strong>s. O meu médico, que não consultava há muito<br />

tempo, não diagnosticou nada para além de tensões baixas, mas quis saber<br />

minuciosamente sobre o meu dia-a-dia. Foi aí que, pela primeira vez, tomei<br />

consciência de que não fazia exercício físico. São só alguns passos <strong>do</strong> meu<br />

apartamento até à paragem de autocarro e daí outros tantos até ao meu<br />

escritório. O médico aconselhou-me umas termas.<br />

Em Bad Wörishofen vivi exclusivamente para a minha saúde e não levei –<br />

isto até parece quase masoquista – nem basti<strong>do</strong>r, nem linhas e agulhas. O dia<br />

começava ainda na cama com um saco de palha coloca<strong>do</strong> na nuca tensa. Antes<br />

<strong>do</strong> pequeno-almoço, tinha de andar em água; de me submeter, de seguida, a<br />

uma massagem e de passear duas vezes por dia. Pela primeira vez na minha<br />

vida, desenvolvi um apetite saudável, de mo<strong>do</strong> que ia, às vezes, da parte da<br />

tarde, ao café. Não prestei atenção aos programas culturais porque não estava lá


Ingrid Noll 107<br />

para ouvir concertos e palestras. Além disso, levei o meu rádio e os<br />

ausculta<strong>do</strong>res porque para o meu equilíbrio psíquico é indispensável ouvir as<br />

notícias de hora a hora.<br />

Depois de três dias consciente <strong>do</strong>s meus deveres, sentou-se à minha mesa,<br />

no café sobrelota<strong>do</strong>, uma estranha. Até aí tinha evita<strong>do</strong> ao máximo o contacto<br />

com os <strong>do</strong>entes queixosos da Segurança Social e limitei-me a responder com<br />

monossílabos. Mas a senhora não desistiu da sua tagarelice animada e<br />

combinou para o dia seguinte um passeio comigo. Fomos visitar uma falcoaria.<br />

Com admiração, verifiquei que era diverti<strong>do</strong> fazer algo a <strong>do</strong>is. A partir daí,<br />

nunca mais se repetiram os meus passeios solitários pela natureza.<br />

Como já foi dito, nunca tive necessidade de ter a minha própria família.<br />

No entanto, às vezes gostaria ter ti<strong>do</strong> uma amiga. Nesse aspecto, aliás, eu tinha<br />

um cuida<strong>do</strong> excessivo e observava Gunda Mortensen com atenção reservada.<br />

O tratamento por tu dificilmente se pode anular – histórias e confissões da<br />

nossa infância ou da nossa vida particular deixam de ser propriedade nossa<br />

quan<strong>do</strong> as revelamos abertamente. Mas a Sr.ª Mortensen tinha muito para<br />

contar; nem notava que eu apenas fazia comentários simpáticos e<br />

compreensivos, excluin<strong>do</strong> a minha pessoa e o meu mun<strong>do</strong>. Também nunca fiz<br />

nenhum comentário em relação ao meu grande amor pela arte.<br />

Três semanas passaram rapidamente. A despedida não foi fácil para mim,<br />

apesar de, por outro la<strong>do</strong>, ansiar pela minha casa e pelo meu passatempo.<br />

Sentia-me com saúde e força criativa. A Gunda ficou de me escrever; não vivia<br />

muito longe e talvez um dia pudesse visitar-me. Eu gostaria muito, mas não<br />

queria ser impertinente com um convite directo.<br />

Já o dia-a-dia tinha volta<strong>do</strong> ao seu ritmo, quan<strong>do</strong> um dia recebi uma carta<br />

encanta<strong>do</strong>ra da minha conhecida de Wörishof. Escrevia essencialmente sobre si<br />

própria, a sua vida de viúva, os filhos e o primeiro neto. Era um mun<strong>do</strong> que eu<br />

desconhecia, apesar das minhas colegas me contarem coisas semelhantes.<br />

Depois de um prazo adequa<strong>do</strong>, respondi-lhe e fiquei à espera de resposta. Logo<br />

na carta seguinte ela anunciou uma visita, o que me alegrou bastante.<br />

Pode parecer estranho, mas ninguém, excepto a minha falecida mãe, tinha<br />

visita<strong>do</strong> até então o meu apartamento. Aliás, também nunca convidei vivalma<br />

para o fazer.<br />

Como ainda tinha três semanas, pude calmamente pensar como receber<br />

uma visita, o que tinha de comprar e se teria de reservar um quarto de hotel.<br />

Além disso, decidi oferecer um presente à Gunda. Claro que não poderia ser<br />

um quadro borda<strong>do</strong>, pois teria de trabalhar nele no mínimo 200 horas. Sabia<br />

demasia<strong>do</strong> bem que embaraçava os mais sensíveis, quan<strong>do</strong> gastava demasia<strong>do</strong>


108<br />

Traduções<br />

tempo na realização de uma pequena surpresa. Decidi-me por uma elegante<br />

bolsa de seda preta com uma coroa de amores-perfeitos estilo Biedermeier. O<br />

motivo foi cria<strong>do</strong> por mim, e consegui fazer uma pequena obra de arte.<br />

Nunca aprendi a cozinhar, muito menos a fazer bolos. Mas não me poupei<br />

a esforços. Fui de táxi até à melhor pastelaria para comprar seis fatias de<br />

diferentes tipos de bolos e tartes, para to<strong>do</strong>s os gostos: creme de iogurte com<br />

fruta, coroa tipo Frankfurt, torta Sacher ou de maçã. Coloquei na mesa uma<br />

tolha bordada por mim (nem possuía outras), que até então nunca tinha usa<strong>do</strong>.<br />

Pertencia ainda à minha fase inicial de flores. Flores de macieira cor-de-rosa em<br />

fun<strong>do</strong> verde-pinho, folhas verde-claras e pequenas abelhas fazem parecer a<br />

mesa de café primaveril e graciosa.<br />

A Gunda chegou pontualmente. À porta, cumprimentou-me radiosa,<br />

quase ansiosamente. O corre<strong>do</strong>r é um pouco escuro, as minhas obras aí<br />

penduradas sobressaíam pouco, não poderia esperar nenhuma reacção<br />

entusiasmada. Depois de ela ter despi<strong>do</strong> o sobretu<strong>do</strong>, indiquei-lhe a sala de<br />

estar, onde me detive ao centro, para que os quadros pudessem calmamente ter<br />

efeito sobre ela.<br />

Apesar de percorrer a sala com o olhar, não disse nada. Só quan<strong>do</strong> lhe<br />

servi café, surgiu a pergunta espantada: “Estes borda<strong>do</strong>s são to<strong>do</strong>s da sua<br />

falecida mãe?”<br />

Não respondi e coloquei-lhe no prato o meu presente, muito bem<br />

embrulha<strong>do</strong>. Ela desembrulhou-o de imediato, graças a Deus com uma<br />

curiosidade simpático-infantil. Como já disse, a bolsinha bordada por mim era<br />

uma peça de arte. E se se observasse a coroazinha de flores com atenção, era<br />

possível descobrir no centro o monograma <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> de Gunda. Ela fitou-o<br />

fixamente, tirou os óculos da carteira e certificou-se de que realmente estava a<br />

ler as iniciais G.M..<br />

Olhou para mim com um ar incrédulo: “Foi o senhor que bor<strong>do</strong>u isto, Sr.<br />

Meyer?”, perguntou quase sem voz. Eu acenei feliz e não compreen<strong>do</strong>, até hoje,<br />

porque é que ela saiu logo ao fim de dez minutos e nunca mais deu notícias.<br />

Trad. de Micaela Marques Moura e Rosa Duarte e Silva


A SOMBRA (EXCERTOS)<br />

Connie Zweig e Jeremiah Abrams<br />

THE SHADOW, 1991<br />

Como é possível haver tanta maldade no mun<strong>do</strong>?<br />

Conhecen<strong>do</strong> a humanidade, interrogo-me<br />

por que não existirá ainda mais.<br />

Woody Allen, Hannah e as suas Irmãs<br />

Em 1886, mais de uma década antes de Freud sondar as profundezas da<br />

escuridão humana, Robert Louis Stevenson teve um sonho profundamente<br />

revela<strong>do</strong>r: um homem, persegui<strong>do</strong> por um crime, engolia um certo pó e<br />

experimentava uma mudança drástica de carácter, tão drástica que ele se<br />

tornava irreconhecível. O amável e laborioso cientista Dr. Jekyll transformavase<br />

no violento e implacável Mr. Hyde, cuja maldade ia assumin<strong>do</strong> proporções<br />

cada vez maiores à medida que a história onírica se desenrolava.<br />

Stevenson desenvolveu o sonho no seu hoje famoso romance O Estranho<br />

Caso de Dr. Jekyll e de Mr. Hyde. O tema integrou-se de tal mo<strong>do</strong> na cultura<br />

popular que pensamos nele quan<strong>do</strong> ouvimos alguém dizer “Eu não estava em<br />

mim”, “Ele parecia possuí<strong>do</strong> por um demónio”, ou ainda, “Ela transformou-se<br />

numa megera”. Como refere o psicanalista junguiano John Sanford, quan<strong>do</strong><br />

uma história como esta nos toca tão fun<strong>do</strong> e nos soa tão verdadeira, é porque<br />

contém uma qualidade arquetípica – apela a uma dimensão da nossa<br />

humanidade que é universal.<br />

Cada um de nós contém um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde: uma persona<br />

agradável para uso quotidiano e um “eu” oculto e nocturno que permanece<br />

silencia<strong>do</strong> a maior parte <strong>do</strong> tempo. Emoções e comportamentos negativos tais<br />

como a raiva, a inveja, a vergonha, a falsidade, o ressentimento, a luxúria, a<br />

cobiça, as tendências suicidas e homicidas, permanecem ocultos, quase à<br />

superfície, mascara<strong>do</strong>s pelo nosso “eu” que melhor se adapta às situações. No<br />

seu conjunto, são conheci<strong>do</strong>s, na psicologia, como a sombra pessoal, que continua<br />

a ser, para a maioria das pessoas, um território in<strong>do</strong>ma<strong>do</strong> e inexplora<strong>do</strong>.<br />

A NEGAÇÃO DA SOMBRA


110<br />

Traduções<br />

Não podemos observar directamente este <strong>do</strong>mínio oculto. A sombra é,<br />

por natureza, difícil de apreender, perigosa, turbulenta e sempre escondida,<br />

como se a luz da consciência lhe roubasse a própria vida.<br />

O psicanalista junguiano James Hillman, autor de diversas obras, afirma:<br />

“O inconsciente não pode ser consciente; a Lua tem o seu la<strong>do</strong> escuro, o Sol<br />

põe-se e não pode brilhar em to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> ao mesmo tempo, e até mesmo Deus<br />

tem duas mãos. A atenção e a concentração exigem que algumas coisas<br />

permaneçam fora <strong>do</strong> campo de visão, na sombra. Não se pode olhar para<br />

ambos os la<strong>do</strong>s ao mesmo tempo.”<br />

Por esta razão, e na maior parte <strong>do</strong>s casos, vemos a sombra de forma<br />

indirecta, nas características e atitudes desagradáveis <strong>do</strong>s outros, no exterior,<br />

onde é mais seguro observá-la. Quan<strong>do</strong> reagimos intensamente a uma qualidade<br />

de um indivíduo ou grupo – tal como a preguiça, a estupidez ou a sensualidade<br />

– e nos surpreendemos pela nossa reacção de grande aversão, poderá ser a<br />

nossa sombra a manifestar-se. Nós projectamo-la, atribuin<strong>do</strong> aquela qualidade à<br />

outra pessoa, como forma inconsciente de a expulsarmos de nós, de deixarmos<br />

de a ver dentro de nós.<br />

Assim sen<strong>do</strong>, a sombra pessoal [...] é essa parte <strong>do</strong> inconsciente que<br />

complementa o ego e que representa as características que a personalidade<br />

consciente não deseja reconhecer. Por isso mesmo, rejeita-as, esquece-as e<br />

oculta-as, descobrin<strong>do</strong>-as apenas em confrontos desagradáveis com terceiros.<br />

AO ENCONTRO DA SOMBRA<br />

Apesar de não podermos contemplá-la directamente, a sombra manifestase<br />

no quotidiano. Por exemplo, encontramo-la no humor, ou seja, nas ane<strong>do</strong>tas<br />

indecentes ou na comédia grosseira, que expressam as nossas emoções<br />

escondidas, inferiores ou temidas. Quan<strong>do</strong> observamos atentamente aquilo que<br />

para nós é engraça<strong>do</strong> – como, por exemplo, alguém a escorregar numa casca de<br />

banana, ou a referência a partes <strong>do</strong> corpo tabu, descobrimos que a sombra está<br />

activa.<br />

A psicanalista inglesa Molly Tuby sugere seis outras formas segun<strong>do</strong> as<br />

quais, sem nos darmos conta, nos deparamos com a sombra to<strong>do</strong>s os dias:<br />

nos nossos sentimentos exagera<strong>do</strong>s em relação aos outros (“Nunca<br />

imaginei que ele pudesse fazer tal coisa!”, “Não sei como ela é capaz de andar<br />

com aquela roupa!”);


Connie Zweig e Jeremiah Abrams 111<br />

nas reacções negativas daqueles que nos servem de espelho (“É a<br />

terceira vez que chegas atrasa<strong>do</strong> sem me avisar.”);<br />

naquelas interacções em que exercemos continuamente o mesmo<br />

efeito perturba<strong>do</strong>r em diferentes pessoas (“O Sam e eu achamos que não foi<br />

honesto connosco.”);<br />

nos nossos actos impulsivos e inadverti<strong>do</strong>s (“Bem… não era isto<br />

que queria dizer.”);<br />

em situações nas quais nos sentimos humilha<strong>do</strong>s (“Sinto-me tão<br />

mal com a forma como ele me trata.!”);<br />

na nossa raiva exagerada relativamente aos erros <strong>do</strong>s outros<br />

(“Parece que ela nunca consegue fazer o trabalho a horas”, “Francamente, ele<br />

deixou que o seu peso se descontrolasse completamente.”).<br />

É nos momentos em que somos invadi<strong>do</strong>s por fortes sentimentos de<br />

vergonha ou raiva, ou em que achamos estar o nosso comportamento a<br />

ultrapassar os limites, que a sombra irrompe de forma inesperada.<br />

Normalmente, regride com a mesma rapidez, porque o encontro com a sombra<br />

pode ser uma experiência assusta<strong>do</strong>ra e chocante para a nossa auto-imagem.<br />

Por este motivo, podemos rapidamente enveredar pela negação, ten<strong>do</strong><br />

dificuldade de nos apercebermos das fantasias criminosas, <strong>do</strong>s pensamentos<br />

suicidas ou das invejas embaraçosas que poderão revelar um pouco <strong>do</strong> nosso<br />

la<strong>do</strong> oculto. O já faleci<strong>do</strong> psiquiatra R. D. Laing descreveu poeticamente a<br />

atitude de negação da mente:<br />

O alcance daquilo que pensamos e fazemos<br />

está limita<strong>do</strong> por aquilo em que deixamos de reparar.<br />

E porque não reparamos<br />

que não reparamos<br />

é pouco o que podemos fazer para mudar<br />

até que reparamos<br />

como o deixar de reparar<br />

molda os nossos pensamentos e actos.<br />

Se a negação persistir, podemos não reparar que deixamos de reparar,<br />

como refere Laing.<br />

A depressão pode também ser um confronto paralisante com o la<strong>do</strong><br />

oculto. A exigência interna no senti<strong>do</strong> de uma descida ao mun<strong>do</strong> subterrâneo<br />

pode ser anulada por preocupações externas, tais como a necessidade de<br />

trabalhar horas extra, as distracções ou os medicamentos antidepressivos, que


112<br />

Traduções<br />

abafam os nossos sentimentos de desespero. Neste caso, não chegamos a<br />

compreender o propósito da nossa melancolia.<br />

Encontrarmos a sombra requer que abrandemos o ritmo de vida, que<br />

prestemos atenção aos indícios que o corpo nos fornece, e nos permitamos<br />

estar sozinhos, de forma a assimilarmos as mensagens enigmáticas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

interior.<br />

A SOMBRA COLECTIVA<br />

Hoje em dia, defrontamo-nos com o la<strong>do</strong> escuro da natureza humana<br />

todas as vezes que abrimos um jornal ou ouvimos um noticiário. Os efeitos<br />

mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na espantosa mensagem diária<br />

<strong>do</strong>s meios de comunicação, transmitida para toda a nossa moderna aldeia global<br />

electrónica. O mun<strong>do</strong> tornou-se palco da sombra colectiva.<br />

A sombra colectiva – a maldade humana – olha-nos fixamente de quase<br />

to<strong>do</strong>s os quadrantes: salta <strong>do</strong>s títulos <strong>do</strong>s jornais; vagueia pelas nossas ruas e<br />

<strong>do</strong>rme sem abrigo no vão das portas; esconde-se nas lojas pornográficas;<br />

desfalca as nossas contas bancárias; corrompe políticos ávi<strong>do</strong>s de poder e<br />

perverte o sistema judiciário; conduz exércitos invasores através de densas<br />

florestas e ári<strong>do</strong>s desertos; vende armas a líderes enlouqueci<strong>do</strong>s e entrega os<br />

lucros obti<strong>do</strong>s a rebeldes reaccionários; despeja, por canos ocultos, a poluição<br />

nos nossos rios e oceanos e envenena, com pesticidas invisíveis, os nossos<br />

alimentos.<br />

Enquanto a maior parte <strong>do</strong>s indivíduos e <strong>do</strong>s grupos vive de forma<br />

socialmente aceitável, outros parecem querer viver uma forma de vida que a<br />

sociedade repudia. Quan<strong>do</strong> eles se tornam objecto de projecções negativas por<br />

parte <strong>do</strong>s grupos, a sombra colectiva exprime-se na busca de bodes expiatórios,<br />

no racismo ou na criação de inimigos. Para os americanos anticomunistas, o<br />

império <strong>do</strong> mal é a U.R.S.S.. Para os muçulmanos, os E.U.A. são o grande Satã.<br />

Para os nazis, os judeus são vermes bolcheviques. Para os ascéticos monges<br />

cristãos, as bruxas têm um pacto com o Diabo. Para os defensores sul-africanos<br />

<strong>do</strong> apartheid, ou para os membros americanos <strong>do</strong> Ku Klux Klan, os negros são<br />

sub-humanos, indignos <strong>do</strong>s direitos e <strong>do</strong>s privilégios <strong>do</strong>s brancos.<br />

O poder hipnótico e a natureza contagiante destas emoções fortes são<br />

evidentes na disseminação universal da perseguição racial, <strong>do</strong>s conflitos<br />

religiosos e das tácticas de busca de bodes expiatórios. Deste mo<strong>do</strong>, os seres<br />

humanos tendem a desumanizar os outros como forma de assegurar que são


Connie Zweig e Jeremiah Abrams 113<br />

eles os únicos detentores da verdade – e que matar o inimigo não significa que<br />

estejam a matar seres humanos como eles próprios.<br />

Ao longo da história, a sombra foi surgin<strong>do</strong> através da imaginação<br />

humana, sob a forma de monstro, dragão, de Frankenstein, de baleia branca,<br />

extraterrestre ou homem tão vil que não nos poderíamos identificar com ele.<br />

Revelar o la<strong>do</strong> oculto da natureza humana é um <strong>do</strong>s propósitos principais da<br />

arte e da literatura.<br />

Ao utilizar a arte e os media, incluin<strong>do</strong> a propaganda política, para<br />

imaginarmos algo diabólico ou demoníaco, tentamos ganhar poder sobre esse<br />

algo, para assim quebrarmos o seu feitiço. Este facto pode ajudar-nos a explicar<br />

como nos deixamos fascinar com as histórias violentas que nos são contadas<br />

pelos media, sobre fanáticos religiosos ou agita<strong>do</strong>res que incitam à guerra.<br />

Repeli<strong>do</strong>s e atraí<strong>do</strong>s pela violência e pelo caos <strong>do</strong> nosso mun<strong>do</strong>,<br />

transformamos, nas nossas mentes, determinadas pessoas ou grupos em<br />

detentores <strong>do</strong> mal e inimigos da civilização.<br />

O la<strong>do</strong> oculto não é uma aparição evolutiva recente, nem resulta<strong>do</strong> da<br />

civilização e da educação. Ele tem as suas raízes numa sombra biológica que se<br />

encontra nas nossas próprias células. Os nossos antepassa<strong>do</strong>s animais, apesar<br />

de tu<strong>do</strong>, sobreviveram lutan<strong>do</strong> encarniçadamente. O monstro em cada um de<br />

nós está bem vivo – só que aprisiona<strong>do</strong> a maior parte das vezes.<br />

CONHECE-TE A TI MESMO<br />

No templo de Apolo, em Delfos, construí<strong>do</strong> na encosta <strong>do</strong> monte Parnaso<br />

pelos Gregos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> clássico e <strong>do</strong> qual já nada resta, os sacer<strong>do</strong>tes<br />

gravaram na pedra duas famosas inscrições, <strong>do</strong>is preceitos que ainda hoje<br />

mantêm, para nós, um significa<strong>do</strong> profun<strong>do</strong>. O primeiro, “Conhece-te a ti<br />

mesmo”, tem ampla aplicação neste trabalho. Conhece tu<strong>do</strong> sobre ti mesmo,<br />

aconselhava o sacer<strong>do</strong>te <strong>do</strong> deus da luz, o que se poderá traduzir como:<br />

conhece especialmente o la<strong>do</strong> oculto de ti mesmo.<br />

Trad. de Liliana Cruz 1<br />

1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />

Tradução Especializada.


AS FLORES<br />

Alice Walker<br />

THE FLOWERS, 1981<br />

Nunca houve dias tão bonitos como estes, pensava Myop, enquanto<br />

saltitava alegremente <strong>do</strong> galinheiro para a pocilga e daí para o fumeiro. O ar<br />

tinha uma densidade que lhe contraía o nariz. A colheita <strong>do</strong> milho e <strong>do</strong> algodão,<br />

<strong>do</strong> amen<strong>do</strong>im e da abóbora, faziam de cada dia uma surpresa <strong>do</strong>urada que lhe<br />

percorria os maxilares com leves arrepios de excitação.<br />

Myop levava consigo um pequeno pau no<strong>do</strong>so, com que batia à toa nas<br />

galinhas de que tanto gostava, e criou o ritmo de uma música na vedação que<br />

cercava a pocilga. Sentia-se leve e alegre sob o sol quente. Tinha dez anos e,<br />

para ela, nada mais existia a não ser a sua canção, o pau aperta<strong>do</strong> na mão<br />

morena e o tat-de-ta-ta-ta <strong>do</strong> acompanhamento.<br />

Viran<strong>do</strong> as costas às tábuas velhas da cabana de rendeiro da família, Myop<br />

caminhou ao longo da vedação que ia até ao regato forma<strong>do</strong> pela nascente. Em<br />

re<strong>do</strong>r da nascente, onde a família ia buscar água para beber, cresciam fetos<br />

pratea<strong>do</strong>s e flores silvestres. Os porcos foçavam ao longo das margens pouco<br />

profundas. Myop observava as minúsculas bolhas brancas que rompiam a fina<br />

camada de terra preta e a água que silenciosamente brotava e corria ao longo <strong>do</strong><br />

regato.<br />

Já tinha explora<strong>do</strong> a mata atrás da casa em diversas ocasiões. Muitas vezes,<br />

no final <strong>do</strong> Outono, a mãe levava-a a apanhar frutos secos entre as folhas<br />

caídas. Hoje, seguia o seu próprio caminho, saltitan<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> para o outro,<br />

manten<strong>do</strong>-se vagamente atenta às cobras. Encontrou, para além de diversos<br />

tipos de folhas e de fetos comuns, ainda que bonitos, um braça<strong>do</strong> de curiosas<br />

flores azuis com saliências aveludadas e um arbusto de sweetsuds, coberto de<br />

rebentos castanhos aromáticos.<br />

Pelo meio-dia, com os braços carrega<strong>do</strong>s de raminhos <strong>do</strong>s seus acha<strong>do</strong>s,<br />

havia-se afasta<strong>do</strong> quilómetro e meio ou mais de casa. Já noutras ocasiões<br />

estivera assim tão longe, no entanto, a estranha singularidade da terra não a<br />

tornava tão agradável como nas suas habituais deambulações. O pequeno<br />

abrigo onde se encontrava parecia sombrio. O ar era húmi<strong>do</strong>, o silêncio denso e<br />

profun<strong>do</strong>.


Edgar Allan Poe 115<br />

Myop começou a voltar para trás; a regressar à tranquilidade da manhã.<br />

Foi então que o pisou em cheio nos olhos. O calcanhar ficou preso na ponte<br />

esmigalhada entre a testa e o nariz e, sem me<strong>do</strong>, baixou-se rapidamente para se<br />

libertar. Foi só quan<strong>do</strong> viu o seu esgar nu que soltou um pequeno grito de<br />

surpresa.<br />

Fora um homem alto. Ocupava um grande espaço <strong>do</strong>s pés ao pescoço. A<br />

cabeça jazia ao la<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> afastou as folhas e as camadas de terra e entulho,<br />

Myop reparou que ele tivera dentes alvos e grandes, to<strong>do</strong>s racha<strong>do</strong>s ou<br />

parti<strong>do</strong>s, de<strong>do</strong>s longos e ossos muito compri<strong>do</strong>s. Todas as roupas haviam<br />

apodreci<strong>do</strong>, à excepção de alguns fios de ganga azul das calças de peitilho, cujas<br />

fivelas se tinham torna<strong>do</strong> verdes.<br />

Myop observou o local com interesse. Muito perto <strong>do</strong> sítio onde pisara a<br />

cabeça, havia uma rosa brava. Enquanto a colhia para juntá-la ao ramo, reparou<br />

num pequeno montículo, um círculo, à volta da raiz da rosa. Eram os restos de<br />

um nó, um pequeno fragmento de corda de ara<strong>do</strong>, que agora se misturava<br />

inofensivamente na terra. Em torno <strong>do</strong> ramo saliente de um imenso carvalho<br />

estava agarra<strong>do</strong> outro pedaço. Gasto, apodreci<strong>do</strong>, desbota<strong>do</strong> e esfarrapa<strong>do</strong> –<br />

quase ausente – mas ro<strong>do</strong>pian<strong>do</strong> sem descanso ao sabor da brisa. Myop depôs<br />

as flores.<br />

E o Verão terminou.<br />

Trad. de Sofia Morais d‟Almeida 1<br />

1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />

Tradução Especializada.


AQUILO QUE OS RODEAVA (EXCERTO)<br />

Marilyn Krysl<br />

THE THING AROUND THEM, 1998<br />

Foi por causa <strong>do</strong> rapaz arrasta<strong>do</strong> pelo jipe que Vasuki deu a Nadesan o<br />

dinheiro para comprar o bilhete. Quan<strong>do</strong> foi ter com o seu irmão, com as notas<br />

enfiadas no sari, não sabia falar a língua <strong>do</strong>s países coloniza<strong>do</strong>res nem conhecia<br />

ninguém que já lá tivesse i<strong>do</strong>. Sabia que a determinada altura a ilha fora ocupada<br />

por poderes estrangeiros, mas não tinha a certeza por que forças ou quan<strong>do</strong>.<br />

Que os portugueses tinham fica<strong>do</strong> lá até serem expulsos pelos holandeses; que<br />

os holandeses tinham si<strong>do</strong> expulsos pelos britânicos e que os britânicos tinham<br />

concedi<strong>do</strong> a independência à ilha quan<strong>do</strong> o poder da Coroa a isso foi força<strong>do</strong><br />

pelas suas outras colónias – estes eram factos que nunca ninguém lhe contara.<br />

E mesmo que estas coisas lhe tivessem si<strong>do</strong> narradas por um professor ou<br />

referidas por algum político na sua campanha para o Parlamento, não seriam<br />

factos que lhe parecessem importantes. O que ela sabia sobre os países<br />

coloniza<strong>do</strong>res era que neles havia abundância, de tal forma que até os mais<br />

pobres viviam bem. As pessoas viviam em paz umas com as outras e passeavam<br />

sem me<strong>do</strong> nas ruas das cidades e nas estradas que as ligavam.<br />

Ela vira nessa mesma tarde como a cara <strong>do</strong> seu filho ficara alegre quan<strong>do</strong><br />

ela lhe deu grãos para alimentar as galinhas. Tivera prazer em ver a satisfação de<br />

Poniah e pensou então no rapaz arrasta<strong>do</strong> pelo jipe.<br />

Vasuki vira o rapaz no recreio da escola com uma pá de críquete na mão.<br />

Depois, no funeral, Vasuki aproximou-se da mãe <strong>do</strong> rapaz e tocou a sua mão de<br />

pele fina e seca como papel. Tornou-se assim claro para Vasuki quem ela<br />

própria era: era a mãe de Mannika, era a mãe de Poniah. Tinha uma menina,<br />

tinha um menino e o seu menino iria crescer e ter a mesma idade que o rapaz<br />

arrasta<strong>do</strong> pelo jipe.<br />

Ele tinha olhos tími<strong>do</strong>s e um sorriso como a visão de um papagaio a<br />

irromper subitamente por entre as folhas de uma bananeira. Mas os solda<strong>do</strong>s<br />

insistiam que o rapaz espiava ao serviço <strong>do</strong>s rebeldes. Ela imaginava o cenário<br />

como uma neblina, cujos contornos oscilavam da mesma forma que as<br />

memórias da infância brilham com uma luz trémula sem limite. A mãe <strong>do</strong> rapaz<br />

fora obrigada a ver os solda<strong>do</strong>s atirar o filho para o chão. Prenderam-lhe um pé<br />

ao pára-choques traseiro <strong>do</strong> jipe. Um pé, preso pelo tornozelo. Depois,


Marilyn Krysl 117<br />

entraram para o jipe e arrancaram, gritan<strong>do</strong> naquela língua que ninguém<br />

compreendia.<br />

Quan<strong>do</strong> Vasuki pensava na sua infância, imaginava-se dentro de uma<br />

esfera tremeluzente, um globo de ar verde. O seu corpo era, ele próprio, um<br />

pequeno globo ténue, amplo e aberto, fundin<strong>do</strong>-se com o ar, com a folhagem,<br />

com as águas da lagoa e com os outros corpos moven<strong>do</strong>-se com ela através<br />

daquela luz verde. Os seus pais tinham-na embala<strong>do</strong> da mesma forma que um<br />

barco é embala<strong>do</strong> pela água e foi como se os três, e tu<strong>do</strong> aquilo que os rodeava,<br />

fossem o corpo de um só animal deslizan<strong>do</strong> da margem até à água,<br />

deslocan<strong>do</strong>-se ao sabor das ondas da lagoa, que se moviam com o mar e com as<br />

correntes <strong>do</strong> ar.<br />

Vasuki e Sri haviam corri<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> para o outro com os irmãos,<br />

imbuí<strong>do</strong>s daquela luz verde. Nadesan era o segun<strong>do</strong> filho. Era o palhaço,<br />

imitan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> aquilo que era ridículo nos adultos. Por vezes, imitava o me<strong>do</strong> e<br />

o devaneio de Vasuki. Então, ela atirava-lhe mãos cheias de areia. Ele corria,<br />

baixan<strong>do</strong>-se e protestan<strong>do</strong>. Cobria a cabeça com as mãos num desespero<br />

simula<strong>do</strong> até que ela também acabasse por rir.<br />

Ela a<strong>do</strong>rava Nadesan pela sua alegria. Com o mais velho, Sinniah, sentia-se<br />

como se fosse a sua filha querida. Ouvia-o dizer o seu nome em voz alta:<br />

Vasuki! O timbre da voz dele fazia com que o som <strong>do</strong> seu nome parecesse<br />

ouro. Sinniah encarregava-se de tu<strong>do</strong>, planeava passeios até à sombra das<br />

árvores <strong>do</strong> fogo, ensinava-as a embalar a comida em folhas de bananeira e a<br />

trazer as suas garrafas-termo. Quan<strong>do</strong> Vasuki e Sri discutiam, ele acalmava-as<br />

dizen<strong>do</strong>: – Não puxes o cabelo da tua irmã. Sejam boas uma para a outra.<br />

Ensinava-lhes os nomes <strong>do</strong>s pássaros e as propriedades <strong>do</strong> alari. Podiam colher<br />

as flores amarelas, mas jamais deveriam tocar nas sementes venenosas.<br />

Vasuki observava Sinniah enquanto ele se debruçava com entusiasmo e<br />

concentração sobre os seus livros. Dizia que iria tomar conta de to<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong><br />

os pais fossem velhos. – Arranjar-vos-ei mari<strong>do</strong>s formosos – dizia às irmãs. –<br />

Trabalharei para que os vossos <strong>do</strong>tes sejam abundantes.<br />

Na escola, as regras eram claras: uma língua única. Vasuki imaginava-a<br />

como a língua universal, falada pelos povos de to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Imaginou isto<br />

até ao dia em que o exército se instalou na cidade. O exército viera para<br />

proteger o povo <strong>do</strong>s rebeldes. O Presidente da Câmara dizia que os solda<strong>do</strong>s,<br />

embora falassem uma língua que ninguém compreendia, eram amistosos. Nem<br />

o pai nem a mãe de Vasuki tinham de facto visto os solda<strong>do</strong>s, embora Sinniah<br />

tivesse espreita<strong>do</strong> para dentro de um camião quan<strong>do</strong> este <strong>do</strong>brava uma esquina.<br />

Nele iam muitos homens em pé, junto uns aos outros, vesti<strong>do</strong>s com uniformes


118<br />

Traduções<br />

verde-escuro e cada um com uma espingarda. Nadesan fora com os amigos<br />

para o campo de criquete ver os solda<strong>do</strong>s marchar em formatura. Ou teria si<strong>do</strong><br />

um exercício que ele viu na televisão, na loja de electro<strong>do</strong>mésticos? Eles nem<br />

sempre acreditavam nas histórias de Nadesan, embora até a mãe e o pai se<br />

rissem quan<strong>do</strong> ele imitava os exercícios e os movimentos abruptos e mecânicos<br />

<strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s.<br />

Naquela altura, as noites eram como uma ponte de luz onde o ar se<br />

suavizava e o azul mergulhava no negro. O pai pegava em Sri, sentava-a no seu<br />

colo e dava-lhe um beijo na face. Sri ria-se pelo prazer de estar no centro da sua<br />

ternura atenciosa. O cheiro a lima flutuava na humidade quente. E, então, lá<br />

apareceram os solda<strong>do</strong>s – quantos? – amontoa<strong>do</strong>s à entrada.<br />

Um <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s falou com o pai naquela outra língua. Fez um gesto<br />

para o pai os acompanhar. O pai tirou Sri <strong>do</strong> colo e levantou-se. Vasuki<br />

percebeu que o pai tinha de alguma forma irrita<strong>do</strong> aqueles homens. Sentiu-se<br />

envergonhada. O seu pai devia ter feito algo de indigno. Mas ela também<br />

receava por ele. Foi como se algo de estranho tivesse entra<strong>do</strong> em casa, algo<br />

escuro e inconstante que nem os solda<strong>do</strong>s conseguiam ver. Ela tentava<br />

encontrar a sua forma no ar, mas os solda<strong>do</strong>s irromperam através <strong>do</strong> verde<br />

tremeluzente, arrancan<strong>do</strong>-o. O solda<strong>do</strong> que falara gritou uma ordem. Outros<br />

<strong>do</strong>is avançaram, agarraram o pai e arrastaram-no pela porta e pelo caminho fora<br />

até ao jipe.<br />

Quan<strong>do</strong> alguém nos é arranca<strong>do</strong> daquela forma, é como se rasgassem o<br />

globo de ar verde para o levar! Nessa mesma noite, outros <strong>do</strong>is homens que<br />

cortavam lenha com o pai de Vasuki foram também eles presos. Não tinham<br />

apareci<strong>do</strong> quaisquer rebeldes no local onde cortavam lenha, e nenhum deles<br />

jamais imaginaria que o facto de estarem a trabalhar na floresta, onde se dizia<br />

que os rebeldes andavam, poderia levantar suspeitas sobre si próprios. Era<br />

verdade que os rebeldes tinham primeiro ergui<strong>do</strong> um acampamento no norte e,<br />

mais tarde, haviam-se muda<strong>do</strong> para cá, mas estes acampamentos ficavam no<br />

interior, longe da cidade. Eles cobravam impostos porque, afinal, era mesmo<br />

necessário. Lutavam pelo Eelam, que era o paraíso na terra. Os guerrilheiros<br />

visitavam as escolas das cidades e aldeias circundantes para recrutar jovens<br />

rapazes. Às vezes, eles queriam lenha ou então um saco de arroz, mas<br />

normalmente pagavam. Uma vez vieram três jovens de farda às manchas pedir<br />

gasolina. Quan<strong>do</strong> a mãe de Vasuki disse que não tinha, os três jovens foram-se<br />

embora.<br />

– Quem são eles vesti<strong>do</strong>s com aquela roupa esquisita? – perguntou Vasuki.


Marilyn Krysl 119<br />

– Eram só uns homens que precisavam de gasolina – respondeu a mãe. –<br />

Traz-me um balde de água <strong>do</strong> poço.<br />

O sargento que estava no acampamento era cortês, sempre que a mãe de<br />

Vasuki e as outras mulheres lá iam informar-se. Ele falava a língua delas,<br />

convidava-as a sentar-se e ouvia-as enquanto elas faziam os seus apelos. Depois<br />

dizia-lhes que tinha muita pena, mas que o exército não sabia <strong>do</strong> paradeiro <strong>do</strong>s<br />

mari<strong>do</strong>s. Assegurava-lhes, todavia, que se preocupava com o bem-estar deles,<br />

pois iriam ser feitos inquéritos.<br />

A mãe de Vasuki ouvira dizer que homens <strong>do</strong> norte haviam si<strong>do</strong> leva<strong>do</strong>s,<br />

tal como o seu mari<strong>do</strong>. Alguns regressaram, outros não. Mas ela não acreditava<br />

nestes boatos. Mesmo no momento em que levaram o seu mari<strong>do</strong>, ela<br />

continuou a crer que ele não era um daqueles que não iria ser liberta<strong>do</strong>.<br />

Houvera algum engano e ela acreditava que o sargento o iria resolver.<br />

Enquanto esperava, o exército erguia mais acampamentos no sul da cidade.<br />

Foi então que a polícia prendeu seis pesca<strong>do</strong>res. Quatro deles foram<br />

liberta<strong>do</strong>s no dia seguinte. Os outros <strong>do</strong>is foram leva<strong>do</strong>s ao exército para serem<br />

interroga<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> o primo <strong>do</strong> seu mari<strong>do</strong> foi preso numa cidade mais a<br />

norte, a mãe de Vasuki não contou nada aos filhos. Disse-lhes que o primo<br />

tinha arranja<strong>do</strong> trabalho no Médio Oriente e fora, por esse motivo, apanhar um<br />

avião à capital. Vasuki escutava. A mãe não lhe pareceu muito satisfeita com<br />

esta notícia, pois desde que o pai fora preso, uma certa ansiedade pairava sobre<br />

a sua existência.<br />

Numa tarde em que a mãe fora ao escritório <strong>do</strong> sargento, Vasuki chegou a<br />

casa da escola e começou a comer uma tigela de pittu. A mãe passou pelo<br />

portão, pegou numa flor alari, entrou e colocou-a em cima da mesa. A luz <strong>do</strong><br />

sol caía oblíqua sobre a flor. A cara da mãe parecia encovada.<br />

– O que tem? – perguntou Vasuki. – Alguém lhe bateu?<br />

– Não – respondeu a mãe. Vasuki lembrou-se <strong>do</strong> padre católico que se<br />

oferecera para interceder por eles junto <strong>do</strong> sargento, apesar de a família dela<br />

não ser católica. Ele usou uma expressão que Vasuki nunca ouvira antes: os<br />

desapareci<strong>do</strong>s.<br />

Vasuki conseguia ver a lagoa da entrada, com um único barco a balouçar.<br />

Embora não visse nada fora <strong>do</strong> normal, parecia que este barco, que permanecia<br />

inocentemente na água, corria perigo. Algo poderia arrancar o barco da água e,<br />

num segun<strong>do</strong>, despedaçá-lo. Quan<strong>do</strong> Vasuki se voltou, a luz havia-se movi<strong>do</strong>, a<br />

flor estava agora na sombra. O rosto da sua mãe abria caminho para um lugar<br />

longínquo, onde alguém poderia facilmente perder-se.


120<br />

Traduções<br />

Trad. de Ana Maria Salgueiro Barbosa 1<br />

1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />

Tradução Especializada.


O GATO PRETO<br />

Edgar Allan Poe<br />

THE BLACK CAT, 1843<br />

Por mais extravagante, embora comezinha, que possa ser a história que<br />

estou prestes a rabiscar, não espero nem peço que acreditem. De facto, eu seria<br />

louco se esperasse que o fizessem num caso em que os meus senti<strong>do</strong>s rejeitam a<br />

própria evidência. Porém, louco não sou – e de certeza que não sonho. Mas<br />

amanhã morro, e hoje alivio a minha alma. O meu propósito é esclarecer<br />

sucintamente e sem comentários perante o mun<strong>do</strong> uma série de simples<br />

acontecimentos caseiros. Nas suas consequências, estes acontecimentos<br />

aterrorizaram – torturaram – destruíram-me. Contu<strong>do</strong>, não tentarei dissecá-los.<br />

Para mim, representaram nada menos <strong>do</strong> que o Horror – para muitos parecerão<br />

menos terríveis <strong>do</strong> que grotescos. Futuramente, talvez surja alguma inteligência<br />

que reduzirá o meu fantasma a algo comum – alguma inteligência mais calma,<br />

mais lógica e, de longe, menos excitável <strong>do</strong> que a minha, que perceba que as<br />

circunstâncias que eu relato com terror, nada mais foram <strong>do</strong> que uma sucessão<br />

vulgar de causas e efeitos naturais.<br />

Desde a minha infância, era conheci<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>cilidade e humanidade <strong>do</strong><br />

meu carácter. A ternura <strong>do</strong> meu coração era tão evidente que acabava por ser<br />

alvo de brincadeira <strong>do</strong>s meus companheiros. Gostava especialmente de animais<br />

e os meus pais permitiam-me ter uma grande variedade de animais de<br />

estimação. Passava com eles grande parte <strong>do</strong> tempo, e nunca fui tão feliz como<br />

quan<strong>do</strong> os alimentava ou acariciava. Este carácter peculiar cresceu comigo e,<br />

quan<strong>do</strong> adulto, tornei-o numa das minhas fontes de prazer. Aos que já nutriram<br />

afecto por um cão fiel e sagaz não preciso de me dar ao trabalho de explicar a<br />

natureza ou a intensidade da satisfação que se tem. Há algo no amor<br />

desinteressa<strong>do</strong> e no auto-sacrifício de um animal, que toca directamente o<br />

coração <strong>do</strong>s que tiveram ocasiões para testar a amizade miserável e a frágil<br />

fidelidade <strong>do</strong> mero Homem.<br />

Casei-me ce<strong>do</strong>, e fiquei contente por encontrar na minha esposa um<br />

temperamento semelhante ao meu. Reparan<strong>do</strong> na minha inclinação por animais<br />

<strong>do</strong>mésticos, ela não perdia uma oportunidade de conseguir os de espécie mais<br />

agradável. Tínhamos pássaros, peixes <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, um cão inteligente, coelhos,<br />

um pequeno macaco e um gato.


122<br />

Traduções<br />

Este último era um animal extraordinariamente grande e bonito, to<strong>do</strong><br />

preto e de uma sagacidade espantosa. Referin<strong>do</strong>-se à sua inteligência, a minha<br />

mulher, que não possuía qualquer réstia de superstição no coração, fazia<br />

frequentes alusões à antiga crença popular de que to<strong>do</strong>s os gatos pretos eram<br />

bruxas disfarçadas. Ela não se referia com muita seriedade a isso – e, aliás, só<br />

menciono este facto porque me ocorreu agora mencioná-lo.<br />

Pluto – era este o nome <strong>do</strong> gato – era o meu animal de estimação<br />

predilecto e companheiro de brincadeiras. Só eu o alimentava e ele seguia-me<br />

para to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> em casa. Era mesmo com dificuldade que o impedia de me<br />

seguir pelas ruas.<br />

A nossa amizade durou assim alguns anos, durante os quais o meu<br />

temperamento e carácter sofreram uma alteração radical para pior, provocada<br />

por aquele Demónio Incontrola<strong>do</strong> que me usou (fico embaraça<strong>do</strong> só de o<br />

confessar). Tornava-me dia a dia mais taciturno, mais irritável, mais indiferente<br />

aos sentimentos <strong>do</strong>s outros. Sofria ao usar uma linguagem mais intempestiva<br />

com a minha esposa, com quem cheguei mesmo a ser violento.<br />

Os meus bichos, é claro, também não deixaram de sentir a alteração <strong>do</strong><br />

meu carácter. Para além de os negligenciar, também os maltratava. Quanto a<br />

Pluto, ainda tinha consideração suficiente por ele, o que me impedia de o<br />

maltratar, porém não tinha quaisquer remorsos em maltratar os coelhos, o<br />

macaco, ou até mesmo o cão quan<strong>do</strong>, por acidente ou por afecto, se<br />

atravessavam no meu caminho. Mas a <strong>do</strong>ença crescia cá dentro – que outra<br />

<strong>do</strong>ença se compara ao Álcool! – e, aos poucos, até mesmo o Pluto, que estava a<br />

ficar velho e, consequentemente, se tornara rabugento – começou a sentir os<br />

efeitos <strong>do</strong> meu vil temperamento.<br />

Uma noite, quan<strong>do</strong> regressava a casa, muito intoxica<strong>do</strong> de um <strong>do</strong>s meus<br />

passeios assombra<strong>do</strong>s pela cidade, tive a impressão que o gato evitava a minha<br />

presença. Apanhei-o, e ele, assusta<strong>do</strong> com a minha violência, ferrou ao de leve a<br />

minha mão. A fúria <strong>do</strong> demónio possuiu-me instantaneamente. Já não me<br />

reconhecia. A minha alma original parecia ter voa<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu corpo e uma<br />

perversidade mais <strong>do</strong> que diabólica, ateada pelo álcool, fez vibrar todas as fibras<br />

<strong>do</strong> meu corpo. Tirei <strong>do</strong> bolso <strong>do</strong> casaco um canivete, abri-o, agarrei o pobre<br />

animal pela garganta e, deliberadamente, arranquei da sua órbita um <strong>do</strong>s olhos!<br />

Eu coro, eu ar<strong>do</strong>, eu estremeço, só de escrever tamanha atrocidade.<br />

Quan<strong>do</strong> a razão regressou pela manhã – depois de se terem dissipa<strong>do</strong> os<br />

fumos de uma noite de deboche – tive uma sensação misto de terror e de<br />

remorsos pelo crime <strong>do</strong> qual era culpa<strong>do</strong>, mas que não passou de um<br />

sentimento frouxo e equívoco e a alma permaneceu inalterável. Mergulhei


Edgar Allan Poe 123<br />

novamente nos excessos e, rapidamente, afoguei no vinho toda a memória <strong>do</strong><br />

que acontecera.<br />

Entretanto, o gato recuperara lentamente. A órbita <strong>do</strong> olho perdi<strong>do</strong> tinha<br />

um aspecto horroroso, é verdade, mas ele parecia não ter mais <strong>do</strong>res. Começou<br />

a andar pela casa normalmente, mas, como seria de esperar, fugia cheio de<br />

terror à minha aproximação. Ainda me restava um pouco <strong>do</strong> meu antigo<br />

coração para que sofresse com a aversão evidente que o animal me tinha,<br />

quan<strong>do</strong> outrora me havia ama<strong>do</strong>. Porém, este sentimento depressa deu lugar à<br />

irritação. Depois, para me perder por completo, veio o espírito da<br />

PERVERSIDADE. A este espírito, a filosofia não presta a devida atenção.<br />

Contu<strong>do</strong>, duvi<strong>do</strong> mais que a minha alma vive <strong>do</strong> que acredito que a<br />

perversidade seja um <strong>do</strong>s impulsos primitivos <strong>do</strong> coração humano – uma das<br />

faculdades ou sentimentos primários indivisíveis que guiam o carácter <strong>do</strong><br />

Homem. Quem não deu por si, vezes sem conta, a cometer acções más ou<br />

estúpidas, por nenhuma outra razão a não ser a de saber que não o deveria<br />

fazer? Não temos nós uma inclinação perpétua, mesmo quan<strong>do</strong> estamos no<br />

nosso perfeito juízo, para violar o que é Lei, simplesmente porque a<br />

compreendemos como tal? Este espírito de perversidade, digo eu, foi a minha<br />

queda final. Foi este insondável anseio da própria alma em se vexar, em<br />

violentar a sua própria natureza, em fazer o mal pelo mal, foi este espírito que<br />

me levou a prosseguir acaban<strong>do</strong> por provocar uma ferida maior no inofensivo<br />

animal. Uma manhã, a sangue frio, pus-lhe um nó em torno <strong>do</strong> pescoço e<br />

enforquei-o no ramo de uma árvore: enforquei-o com as lágrimas a correremme<br />

<strong>do</strong>s olhos e com o mais amargo remorso no meu coração, enforquei-o<br />

porque sabia que ele me havia ama<strong>do</strong>, e porque sabia que ele não me dera<br />

motivo algum para o ofender, enforquei-o porque sabia que ao fazê-lo estava a<br />

cometer um peca<strong>do</strong> – um peca<strong>do</strong> mortal que prejudicava a minha alma imortal<br />

colocan<strong>do</strong>-a, se é que isso é possível, para além <strong>do</strong> alcance da misericórdia<br />

infinita <strong>do</strong> Deus Mais Misericordioso e Mais Terrível.<br />

Na noite <strong>do</strong> dia em que este acto cruel foi cometi<strong>do</strong>, fui acorda<strong>do</strong> pelo<br />

grito de “fogo”. As cortinas <strong>do</strong> meu quarto estavam em chamas. Toda a casa<br />

estava a arder. Foi com grande dificuldade que a minha esposa, uma criada e eu<br />

conseguimos escapar ao incêndio. A destruição foi completa. To<strong>do</strong>s os meus<br />

bens terrenos foram engoli<strong>do</strong>s pelo fogo e, desde então, resignei-me ao<br />

desespero.<br />

Estou acima da fraqueza de tentar estabelecer uma relação de causa e<br />

efeito entre o desastre e a atrocidade. Mas estou a relatar uma sequência de<br />

acontecimentos e espero não deixar nem um pequeno elo descuida<strong>do</strong>. No dia


124<br />

Traduções<br />

seguinte ao incêndio, visitei as ruínas. As paredes, excepto uma tinham<br />

desmorona<strong>do</strong>. Esta excepção era uma parede não muito grossa, de um<br />

compartimento que se situava mais ou menos no meio da casa, e junto da qual<br />

ficara a cabeceira da minha cama. Aqui, o gesso em grande parte resistira à<br />

acção <strong>do</strong> fogo – atribuí esse facto ao seu recente restauro. Em volta dessa<br />

parede, uma imensidão de pessoas se juntara e muitas pareciam examinar com<br />

bastante atenção e minúcia uma porção em particular dessa parede. As palavras<br />

“Estranho!”, “Singular!” e outras expressões similares despertaram-me a<br />

curiosidade. Aproximei-me e vi, como que grava<strong>do</strong> em baixo relevo na<br />

superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A impressão era de uma<br />

exactidão estupenda. Havia uma corda em volta <strong>do</strong> pescoço <strong>do</strong> animal.<br />

Quan<strong>do</strong> contemplei pela primeira vez esta aparição – porque dificilmente<br />

poderia considerá-la menos <strong>do</strong> que isso – a minha admiração e terror eram<br />

extremos. Mas finalmente a reflexão veio em meu auxílio. Lembrei-me que o<br />

gato fora enforca<strong>do</strong> num jardim junto a casa. Com o alarme de incêndio, este<br />

jardim enchera-se imediatamente com uma multidão e alguém devia ter tira<strong>do</strong> o<br />

animal da árvore atiran<strong>do</strong>-o, através da janela, para o meu quarto. Isto<br />

provavelmente fora feito com a intenção de me acordar. As outras paredes, ao<br />

caírem, prensaram a vítima da minha crueldade no gesso da parede que<br />

recentemente tinha si<strong>do</strong> coloca<strong>do</strong>. O gesso juntamente com as chamas e o<br />

amoníaco provocaram a imagem <strong>do</strong> esqueleto como se via.<br />

Apesar de assim prontamente me justificar perante a minha razão, não<br />

fazia o mesmo perante a minha consciência, pois o surpreendente<br />

acontecimento que acabo de relatar não deixou de me provocar uma profunda<br />

impressão. Durante meses, não me consegui livrar <strong>do</strong> fantasma <strong>do</strong> gato e,<br />

durante esse perío<strong>do</strong>, regressou ao meu espírito o sentimento que parecia, mas<br />

não era, de remorso. Cheguei ao ponto de lamentar a morte <strong>do</strong> animal e de<br />

procurar, nos vis antros que normalmente frequentava, um outro animal de<br />

estimação, da mesma espécie e com algumas semelhanças, que o pudesse<br />

substituir.<br />

Uma noite em que estava senta<strong>do</strong>, meio estupefacto, num antro mais <strong>do</strong><br />

que infame, a minha atenção foi despertada por um objecto preto que<br />

repousava num <strong>do</strong>s imensos barris de gin ou de rum, que constituíam a mobília<br />

<strong>do</strong> estabelecimento. Estava a olhar fixamente para o topo deste barril há já<br />

alguns minutos, e o que agora me surpreendia era o facto de não me ter<br />

apercebi<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> objecto, lá em cima. Aproximei-me e toquei-lhe com a<br />

mão. Era um gato preto – muito grande – tão grande como o Pluto e muito<br />

pareci<strong>do</strong> com ele em to<strong>do</strong>s os aspectos, excepto num: Pluto não tinha um só


Edgar Allan Poe 125<br />

pêlo branco em qualquer parte <strong>do</strong> corpo, mas este gato tinha uma grande<br />

mancha branca, apesar de indefinida, cobrin<strong>do</strong> toda a região <strong>do</strong> peito.<br />

Ao acariciá-lo, imediatamente se levantou, ronronan<strong>do</strong> alto, esfregan<strong>do</strong>-se<br />

contra a minha mão, parecen<strong>do</strong> que a minha atenção lhe causava prazer. Este<br />

era, então, o animal que procurava. Imediatamente, propus-me a comprá-lo ao<br />

<strong>do</strong>no <strong>do</strong> estabelecimento, mas ele não manifestou interesse no bicho, não o<br />

conhecia e nunca o tinha visto.<br />

Continuei a acariciá-lo e, quan<strong>do</strong> me preparava para regressar a casa, o<br />

animal demonstrou querer acompanhar-me. Permiti que o fizesse, curvan<strong>do</strong>-me<br />

ocasionalmente para o acariciar. Quan<strong>do</strong> chegou a casa, <strong>do</strong>mesticou-se<br />

rapidamente e tornou-se um <strong>do</strong>s predilectos da minha esposa.<br />

Da minha parte, rapidamente deixei de gostar que ele se enroscasse em<br />

mim. Isto era simplesmente o inverso daquilo que eu esperava. Não sabia nem<br />

como nem porquê, a sua ternura por mim repelia-me e aborrecia-me. Aos<br />

poucos, estes sentimentos de repulsa e de aborrecimento transformaram-se no<br />

mais amargo ódio. Evitava a criatura, um vago sentimento de vergonha e de<br />

recordação <strong>do</strong> acto cruel cometi<strong>do</strong> impediam-me de o maltratar fisicamente.<br />

Durante semanas, não lhe bati, nem pratiquei qualquer acto violento, mas<br />

gradualmente – muito gradualmente – comecei a sentir por ele uma inexplicável<br />

repugnância e fugia silenciosamente da sua odiosa presença, como se fosse o<br />

bafo da peste.<br />

Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta,<br />

na manhã seguinte a trazê-lo para casa, que, tal como Pluto, também ele fora<br />

priva<strong>do</strong> de um <strong>do</strong>s seus olhos. Porém, esta situação só fez com que a minha<br />

esposa sentisse um enorme carinho por ele, ela que, como já disse, ela tinha<br />

uma enorme ternura, traço que outrora tinha si<strong>do</strong> uma das minhas<br />

características e a fonte de muitos <strong>do</strong>s meus prazeres mais simples e puros.<br />

Todavia, apesar da minha aversão por este gato, a sua preferência por mim<br />

parecia aumentar. Ele seguia as minhas pegadas com uma pertinência que<br />

dificilmente o leitor compreenderia. Sempre que me sentava, ele agachava-se<br />

debaixo da minha cadeira, ou saltava para as minhas pernas, cobrin<strong>do</strong>-me com<br />

as suas carícias repugnantes. Se me levantava para caminhar, ele metia-se entre<br />

as minhas pernas e quase me derrubava, ou cravava as suas garras grandes e<br />

afiadas na minha roupa, subin<strong>do</strong> assim até ao meu peito. Nessas ocasiões,<br />

apesar de me apetecer matá-lo com um só golpe, conseguia conter-me, em<br />

parte devi<strong>do</strong> à lembrança <strong>do</strong> crime que anteriormente cometera, mas<br />

principalmente – confesso –, pelo pavor que tinha <strong>do</strong> animal.


126<br />

Traduções<br />

Este me<strong>do</strong> não era um me<strong>do</strong> físico e, contu<strong>do</strong>, não saberia defini-lo de<br />

outra forma. Quase me envergonho de o confessar – sim, mesmo nesta cela de<br />

criminoso, quase me envergonho de o confessar – que o terror e o horror que o<br />

animal me inspirava aumentavam pela mais irrisória quimera que se possa<br />

imaginar. A minha esposa chamara a atenção, mais <strong>do</strong> que uma vez, para o<br />

aspecto da mancha branca, à qual já me referi, e que era a única diferença entre<br />

o estranho animal e aquele que eu matei. O leitor lembrar-se-á que esta marca,<br />

apesar de grande, era originalmente muito indefinida, mas aos poucos – de uma<br />

maneira quase imperceptível e que durante muito tempo a minha Razão lutou<br />

por rejeitar como fantasia – tomou uma forma de contornos distintos. Era,<br />

agora, a representação de um objecto que estremeço ao nomear – e, por isso,<br />

acima de tu<strong>do</strong>, encarava-o como um monstro de horror e repugnância e livrarme-ia<br />

dele se me atrevesse – era agora, digo eu, a imagem de uma FORCA<br />

horrível e hedionda! – Oh, sinistro e terrível engenho de Horror e Crime – de<br />

Agonia e de Morte!<br />

Agora, eu era com certeza um desgraça<strong>do</strong> mais miserável <strong>do</strong> que a<br />

miserável Humanidade. E a besta bruta – cujo semelhante destruí de uma<br />

forma desprezível – uma besta bruta que se apoderara de mim – um homem<br />

feito à imagem <strong>do</strong> Deus Altíssimo – que grande e insuportável infortúnio! Ai de<br />

mim! Nem de dia nem de noite conheci jamais a bênção <strong>do</strong> Descanso! Durante<br />

o dia, a criatura não me deixava em paz e, de noite, de hora em hora, acordava<br />

de sonhos de indescritível me<strong>do</strong>, encontran<strong>do</strong> o hálito quente da coisa no meu<br />

rosto, e o seu peso desmedi<strong>do</strong> – um Pesadelo incarna<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual não tinha<br />

forças para sair – incuba<strong>do</strong> eternamente no meu coração! Devi<strong>do</strong> à pressão de<br />

tormentas como esta, o pouco de bom que em mim restava sucumbiu. Maus<br />

pensamentos tornaram-se os meus únicos amigos – os mais sombrios e<br />

sórdi<strong>do</strong>s pensamentos. A minha rabugice usual transformou-se em ódio por<br />

todas as coisas e por toda a humanidade, enquanto vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> nada,<br />

frequentemente e de uma forma desmesurada, era possuí<strong>do</strong> por ataques de<br />

raiva, aos quais passei a aban<strong>do</strong>nar-me cegamente e a minha esposa, que não se<br />

queixava – pobre dela – era quem mais vezes e mais pacientemente sofria.<br />

Um dia, ela acompanhou-me, para me ajudar em algumas tarefas<br />

<strong>do</strong>mésticas na cave <strong>do</strong> velho edifício que a nossa pobreza nos obrigava a<br />

habitar. O gato seguiu-me pelas escadas abaixo e quase me fez cair de cabeça,<br />

exasperan<strong>do</strong>-me ao ponto de perder o juízo. Peguei num macha<strong>do</strong> que até<br />

então tinha na mão e, esquecen<strong>do</strong> o me<strong>do</strong> ingénuo, arremessei-o ao animal;<br />

este gesto teria si<strong>do</strong> mortal se o gato tivesse desci<strong>do</strong> como desejei. Mas o golpe<br />

foi trava<strong>do</strong> pela mão da minha esposa. Enlouqueci<strong>do</strong> com este reflexo dela,


Edgar Allan Poe 127<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por uma raiva mais <strong>do</strong> que demoníaca, libertei-me <strong>do</strong>s braços dela e<br />

cravei-lhe o macha<strong>do</strong> no cérebro. Ela caiu morta instantaneamente, sem um<br />

único gemi<strong>do</strong>.<br />

Cometi<strong>do</strong> este hedion<strong>do</strong> assassinato, dispus-me de imediato, e com total<br />

deliberação, a esconder o corpo. Sabia que não o podia tirar de casa, fosse de<br />

dia ou de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Muitas ideias me<br />

passaram pela cabeça. Por um instante, pensei em cortar o corpo em pequenos<br />

pedaços e destruí-los através <strong>do</strong> fogo. Lembrei-me de cavar uma fossa no chão<br />

da cave para o enterrar. Em seguida, lembrei-me de o atirar ao poço <strong>do</strong> quintal<br />

– metê-lo num caixote como se fosse merca<strong>do</strong>ria e arranjar maneira de fazer<br />

com que um carrega<strong>do</strong>r o tirasse de casa.<br />

Finalmente, surgiu-me uma ideia que considerei de longe mais<br />

concretizável <strong>do</strong> que qualquer uma destas. Decidi emparedá-la na cave – como<br />

os monges da Idade Média faziam com as suas vítimas.<br />

Para um propósito como este, a cave era o indica<strong>do</strong>. As paredes não<br />

haviam si<strong>do</strong> muito bem construídas e recentemente haviam si<strong>do</strong> rebocadas com<br />

gesso, que a atmosfera húmida não deixou endurecer. Ainda por cima, numa<br />

das paredes existia uma saliência, devi<strong>do</strong> a uma chaminé ou lareira que fora<br />

tapada para se assemelhar ao resto da cave. Achei que facilmente conseguiria<br />

retirar os tijolos naquele lugar, colocar lá o corpo e levantar de novo a parede<br />

de maneira a que ninguém pudesse detectar algo suspeito.<br />

E os meus cálculos não estavam erra<strong>do</strong>s. Com a ajuda de um pé de cabra,<br />

facilmente desloquei os tijolos e cuida<strong>do</strong>samente coloquei o corpo contra a<br />

parede interior. Segurei-o nessa posição, enquanto, sem muito esforço, coloquei<br />

de novo a estrutura como era originalmente. Consegui arranjar cimento, areia e<br />

cal e, com to<strong>do</strong>s os cuida<strong>do</strong>s possíveis, preparei uma argamassa que não se<br />

conseguia distinguir da anterior, com a qual cobri escrupulosamente a parede<br />

nova. Quan<strong>do</strong> terminei, senti-me satisfeito pois tu<strong>do</strong> correu bem. A parede não<br />

apresentava o menor sinal de ter si<strong>do</strong> alterada. Limpei o chão minuciosamente<br />

– olhei em re<strong>do</strong>r, triunfante, e disse para mim mesmo: “Ao menos aqui o meu<br />

trabalho não foi em vão”.<br />

O passo seguinte foi procurar o animal que causara tanta infelicidade, pois<br />

finalmente tinha resolvi<strong>do</strong> matá-lo. Se eu o tivesse encontra<strong>do</strong> naquele<br />

momento não haveria dúvida <strong>do</strong> seu destino, mas parecia que o esperto animal<br />

se tinha alarma<strong>do</strong> com a violência da minha raiva e procurava não aparecer<br />

diante de mim enquanto eu estivesse naquele esta<strong>do</strong> de espírito. É impossível<br />

descrever, ou imaginar, o enorme alívio que a ausência de tão detestável criatura<br />

provocava no meu peito. Não apareceu durante a noite – e assim, pelo menos


128<br />

Traduções<br />

por uma noite, desde que ele entrara em casa consegui <strong>do</strong>rmir tranquila e<br />

profundamente; sim, <strong>do</strong>rmi mesmo com o peso na consciência daquele<br />

assassínio!<br />

O segun<strong>do</strong> e terceiro dias passaram e o meu algoz não aparecia. Voltava a<br />

respirar como um homem livre. O monstro aterroriza<strong>do</strong> fugira para sempre.<br />

Não tornaria a vê-lo! A minha felicidade era suprema. A culpa da minha terrível<br />

acção perturbava-me, mas pouco. Algumas investigações foram feitas, às quais<br />

respondi prontamente. Avançou-se mesmo com uma busca – mas claro que<br />

nada poderia ser descoberto. Considerava já como certa a minha felicidade<br />

futura.<br />

Ao quarto dia após o assassinato, um destacamento policial chegou<br />

inesperadamente a casa para levar a cabo uma nova investigação rigorosa. No<br />

entanto, estava tão seguro que ninguém encontraria o meu esconderijo<br />

inescrutável, que não senti qualquer perturbação. Os polícias pediram-me que<br />

os acompanhasse na sua busca. Não deixaram esquina ou recanto por explorar.<br />

Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram à cave. Não retesei um músculo.<br />

O meu coração batia calmamente como o de um inocente. Percorri a cave de<br />

lés a lés, cruzei os braços sobre o peito e vagueei de um la<strong>do</strong> para o outro.<br />

A polícia estava completamente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo<br />

que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia<br />

por dizer nem que fosse uma palavra, a comemoração <strong>do</strong> triunfo, e também<br />

por tornar duplamente evidente a minha inocência.<br />

– Senhores – disse, por fim, enquanto os polícias subiam as escadas, – fico<br />

contente por ter desfeito qualquer suspeita. Desejo a to<strong>do</strong>s saúde e um pouco<br />

mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito<br />

bem construída – (na minha vontade louca de dizer algo com naturalidade,<br />

dificilmente sabia o que estava a dizer).<br />

– Poderia dizer que é uma casa muito bem construída. Estas paredes – os<br />

senhores já se vão? – Estas paredes são de grande solidez. – Nessa altura,<br />

movi<strong>do</strong> por pura e frenética fanfarronice, bati com força, com a bengala que<br />

tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da<br />

esposa <strong>do</strong> meu coração.<br />

Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas<br />

mergulhou no silêncio, uma voz respondeu-me <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da tumba! – Primeiro<br />

como um choro entrecorta<strong>do</strong> e abafa<strong>do</strong> como os soluços de uma criança,<br />

aumentan<strong>do</strong> para um grito prolonga<strong>do</strong> completamente anormal e inumano –<br />

um uivo – um grito agu<strong>do</strong>, meio horror e meio triunfo, como que saí<strong>do</strong> <strong>do</strong>


Edgar Allan Poe 129<br />

inferno, da garganta <strong>do</strong>s condena<strong>do</strong>s em agonia e <strong>do</strong>s demónios exultantes com<br />

a sua condenação.<br />

Dos meus pensamentos será loucura falar. Quase desfalecen<strong>do</strong>, cambaleei<br />

até à parede em frente. Por um instante, os polícias ao cimo da escada<br />

detiveram-se, imobiliza<strong>do</strong>s pelo terror. No instante seguinte, uma dúzia de<br />

braços vigorosos fizeram a parede cair por terra. O cadáver, já em adianta<strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong> de decomposição e coberto de sangue coagula<strong>do</strong>, apareceu erecto em<br />

frente <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res. Sobre a sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o<br />

seu solitário olho chamejante, estava o odioso animal, cuja astúcia me levou ao<br />

assassínio e cuja voz revela<strong>do</strong>ra me entregou ao carrasco.<br />

Tinha empareda<strong>do</strong> o monstro dentro da tumba!<br />

Trad. de Maria da Assunção Norinho e Sérgio Alves 1<br />

1 Alunos da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />

Tradução Especializada.


THE DANGERS OF LAUGHING<br />

José Eduar<strong>do</strong> Agualusa<br />

DOS PERIGOS DO RISO, 1999<br />

It was only when we stopped the jeep that I saw them. There they were, by<br />

the side of the road, half hidden in the din of the sunset – the old man and his<br />

lizards. They were huge lizards and they had a wrinkled neck like the old man‟s,<br />

and the same small mysterious eyes. He noticed my interest and told me how<br />

much they cost:<br />

“Five million, mate. Each”.<br />

It seemed to be a fair price. It was worth arguing over:<br />

“Five million?! For five million, only if they spoke…”<br />

The old man looked at me very seriously:<br />

“Well, as for speaking, they speak very little, mate. But they laugh a lot”.<br />

The lizards, laugh?! What did they laugh at? The old man shrugged. He<br />

didn‟t know. They laughed for no reason at all like only the mad <strong>do</strong>, they<br />

laughed at one another while sunbathing. I thought the old man deserved the<br />

money, were it only for his answer. I gave him the five bills, which he carefully<br />

smoothed out before minding in his pocket. Then he gave me the largest lizard<br />

of them all:<br />

“This one‟s called Leopoldino, and it‟s the most smartest”.<br />

I wanted to know what he ate. The old man explained that the animal<br />

knew how to take care of itself. It fed off flies, cockroaches, mosquitoes, it kept<br />

the house free of insects. I tried to play around a little:<br />

“And we can even tell it jokes, can‟t we?”<br />

The old man didn‟t answer me. He leaned over the lizards and told them<br />

something. He seemed to speak another language. He spoke a breeze, a whistle,<br />

a humid little vegetable whisper. I got into the jeep and sat and waited as I saw<br />

him disappear, a sha<strong>do</strong>w in the darkness of night, with the feeling that it was<br />

he, that it was he who had made fun of me.<br />

But, when we were almost reaching Sumbe, the lizard started laughing. I<br />

know it seems weird, but it‟s the pure truth: Leopoldino laughed. It didn‟t laugh<br />

exactly like a person, of course, it laughed like a person resembling a lizard, but<br />

it was laughing nevertheless. They were dry, cynical laughs, which echoed


José Eduar<strong>do</strong> Agualusa 131<br />

through the jeep in a vaguely frightening way. I heard it and didn‟t feel like<br />

laughing. My friend, who was driving the jeep, was even more restless:<br />

“What is that animal laughing at?”<br />

I shrugged (like the old man had <strong>do</strong>ne). And how was I supposed to<br />

know? Maybe it was one of those that laughed for no reason at all, like only the<br />

mad <strong>do</strong>. I told him that this species of lizards communicate with one another,<br />

laughing out loud while sunbathing. However, my friend had another opinion:<br />

“No!” he said. “It‟s obviously laughing at us!…”<br />

That supposition built up distrust in the jeep. I opened the shoebox where<br />

I had placed Leopoldino and placed it on the control panel in front of us. Its<br />

eyes were very old. The whole of it was very old.<br />

We watched each other, the three of us, in silence. Leopoldino gave us a<br />

defying look, maybe a little arrogant, but I didn‟t discover in those eyes the<br />

slightest flare of irony.<br />

I tried to calm my friend <strong>do</strong>wn:<br />

“Parrots laugh, they even speak, but their laughter, or the things they say,<br />

<strong>do</strong>n‟t have any meaning. Well, reptiles are related to birds, so why wouldn‟t<br />

lizards be capable of imitating man‟s laughter?”<br />

My friend was beginning to get nervous:<br />

“Don‟t bullshit me! I know very well when a lizard is laughing at me…”<br />

If you put it that way, it was already a personal matter. A laugh out loud<br />

can be much worse than the worst insult. On top of that, Leopoldino‟s laughter<br />

opened the <strong>do</strong>or to different speculations: it could be laughing at our human<br />

repulsiveness (reptiles must find us very ugly); it could be laughing at the<br />

stupidity of two individuals who buy a lizard, on the road from Luanda to<br />

Sumbe, for 5 million kwanzas; or maybe it might know something (about us)<br />

that would be best no one knew (not even our conscience). I only said this to<br />

make conversation, but my poor friend took me seriously:<br />

“It must be because of what happened with Ana”, he whispered gloomily,<br />

“that damned animal knows too much.”<br />

I didn‟t know what had happened between him and Ana; I didn‟t even<br />

know who Ana was, but I thought it would be best to keep quiet. It must have<br />

been something incredibly ridiculous. If he had told me, maybe I wouldn‟t have<br />

been able to restrain myself from laughing. And if I had laughed there and then,<br />

that would have been the end of our friendship.<br />

“I haven‟t told you the worst part yet”, I confessed; “If we‟re to believe<br />

the old man, then it can also speak.”<br />

“It speaks, the animal speaks?! No, that‟s too much...”


132<br />

Traduções<br />

He pulled over at the side of the road and, keeping the headlights on, he<br />

jumped out of the jeep onto the road. In his right hand, he held a gun.<br />

“I‟m going to kill that damned animal!”<br />

It was the first time I saw him with a gun. I got out of the jeep in shock.<br />

“Of course you‟re not. The lizard‟s mine”.<br />

He looked at me and I realized that he wasn‟t joking. My friend had been<br />

through the war. Two years in Cuito Cuanavale.<br />

“The lizard‟s mine”, I told him, “let me be the one to handle it.”<br />

I took the gun out of his hand, grabbed the shoebox Leopoldino was in<br />

and moved a few meters away into the bushes. The jeep‟s headlights lit up the<br />

dry grass, the huge cactuses, the large outline of a baobab tree. In the immense<br />

clear and starry night, all you could hear was the hoarse singing of a cricket. I<br />

put the box <strong>do</strong>wn on the floor, I pointed at it and fired three shots. As the echo<br />

of the last gunshot dispersed, there was an unearthly silence.<br />

And then, suddenly, a burst of gunfire from a machine-gun, to my left,<br />

stirred up the night. I stood there, for a moment numb with fear, then turned<br />

towards the jeep and started to run. Behind me, drowning out the roar of<br />

gunfire, I distinctly heard Leopoldino‟s dry laugh.<br />

My friend was already sitting at the wheel.<br />

“Hurry up, muadiê, you‟ve got some bad luck, looks like you started a war.”<br />

As we dived swiftly into the night, with the lights off, he turned to me and<br />

asked,<br />

“Did you kill the animal?”<br />

I answered with a grumble. All I wanted was to get out of there.<br />

“It had to be that way”, said my friend, and his smile glowed in the dark.<br />

“The guy knew too much!...”<br />

Trad. de Marilene Ribeiro 1<br />

1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />

Tradução Especializada.


Saúl Dias<br />

RETRATO, in Essência, 1973<br />

I<br />

Inventei rosas para o teu cabelo<br />

rosas de um azulino tom<br />

e estranho gineceu.<br />

Ornei teu colo<br />

com flores <strong>do</strong> campo<br />

que o campo nunca deu.<br />

Fiz brilhar teu vesti<strong>do</strong><br />

com pedras de irreais cores.<br />

Circundei-te de pequeninos amores.<br />

Dos fun<strong>do</strong>s arvore<strong>do</strong>s<br />

escutei os segre<strong>do</strong>s.<br />

E fui buscar às águas <strong>do</strong>s ribeiros<br />

a transparência, os cheiros,<br />

a fluida cor.<br />

Com um pincel grato<br />

pintei o teu retrato<br />

só pelo interior.<br />

II<br />

Desenhei flores<br />

prolongan<strong>do</strong>-te os de<strong>do</strong>s.<br />

Na tua boca<br />

tentei por os segre<strong>do</strong>s<br />

da Gioconda.<br />

Nos teus seios<br />

fiz espraiar a onda<br />

de inconti<strong>do</strong>s desejos.<br />

E, em re<strong>do</strong>r de ti,<br />

um halo, um halali...


PORTRAIT<br />

I<br />

I invented roses for your hair,<br />

roses of a bluish hue<br />

and strange gynaeceum.<br />

I a<strong>do</strong>rned your neck<br />

with wild flowers<br />

that the wild never knew.<br />

I made your dress aglow<br />

with stones of unreal gloss.<br />

I inclosed you in tiny love-me-nots.<br />

From deep in the trees<br />

I harkened the secrets.<br />

And took from the waters of springs<br />

the transparency, the scents,<br />

the color liquefied.<br />

With grateful brush<br />

did I paint your portrait<br />

only from the inside.<br />

II<br />

I drew flowers<br />

to prolong your fingers.<br />

In your mouth<br />

I tried to fit<br />

the secrets of Mona Lisa.<br />

On your breasts<br />

I broke the wave<br />

of unrestrained desire.<br />

And, all about you,<br />

a halo, a halloo...<br />

Trad. de Paula Ramalho Almeida


135


tradução e multimédia


A TRADUÇÃO NUM MUNDO GLOBALIZADO<br />

– DA ARTE À LINHA DE MONTAGEM<br />

Alexandra Albuquerque e Maria de Lurdes Guimarães<br />

INTRODUÇÃO<br />

Na última década, essencialmente devi<strong>do</strong> ao uso crescente de tecnologias –<br />

das quais se destaca a Internet – e às globalização da economia, virtualização <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> e “industrialização da comunicação” (Sager, 1993:1) daí resultantes,<br />

todas as profissões sofreram alterações ao nível <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s, processos e<br />

ferramentas de trabalho. A profissão de tradutor – como actividade de<br />

comunicação que é – não foi excepção, principalmente a <strong>do</strong>s tradutores de<br />

textos técnicos e científicos. Assim, até os tradutores mais conserva<strong>do</strong>res e<br />

tradicionais – fecha<strong>do</strong>s nas suas torres de marfim, dedica<strong>do</strong>s à arte da tradução,<br />

rodea<strong>do</strong>s de páginas e páginas de papel de in-fólios utiliza<strong>do</strong>s e reutiliza<strong>do</strong>s em<br />

quase to<strong>do</strong>s os textos a traduzir – já se aperceberam de que o papel impresso<br />

não acompanha o ritmo de desenvolvimento da ciência e da tecnologia e de que<br />

é preciso recorrer a outras ferramentas para não ficar para trás. Por outro la<strong>do</strong>,<br />

os sucessivos avanços ao nível da Tradução Automática (TA), que, em algumas<br />

situações, oferece resulta<strong>do</strong>s bastante satisfatórios, com a vantagem de ser mais<br />

rápida e económica 1 , criaram o espectro da extinção da Tradução Humana e, a<br />

mais curto prazo, <strong>do</strong> desemprego, obrigan<strong>do</strong> o tradutor a estar atento e a<br />

desenvolver novas competências. No entanto, sobre a TA falaremos mais<br />

adiante.<br />

Num mun<strong>do</strong> onde até a comunicação e a(s) linguagem(s) já foram<br />

industrializadas – basta lembrarmos quantas cartas já não se escrevem porque<br />

há o telefone, o e-mail ou o SMS... –, o tradutor é, cada vez mais, um<br />

aprendente, investiga<strong>do</strong>r e “camaleão”, que não pode pensar que com um curso<br />

de Línguas e/ou uma especialização e com conhecimentos de Word tem<br />

trabalho garanti<strong>do</strong> para o resto da vida, mas terá de saber quan<strong>do</strong> deve adquirir,<br />

manter ou largar uma área de especialização, onde fazer a aprendizagem<br />

necessária de uma forma rápida e económica, e quais as tecnologias que deve<br />

<strong>do</strong>minar.<br />

O tradutor, hoje em dia, tem de manter-se, acima de tu<strong>do</strong>, actualiza<strong>do</strong>,<br />

uma vez que a tradução é um negócio, e cada vez mais um negócio de<br />

segun<strong>do</strong>s, que vive da lei da oferta e da procura e cujo sucesso ou fracasso


A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 139<br />

depende, em primeiro lugar, de “estar no local certo à hora certa” e, em<br />

segun<strong>do</strong> lugar, de conseguir realizar um bom trabalho que satisfaça o cliente de<br />

forma a fidelizá-lo e a rendibilizar o eventual investimento realiza<strong>do</strong>. Ora, isto<br />

só é possível se (i) o tradutor dispuser de um bom sistema de comunicação –<br />

com o mun<strong>do</strong> e com o cliente – (ii) conseguir aceder rápida e eficazmente à<br />

informação de que necessita e (iii) criar e actualizar bases de da<strong>do</strong>s e memórias<br />

de tradução, de mo<strong>do</strong> a facilitar, acelerar e melhorar trabalhos futuros.<br />

Finalmente, no mun<strong>do</strong> globaliza<strong>do</strong> em que vivemos, o tradutor enfrenta,<br />

ainda, outros desafios: o da solidão no meio de muita gente e o da existência<br />

virtual. Se, desde sempre, a tradução exigiu alguma solidão, até há algum tempo,<br />

essa solidão poderia ser atenuada pelo facto de o tradutor se sentir uma peça<br />

fundamental e decisiva no processo tradutivo: era ele e o cliente ou, na pior das<br />

hipóteses, ele, a agência e o cliente e, sempre que necessário, poderia<br />

estabelecer-se contacto pessoal ou telefónico. Assim, os nomes, de uns e de<br />

outros, tinham rosto, corpo e existência palpável. Por outro la<strong>do</strong>, a tradução<br />

estava praticamente dependente <strong>do</strong> tradutor, poden<strong>do</strong>, para além dele, haver<br />

eventualmente um revisor. Actualmente, este cenário alterou-se por completo e<br />

o tradutor mais não é que um “operário” na linha-de-montagem em que o<br />

processo tradutivo se tornou. Hoje em dia, os trabalhos de tradução são<br />

projectos, em que hierarquicamente acima <strong>do</strong> tradutor, ou melhor, <strong>do</strong>s<br />

tradutores – porque em grandes trabalhos de tradução há sempre uma equipa<br />

de tradutores, onde cada um monta uma parte <strong>do</strong> texto – há outros elementos,<br />

<strong>do</strong> revisor ao gestor de projectos. A gestão desses projectos é, muitas vezes,<br />

feita virtualmente e o tradutor não passa de um nome ou de uma referência<br />

numa bolsa de mão-de-obra, não ten<strong>do</strong> contacto palpável com o cliente ou com<br />

a agência. A tradução é, cada vez mais, uma tele-profissão: um projecto<br />

americano, por exemplo, pode ser realiza<strong>do</strong> por tradutores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inteiro.<br />

1. Algumas estratégias de sobrevivência<br />

1.1 Não basta ser bom, há que ser o melhor!<br />

Numa actividade dependente das leis <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, o tradutor está ainda<br />

sujeito à exigência de qualidade das empresas que solicitam trabalhos de<br />

tradução. Como diz Wright (1993: 85):<br />

[...] A company‟s commitment to high quality is reflected in its literature and<br />

product <strong>do</strong>cumentation. Quality-minded industries increasingly emphasize the<br />

theory that company quality is only as high as the standard maintained by its leastquality-conscious<br />

employees. Translators cannot afford to be an exception to this<br />

concern.


140<br />

Tradução e Multimédia<br />

Embora saben<strong>do</strong> que, infelizmente, esta nem sempre é a orientação das<br />

empresas de tradução e que muitas ainda se pautam pelo critério <strong>do</strong> preço e não<br />

pelo da qualidade, estamos igualmente conscientes de que a imagem,<br />

nomeadamente a que panfletos, páginas Web, etc. transmitem é, cada vez mais,<br />

um cartão de visita que pode abrir (ou não) muitas portas num mun<strong>do</strong> global<br />

multilingue. Como tal, o tradutor tem que ter como lema a qualidade, pelo que:<br />

– deve <strong>do</strong>minar a(s) língua(s) de partida e de chegada como um nativo<br />

(muito especialmente a de chegada, de mo<strong>do</strong> a não limitar a sua tradução<br />

ao “meramente correcto” (ibidem: 69) e poder transferir o conteú<strong>do</strong> com<br />

correcção estilística, respeitan<strong>do</strong> os valores culturais envolvi<strong>do</strong>s);<br />

– deve especializar-se, mas em mais <strong>do</strong> que uma área.<br />

De facto, um bom tradutor não tem que saber traduzir tu<strong>do</strong>, mas também<br />

não se pode limitar a traduzir apenas uma área: há que ser especialista em várias<br />

matérias e, acima de tu<strong>do</strong>, ir mudan<strong>do</strong> de área conforme as necessidades <strong>do</strong><br />

merca<strong>do</strong>.<br />

– deve ter uma boa capacidade de adaptação e de aprendizagem: deixar<br />

uma área que já não tenha procura e trabalhar numa nova, de forma a<br />

procurar novos clientes que substituam os perdi<strong>do</strong>s; estar sempre<br />

actualiza<strong>do</strong>; procurar <strong>do</strong>minar novas ferramentas de trabalho (software,<br />

hardware, recursos, fontes de informação, etc.); saber viver na constante<br />

incerteza;<br />

– ser tecnocrata. No contexto actual, é impensável ser tradutor sem<br />

recorrer às Tecnologias de Informação e de Comunicação (TIC).<br />

Começan<strong>do</strong> pelo indispensável PC, passan<strong>do</strong> pelo software para tradução<br />

(quer ao nível da tradução automática, quer ao nível da tradução assistida),<br />

pelo correio electrónico e, claro, pela Internet, só para dar alguns<br />

exemplos, o tradutor tem de, forçosamente, <strong>do</strong>minar estas ferramentas se<br />

quiser “existir” e trabalhar. De facto, muitos clientes praticamente já só<br />

comunicam com o tradutor através de correio electrónico – o que,<br />

seguramente, será prática generalizada nos próximos anos – e a grande<br />

maioria <strong>do</strong>s Textos de Partida (TP) são ficheiros electrónicos, geralmente<br />

anexos à mensagem de correio electrónico. Por outro la<strong>do</strong>, e como<br />

veremos mais pormenorizadamente à frente, a Internet, e muito<br />

especialmente a World Wide Web (WWW), já fazem parte <strong>do</strong> quotidiano de<br />

qualquer tradutor, quer como ferramenta de trabalho, quer como anúncios<br />

classifica<strong>do</strong>s;<br />

– deve construir, à medida que vai traduzin<strong>do</strong>, memórias de tradução e<br />

bases terminológicas. Este trabalho extra revelar-se-á muito útil em<br />

projectos futuros, no que se refere (i) à poupança de tempo de pesquisa 2 e<br />

de tradução e (ii) à qualidade <strong>do</strong> serviço presta<strong>do</strong>.


A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 141<br />

Na tradução técnico-científica, o <strong>do</strong>mínio da terminologia é, sem dúvida,<br />

essencial: um bom tradutor técnico tem que ser também um bom terminólogo.<br />

Como tal, é necessário que saiba fazer glossários – pois, muitas vezes, os<br />

faculta<strong>do</strong>s pelo cliente não são de grande utilidade, mais não sen<strong>do</strong> que meras<br />

listas de termos sem fonte ou contexto, o que pouco ou nada ajuda um tradutor<br />

consciente da polissemia que também perpassa os termos técnicos – e que os<br />

actualize à medida que vai realizan<strong>do</strong> outros trabalhos na mesma área. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, as memórias de tradução – recurso de que um bom tradutor já não<br />

pode prescindir – rendibilizam ao máximo o trabalho anterior <strong>do</strong> tradutor,<br />

evitan<strong>do</strong> que este tenha de traduzir o que já traduziu num outro texto,<br />

aumentan<strong>do</strong> assim a sua produtividade.<br />

Concluin<strong>do</strong>, a união entre (i) a “cross-lingual and cross-cultural transfer of<br />

information” (Austermühl, 2001: 12) – alian<strong>do</strong>, neste processo de transferência<br />

<strong>do</strong>s TP para o Texto de Chegada (TC), “clareza, concisão e correcção”<br />

(Herman, 1993: 11) a “soluções estilisticamente apropriadas” (Wright, 1993: 70) –<br />

reforçada pelo (ii) bom conhecimento da área de trabalho e (iii) pelo uso da(s)<br />

tecnologia(s) adequada(s) fará de qualquer tradutor um excelente profissional.<br />

1.2 Do linguista ao especialista e vice-versa<br />

Já é velha a questão: “quem traduz melhor? O linguista ou o especialista?”<br />

mas, até agora, ainda não se conhece nenhum estu<strong>do</strong> que comprove claramente<br />

a maior vocação de um ou de outro. De facto, e porque estamos a lidar com (i)<br />

um acto de comunicação, (ii) pessoas e (iii) com tu<strong>do</strong> o que (ii) implica (<strong>do</strong>m,<br />

formação, capacidade de trabalho, personalidade, etc.), esta pergunta não tem<br />

resposta fácil. Em alguns casos será o linguista e noutros o especialista. Estu<strong>do</strong>s<br />

realiza<strong>do</strong>s em Honolulu e Poznan (Niedzielski e Chernovaty, 1993), com<br />

<strong>do</strong>utoran<strong>do</strong>s e alunos <strong>do</strong> ensino secundário, provaram que, mais <strong>do</strong> que ser<br />

uma coisa ou outra, há que ter talento e já alguma tendência inata. Depois, quer<br />

o linguista-especialista, quer o especialista-linguista traduz bem conteú<strong>do</strong>s se<br />

tiver “maturidade e experiência nalguma área” (ibidem: 139). Ora, essa<br />

experiência tanto pode ser adquirida em formação de base – no caso <strong>do</strong>s<br />

especialistas – ou numa formação ao longo da vida – no caso <strong>do</strong>s linguistas. A<br />

formação então adquirida terá de ser, num caso e noutro, suficiente mas não<br />

necessariamente igual, uma vez que, segun<strong>do</strong> os mesmos autores, “the techical<br />

knowledge required of a translator depends on the degree of technicality of the<br />

text.” (ibidem).<br />

Mas não terão também os especialistas que se tornar linguistas? Da mesma<br />

forma que não basta ter conhecimentos linguísticos para traduzir, também não


142<br />

Tradução e Multimédia<br />

basta ser especialista numa área. O tradutor tem de ter capacidades de escrita<br />

bem desenvolvidas na língua alvo. É por isso que muitos bilingues não estão<br />

necessariamente talha<strong>do</strong>s para a tradução. O tradutor deve ainda possuir um<br />

conhecimento bastante completo em terminologia, estilo e das línguas de e para<br />

que traduz, ou seja, o tradutor deverá ser tanto especialista da língua como das<br />

áreas com que trabalha. Porém, o tradutor é sobretu<strong>do</strong> um especialista da língua<br />

e a sua especificidade reside na capacidade de transferência de informação e de<br />

ideias de uma língua para outra, ou seja, em ser mestre na comunicação<br />

intercultural:<br />

Documents must speak “the language” of the target audience and should<br />

resemble other texts produced within that particular language community and<br />

subject <strong>do</strong>main. Furthermore, target language texts should in no way offend<br />

ethnic, sexual or other culture-related sensibilities. In some cases, differences in<br />

text type applications from language/society1 to language/society2 require drastic<br />

revision of even apparently straightforward, factual <strong>do</strong>cuments. (Wright, 1993: 70)<br />

1.3 Domínio de novas ferramentas de trabalho<br />

As “novas” ferramentas são sobretu<strong>do</strong> electrónicas (em formato digital ou<br />

em linha) e, ao contrário das ferramentas “clássicas”, em papel, conseguem<br />

acompanhar muito melhor o desenvolvimento terminológico da ciência e da<br />

técnica, pelo que, quan<strong>do</strong> bem utilizadas, podem optimizar o desempenho <strong>do</strong><br />

tradutor. A eficiente utilização das mesmas passa, essencialmente, por as saber<br />

compatibilizar com os diversos estádios <strong>do</strong> processo tradutivo (Austermühl,<br />

2001: 11) que, segun<strong>do</strong> o modelo de Holmes (apud Austermühl), são três:<br />

– Recepção (<strong>do</strong> TP);<br />

– Transferência (adaptação linguística e cultural <strong>do</strong> TC);<br />

– Formulação (<strong>do</strong> TC).<br />

Cada um destes estádios, embora interdependentes, exige ferramentas<br />

diferentes, devi<strong>do</strong> à sua especificidade. O primeiro – Recepção – baseia-se na<br />

descodificação da informação linguística <strong>do</strong> TP, pelo que as ferramentas mais<br />

úteis nesta tarefa serão dicionários (o mais actualiza<strong>do</strong>s possível) e bases<br />

terminológicas, de forma a melhor contextualizar os termos; o segun<strong>do</strong> –<br />

Transferência – é já bem mais complexo. Nesta fase, o tradutor não se limita a<br />

descodificar e a contextualizar termos, ou seja, a uma operação linguística, mas<br />

terá de ter competências comunicativas interculturais suficientes, de mo<strong>do</strong> a<br />

proceder a uma análise contrastiva das duas culturas. Assim, deverá recorrer<br />

agora não só aos dicionários e bases terminológicas, mas também a algumas<br />

enciclopédias, revistas especializadas, literatura especializada, etc.; por fim, há


A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 143<br />

que “produzir” o TC – Formulação – o que exige bons conhecimentos de<br />

gramática, sobretu<strong>do</strong> relativamente às relações sintagmáticas e colocação <strong>do</strong>s<br />

termos. Para isso, o tradutor pode ainda socorrer-se <strong>do</strong>s dicionários e bases<br />

terminológicas (se estes tiverem estas informações) mas deverá utilizar corpora, a<br />

fim de poder verificar a correcta utilização de certas expressões na LC. Para tal,<br />

poderá consultar bases de corpora, o que, para as línguas de especialidade, não é<br />

fácil (muito menos em português). No entanto, não encontran<strong>do</strong> essas bases,<br />

poderá recorrer a artigos de jornal, revistas, ou seja, a literatura e <strong>do</strong>cumentos<br />

da área. Esta validação, por assim dizer, da tradução através de corpora é<br />

especialmente útil quan<strong>do</strong> não se traduz para a língua materna, pois permite<br />

comprovar se as hipóteses de equivalência propostas soam ou não naturalmente<br />

na LC.<br />

2. A Internet<br />

Conscientes de que a Internet é apenas uma das muitas ferramentas que o<br />

tradutor moderno deve conhecer, esta será, para além <strong>do</strong>s tradutores<br />

automáticos, a única que abordaremos com maior pormenor. Outras<br />

ferramentas, como software para tradução e ferramentas electrónicas que não<br />

estejam em linha, poderão ser objecto de outro estu<strong>do</strong>. A razão de limitarmos<br />

as nossas considerações à Internet prende-se com o facto de esta ser, em si<br />

mesma, um manancial de ferramentas e de recursos a que o tradutor pode<br />

aceder de uma forma rápida, cómoda e relativamente acessível. Por outro la<strong>do</strong>,<br />

pareceu-nos de to<strong>do</strong> o interesse deixar alguns conselhos relativos à sua<br />

utilização, uma vez que, mesmo os tradutores mais jovens, sentem dificuldades<br />

em orientar-se profissionalmente no caos cibernético.<br />

Para uns, uma maravilha <strong>do</strong> progresso e, para outros, um enervante mal<br />

necessário, a Internet (e muito especialmente a World Wide Web) pode ser um<br />

precioso auxiliar, disponível vinte e quatro horas por dia, com milhares de<br />

informações e recursos (actualiza<strong>do</strong>s e de fácil acesso), ou, por outro la<strong>do</strong>, uma<br />

perda de tempo, pouco fiável (afinal qualquer pessoa pode colocar informações<br />

em linha) e desesperante: a informação está desorganizada, não está classificada<br />

e a técnica nem sempre ajuda... O desafio principal para qualquer utiliza<strong>do</strong>r é,<br />

acima de tu<strong>do</strong>, saber “separar o trigo <strong>do</strong> joio”, conhecer algumas técnicas de<br />

pesquisa e de consulta e limitar o acesso às áreas/ páginas e recursos que lhe<br />

interessam mais.<br />

2.1 Recursos para tradutores


144<br />

Tradução e Multimédia<br />

Já vários autores indicaram e explicaram os recursos que a Internet pode<br />

oferecer a um tradutor, tais como o correio electrónico, o Ftp (File Transfer<br />

Protocol), a World Wide Web e os fóruns de discussão (vide Austermühl, 2001 e<br />

Alanen, 1996), por isso não é nossa intenção explorar exaustivamente cada um<br />

deles. Falaremos mais pormenorizadamente apenas sobre a World Wide Web e<br />

nos Fóruns de Discussão – onde englobamos, talvez não muito correctamente,<br />

mailing lists, newsgroups e chats – por forma a tentar optimizar a utilização da<br />

WWW, uma vez que esta parece ser a maior dificuldade <strong>do</strong>s tradutores (Alanen,<br />

1996: 9).<br />

2.1.1 A World Wide Web<br />

Todas as ferramentas de que o tradutor necessita nas várias fases <strong>do</strong><br />

processo tradutivo podem ser (ou não) encontradas aqui: dicionários,<br />

gramáticas, enciclopédias, bibliotecas, bases terminológicas, corpora, guias de<br />

estilo, etc. Tu<strong>do</strong> depende <strong>do</strong> que se necessita, quais as línguas de trabalho e de<br />

como se pesquisa. De facto, e antes de nos debruçarmos sobre algumas<br />

sugestões de pesquisa e de consulta, convém lembrar que um tradutor que<br />

tenha como língua de trabalho o português (especialmente o europeu) terá mais<br />

dificuldade em encontrar aquelas ferramentas, o que implica um esforço<br />

re<strong>do</strong>bra<strong>do</strong> na selecção <strong>do</strong>s termos, pois a tradução da LP para a LC quase<br />

nunca é directa. O parco investimento em investigação linguística e<br />

terminológica que se faz em Portugal, reflecte-se, naturalmente, também online.<br />

“Quem procura sempre encontra”? Nem sempre...<br />

Referiremos agora algumas técnicas que poderão facilitar a pesquisa na<br />

WWW, tornan<strong>do</strong>-a mais rápida e produtiva. Necessitan<strong>do</strong> o tradutor que ser<br />

um especialista em algumas áreas, não tem de o ser em informática, mas deverá<br />

ter, pelo menos, formação em “Primeiros Socorros”.<br />

Como em qualquer pesquisa, antes de se começar, há que saber o que se<br />

procura. Da mesma forma que não adianta ir a uma Biblioteca Municipal à<br />

procura de jornais/revistas estrangeiros, também não adianta utilizar um motor<br />

de busca e pensar que “está tu<strong>do</strong> na Internet”. Por outro la<strong>do</strong>, até na pesquisa<br />

mais elementar, há que ter/dar algumas orientações específicas sobre o que se<br />

procura. Na WWW o procedimento não é diferente: entre milhões de<br />

<strong>do</strong>cumentos, uma má pesquisa pode resumir-se a tentar “encontrar uma agulha<br />

no palheiro”.


A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 145<br />

Tipos de Pesquisa<br />

Austermühl 3 indica-nos uma tipologia que contempla o grau de<br />

conhecimento que um utiliza<strong>do</strong>r pode ter antes de iniciar uma pesquisa, in<strong>do</strong>,<br />

respectivamente, de uma situação de pesquisa de grau maior para outra de grau<br />

menor de conhecimento sobre o assunto/sítio:<br />

– Institucional (por URL 4 ): Quan<strong>do</strong> já se conhece o sítio, ou se sabe que<br />

existe, podemos tentar aceder directamente a ele, indican<strong>do</strong> o endereço da<br />

página;<br />

– Temática: Quan<strong>do</strong> não se sabe exactamente onde procurar e se tem<br />

apenas uma ideia da área onde o tema se insere 5 ;<br />

– Por Palavra-Chave/ Frase: Quan<strong>do</strong> se dispõe de poucos da<strong>do</strong>s sobre o<br />

tema a pesquisar.<br />

No entanto, para além <strong>do</strong> tipo de pesquisa leva<strong>do</strong> a cabo, principalmente<br />

na pesquisa por palavra-passe, há que saber indicar, no motor de busca<br />

utiliza<strong>do</strong>, as directrizes necessárias para que os resulta<strong>do</strong>s sejam rápi<strong>do</strong>s,<br />

limita<strong>do</strong>s e eficientes. É o que se designa por pesquisa avançada, quer seja<br />

seleccionan<strong>do</strong> essa opção no próprio motor, quer utilizan<strong>do</strong> opera<strong>do</strong>res<br />

boleanos.<br />

Pesquisa Avançada<br />

Quase to<strong>do</strong>s os motores de busca têm esta opção, poden<strong>do</strong> utilizar-se<br />

certos filtros, de mo<strong>do</strong> a restringir ao máximo os resulta<strong>do</strong>s e a evitar o que não<br />

interessa. Assim, convém indicar sempre to<strong>do</strong>s os elementos específicos de<br />

cada ítem a pesquisar: todas as palavras importantes, <strong>do</strong>mínio (ex.:.pt,.com), etc.<br />

Esta pesquisa avançada pode ainda ser levada a cabo no campo de<br />

pesquisa geral, com a ajuda de opera<strong>do</strong>res boleanos, utiliza<strong>do</strong>s individualmente<br />

ou em conjunto:<br />

– AND ou + (para encontrar <strong>do</strong>cumentos com todas as palavras<br />

indicadas) 6 . Ex.: economia AND globalização<br />

– NOT ou – (coman<strong>do</strong> de exclusão – para indicar o que não interessa).<br />

Ex.: Glossário NOT dicionário<br />

– “ ” (para expressões ou frases, de forma a que as palavras apareçam<br />

exactamente na ordem indicada). Ex.: “Tradução Automática”<br />

– OR (procura cada uma das palavras indicadas, aumentan<strong>do</strong>, assim, as<br />

hipóteses de encontrar a informação que se procura) 7 . Ex.: Tradução OR<br />

interpretação


146<br />

Tradução e Multimédia<br />

Meta-Pesquisa<br />

Em vez de se procurar informação, consecutivamente, em vários motores,<br />

pode-se fazê-lo, simultaneamente, num só motor, por exemplo o Foreignword ou<br />

através de alguns programas como seja o Copernic Agent Basic.<br />

Depois de encontrar, há que analisar!<br />

Tão ou mais importante <strong>do</strong> que saber pesquisar e encontrar o que se<br />

pretende sem perder muito tempo, é encontrar informação credível e fiável,<br />

numa amálgama de <strong>do</strong>cumentos cuja proveniência, valor e autoria se<br />

desconhece a priori. Antes de utilizar qualquer informação online, há que validála,<br />

nomeadamente ao nível <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, através de alguns critérios, como por<br />

exemplo:<br />

– Tipo de Abordagem (é imparcial ou tendenciosa?)<br />

– Profundidade (a informação está bem estruturada ou é uma mera<br />

opinião?)<br />

– Rigor (a informação é fundamentada e está correcta, comparan<strong>do</strong>-a com<br />

outras fontes?)<br />

– Originalidade (trata-se de informação nova ou é apenas um plágio de<br />

outras fontes?)<br />

– Objectivos (qual o objectivo <strong>do</strong> sítio/ página? Informar? Vender?<br />

Publicitar?...)<br />

– Validade/actualização (a informação tem data e está actualizada?)<br />

– Autor (quem escreveu? É credível?)<br />

Sítios para tradutores<br />

Embora reconhecen<strong>do</strong> que esta temática é, quiçá, a mais atraente para o<br />

leitor deste texto, não iremos aqui alargarmo-nos demasia<strong>do</strong> em listagens de<br />

sítios úteis para o tradutor, uma vez que foi cria<strong>do</strong> um sítio – Ferramentas<br />

Electrónicas para Tradução e não só... –, como apoio à Oficina 1 da Oficina de<br />

Tradução 2003, que continua em linha e é de consulta livre em<br />

http://oficinatrad.iscap.ipp.pt/OT1index.html. Aqui, foram reuni<strong>do</strong>s alguns<br />

endereços de dicionários, glossários, bases terminológicas, enciclopédias,<br />

bibliotecas, motores de busca e de sítios para tradutores (agências de tradução,<br />

bolsas de emprego, etc.), em português, inglês, francês e alemão, <strong>do</strong>s quais<br />

gostaríamos de destacar apenas alguns, por nos parecerem de facto<br />

indispensáveis à tradução, independentemente das línguas e linguagens de<br />

trabalho ou gostos pessoais.


A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 147<br />

– Onelook – é um motor de busca de palavras, i.e., dá a indicação de várias<br />

fontes onde se podem encontrar definições (pesquisa monolingue) ou<br />

equivalentes (pesquisa multilingue) da palavra indicada;<br />

– Wordreference – é uma base de dicionários bilingues e monolingues<br />

(inglês). Neste último caso, fornece uma excelente definição <strong>do</strong>s termos;<br />

– Terminology Collection – disponibiliza uma completa colecção de<br />

dicionários e de glossários;<br />

– Lexical FreeNet – Dicionário de sinónimos excelente. Quan<strong>do</strong> não tem<br />

resposta remete para outras fontes;<br />

– Foreignword – sítio de tradução com dicionários, glossários, tradutores<br />

automáticos, etc. Excelente;<br />

– Linguateca – permite a livre consulta de dicionários, glossários, corpora<br />

(em Português!), etc. e pesquisar nos diversos catálogos (de recursos, de<br />

actores, de ferramentas computacionais);<br />

– Ciberdúvidas da Língua Portuguesa – o nome diz tu<strong>do</strong>. Indispensável;<br />

– Verbix – Conjugação de verbos em várias línguas. Pode também<br />

descarregar-se em versão freeware.<br />

Como a lista já vai longa, convidamos os nossos leitores a acederem ao<br />

sítio proposto, a analisarem os restantes endereços e a construírem a sua<br />

biblioteca digital...<br />

2.1.2 Fóruns de Discussão<br />

Como dissemos em 2.1, a nossa abordagem à Internet considera apenas a<br />

WWW e os Fóruns de Discussão, onde incluímos mailing lists, newsgroups e chats.<br />

Destes três, falaremos apenas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is primeiros, uma vez que o último está<br />

mais conota<strong>do</strong> com a utilização da Internet por lazer <strong>do</strong> que por motivos de<br />

trabalho, apesar de existirem chats de temáticas profissionais.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, não queríamos deixar de referir esta ferramenta, pois,<br />

segun<strong>do</strong> a opinião de tradutores profissionais 8 , este recurso pode, em certas<br />

ocasiões, revelar-se mais útil <strong>do</strong> que qualquer dicionário ou glossário por <strong>do</strong>is<br />

motivos:<br />

a. É uma forma de o tradutor se sentir membro de uma comunidade, o<br />

que, no caso de tradutores freelance, que não trabalhem em equipa, ajuda a<br />

quebrar a solidão e o isolamento;<br />

b. É um meio de superar as lacunas de dicionários, glossários, etc.: a<br />

experiência de outros tradutores ou o conhecimento de especialistas da<br />

área, mesmo a centenas de quilómetros de distância são, por vezes, a única<br />

maneira de conseguir definir um termo ou encontrar um equivalente<br />

váli<strong>do</strong>.


148<br />

Tradução e Multimédia<br />

Mailing Lists<br />

Como o nome indica, são listas que funcionam por correio electrónico, i.e.,<br />

são círculos de discussão temática em que os membros partilham informação.<br />

É necessário um registo prévio, o que salvaguarda participações indesejadas ou<br />

inúteis, e, a partir daí, to<strong>do</strong>s os membros recebem as mensagens uns <strong>do</strong>s<br />

outros. É um excelente recurso para se poder comunicar com outros tradutores<br />

ou linguistas, mas tem a desvantagem de poder “entupir” a caixa de correio,<br />

uma vez que o caudal de mensagens diário, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> tema em discussão<br />

e <strong>do</strong> número de membros, pode ser enorme. No sítio proposto acima podem<br />

encontrar-se algumas destas listas.<br />

Newsgroups<br />

São semelhantes às mailing lists. No entanto, têm uma participação mais<br />

alargada, o que pode trazer mais ruí<strong>do</strong> à comunicação. São grupos de discussão,<br />

disponíveis em vários servi<strong>do</strong>res (newsservers) aos quais é necessário aderir, i.e.,<br />

apesar <strong>do</strong> canal de comunicação ser também o correio electrónico, são fóruns<br />

independentes da caixa de correio, não haven<strong>do</strong> o risco desta ser entupida. As<br />

mensagens-resposta a qualquer tema proposto são automaticamente “apensas”<br />

à mensagem original, o que facilita mais a consulta e selecção <strong>do</strong> que o caudal<br />

indiferencia<strong>do</strong> das listas referidas anteriormente. Tal como estas, são<br />

igualmente um óptimo recurso para contactar especialistas de diversas áreas.<br />

3. Tradutores Automáticos<br />

São, no meio de muitas outras que aqui poderíamos referir, uma<br />

ferramenta de trabalho preciosa, por um la<strong>do</strong>, e, por outro, talvez o inimigo<br />

mais temi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s tradutores. Louvada por uns – empresas-clientes – como a<br />

solução rápida e económica que veio resolver to<strong>do</strong>s os problemas de tradução,<br />

e criticada por outros – tradutores humanos – pela falta de qualidade, falhas de<br />

transferência linguística e ameaça de extinção da classe, a TA não será nem uma<br />

coisa nem outra. Como diz Austermühl 9 ,<br />

The antiquated image of a lone translator, armed only with a pencil or a typewriter<br />

and surrounded by dusty books, is no longer realistic. However, the idea of an<br />

independently acting, errorfree translating machine is equally unrealistic and will<br />

not become a reality for a long time, if at all. 10<br />

De facto, a TA tem vantagens e desvantagens, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> texto que<br />

se pretende traduzir 11 e, para além disso, veio para ficar... e para ser


A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 149<br />

aperfeiçoada. Por outro la<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s sabemos que não há traduções perfeitas,<br />

quer sejam feitas pelo Homem, quer pela máquina. Neste contexto, a melhor<br />

solução para os tradutores, depois de tantas quezílias sobre a ameaça e falhas da<br />

TA, parece ser a de seguir a sabe<strong>do</strong>ria milenar de “se não podes vencê-los,<br />

junta-te a eles” e, dessa união, aproveitar o que de bom tem a TA para oferecer:<br />

– uma pré-tradução indicativa que pode poupar muito tempo;<br />

– uma melhoria da qualidade <strong>do</strong> serviço presta<strong>do</strong>, com o auxílio da<br />

máquina;<br />

– a ideia de que a máquina precisará sempre <strong>do</strong> Homem para ser perfeita;<br />

– a criação de novas profissões, como seja a de revisor.<br />

Assim, segun<strong>do</strong> alguns autores, a actividade de revisão <strong>do</strong>s textos<br />

traduzi<strong>do</strong>s automaticamente será a tarefa principal <strong>do</strong>s tradutores no futuro 12 ,<br />

i.e., a sua função consistirá em dar senti<strong>do</strong> à pré-tradução produzida pela<br />

máquina, já que esta não entende o que traduz, nem tem bom senso.<br />

No entanto, independentemente da perspectiva de cada um em relação a<br />

esta questão – não é nossa intenção discutir este problema aqui, apenas referilo,<br />

não como um problema mas como um desafio –, é indiscutível que a TA irá<br />

desempenhar um papel crucial neste milénio, ajudan<strong>do</strong> a derrubar as barreiras<br />

de comunicação num mun<strong>do</strong> recentemente globaliza<strong>do</strong>.<br />

CONCLUSÃO<br />

Independentemente desta previsão se concretizar ou não, a verdade é que,<br />

como em to<strong>do</strong>s os sectores, também a indústria da comunicação e da<br />

linguagem e os seus operários têm que, cada vez mais, saber trabalhar com a<br />

tecnologia. O mun<strong>do</strong> industrializa<strong>do</strong> não pára e o que interessa é ser o primeiro<br />

a chegar ao merca<strong>do</strong> global e a tradução não pode vir “depois”... Por isso, se o<br />

tradutor quiser estar à altura <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> da tradução, tem que, como dizíamos<br />

no início, estar “no local certo, à hora certa”, i.e., não pode aparecer depois <strong>do</strong><br />

produto. Tem que nascer com ele ou, pelo menos, acompanhá-lo desde muito<br />

ce<strong>do</strong>, ou seja, tem de deixar a sua “torre” e ir para a linha-de-montagem:<br />

It is obvious that translators can achieve substantial savings by having access at<br />

any one moment to full information on the design and production process<br />

languages of their clients, so that they are available in final printed form at the<br />

same time as the product is ready for marketing. (Sager, 1993: 294)<br />

Ao deixar de ser um escritor e passar a ser um “operário” especializa<strong>do</strong>, o<br />

tradutor não pode esquecer a sua mala de ferramentas, manten<strong>do</strong>-as sempre em


150<br />

Tradução e Multimédia<br />

óptimo esta<strong>do</strong> (leia-se actualizadas): recursos online, ferramentas linguísticas<br />

usadas na TA, a própria e a melhor tecnologia ao serviço da tradução.<br />

________<br />

1 A indústria automóvel, aeronáutica e farmacêutica, só para dar alguns exemplos,<br />

já utilizam há muito a tradução automática com óptimos resulta<strong>do</strong>s.<br />

2 Segun<strong>do</strong> estatísticas recentes, 75% <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> tradutor é gasto em pesquisa.<br />

3 Op. Cit..<br />

4 Uniform Resource Locator, i.e., o endereço de uma página na WWW.<br />

5 Uniform Resource Locator, i.e., o endereço de uma página na WWW.<br />

6 Em alguns motores, como o Google, não é necessário este opera<strong>do</strong>r. Esta função<br />

é assumida por defeito.<br />

7 Coman<strong>do</strong> útil, por exemplo, na pesquisa de sinónimos.<br />

8 Vide Alanen, Op.Cit.<br />

9 Op.Cit., pág. 11.<br />

10 Sublinha<strong>do</strong> nosso.<br />

11 A TA pode ser óptima a traduzir um texto informativo, pobre em estilo e<br />

ambiguidade, i.e., com uma linguagem controlada, e desastrosa na tradução de um texto<br />

com um conteú<strong>do</strong> mais literário.<br />

12 Segun<strong>do</strong> Champollion (2001), dentro de três a cinco anos, o tradutor será<br />

apenas um revisor de textos.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

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Internet”, Proseminar Paper. (20.1.2003) http://www.uta.fi/~tranuk/prosemc.htm<br />

SAGER, Juan C. (1993), Language Engineering and Translation: Consequences of<br />

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Considerations in Scientific and Technical Translation”, in Sue Ellen Wright e Leland<br />

D. Wright, Jr. (eds.) (1993), Scientific and Technical Translation, Amsterdam; John<br />

Benjamins.<br />

HERMAN, Mark, “Technical Translation Style: Clarity, Concision, Correctness”, in<br />

Sue Ellen Wright, Leland D. Wright, Jr. (eds.) (1993), Scientific and Technical Translation,<br />

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NIEDZIELSKI, Henry e Leonid Chernovaty, “Linguistic and Technical Preparation<br />

in Training of Technical Translators and Interpreters”, in Sue Ellen Wright e Leland D.


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TEAGUE, Ben, “Retooling‟ as an Adptative Skill for Translators”, in Sue Ellen<br />

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Amsterdam; John Benjamins.<br />

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Translation Industry”, in Translation Journal, Vol. 5, nº1, Janeiro de 2001. (2.2.03)<br />

http://accurapid.com/journal/15mt.htm.


SISTEMAS MULTIMÉDIA APLICADOS AO ENSINO DE TRADUÇÃO<br />

– ESTUDO DE UM CASO<br />

Manuel F. Moreira da Silva<br />

O uso recrudescente das novas tecnologias de informação conduziu ao<br />

aparecimento de novos ambientes de ensino, nos quais o computa<strong>do</strong>r, a<br />

Internet, a intranet e o software específico ocupam, em grande parte, o papel <strong>do</strong><br />

manual e da sebenta, exigin<strong>do</strong> ao professor e aos alunos novas competências e<br />

estratégias. No <strong>Instituto</strong> Superior de Contabilidade e Administração <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />

(ISCAP), os Centros Multimédia de Línguas (CML) disponibilizam um conjunto<br />

de meios destina<strong>do</strong>s ao ensino em áreas como a da Legendagem, da Tradução<br />

Assistida por Computa<strong>do</strong>r, <strong>do</strong> ensino e aprendizagem de Línguas para Fins<br />

Específicos e, ainda numa fase piloto, <strong>do</strong> ensino à distância e apoio online.<br />

Este projecto de inovação pedagógica e científica foi introduzi<strong>do</strong> no ano<br />

lectivo de 2000/2001, não só para acomodar o crescente número de alunos nas<br />

disciplinas de Tradução e Interpretação, como também para responder a uma<br />

restruturação curricular da Licenciatura em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />

Tradução Especializada. A atenção às novas realidades de um merca<strong>do</strong> cada vez<br />

mais global contribuiu igualmente para esta aposta clara na introdução das mais<br />

recentes tecnologias numa área tradicionalmente deficitária nas universidades e<br />

nos politécnicos, com o consequente e necessário reforço <strong>do</strong>s meios físicos e<br />

técnicos para a leccionação das aulas e para o desenvolvimento de projectos<br />

científicos ou de parcerias com entidades privadas.<br />

Esta aposta resultou também da percepção, por parte <strong>do</strong> ISCAP, de que a<br />

profissão <strong>do</strong> tradutor está a sofrer uma alteração profunda a to<strong>do</strong>s os níveis,<br />

provocada pela introdução das tecnologias da comunicação e informação e pela<br />

virtualização da vida empresarial, alteração que terá de conduzir,<br />

necessariamente, a uma mudança de paradigmas nas técnicas, estratégias e<br />

meto<strong>do</strong>logias de ensino.<br />

O objectivo primordial deste projecto resume-se a procurar fornecer aos<br />

alunos um ambiente de aprendizagem capaz de proporcionar uma formação de<br />

grande qualidade, que os prepare efectivamente para o merca<strong>do</strong> de trabalho e<br />

que potencie o número de oportunidades e de ofertas.<br />

Ao mesmo tempo, procura-se desenvolver condições para acompanhar,<br />

progressivamente, a inovação a que o merca<strong>do</strong> de emprego no ramo da


Sistemas Multimédia Aplica<strong>do</strong>s ao Ensino da Tradução 153<br />

tradução está sujeito, tanto em termos da alteração das meto<strong>do</strong>logias de<br />

trabalho, como das exigências de formação.<br />

Os esforços vão, assim, no senti<strong>do</strong> de reforçar a oferta de base em termos<br />

das ferramentas disponíveis para:<br />

– o ensino das línguas estrangeiras (Inglês, Francês e Alemão);<br />

– o ensino e a prática da Tradução, pelo recurso à introdução de aplicações<br />

de tradução assistida e de tradução automática;<br />

– o ensino e a prática da Interpretação Simultânea e da Interpretação<br />

Consecutiva, através de meios de transmissão e gravação de discursos em<br />

formato digital;<br />

– o ensino e a prática da Legendagem, recorren<strong>do</strong> à Legendagem em<br />

suporte digital, com aplicações de cariz pedagógico e profissional.<br />

Após uma pesquisa no merca<strong>do</strong> nacional e internacional de equipamentos e<br />

aplicações informáticas que completassem o rol de necessidades educativas<br />

previamente estabelecidas, e feita a respectiva aquisição, seguiu-se um perío<strong>do</strong><br />

de experimentação, aprendizagem e de formação <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong>cente. Este<br />

perío<strong>do</strong>, como se pode agora verificar, não foi um momento único de<br />

experimentação de novas técnicas, meto<strong>do</strong>logias e ferramentas. Foi, antes, o<br />

primeiro passo de muitos que estão a ser da<strong>do</strong>s, à medida que novas<br />

necessidades e vontades vão surgin<strong>do</strong> nas diferentes áreas que envolvem o uso<br />

das tecnologias de informação e comunicação, o que, no momento actual,<br />

corresponde a todas as áreas de ensino anteriormente identificadas.<br />

Esta constatação coloca os <strong>do</strong>centes perante novas exigências, quer em<br />

termos de percursos de ensino e de aprendizagem, quer, sobretu<strong>do</strong>, no que diz<br />

respeito às suas competências e ao conhecimento das novas tecnologias<br />

multimédia e <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s dispersos online, actividade que exige uma<br />

dedicação constante e absorvente, nem sempre devidamente reconhecida ou<br />

(re)compensada. De facto, qualquer política de inovação que abranja um<br />

departamento ou escola coloca grandes exigências de tempo e disponibilidade<br />

ao corpo <strong>do</strong>cente, que não se coadunam, por vezes, com o desenvolvimento de<br />

uma carreira académica (no senti<strong>do</strong> mais restrito <strong>do</strong> termo).<br />

O desenvolvimento deste tipo de projectos passa, assim, pela participação<br />

de grupos de <strong>do</strong>centes com um grande espírito de voluntaria<strong>do</strong> e de dedicação,<br />

recompensa<strong>do</strong>s pela participação e adesão <strong>do</strong>s alunos aos diferentes projectos e<br />

pelo efectivo reconhecimento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de trabalho, que recruta os alunos <strong>do</strong><br />

ISCAP em detrimento de outros menos bem prepara<strong>do</strong>s para responder às<br />

sempre crescentes exigências <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de trabalho nacional e internacional.


Concluí<strong>do</strong> o processo de aquisição de aplicações e de formação, o ISCAP<br />

passou a dispor de <strong>do</strong>is Laboratórios Multimédia, um com 20 postos para<br />

alunos e outro com 12, cuja utilização é feita em paralelo com <strong>do</strong>is<br />

Laboratórios de Interpretação Simultânea e Consecutiva, cada um com 15<br />

postos/cabinas. Cada laboratório multimédia disponibiliza ao <strong>do</strong>cente<br />

ferramentas que incluem, entre outros, leitores de vídeo, dvd e cassetes, a<br />

possibilidade de gravação de som e imagem entre as diferentes fontes, o acesso<br />

à Internet e a utilização de to<strong>do</strong> o tipo de suportes digitais, bem como a<br />

possibilidade de interacção e intercomunicação individual ou colectiva com os<br />

alunos, através de um sistema de intranet extremamente maleável e eficiente.<br />

Aos alunos é disponibiliza<strong>do</strong> o acesso a todas as aplicações ao dispor<br />

<strong>do</strong> professor, ao que acresce o uso de um sistema de reconhecimento de voz,<br />

que permite a captação e gravação digital <strong>do</strong>s seus discursos e interpretações ou<br />

a elaboração de exercícios de fonética e de pronúncia de grande qualidade nas<br />

três línguas ensinadas – o Inglês, o Francês e o Alemão.<br />

O funcionamento <strong>do</strong>s laboratórios é apoia<strong>do</strong> por um Centro de Recursos<br />

Multimédia, equipa<strong>do</strong> com meios de edição de som e imagem profissionais, que<br />

tem por função acompanhar a realização de eventos, gravar e editar conteú<strong>do</strong>s<br />

produzi<strong>do</strong>s no e pelo ISCAP em formato vídeo VHS e digital e desenvolver<br />

<strong>do</strong>cumentos para acrescentar ao acervo da mediateca, cuja utilização tem vin<strong>do</strong><br />

a sofrer um incremento, também em função <strong>do</strong>s novos formatos<br />

disponibiliza<strong>do</strong>s pelas editoras, cada vez mais empenhadas no desenvolvimento<br />

de conteú<strong>do</strong>s digitaliza<strong>do</strong>s e online.


Sistemas Multimédia Aplica<strong>do</strong>s ao Ensino da Tradução 155<br />

A existência <strong>do</strong> Centro de Recursos permite aos <strong>do</strong>centes a criação de<br />

recursos educacionais multimédia, o que facilita, por um la<strong>do</strong>, a aquisição de<br />

novos saberes e, por outro, a projecção e desenvolvimento de materiais,<br />

conteú<strong>do</strong>s e actividades interdisciplinares, que vão desde o estabelecimento de<br />

programas curriculares idênticos, ao longo <strong>do</strong>s vários anos da licenciatura, até<br />

ao desenvolvimento de conferências e aulas em equipa. Estes recursos, da<strong>do</strong> o<br />

seu formato digital e a não existência de direitos de autor externos, são<br />

facilmente reutilizáveis e actualizáveis, o que potencia o seu uso e origina novos<br />

projectos nas diferentes áreas.<br />

A conjugação <strong>do</strong>s elementos acima descritos originou alterações profundas<br />

no ambiente de trabalho, tornan<strong>do</strong>-se este, em alguns aspectos, mais atractivo e<br />

interactivo, sen<strong>do</strong> que a disponibilidade no acesso aos meios e aos conteú<strong>do</strong>s,<br />

acrescida da sua diversidade, potenciou a utilização de novos recursos, até aqui<br />

afasta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ambiente da sala de aula, quer por impossibilidade técnica, quer<br />

por impreparação para o seu uso, lacunas que, entretanto, foram, estão a ser ou<br />

irão ser ultrapassadas.<br />

Exemplos desta nova realidade são, entre outros a possibilidade de:<br />

– acesso rápi<strong>do</strong> in loco a <strong>do</strong>cumentos autênticos e actuais na Internet,<br />

factor de grande importância para o ensino da tradução e da interpretação,<br />

onde os discursos mais recentes contêm um maior número de elementos<br />

pertinentes e de proximidade temporal, o que permite uma melhor<br />

problematização da temática, da necessidade <strong>do</strong> seu conhecimento e da<br />

importância de uma actualização constante;<br />

– tradução e armazenamento <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s em memórias de tradução e, em<br />

simultâneo, elaboração de glossários terminológicos sobre temáticas<br />

específicas;<br />

– acesso, consulta e recolha de informação em enciclopédias, dicionários,<br />

glossários multilingues, jornais, artigos, etc., a grande velocidade;<br />

– participação em grupos de discussão e acesso a material educativo<br />

disponível apenas no espaço virtual.<br />

O trabalho em laboratório multimédia permite, também, abordagens muito<br />

diferentes ao desenvolvimento e à aplicação <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s a cada disciplina e a<br />

cada aula em concreto. Um outro aspecto fundamental e inova<strong>do</strong>r é a<br />

possibilidade de promover um ensino verdadeiramente individualiza<strong>do</strong>, no qual<br />

as potencialidades de cada aluno podem ser devidamente encorajadas e o<br />

insucesso combati<strong>do</strong>.<br />

Todas estas actividades podem decorrer de forma paralela e transversal,<br />

dentro <strong>do</strong> âmbito das várias disciplinas ou projectos de tradução propostos,


desde que enquadra<strong>do</strong>s por projectos inter e transdisciplinares, ou até<br />

interinstitucionais.<br />

Obviamente que to<strong>do</strong>s estes factores dão origem a um ambiente de<br />

ensino/aprendizagem com características particulares. De facto, a sala de aula<br />

sofre transformações que a tornam num ambiente de trabalho que podemos<br />

caracterizar como sen<strong>do</strong>:<br />

– activo: os alunos estão envolvi<strong>do</strong>s na aprendizagem e têm uma grande<br />

responsabilidade na produção e qualidade <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s (ex.: criação de<br />

memórias de tradução), bem como na gestão <strong>do</strong>s vários projectos de<br />

tradução;<br />

– colaborativo: o laboratório permite um trabalho e uma progressão<br />

conjunta e uma grande interactividade entre o professor e os alunos e,<br />

mais importante, entre diferentes grupos de trabalho;<br />

– contextualiza<strong>do</strong>: as tarefas propostas são idênticas às <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de<br />

trabalho ou baseadas em resolução de problemas (case-based/problem-based).<br />

Pretende-se que, num futuro muito próximo, estas tarefas surjam<br />

associadas a projectos de tradução autênticos, provenientes de acor<strong>do</strong>s e<br />

protocolos de cooperação já celebra<strong>do</strong>s com entidades privadas<br />

representantes <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> empresarial <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, como a EXPONOR ou a<br />

ACP;<br />

– transdisciplinar: a elaboração <strong>do</strong>s programas e o delinear de objectivos a<br />

atingir ao longo <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is anos de licenciatura nas diferentes disciplinas de<br />

cada língua é estruturada em conjunto, como é o caso da disciplina de<br />

Interpretação Simultânea e Consecutiva, permitin<strong>do</strong> assim o desenvolver<br />

de interligações e de uma formação mais coerente e consistente;<br />

– reflexivo: os alunos articulam os seus conhecimentos e reflectem, ao<br />

longo <strong>do</strong> processo de aprendizagem, sobre as tarefas a resolver e os<br />

resulta<strong>do</strong>s a obter, muitas vezes em condições que pretendem simular<br />

aquelas que potencialmente encontrarão na vida activa.<br />

Esta caracterização é, para já, o resulta<strong>do</strong> de uma análise impressionística,<br />

não pretenden<strong>do</strong> ser uma abordagem exaustiva aos paradigmas didácticos e<br />

meto<strong>do</strong>lógicos <strong>do</strong> ensino em laboratórios multimédia, até porque é nossa<br />

percepção de que muitas das actividades pedagógicas que estão a ser<br />

desenvolvidas nesta era eminentemente tecnológica, se revestem de um cariz<br />

experimental, estan<strong>do</strong> a aferição <strong>do</strong>s seus resulta<strong>do</strong>s ainda em fase de estu<strong>do</strong> e<br />

desenvolvimento.


Sistemas Multimédia Aplica<strong>do</strong>s ao Ensino da Tradução 157<br />

Ainda decorrente deste processo de introdução e desenvolvimento de aulas<br />

de tradução, interpretação e legendagem com base em sistemas multimédia,<br />

surgiu um outro projecto, que iremos abordar de forma sucinta, designa<strong>do</strong> por<br />

PAOL – Projecto de Apoio On-Line <strong>do</strong> ISCAP, que conta com a participação de<br />

várias disciplinas <strong>do</strong> curso de Tradução. Este projecto, que se encontra ainda<br />

numa fase piloto, pretende estabelecer as bases para o desenvolvimento de<br />

actividades de formação e educação à distância, que abranjam sobretu<strong>do</strong><br />

estudantes com dificuldades específicas ou com problemas em assistir às aulas<br />

em regime presencial.<br />

Dentro deste âmbito, têm vin<strong>do</strong> a ser desenvolvi<strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s para<br />

algumas disciplinas de Interpretação e de Tradução, que, à semelhança das aulas<br />

presenciais, procuram (re)criar um ambiente próximo da realidade, ainda que<br />

pelo recurso ao espaço virtual. Esta actividade requer, da parte <strong>do</strong> corpo<br />

<strong>do</strong>cente, um tipo de competências muito específicas e de grande complexidade,<br />

que se conjugam e complementam com as actividades desenvolvidas nos<br />

laboratórios multimédia, o que permite uma maior celeridade na elaboração e<br />

disponibilização <strong>do</strong>s módulos ou aulas, bem como na preparação e design <strong>do</strong>s<br />

vários componentes necessários a to<strong>do</strong> o processo de e-learning.<br />

Este é um projecto que está na sua fase embrionária, mas que procura, por<br />

um la<strong>do</strong>, avaliar as necessidades tecnológicas e o nível de relacionamento com<br />

as Tecnologias de Informação e Comunicação de <strong>do</strong>centes e discentes e, por<br />

outro, reconhecer e estabelecer padrões de formação para um futuro que se<br />

prevê não muito distante.<br />

Finalmente, e no senti<strong>do</strong> de reforçar to<strong>do</strong> este processo de ensino e de<br />

aprendizagem, têm vin<strong>do</strong> a ser estabelecidas ligações com entidades e/ou<br />

associações empresariais, algumas das quais já aqui referidas, através da<br />

celebração de protocolos, no senti<strong>do</strong> de reforçar a ligação da instituição com o<br />

meio envolvente e, em especial, para permitir aos alunos <strong>do</strong> curso de Tradução<br />

e Interpretação Especializada um maior número de experiências, quer sobre a<br />

forma de estágios, quer de participação em eventos, fornecen<strong>do</strong> serviços de<br />

tradução e interpretação. Estas ligações ao exterior surgem como mais uma<br />

consequência <strong>do</strong> rumo e <strong>do</strong> investimento inicial, que contribuem decisivamente<br />

para credibilizar o curso, o trabalho realiza<strong>do</strong> pelo corpo <strong>do</strong>cente e a formação<br />

oferecida aos alunos.<br />

Feita a reflexão sobre as condições em que decorre o processo de formação<br />

<strong>do</strong>s futuros tradutores e intérpretes nos laboratórios <strong>do</strong> ISCAP, interessaria<br />

agora equacionar algumas das práticas que a enformam. No entanto, esta<br />

questão, bem como outras <strong>do</strong> foro pedagógico não cabem nesta nossa análise,


uma vez que o seu tratamento ocuparia mais <strong>do</strong> que um artigo e só seria<br />

coerente se retratasse e desse voz às experiências e vivências <strong>do</strong>s vários actores<br />

de cada disciplina e de cada projecto.<br />

Terminamos com as primeiras palavras de Frank Austermühl, no seu livro<br />

Electronic Tools for Translators, que afirma:<br />

The main task of translation – the transfer of technical and cultural information –<br />

can now only be achieved through the use of extensive knowledge bases. As a<br />

knowledge-based activity, translation requires new strategies and a paradigm shift<br />

in metho<strong>do</strong>logy. This shift must embrace practice, teaching and research.<br />

(Austermühl, 2001:1)


Sistemas Multimédia Aplica<strong>do</strong>s ao Ensino da Tradução 159


A NOVA TORRE DE BABEL<br />

– QUE FUTURO PARA A TRADUÇÃO AUTOMÁTICA?<br />

Sara Cerqueira<br />

E o Senhor disse: «Eles constituem apenas um povo e falam uma única<br />

língua. Se principiarem desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de<br />

futuro, de realizarem to<strong>do</strong>s os seus projectos. Vamos, pois, descer e<br />

confundir de tal mo<strong>do</strong> a linguagem deles que não se compreendam uns<br />

aos outros». E o Senhor dispersou-os dali para toda a face da terra, e<br />

suspenderam a construção da cidade. Por isso, lhe foi da<strong>do</strong> o nome de<br />

Babel, visto ter si<strong>do</strong> lá que o Senhor confundiu a linguagem de to<strong>do</strong>s os<br />

habitantes da terra.<br />

Génesis, 11, 1-9<br />

Poderá, um dia, a tradução automática suprimir ou dissipar as diferenças<br />

que bloquearam e obstruíram a comunicação na mítica torre babeliana? Será a<br />

tradução automática capaz de diluir as diferenças linguísticas que separam as<br />

comunidades humanas? Estas perguntas são, provavelmente, as que ocorrem ao<br />

público em geral, quan<strong>do</strong> ouve falar de uma nova descoberta em Inteligência<br />

Artificial ou de uma nova aplicação informática para tradução. A curiosidade e<br />

o entusiasmo <strong>do</strong> público não-especialista contrasta, não raras vezes, com algum<br />

cepticismo e desconfiança de tradutores e teóricos da tradução 1 .<br />

A proliferação <strong>do</strong> acesso a tradutores automáticos disponíveis na Internet<br />

conduziu, por um la<strong>do</strong>, à disseminação da obtenção de informação e obriga,<br />

por outro, a uma requalificação e re-orientação de formação da profissão de<br />

tradutor, que terá, necessariamente de passar por uma abordagem destas novas<br />

tecnologias. Este imperativo, nem sempre é bem aceite pelos profissionais de<br />

tradução. Considerar, porém, a TA utópica, arrogante e insolente, só porque os<br />

resulta<strong>do</strong>s que se obtiveram são nitidamente incipientes e até mesmo<br />

anedóticos, não nos deve fazer voltar as costas a uma realidade que não só<br />

existe, como tem também provas dadas em vários campos. Ver a TA como uma<br />

ameaça para o futuro <strong>do</strong>s tradutores e a virtualização <strong>do</strong> trabalho de tradução<br />

como um monstro desumaniza<strong>do</strong>r, só encurta os horizontes de conhecimento<br />

e, logo, uma das qualidades imperativas de um bom tradutor, a assimilação de<br />

conteú<strong>do</strong>s e a adaptação a uma realidade em constante mudança. “It is clear<br />

that machine translation will play an important role in the new millennium,<br />

helping to bring <strong>do</strong>wn the communication barriers in the newly interconnected


A Nova Torre de Babel 161<br />

world. It is up to us translators to explain to the general public what machine<br />

translation is, what are its strengths and weaknesses, and what is its likely role in<br />

the future development of our civilization” (Vitek, 2000: 7). Um uso<br />

profissional e meto<strong>do</strong>logicamente correcto da TA requer, aliás, as competências<br />

de um tradutor humano e especializa<strong>do</strong>, uma vez que, como adiante se dirá, as<br />

mais recentes aplicações de TA incluem avanços qualitativos, tais como a pré e<br />

pós-edição.<br />

Hoje em dia, não se pode descurar o papel das novas tecnologias aplicadas<br />

ao processo tradutivo, nomeadamente as mais recentes aplicações informáticas,<br />

arriscan<strong>do</strong>-se o tradutor, se o fizer, a tornar-se obsoleto e inadapta<strong>do</strong>. A<br />

principal tarefa <strong>do</strong> tradutor só poderá, <strong>do</strong>ravante, ser compreendida num<br />

contexto de globalização, especialização e digitação e requer um novo<br />

paradigma teórico-prático onde deverá, obrigatoriamente, constar a<br />

incorporação <strong>do</strong>s recursos da linguagem electrónica e das novas ferramentas de<br />

tradução assistida por computa<strong>do</strong>r. O uso da Tecnologia de Informação e<br />

Comunicação (TIC) é, nos nossos dias, um fait accompli. E não são somente os<br />

prazos e as pressões editoriais que convencem os tradutores a um uso extensivo<br />

das Tecnologias da Informação e Comunicação. A exposição a uma<br />

meto<strong>do</strong>logia correcta no uso de ferramentas electrónicas acarretará uma<br />

automatização <strong>do</strong> trabalho de tradução, que apoia os tradutores na<br />

incrementação exponencial da qualidade e eficiência <strong>do</strong>s seus serviços.<br />

São, pois, <strong>do</strong>is os factores a considerar na abordagem <strong>do</strong> uso da TIC:<br />

– melhoria da qualidade;<br />

– aumento da produtividade.<br />

Urge, pois, descobrir as várias aplicações existentes, bem como<br />

compreender as suas utilizações actuais e os seus desafios futuros. Para este<br />

efeito, ir-se-á, num primeiro momento, recuar no tempo e conhecer um pouco<br />

da história e evolução da TA, para, de seguida, se proceder a uma tipologização<br />

das diferentes ferramentas de TA.<br />

BREVE HISTORIAL DA TRADUÇÃO AUTOMÁTICA<br />

O primeiro marco da história da tradução automática (TA) deve datar-se<br />

no início <strong>do</strong>s anos 40, quan<strong>do</strong> a recém-fundada ciência informática se propôs<br />

como primeira tarefa a de desenvolver aplicações de tradução automática,<br />

potenciada pela explosão na transmissão de informação e pela errónea<br />

facilidade de decalcar uma técnica humana aparentemente simples: a tradução.


162<br />

Tradução e Multimédia<br />

O início da guerra-fria iria, em 1946, dar o primeiro impulso a este<br />

processo, sustenta<strong>do</strong> pela necessidade de obter informações soviéticas à<br />

distância, da forma mais rápida e eficiente possível. O inglês Booth e o<br />

americano Warren Weaver iriam entrar na história como os percursores da<br />

tradução automática, deven<strong>do</strong>-se-lhes a criação de uma calcula<strong>do</strong>ra científica<br />

com da<strong>do</strong>s suficientes para fazer tradução palavra por palavra, alheada de<br />

qualquer tipo de consideração sintáctica ou da ordem lexical (Alfaro, 1998:05).<br />

Weaver, antigo presidente da Fundação Rockefeller, concebia a TA de forma<br />

bastante simplista, ao sustentar que o processo de tradução seria basicamente<br />

análogo ao processo de descodificação de códigos para fins militares. Estava<br />

largamente convenci<strong>do</strong> de que esta modalidade era um objectivo facilmente<br />

alcançável, dan<strong>do</strong> origem a um movimento de crescente interesse pela TA, bem<br />

como à fundação de diferentes grupos de investigação nos EUA e na Europa.<br />

Em 1948, o inglês Richens introduziria melhorias na máquina<br />

desenvolvida por Booth e Weaver, nomeadamente informações relativas à<br />

análise gramatical das desinências russas. Em 1950, Weaver proporia a<br />

exploração automática <strong>do</strong> contexto terminológico, visan<strong>do</strong> solucionar as<br />

ambiguidades semânticas. Desde esta data, com reflexões como as de Reifleir,<br />

que insistia na necessidade de preparação prévia <strong>do</strong>s textos submeti<strong>do</strong>s a<br />

tradução automática, começa a delinear-se um paradigma de reflexão que torna<br />

imperativos a pré-edição, o auxílio humano durante a tradução e/ou a revisão<br />

de textos.<br />

Ainda durante a década de 50, várias investigações envidam esforços no<br />

senti<strong>do</strong> de desenvolver a tradução automática. A primeira conferência sobre TA,<br />

realizada no Massachusetts Institute of Technology, dava grande azo ao<br />

optimismo e ao entusiasmo característicos desta primeira fase de pesquisas. Os<br />

trabalhos concluiriam da necessidade primordial de orientar os paradigmas<br />

meto<strong>do</strong>lógicos lexicalmente, enquanto as análises sintáctica e semântica <strong>do</strong><br />

texto eram relegadas para um plano secundário. Até aos anos 50 e inícios <strong>do</strong>s<br />

anos 60, os investiga<strong>do</strong>res estavam plenamente convenci<strong>do</strong>s que seria possível<br />

desenvolver sistemas que produzissem “Fully automatic high-quality machine<br />

translation” (FAHQMT). Rapidamente se perceberia que nem tu<strong>do</strong> seria tão fácil.<br />

Chega<strong>do</strong>s aos anos 60, já o desânimo e o cepticismo se tinham apodera<strong>do</strong><br />

mesmo <strong>do</strong>s que se mostraram mais optimistas. “As aplicações práticas não<br />

correspondiam às previsões teóricas e a linguística formal não conseguia<br />

explicar problemas liga<strong>do</strong>s a estruturas, processos, funções e formas que se<br />

multiplicavam” (Alfaro, 1998:07). As traduções palavra por palavra não<br />

conseguiam produzir resulta<strong>do</strong>s inteligíveis e a formalização das regras


A Nova Torre de Babel 163<br />

sintácticas a partir das gramáticas não era suficiente para abarcar to<strong>do</strong>s os<br />

aspectos linguísticos observáveis. O cientista norte-americano Bar-Hillel será<br />

uma das vozes mais críticas das orientações das pesquisas da época,<br />

sublinhan<strong>do</strong> o facto de a resolução das ambiguidades semânticas patentes nas<br />

diferentes línguas só ser possível graças à introdução de quantidades<br />

inestimáveis de conhecimentos enciclopédicos. É famoso o exemplo da<strong>do</strong> por<br />

Bar-Hillel, ao apontar os problemas que um programa de TA encontraria ao<br />

traduzir frases como: “Little Peter was looking for his toy box. The box was in<br />

the pen”. Bar-Hillel argumenta que esta passagem será correctamente<br />

interpretada somente quan<strong>do</strong> se tem o conhecimento <strong>do</strong> tamanho típico de<br />

canetas e caixas para que se reconheça a impossibilidade de se colocar uma<br />

caixa dentro de uma caneta. Assim, recorre-se a um contexto infantil, onde<br />

“pen” se refere a “playpen”. Segun<strong>do</strong> Bar-Hillel, um computa<strong>do</strong>r nunca<br />

poderia ser provi<strong>do</strong> de conhecimento suficiente para lidar com este tipo de<br />

problema; os objectivos das pesquisas em TA deveriam, por consequência, ser<br />

mais modestos (Bar-Hillel, 1964).<br />

A desilusão definitiva virá com o relatório ALPAC (Automatic Language<br />

Processing Advisory Committee) – encomenda<strong>do</strong> pelos principais investi<strong>do</strong>res norteamericanos<br />

– que, em linhas gerais, concluiu da ausência de necessidade da TA,<br />

dada a relativa inexistência de procura, negan<strong>do</strong>, igualmente, a futura redução<br />

efectiva <strong>do</strong>s custos e a improbabilidade imediata de a TA produzir traduções de<br />

textos de linguagem geral sem a intervenção humana. Estas conclusões, embora<br />

parciais e tendenciosas, conduziriam ao descrédito da TA e as verbas<br />

governamentais para o desenvolvimento de investigação sofrerão cortes<br />

radicais. Efectivamente, facilmente se rebaterá qualquer um destes pontos,<br />

como manifesta Frank Austermühl:<br />

In view of what we know about the constantly growing volume of texts to be<br />

translated, the first point made by the ALPAC Report particularly seems quite<br />

short-sighted. Although widely condemned as being narrow and biased, the<br />

ALPAC Report had considerable influence on MT research in the 1960‟s. It led to<br />

the virtual end of US government funding and most MT projects were stopped.<br />

(2001:156)<br />

Nos EUA, apenas alguns cientistas e esforços isola<strong>do</strong>s persistem nos seus<br />

estu<strong>do</strong>s, como é o caso de Peter Toma, responsável pelo desenvolvimento <strong>do</strong><br />

Systran (http://www.systransoft.com).<br />

Os anos 80 trarão novo fôlego à investigação em tradução automática. O<br />

interesse recrudescente por parte de diversas instituições, nomeadamente da<br />

CEE, que em 1976 comprará o Systran, o aumento exponencial da


164<br />

Tradução e Multimédia<br />

informatização e o desenvolvimento da linguística formal esboçariam um<br />

quadro de circunstâncias ideais para que a inteligência artificial e a TA<br />

recebessem novo alento e apoios financeiros. É de destacar o papel<br />

preponderante desempenha<strong>do</strong> pela UE, que desde sempre se notabilizou e<br />

distinguiu como bastião contra a uniformização linguística, garantin<strong>do</strong> a cada<br />

um <strong>do</strong>s seus actuais 15 países membros o direito de usar a sua língua oficial nas<br />

instituições europeias. O Systran é hoje em dia, aliás, usa<strong>do</strong> extensivamente pela<br />

Comissão Europeia que, já no início <strong>do</strong>s anos 80, decidiu fundar um projecto<br />

ambicioso com vista a desenvolver um sistema multilíngue para as línguas <strong>do</strong>s<br />

países membros – o EUROTRA<br />

(http://www.ccl.kuleuven.ac.be/about/EUROTRA.htlm). Equipas de cada<br />

país membro, num total de cerca de cem linguistas, desenvolvem méto<strong>do</strong>s e<br />

paradigmas de análise da sua língua. Paralelamente, os investimentos da<br />

indústria privada abririam novos horizontes ao desenvolvimento de projectos<br />

de TA e de Tradução Assistida por Computa<strong>do</strong>r (TAC).<br />

Com efeito, a partir da década de 80, os estu<strong>do</strong>s e investigações em TA<br />

passam a orientar-se segun<strong>do</strong> objectivos mais realistas e modestos, instiga<strong>do</strong>s<br />

pelos fracassos sucessivos de um projecto demasiadamente ambicioso. A<br />

focalização passou então a ser, não a de produzir um sistema capaz de gerar<br />

uma tradução correcta sem intervenção humana, mas, ao invés, a de<br />

desenvolver aplicações informáticas que auxiliassem a tradução e programas de<br />

tradução automática que permitissem a intervenção humana. A principal meta<br />

da pesquisa em TA passou a ser a oferta de instrumentos eficazes, que num<br />

espaço de tempo razoável possam ajudar o tradutor humano, tornan<strong>do</strong> o seu<br />

desempenho mais rápi<strong>do</strong>, menos repetitivo e menos monótono.<br />

DA TRADUÇÃO HUMANA À TRADUÇÃO AUTOMÁTICA: TIPOLOGIAS<br />

Uma primeira abordagem da TA deverá, por conseguinte, incluir uma<br />

tipologização das várias ferramentas electrónicas disponíveis, de forma a que se<br />

distinga o largo espectro de aplicações existentes, funcionan<strong>do</strong> esta<br />

categorização como ponto de partida para uma reflexão epistemológica sobre<br />

os seus usos, possibilidades e avaliação. O modelo mais divulga<strong>do</strong> é<br />

provavelmente o que diz respeito ao grau de automatização <strong>do</strong> processo de<br />

tradução, fazen<strong>do</strong> apelo aos diversos acrónimos em inglês, usa<strong>do</strong>s para<br />

descrever este processo:<br />

· HT (Human Translation): Tradução Humana


A Nova Torre de Babel 165<br />

· CAT (Computer-Assisted Translation): Tradução Assistida por<br />

Computa<strong>do</strong>r<br />

· HAMT (Human-Aided Machine Translation): Tradução Automática<br />

Com Pós-Edição<br />

· MAHT (Machine-Aided Human Translation): Tradução Humana<br />

Assistida por Computa<strong>do</strong>r<br />

· MT (Machine Translation): Tradução Automática<br />

· FAHQMT (Fully Automatic High Quality Machine Translation):<br />

Tradução Automática de Alta Qualidade<br />

Os termos MAHT e HAMT estão normalmente agrupa<strong>do</strong>s no acrónimo CAT<br />

(Tradução Assistida por Computa<strong>do</strong>r). Esta listagem apresenta-nos um grau<br />

crescente de automatização <strong>do</strong> processo tradutivo, que vai da Tradução humana<br />

à Tradução inteiramente Automática de Alta qualidade, passan<strong>do</strong> pelos sistemas<br />

de tradução Assistida por Computa<strong>do</strong>r.<br />

Embora a FAHQMT – o mais extremista <strong>do</strong>s conceitos – esteja longe<br />

<strong>do</strong>s objectivos sonha<strong>do</strong>s nos anos 40 e 50, ela tem numerosas provas dadas em<br />

três sectores de vital importância para a economia. Referimo-nos aos sectores<br />

aeronáutico, farmacêutico e meteorológico, que conseguiram alcançar um <strong>do</strong>s<br />

objectivos fundamentais persegui<strong>do</strong>s pela TA, o de reduzir os custos e aumentar<br />

a rapidez de execução, sem descurar a qualidade. Como foi isso possível?<br />

Mediante a limitação da terminologia empregue, alicerçada numa extrema<br />

simplicidade sintáctica. No caso da indústria aeronáutica, por exemplo, os<br />

limites terminológicos são de cerca de três mil palavras 2 .<br />

É óbvio, tal como defende Melby, que no momento actual das<br />

investigações, os sistemas de TA bem sucedi<strong>do</strong>s só podem ser compreendi<strong>do</strong>s<br />

num contexto de especialização. “Current techniques in machine translation<br />

produce fully-automatic high quality translation only when applied to a body of<br />

similar texts which are all restricted to the same <strong>do</strong>main. The texts must be<br />

static in that they <strong>do</strong> not contain new metaphors, allusions or grammatical<br />

constructions.” (Melby, Abril, 1999). O facto é que a maioria <strong>do</strong>s sistemas de<br />

TA depende <strong>do</strong> auxílio humano, preven<strong>do</strong> quer a pós quer a pré-edição, o<br />

recurso a dicionários electrónicos ou a memórias de tradução, ou seja, cada vez<br />

mais se deve entender a TA como uma Tradução Assistida.<br />

Na última década, foram gastas inúmeras verbas no desenvolvimento e<br />

marketing de produtos capazes de cobrir de forma completa o processo<br />

tradutivo. Os produtos, idealiza<strong>do</strong>s para automatizar a tradução de forma


166<br />

Tradução e Multimédia<br />

(quase) completa são, a saber: as memórias de tradução; as ferramentas de<br />

software de localização; e os sistemas de tradução automática:<br />

• As memórias de Tradução: tais como o IBM Translation Manager<br />

(http://www-4.ibm.com/software/ad/translat/), o Déjà Vu<br />

(http://www.atril.com) e o TRADOS – Translators Workbench<br />

(http://www.tra<strong>do</strong>s.com), são arquivos de texto multilingues conten<strong>do</strong><br />

textos segmenta<strong>do</strong>s, alinha<strong>do</strong>s e classifica<strong>do</strong>s, que permitem o<br />

armazenamento e/ou busca de segmentos textuais, através <strong>do</strong> alinhamento<br />

de textos de partida com textos de chegada.<br />

• O Software de Localização: como o Corel Catalist, que permite adaptar<br />

um produto à situação específica <strong>do</strong> seu merca<strong>do</strong> alvo, retratan<strong>do</strong> a<br />

máxima “think globally, act locally”. Os sistemas de localização traduzem<br />

os textos adaptan<strong>do</strong>-os às normas culturais <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> local. Numa só<br />

aplicação, combinam-se várias funções relevantes numa tradução:<br />

extracção terminológica, busca automática de glossários, memórias de<br />

tradução e editores WYSIWYG (What you see is what you get).<br />

• A Tradução Automática: uma máquina que converta a língua de partida<br />

numa versão perfeita da língua de chegada, sem qualquer tipo de<br />

interferência humana. Como já vimos, após uma fase de grande<br />

investimento em pesquisa em tradução automática, os investiga<strong>do</strong>res<br />

voltaram-se para projectos menos ambiciosos, usan<strong>do</strong> textos de estrutura<br />

sintáctica simples e campos enciclopédicos ou terminológicos<br />

extremamente reduzi<strong>do</strong>s; são exemplos o Systran, ou o TAUM-Meteo.<br />

Se até há bem pouco tempo, estas diferentes aplicações pareciam<br />

irreconciliáveis e as firmas que os produziam e comercializavam mantinham<br />

uma postura perante o merca<strong>do</strong> de forte concorrência, hoje em dia, e<br />

nomeadamente em conferências internacionais, as investigações parecem<br />

concorrer no senti<strong>do</strong> de uma concertação de esforços, com o objectivo final de<br />

produzir aplicações informáticas, que com maior rapidez e fiabilidade possam<br />

traduzir uma língua de partida numa língua de chegada. Com efeito, quer os<br />

investiga<strong>do</strong>res em memórias de tradução quer os que desenvolvem aplicações<br />

de TA, que até hoje viviam de costas voltadas, podem, num futuro próximo,<br />

unir experiências para optimizar as ferramentas já disponíveis, nomeadamente<br />

cruzan<strong>do</strong> as regras de simplicidade sintáctica e terminológica de uns, com as<br />

milhões de memórias de tradução, de outros. Estaremos, então, a construir uma<br />

nova Torre de Babel?


A Nova Torre de Babel 167<br />

________<br />

1 Tal é o caso de autores como Melby ou Vitek que, embora reconhecen<strong>do</strong> o<br />

papel que a Tradução Automática desempenha, negam a possibilidade de, no futuro, ela<br />

conseguir produzir resulta<strong>do</strong>s de qualidade semelhante à da tradução humana, quan<strong>do</strong><br />

aplicada a textos de linguagem geral.<br />

2 É exemplar o caso <strong>do</strong> sistema TAUM-METEO, que traduz, directa e<br />

automaticamente, boletins meteorológicos <strong>do</strong> inglês para o francês, sem qualquer tipo<br />

de revisão ou pós-edição. O seu sucesso deve-se, em grande parte, à limitação <strong>do</strong> texto<br />

de partida numa sublíngua, em que a estrutura sintáctica e a terminologia empregues<br />

são restritas, repetitivas e simples.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

ALFARO, Carolina (1998) Descobrin<strong>do</strong>, Compreenden<strong>do</strong> e Analisan<strong>do</strong> a Tradução<br />

Automática. Monografia de Fim de Curso de Especialização em Tradução<br />

Inglês/Português, PUC-Rio de Janeiro.<br />

ARNOLD, D. et al. (1994) Machine Translation: an Introduction Guide, Lon<strong>do</strong>n, NCC<br />

Blackwell<br />

AUSTERMÜHL, Frank (2001) Electronic Tools for Translators, Massachusetts, Saint<br />

Jerome.<br />

BAR-HILLEL (1964) Language and Information. Selected essays on their theory and<br />

application, Massachusetts, Addison-Wesley Publishing Company.<br />

GERBER, Laurie Working Toward Success in Machine Translation. Disponível em:<br />

http://www.elsnet.org/mt2010/gerber.pdf.<br />

GUESSOUM, A., ZANTOUT, R. Semi-Automatic Evaluation of the Grammatical<br />

Coverage of Machine Translation Systems, Disponível em:<br />

http://wwweamt.org/summitVIII/papers/guessoum.pdf.<br />

MELBY, Alan K. (1995) The Possibility of Language, Amsterdam & Philadelphia,<br />

Benjamins.<br />

(1999) «Machine Translation and Philosophy of Language», Machine<br />

Translation Review, nº9, pp. 6-17, Disponível em:<br />

http://www.bcs.org.uk/siggroup/sg37.htm.<br />

(1999) “Why Can‟t a Computer Translate More Like a Person?” – 1995 Barker<br />

Lecture, Disponível em: http://www.ttt.org/theory/mt4me/index.htlm.<br />

SPECIA, Lucia, RINO, Maria Helena Macha<strong>do</strong> (2002) Introdução aos Méto<strong>do</strong>s e<br />

Paradigmas de Tradução Automática, Série de Relatórios <strong>do</strong> Núcleo Interinstitucional de<br />

Linguística Computacional, NILC – ICMC-USP, São Paulo.<br />

VITEK, S.V. (2000) «Reflections of a Human Translator on Machine Translation<br />

or Will Translation MT Become the “Deus Ex Machina” Rendering Humans Obsolete


168<br />

Tradução e Multimédia<br />

in an Age When “Deus Est Machina”?» Translation Journal, Volume 4, Nº3, Disponível<br />

em:http://www.accurapid.com/journal/13mt.htm.


ALGUNS RECURSOS EM LINHA<br />

Filipe Pinto 1<br />

Os Dicionários, coita<strong>do</strong>s, sabem<br />

o que dizem, mas não sabem falar.<br />

Miguel Esteves Car<strong>do</strong>so<br />

Esta recolha de recursos „em linha‟ incidiu sobre as seguintes áreas:<br />

1. Dicionários e Glossários<br />

2. Sítios sobre Tradução<br />

3. Oportunidades de Emprego<br />

4. Directórios<br />

5. Outras hiperligações<br />

1. Dicionários & Glossários<br />

Além das páginas oficiais das editoras, é possível também encontrar<br />

páginas que reunem os mais varia<strong>do</strong>s dicionários gerais e específicos, assim<br />

como glossários. Aqui são da<strong>do</strong>s alguns exemplos:<br />

A) Yourdictionary.com<br />

É um <strong>do</strong>s sítios mais completos e dedica<strong>do</strong> quase exclusivamente a<br />

dicionários, conforme o nome indica. Só de língua portuguesa estão presentes<br />

mais de 30 dicionários e glossários. Contêm várias combinações linguísticas.<br />

Existe ainda uma secção de tradução. Para aumentar o conhecimento <strong>do</strong> Inglês,<br />

é possível receber diariamente por e-mail a palavra <strong>do</strong> dia.<br />

B) M-W.com<br />

É o sítio de uma das mais conhecidas editoras de obras de referência:<br />

Merriam-Webster. Além de ser possível procurar qualquer palavra de língua<br />

inglesa, distingue-se <strong>do</strong>s outros por conter um dicionário de sinónimos.<br />

Encontra-se aqui também jogos de palavras, etimologia. É possível encomendar<br />

dicionários e existe um dicionário gratuito que se pode adicionar ao browser.<br />

1 Aluno da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de Tradução<br />

Especializada.


C) Glossarist.com<br />

Talvez o sítio mais completo exclusivamente dedica<strong>do</strong> a glossários.<br />

Infelizmente, o português não é considera<strong>do</strong>. Mas, ainda assim, pode ser<br />

bastante útil numa retroversão, já que é muito preciso e aborda uma infinidade<br />

de temáticas (ex: vinho ou hidrologia).<br />

D) Onelook.com<br />

O onelook.com é um sítio que compreende mais de 800 dicionários<br />

indexa<strong>do</strong>s. Basta escrever a palavra ou expressão no motor de busca e ele<br />

direcciona a mesma para um <strong>do</strong>s dicionários indexa<strong>do</strong>s. Por outro la<strong>do</strong>,<br />

podemos nós mesmos ter acesso à lista de dicionários a pesquisar.<br />

E) Foreignword.com<br />

Funciona à base de um motor de busca, onde basta a simples introdução<br />

da palavra acerca <strong>do</strong> assunto pretendi<strong>do</strong> (por exemplo: engenharia, medicina),<br />

para termos acesso imediato a dicionários e glossários específicos. Inclui um<br />

fórum, onde é possível discutir sobre tradução, dicionários na web, memórias de<br />

tradução, entre outros aspectos.<br />

2. Sítios sobre Tradução<br />

Esta secção versa não apenas sobre sítios que ajudem de alguma forma a<br />

fazer uma tradução, mas também sobre outros que falem <strong>do</strong> fenómeno da<br />

tradução.<br />

A) http://accurapid.com/Journal<br />

O subtítulo da publicação diz tu<strong>do</strong>: “A publication for translators by<br />

translators about translators and translation”.<br />

Aqui, é possível ler artigos sobre tradução, ter acesso aos números<br />

anteriores da publicação, etc. Disponibiliza ainda uma série de ferramentas úteis<br />

para tradução.<br />

B) http://europa.eu.int/eurodicautom/controller<br />

Sítio oficial de tradução da União Europeia. Faculta a pesquisa por áreas<br />

temáticas. É possível traduzir de e para qualquer língua da União Europeia.<br />

Ajuda a criar um padrão terminológico e linguístico europeu.<br />

C) Lai.com/lai/companion.html


Alguns Recursos em Linha 171<br />

O próprio sítio define-se como “The Translator‟s Home Companion”.<br />

Aqui, é possível estar-se a par das últimas notícias sobre tradução, ter acesso a<br />

glossários e a motores de busca só sobre tradução e interpretação, procurar<br />

empregos, entrar em contacto com agências de tradução e organizações e<br />

também recolher informações actualizadas sobre conferências e seminários.<br />

D) Linguateca.pt<br />

É o sítio onde se encontra o Corpus português. Qualquer palavra, por<br />

exemplo, saída no jornal Público, mas não só, bem como o contexto em que foi<br />

utilizada, fica armazenada na base de da<strong>do</strong>s. Também é possível pesquisar<br />

expressões estrangeiras (desde que publicadas). Disponibiliza uma série de<br />

ferramentas (incluin<strong>do</strong> a tradução automática), bem como o acesso a léxicos<br />

gerais e especializa<strong>do</strong>s. Permite a consulta de teses sobre língua portuguesa,<br />

assim como o acesso a várias outras funções.<br />

E) Multilingual.com<br />

“Multilingual” é o nome de uma publicação sobre linguagem. É<br />

fundamentalmente vocacionada para a tradução. Permite o acesso em linha aos<br />

artigos sem necessidade de qualquer subscrição. Permite ainda procurar<br />

empregos que tenham si<strong>do</strong> anuncia<strong>do</strong>s numa secção criada para o efeito, estar a<br />

par das últimas novidades na área de tradução e conhecer os eventos dedica<strong>do</strong>s<br />

à tradução que se vão realizar brevemente.<br />

3. Oportunidades de Emprego<br />

Com o rápi<strong>do</strong> desenvolvimento tecnológico actual, torna-se mais fácil<br />

acompanhar o merca<strong>do</strong> de trabalho. Nos dias que correm, é mais fácil ter<br />

acesso a oportunidades de trabalho que de outra forma nos passariam<br />

despercebidas. Embora a concorrência seja obviamente maior, o merca<strong>do</strong><br />

também é cada vez mais livre. Estão presentes na internet alguns sítios<br />

dedica<strong>do</strong>s ao merca<strong>do</strong> de trabalho e à tradução, onde é possível competir com<br />

outros tradutores por trabalhos coloca<strong>do</strong>s por agências de tradução, empresas<br />

ou individuais.<br />

A) Proz.com<br />

A Proz.com é uma agência de emprego apenas dedicada à tradução.<br />

Depois de nos registarmos e colocarmos o nosso currículo em linha, as<br />

oportunidades de trabalho relacionadas com o nosso currículo ser-nos-ão<br />

enviadas via e-mail. Infelizmente, também são enviadas para dezenas de outros<br />

tradutores, mas é sempre possível disputar os trabalhos.


O sítio constitui igualmente um ponto de discussão onde é possível<br />

esclarecer ou tirar dúvidas de tradução. É possível tornar-se membro especial<br />

(sob pagamento), de mo<strong>do</strong> a ter acesso a uma maior quantidade de trabalhos.<br />

Inclui glossários cria<strong>do</strong>s pelos membros, mas que podem ser consulta<strong>do</strong>s<br />

gratuitamente.<br />

B) Aquarius.net<br />

É muito semelhante ao Proz.com, embora menos completo. Funciona da<br />

mesma forma (receber a proposta, fazer a oferta). Faz igualmente a distinção<br />

entre os membros. Permite que coloquemos o nosso perfil, para que os clientes<br />

tenham acesso ao mesmo. Publica uma newsletter mensal. Fornece ligações para<br />

vários <strong>do</strong>mínios da tradução.<br />

C) Xtranslation.com<br />

Mais um sítio em que é possível ter acesso a trabalhos de tradução, mas ao<br />

contrário <strong>do</strong>s anteriores, não tem nenhum carácter económico. É possível<br />

aceder a dicionários e glossários, bastan<strong>do</strong> para tal seleccionar a língua<br />

pretendida. Disponibiliza ainda outras ferramentas. Faz uma série de<br />

recomendações sobre livros de tradução.<br />

D) Foreignword.biz<br />

Este é um sítio onde cerca de 7000 profissionais de tradução estão<br />

regista<strong>do</strong>s. Além de ser possível procurar trabalhos através <strong>do</strong> motor de busca<br />

ou receber trabalhos (depois de colocarmos o currículo), oferece ainda uma<br />

série de aplicações, tais como programas informáticos de tradução, glossários,<br />

dicionários, etc...<br />

4. Directórios<br />

A função principal <strong>do</strong>s directórios é a de reunir informação específica no<br />

âmbito de determinada área. Apresentam a vantagem de nos oferecerem<br />

imediatamente várias alternativas para o mesmo assunto.<br />

A) Translationresearch.com<br />

Um sítio que se subdivide em várias categorias, todas relacionadas com<br />

tradução. Fornece as hiperligações para, por exemplo, várias organizações de<br />

tradução espalhadas pelo mun<strong>do</strong>, teoria da tradução, publicações, ferramentas,<br />

educação. Faz ainda uma distinção nos vários tipos de tradução (técnica,<br />

médica, literária, jurídica).


Alguns Recursos em Linha 173<br />

B) Lexicool.com<br />

O lexicool.com é um directório de dicionários bilingues e multilíngues.<br />

To<strong>do</strong>s os dicionários gratuitos presentes na net são indexa<strong>do</strong>s ao sítio. No sítio,<br />

está presente um motor de busca, onde o utiliza<strong>do</strong>r pode escolher a<br />

combinação linguística (inclui o português), assim como a temática que<br />

pretende pesquisar.<br />

C) Ilovelanguages.com<br />

É um sítio que organiza e categoriza os recursos de linguagem presentes<br />

na internet, relaciona<strong>do</strong>s com educação, aprendizagem e uso das línguas.<br />

Entre as categorias é possível pesquisar sobre organizações, dicionários,<br />

recursos educativos, conferências, entre outros.<br />

5) Outras hiperligações<br />

Aiic.net – Sítio da Associação Internacional de Intérpretes de Conferência.<br />

Apet.pt – Sítio da Associação Portuguesa de empresas de Tradução.<br />

Apt.pt – Sítio da Associação Portuguesa de Tradutores.<br />

Atanet.com – Associação Americana de Tradutores<br />

Atelier-traduction.com – Espaço dedica<strong>do</strong> à tradução de obras teatrais.<br />

Fit-ift.org – Fédération Internationale des Traducteurs.<br />

http:://trans.voila.fr – Espaço de tradução francês. Utiliza o Systran.<br />

Jrdias.com – Como deve ser o site de um tradutor.<br />

Legallanguage.com – Sítio sobre tradução e interpretação jurídica.<br />

Leo.org – Dicionário Inglês/Alemão. Um projecto da Universidade de<br />

Munique.<br />

S9.com – Dicionário biográfico.<br />

Sk.com.br – Sítio muito completo sobre características da língua inglesa.<br />

Thesaurus.com – Incide sobre gramática e estilo.<br />

T-online.de – Motor de busca alemão.<br />

Visualthesaurus.com – Dicionário de inglês. Muito apelativo visualmente.<br />

Cada homem e tu<strong>do</strong> o que ele cria, cada língua e tu<strong>do</strong> o que ela veicula, são únicos<br />

– “traduzi-los” comprometerá irremediavelmente tais especificidades. Para quê<br />

então traduzir?... Com to<strong>do</strong>s os seus senões, vale a pena correr os riscos, aceitar as<br />

desfigurações, e assim, facilitar, através da passagem para outra língua, [...] dizer<br />

não apenas a alguns homens mas a to<strong>do</strong>s eles.<br />

Fernan<strong>do</strong> Namora, in Senta<strong>do</strong>s na Relva, 1986


ecensões


TRANSLATORS AS HOSTAGES OF HISTORY<br />

Ensaio<br />

De: Theo Hermans e Ubal<strong>do</strong> Stecconi<br />

URL: http://europa.eu.int/comm/translation/theory/lectures/2001_01_18_history.pdf<br />

O presente discurso foi proferi<strong>do</strong> no Luxemburgo e em Bruxelas, a 17 e<br />

18 de Janeiro de 2002, integran<strong>do</strong>-se na série de seminários “Theory meets<br />

Practice”, organizada anualmente pelo Serviço de Tradução da Comissão<br />

Europeia (SDT). A convite <strong>do</strong> SDT, <strong>do</strong>is teóricos da tradução tomaram<br />

conhecimento <strong>do</strong> trabalho aí desenvolvi<strong>do</strong>, através de uma visita guiada, e<br />

apresentaram um tema susceptível de debate. Da<strong>do</strong> que os seminários não são<br />

acessíveis ao público, os ora<strong>do</strong>res forneceram uma versão escrita <strong>do</strong> discurso,<br />

de forma a ser disponibilizada em linha.<br />

O texto evolui de forma apelativa e original, sen<strong>do</strong> as intervenções<br />

partilhadas por <strong>do</strong>is ora<strong>do</strong>res, Theo Hermans e Ubal<strong>do</strong> Stecconi. Theo<br />

Hermans efectua uma incursão pelas metalinguagens figurativas da tradução na<br />

Europa Ocidental, citan<strong>do</strong> alguns <strong>do</strong>s teóricos mais proeminentes. Ubal<strong>do</strong><br />

Stecconi intervém com comentários relativos à aplicação das diferentes<br />

orientações meto<strong>do</strong>lógicas pelo SDT. Numa perspectiva histórica, desde a<br />

Antiguidade até à actualidade, passan<strong>do</strong> pelos perío<strong>do</strong>s renascentista e<br />

romântico, tentam dar resposta a algumas questões controversas, entre as quais<br />

a da invisibilidade <strong>do</strong> tradutor e a da pouca criatividade apontada ao seu<br />

trabalho. Neste contexto, realçam a diversidade e a complexidade <strong>do</strong> trabalho<br />

de tradução, questionam-se sobre as medidas a tomar para alterar algumas<br />

ideias pré-concebidas acerca <strong>do</strong>s tradutores e tentam explicar o facto de estes se<br />

sentirem voluntariamente presos a uma tradição de subserviência discreta.<br />

Após uma breve introdução, Theo Hermans inicia o seu estu<strong>do</strong> histórico<br />

pela Antiguidade Clássica. O termo utiliza<strong>do</strong> para tradução, que deriva<br />

etimologicamente <strong>do</strong> Latim translatio, transferre, está imbuí<strong>do</strong> de uma carga<br />

metafórica. Denota um senti<strong>do</strong> espacial de movimento físico, facto que nos<br />

leva a encarar metaforicamente a tradução como algo que envolve uma carga<br />

(significa<strong>do</strong>), transportada de um la<strong>do</strong> para outro numa espécie de contentor<br />

(linguagem). A insistência na colagem ao original explica por que razão o<br />

tradutor „fiel‟, fidus interpres, resulta na ideia <strong>do</strong> tradutor tími<strong>do</strong>, apaga<strong>do</strong> ou<br />

servil, que se mantém sempre fiel ao texto. Com efeito, uma das questões que<br />

maior debate suscitou ao longo <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> histórico foi a noção de equivalência,<br />

que aparece ligada à noção de transparência, imaginan<strong>do</strong>-se os tradutores como<br />

intérpretes e, por isso, transparentes e invisíveis. Estas metáforas, que espelham


178<br />

Recensões<br />

mo<strong>do</strong>s de pensamento específicos, afectaram desde sempre o estatuto <strong>do</strong>s<br />

tradutores.<br />

Ao redescobrir a cultura clássica, o perío<strong>do</strong> renascentista trouxe para a<br />

ribalta o tema da tradução enquanto algo de valioso há muito esqueci<strong>do</strong>. A<br />

tradução é então considerada um serviço público, por disponibilizar textos e<br />

ideias outrora inacessíveis. Mas o poder da tradução era também visto como<br />

sen<strong>do</strong> potencialmente subversivo.<br />

No século XX, privilegia-se o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo de transferência entre o<br />

texto de partida e o texto de chegada. Os funcionalistas descrevem a tradução<br />

como uma actividade dirigida a um objectivo, com um ponto de partida, um<br />

percurso e um destino. A abordagem pós-colonialista rejeita os estereótipos <strong>do</strong><br />

tradutor, quer como alguém totalmente devota<strong>do</strong> a servir o autor, quer como<br />

um trai<strong>do</strong>r infiel que adultera culturalmente o original. Opta, assim, por diluir o<br />

servilismo tradicional <strong>do</strong> tradutor em favor de uma mistura complexa de<br />

criação, crítica e adaptação. As abordagens inspiradas nas correntes feministas<br />

denunciam a posição de subordinação e restrição de que tanto as mulheres<br />

como a tradução têm si<strong>do</strong> alvo na sociedade.<br />

O debate acerca <strong>do</strong> trabalho desenvolvi<strong>do</strong> no SDT, suscita<strong>do</strong> por Ubal<strong>do</strong><br />

Stecconi, decorre sem fins estatísticos e sem a pretensão de resolver problemas<br />

de terminologia. A proposta inclui a procura da metalinguagem figurativa nas<br />

traduções que circulam no SDT e a análise <strong>do</strong> papel e <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> da tradução<br />

no projecto europeu, cuja política se baseia numa perspectiva multilinguística e<br />

multicultural, no respeito pela diversidade de cada tradição europeia e na defesa<br />

da qualidade <strong>do</strong> serviço presta<strong>do</strong>. O SDT, decerto o maior gabinete de tradução<br />

existente na Europa, possui uma longa tradição e está extremamente bem<br />

estrutura<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> cada membro da equipa um papel defini<strong>do</strong>. As questões da<br />

terminologia e da fidelidade desempenham um papel importante no discurso<br />

sobre tradução no SDT, embora a ideia de equivalência <strong>do</strong>s termos e frases surja<br />

de forma quase obsessiva. O SDT dispõe de ferramentas auxiliares de trabalho,<br />

compostas por palavras e frases curtas que permitem a correspondência lexical<br />

e a tradução controlada, e de bases de da<strong>do</strong>s em linha, como a Eurodicautom e a<br />

Celex. A esta abordagem da tradução atribui-se o nome de “processamento de<br />

palavras”, pois consiste em substituir palavras isoladas de uma língua por outras<br />

palavras noutra língua. Esta abordagem poderá justificar-se em termos de<br />

normalização, estilo e registo oficial, mas a tradução palavra a palavra revela-se<br />

inútil, necessitan<strong>do</strong> o SDT de se concentrar na produção de textos informativos<br />

e claros. Ora, uma das falhas apontadas ao SDT reside, precisamente, no facto<br />

de a sua linguagem, a Eurospeak, ser pouco clara, persuasiva e compreensível<br />

para a maioria <strong>do</strong>s cidadãos. Esta atitude de “processamento de palavras”<br />

acarreta o receio por parte <strong>do</strong>s tradutores relativamente à inevitabilidade <strong>do</strong>


Theo Hermans e Ubal<strong>do</strong> Stecconi 179<br />

progresso da tradução automática. Como é óbvio, esta perspectiva mecanicista<br />

da profissão <strong>do</strong> tradutor não é a melhor forma de granjear respeito profissional.<br />

No âmbito <strong>do</strong> aspecto multilinguístico e multicultural, a Comissão<br />

Europeia (CE) deve comunicar com to<strong>do</strong>s os seus constituintes além-fronteiras,<br />

isto é, deve localizar-se. O termo localização, muito divulga<strong>do</strong> ultimamente,<br />

surgiu há cerca de dez anos para indicar a tradução e a adaptação de software<br />

para os países que não se exprimem em Inglês. A CE não deve negligenciar este<br />

aspecto, constituin<strong>do</strong> os tradutores um recurso muito importante, que vai<br />

muito além <strong>do</strong> seu papel tradicional como profissionais que se limitam a<br />

reescrever palavras impressas. Os tradutores foram assimilan<strong>do</strong> competências<br />

que poderão ser apuradas e aplicadas em diversas áreas, especialmente agora,<br />

perante o alargamento que se avizinha. Ao a<strong>do</strong>ptar uma atitude activa, os<br />

tradutores poderão comercializar essas capacidades, contribuin<strong>do</strong> para melhorar<br />

o seu estatuto e assim ressalvar o futuro.<br />

A cada leitor deste discurso caberá decidir se as ideias nele expressas são<br />

passíveis de conduzir a uma maior satisfação profissional ou a uma atitude<br />

crítica de alerta. O levantamento destas questões poderá não ter uma utilidade<br />

imediata para a prática diária da tradução profissional, mas permite encará-la de<br />

forma dinâmica. Na realidade, a análise das ideias acerca da tradução poderá<br />

ajudar o tradutor a expandir os seus conhecimentos e a compreender melhor a<br />

sua tarefa, afastan<strong>do</strong> a noção de que os teóricos apenas querem impor-lhe<br />

regras para traduzir. Este trabalho de carácter académico proporciona assim<br />

uma reflexão cuidada e uma leitura enriquece<strong>do</strong>ra.<br />

Theo Hermans (MA e PhD) é professor no University College of Lon<strong>do</strong>n,<br />

onde lecciona Literatura Alemã Comparada. Na sequência <strong>do</strong>s seus estu<strong>do</strong>s<br />

sobre tradução, publicou obras como: Translation in Systems – Descriptive and<br />

Systemic Approaches Explained (1999) e The Babel Guide to Dutch and Flemish Fiction<br />

in English Translation (2001).<br />

Ubal<strong>do</strong> Stecconi é licencia<strong>do</strong> em Tradução pela Universidade de Trieste.<br />

Leccionou Teoria e Prática de Tradução em Itália, nas Filipinas e nos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s. É tradutor da Comissão Europeia, em Bruxelas, desde 2001. Publicou<br />

livros sobre Teoria da Tradução e Semiótica e redigiu vários artigos literários e<br />

entrevistas.<br />

Carla de Jesus 1<br />

1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />

Tradução Especializada.


SAMURAI – NOME DE CÓDIGO<br />

Ficção<br />

De: Neal Stephenson<br />

Trad. portuguesa de Paulo Faria<br />

Título original: Snow Crash<br />

Lisboa: Editorial Presença, 2002 / 1992<br />

ISBN: 972-98506-5-8<br />

469 páginas.<br />

Desde as primeiras páginas deste romance cyberpunk, Neal Stephenson<br />

mergulha os seus leitores numa fascinante visão de um futuro talvez próximo.<br />

Neste futuro, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s não passam de um mosaico de cidades-esta<strong>do</strong><br />

concessionadas a empresas rivais, o sistema político-legal desapareceu, a Máfia<br />

controla a distribuição de pizzas – elevada ao estatuto de suprema actividade<br />

económica – as vagas de refugia<strong>do</strong>s asiáticos e africanos são uma ameaça<br />

mundial e a classe média encerra-se em con<strong>do</strong>mínios suburbanos ultra-vigia<strong>do</strong>s,<br />

ilhas de normalização obsessiva cercadas pelo caos triunfante. A internet é<br />

agora um universo paralelo – o Metaverso – povoa<strong>do</strong> de avatares extravagantes,<br />

onde as leis da probabilidade e da física foram subvertidas pelo poder<br />

imaginativo <strong>do</strong>s hackers. É aqui notável o visionarismo de Neal Stephenson,<br />

pois não esqueçamos que Snow Crash é um original de 1992, a Idade Média da<br />

internet, tal como hoje a conhecemos e utilizamos.<br />

Entre estes <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s move-se com desenvoltura Hiro Protagonista,<br />

hacker de prestígio, pai funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Metaverso, espadachim samurai,<br />

colabora<strong>do</strong>r irregular da nova CIA privatizada e entrega<strong>do</strong>r, prontamente<br />

demiti<strong>do</strong>, ao serviço da Pizza CosaNostra. Ao longo da sua aventura, Hiro<br />

procura desvendar o segre<strong>do</strong> de “Snow Crash”, um vírus letal que ameaça o<br />

sistema linguístico e informático, afectan<strong>do</strong> o software e o hardware que tanto<br />

máquinas como humanos possuem. Viajante <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> tempo, “Snow<br />

Crash” foi responsável pela destruição da civilização suméria, pela dispersão das<br />

línguas e pela criação de Babel. As vítimas modernas experimentam o linguajar<br />

místico da glossolália, perdem as suas capacidades racionais e tornam-se<br />

facilmente presa <strong>do</strong>s desígnios totalitaristas e globalizantes de uma sinistra mas<br />

irónica trindade: um magnata <strong>do</strong>s media, o reveren<strong>do</strong> supremo de um franchising<br />

religioso e um terrorista nuclear.<br />

A um ritmo alucinante, Snow Crash/Samurai: Nome de Código cruza<br />

referentes múltiplos, da metafísica suméria à teologia <strong>do</strong> Velho Testamento,<br />

sem esquecer as miragens de uma civilização pós-moderna à beira <strong>do</strong> colapso,<br />

que somos obriga<strong>do</strong>s, com lucidez e humor, a reconhecer como sen<strong>do</strong> aquela


Neal Stephenson 181<br />

em que vivemos. O contexto linguístico, histórico e cultural evoca<strong>do</strong> é<br />

complexo, exigente para o leitor, mas por demais interessante, satírico e<br />

enriquece<strong>do</strong>r. Como se constata, as questões da comunicação, da linguagem e<br />

da tradução, em sintonia com as novas tecnologias, motivam não só<br />

publicações académicas mas também romances futuristas de qualidade.<br />

Snow Crash (“Nevão Mara<strong>do</strong>”, na tradução de Paulo Faria, mas outras<br />

opções existiriam) deveria ter origina<strong>do</strong> um título mais atraente <strong>do</strong> que a<br />

tradução livre para Samurai: Nome de Código, sem ligação evidente à narrativa e<br />

mais apropria<strong>do</strong> para uma edição de “manga” importada <strong>do</strong> Japão. No geral, a<br />

tradução consegue transmitir o ritmo imprevisível, o registo múltiplo, o humor,<br />

a ironia e a polissemia <strong>do</strong> original, cumprin<strong>do</strong> com sucesso uma tarefa árdua,<br />

dificultada pelos inúmeros neologismos e jogos lexicais que percorrem o texto e<br />

sem os quais muito <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> se perderia. Samurai: Nome de Código é o<br />

primeiro título da colecção “Viajantes no Tempo”, um projecto que a Editorial<br />

Presença não deverá descurar.<br />

Neal Stephenson, um <strong>do</strong>s raros ficcionistas a colaborar na revista Time, é<br />

autor de diversas obras de ficção científica, como Cryptonomicon, The Diamond<br />

Age, The Big U, Zodiac: The Eco-Thriller ou Quicksilver. Snow Crash recebeu vários<br />

prémios, entre os quais o “Grand Prix de L‟Imaginaire” e o “Prix Ozone” de<br />

1997.<br />

Clara Sarmento


THE DANTE CLUB<br />

Ficção<br />

De: Matthew Pearl<br />

Nova Iorque: Ran<strong>do</strong>m House, 2003<br />

ISBN: 0-375-505296-6<br />

372 páginas.<br />

In 1865 post-Civil War Boston, the literary geniuses of the Dante Club –<br />

poets and Harvard professors Henry Wadsworth Longfellow, Oliver Wendell<br />

Holmes and James Russell Lowell, along with publisher J. T. Fields – are<br />

finishing America‟s first translation of The Divine Comedy and preparing to unveil<br />

Dante‟s masterpiece to the New World.<br />

But the powerful fellows of the Harvard Corporation are fighting to keep<br />

Dante in obscurity, believing that the infiltration of a foreign culture into the<br />

conservative minds of New England will prove as corrupting as the immigrants<br />

arriving at Boston Harbour. Matthew Pearl draws an excellent picture of the<br />

atmosphere of the period, as well as of the attitudes that prevailed against the<br />

influx of immigrants and the so-called threat of foreign literature.<br />

The members of the Dante Club fight to keep a literary cause alive, but<br />

they are shaken in their ivory towers when a series of cruel murders erupts<br />

through Boston. Only this small group of scholars realizes that the killings are<br />

modelled on the descriptions of Hell‟s punishments from Dante‟s Inferno.<br />

Knowing that only a limited number of people in America are familiar with<br />

Dante‟s work, the members of the Dante Club conduct their own investigation<br />

into the killings. In their decision to pursue the killer, they are joined by<br />

Nicholas Rey, a fictional character based on the first black police officer in<br />

America. Rey rises above general racism and proves to be both the best of all<br />

detectives and a cunning reader. Expertly weaving together historical fact (the<br />

Dante Club did exist in reality, and even Ralph Wal<strong>do</strong> Emerson appears in a<br />

brief passage), complex characters and suspense, Pearl has written a unique and<br />

absorbing tale.<br />

While reading Matthew Pearl‟s The Dante Club, we understand that<br />

literature, life (and death) can be very close, that reading, writing and translating<br />

are indeed passionate activities, true adventures. Words can bleed, for sure, but<br />

they can also breathe, gain life and give life: “The fate of literature prophesied<br />

by Mr. Emerson has come to life by the events you describe – literature that<br />

breathes life and death, that can punish, and can absolve” (228).<br />

The Dante Club is both an historical narrative and a mystery novel that<br />

recalls characteristics of Umberto Eco‟s Il Nome della Rosa. In the political


machinations going on inside the walls of Harvard College, we recognize Eco‟s<br />

monks and abbots, who consider themselves as the unquestionable guardians<br />

of truth, knowledge and faith and that would resort to every means in order to<br />

keep those sacred principles to themselves. “Thou shall not share your<br />

knowledge with the commons” seems to be some characters‟ motto. “The<br />

motto of the College is „Christo et Ecclesiae‟ and we are beholden to live up to<br />

the Christian spirit of that ideal”, says the sinister Augustus Manning, treasurer<br />

of the Corporation. But we are to learn that: “The motto used to be „Veritas‟,<br />

Truth” (205).<br />

Along the pages of The Dante Club, there is a mirror play between author<br />

and translators, between the plot and the translating process itself, with an<br />

unexpected epilogue that questions the reality of real life and shows the dangers<br />

and mysteries of the task of the translator.<br />

This novel is a first-rate complementary reading and motivation for<br />

students of Translation. Future translators are offered a very romantic<br />

perspective of their job, that appears to be thrilling, defiant, non-conformist.<br />

When a translator complains about his/her career being nothing but sitting in a<br />

lonely room and rewrite someone else‟s words among a pile of dictionaries,<br />

he/she should think of Longfellow‟s slow recovery from tragedy through his<br />

impassioned work, of Fields commitment to his writers, of Lowell‟s<br />

determination, and even of Holmes‟s weaknesses which, in certain moments,<br />

we all share. A good translator – just like a good writer or a good police officer<br />

(like Nicholas Rey) – may write his/her name into History. Translators like the<br />

ones at The Dante Club have the power to subvert the system, because their<br />

mission is, indeed, to bring new worlds into their already old Ivy League world.<br />

In this passage, when Longfellow is working on his translation of Dante,<br />

Pearl offers his readers a beautiful image of the translating process:<br />

But Dante resisted mechanical intrusions, and withheld himself, demanding<br />

patience. Whenever translator and poet came to this impasse, Longfellow would<br />

pause and think: Here Dante laid <strong>do</strong>wn his pen – all that follows was still a blank.<br />

How shall it be filled up? What new figures shall be brought in? What new names<br />

written? Then the poet resumed his pen – and, with an expression of joy or<br />

indignation upon his face, wrote further in his book – and Longfellow now<br />

followed without timidity. (221)<br />

Matthew Pearl graduated from Harvard University in English and<br />

American Literature in 1997, and in 2000 from Yale Law School, where he<br />

wrote the first draft of The Dante Club. In 1998, he won the prestigious Dante<br />

Prize from the Dante Society of America for his scholarly work. He is the<br />

editor of the new Modern Library edition of Dante‟s Inferno, translated by<br />

Henry Wadsworth Longfellow. The Dante Club is his first novel.


184<br />

Recensões<br />

Clara Sarmento


GRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA<br />

Gramática de Português Europeu<br />

De: Maria Helena Mira Mateus, et al.<br />

Lisboa: Editorial Caminho, 2003<br />

ISBN: 972-21-0445-4<br />

1127 páginas.<br />

Mais sobre a anatomia da língua portuguesa...<br />

Os ávi<strong>do</strong>s por questões relacionadas com o funcionamento da língua<br />

portuguesa podem já dissecar mais um estu<strong>do</strong> meticuloso sobre aspectos da sua<br />

organização interna. Mas desengane-se quem espera um texto canónico, que<br />

prescreva <strong>do</strong>gmaticamente regras de bem escrever ou de bem falar, pois tal<br />

como se pode ler no prefácio à última edição, trata-se de um trabalho de<br />

carácter descritivo e analítico:<br />

[...]não é uma gramática normativa, ou seja, não é um instrumento que regule o<br />

bom uso da língua. O seu objectivo consiste na apresentação de descrições e<br />

análises de um largo conjunto, evidentemente não exaustivo, de aspectos da língua<br />

portuguesa. (2003:17)<br />

Apresentada a público no início de Março deste ano, a 5ª edição da<br />

Gramática da Língua Portuguesa é motivo de júbilo por duas razões fundamentais:<br />

uma polifonia de perspectivas, decorrente <strong>do</strong> alargamento <strong>do</strong> grupo de quatro<br />

linguistas que esteve na sua génese (Maria Helena Mira Mateus, Ana Maria<br />

Brito, Inês Duarte e Isabel Hub Faria), ao qual se juntaram, nesta edição, Sónia<br />

Frota, Gabriela Matos, Fátima Oliveira, Marina Vigário e Alina Villalva; e,<br />

consequência da primeira razão evocada, uma nova organização interna. Esta<br />

última reflecte um aprofundamento e uma reconceptualização da estrutura que<br />

enformou as edições anteriores. As três partes constituintes deram, agora, lugar<br />

a seis, expon<strong>do</strong> um percurso que se vislumbra <strong>do</strong> nível macro-estrutural ao<br />

nível micro-estrutural.<br />

A Parte I – A Língua Portuguesa: Unidade e Diversidade – contempla,<br />

sobretu<strong>do</strong>, aspectos relativos à variação diacrónica e diatópica <strong>do</strong> português,<br />

ou, por outras palavras, à variação da nossa língua no tempo e no espaço. Não<br />

pude, todavia, deixar de notar, no Capítulo II – Dialectos e Variedades <strong>do</strong><br />

Português – a não referência à variedade africana [PA]. A análise contrastiva<br />

intralinguística que é apresentada para o Português Europeu [PE] e para o<br />

Português <strong>do</strong> Brasil [PB] deverá, em edições posteriores, ser ampliada àquela<br />

variedade. Afinal, a “velha” Gramática <strong>do</strong> Português Contemporâneo, de


186<br />

Recensões<br />

Lindley Cintra & Celso Cunha (editada pela primeira vez em 1984) é, neste<br />

<strong>do</strong>mínio, bem mais contemporânea <strong>do</strong> que esta edição de 2003.<br />

Porém, o escrutínio de todas as outras partes revela ser notória a<br />

actualidade e profundidade no tratamento <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s. Na Parte II – Uso da<br />

Língua, Interacção Verbal e Texto – encontra-se patente uma série de questões<br />

<strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio da Pragmática Linguística, negligenciadas por gramáticas<br />

congéneres e aqui apresentadas com clareza, simplicidade e abrangência, já que,<br />

para além da moldura teórica, são abordadas modalidades discursivas distintas.<br />

Na Parte III – Aspectos Semânticos da Gramática <strong>do</strong> Português – são<br />

descritas e analisadas, em profundidade, as classes gramaticais verbo e<br />

substantivo. O enquadramento teórico das diferentes sub-secções é<br />

amplamente sustenta<strong>do</strong> por uma profusão de exemplos facilita<strong>do</strong>res da<br />

compreensão ao consulente menos experimenta<strong>do</strong> em terminologia linguística.<br />

A inegável preferência das autoras pelo subsistema sintáctico <strong>do</strong><br />

português é testemunhada pela extensão física da Parte IV: 642 páginas, ou seja,<br />

mais de metade da obra. Nesta parte, é visível uma minúcia descritiva e temática<br />

que lhe confere notoriedade face às congéneres.<br />

Na Parte V – Aspectos Morfológicos da Gramática <strong>do</strong> Português – são<br />

efectuadas diferentes operações de segmentação e hierarquização que<br />

explicitam a estrutura das classes de palavras susceptíveis de formação<br />

morfológica. São também trata<strong>do</strong>s os principais mecanismos de formação de<br />

palavras: afixação e composição.<br />

Por último, a Parte VI – Aspectos Fonológicos e Prosódicos da Gramática<br />

<strong>do</strong> Português – põe em relevo aspectos segmentais (que dizem respeito aos<br />

segmentos fonológicos), e traços prosódicos e rítmicos <strong>do</strong> discurso (que se<br />

relacionam com o tom, o acento e a duração), sen<strong>do</strong> estes últimos um tema<br />

frequentemente ausente em textos da mesma tipologia.<br />

Em suma, as mil cento e vinte sete páginas oferecem quadros teóricos com<br />

um forte poder explicativo <strong>do</strong> funcionamento <strong>do</strong> português europeu. E, apesar<br />

de uma certa assimetria e desproporção no tratamento das questões propostas e<br />

de uma terminologia linguística não isenta de austeridade, a “nova” gramática é,<br />

seguramente, uma incontornável fonte de pesquisa para to<strong>do</strong>s os que trabalham<br />

com a língua portuguesa e se interessam por análises minudentes da sua<br />

anatomia.<br />

Joana Castro Fernandes


em anexo


RELATÓRIO DE ACTIVIDADES 2002/2003<br />

Nas páginas seguintes, apresentamos um relatório de actividades resumi<strong>do</strong>,<br />

onde damos conta <strong>do</strong>s inúmeros projectos realiza<strong>do</strong>s no ISCAP – por <strong>do</strong>centes,<br />

com a colaboração de alunos e funcionários – ao longo deste ano lectivo de<br />

2002/2003.<br />

1. Formação de Alunos<br />

Como complemento essencial à formação <strong>do</strong>s alunos <strong>do</strong> Curso Superior<br />

de Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de Tradução Especializada, a Área de<br />

Línguas e Culturas <strong>do</strong> ISCAP tem vin<strong>do</strong> a desenvolver diversas actividades<br />

extracurriculares, sobretu<strong>do</strong> no âmbito da tradução especializada, mas, também,<br />

nas áreas afins sem as quais a tradução, enquanto disciplina e enquanto prática,<br />

não existiria.<br />

1.1 Conferências<br />

Comissão executiva: Suzana Noronha Cunha, Arminda Sequeira e Carla<br />

Avelino<br />

Com frequência mensal, o II Ciclo de Conferências de Línguas e<br />

Secretaria<strong>do</strong> teve como objectivo a ligação da instituição à realidade profissional<br />

e empresarial. Durante o ano lectivo 2002/2003, realizaram-se as seguintes<br />

conferências:<br />

Interpretação: Que Futuro?<br />

Conferencista: Dr. Rui Silva, Intérprete free-lance<br />

Traduzir a Irreverância. Charles Bukowski: Vida ou Obra?<br />

Conferencista: Prof. Gerald Lochlin, Californian State University, USA<br />

Using Multimedia and the Web in Language Instruction<br />

Conferencista: Prof. Christopher Jones, Carnegie Mellon University, USA<br />

Comunidades de Prática (PoC)<br />

Conferencista: Dr. João Batista, ISCAA


190<br />

Em Anexo<br />

Certificação de Qualidade: Vantagens e Limitações<br />

Conferencista: Eng. Rui Santos<br />

Estas conferências não se esgotam na comunicações apresentadas. De<br />

facto, os contactos estabeleci<strong>do</strong>s têm resulta<strong>do</strong> num intercâmbio extremamente<br />

proveitoso entre convida<strong>do</strong>s e o ISCAP, nomeadamente na colocação de<br />

licencia<strong>do</strong>s em gabinetes de tradução e na oferta de material autêntico para<br />

utilização nas diferentes disciplinas de tradução técnica. Está ainda a ser criada<br />

uma videoteca das gravações das conferências, em estreita colaboração com o<br />

Centro de Recursos Audiovisuais <strong>do</strong> ISCAP. Alguns <strong>do</strong>s conferencistas estão a<br />

apoiar trabalhos de licenciatura.<br />

1.2 Acções de Formação<br />

Objectivos: Optimizar as práticas de ensino/aprendizagem, de mo<strong>do</strong> a<br />

colmatar as situações de insucesso escolar; fomentar a reflexão sobre méto<strong>do</strong>s<br />

de estu<strong>do</strong> e a exploração das novas tecnologias de informação como<br />

ferramentas auxiliares e motiva<strong>do</strong>ras de estu<strong>do</strong>; criar condições que facilitem o<br />

aprofundamento <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio da Língua Portuguesa.<br />

Programa das Acções de Formação realizadas durante o ano lectivo de 2002/2003:<br />

Aprender a Aprender<br />

Forma<strong>do</strong>res: Cristina Pinto da Silva e Ivone Cunha<br />

Técnicas de Expressão em Português (escrito)<br />

Forma<strong>do</strong>res: Manuela Marques da Silva e Joana Fernandes<br />

Técnicas de Expressão em Português (oral)<br />

Forma<strong>do</strong>res: Anabela Sarmento e Estrela Carvalho<br />

A Internet como Ferramenta Auxiliar de Estu<strong>do</strong><br />

Forma<strong>do</strong>res: Ana Afonso e Manuel Moreira da Silva<br />

Estruturação de Texto<br />

Forma<strong>do</strong>res: Dalila Lopes e Kai Immig<br />

Oficina de Escrita Criativa<br />

Organização: Clara Sarmento, Helena Anacleto, Manuela Veloso, Paula Ramalho<br />

Almeida e Suzana Cunha<br />

Forma<strong>do</strong>r: João Gesta


Dizeur: Daniel Maia Pinto Rodrigues<br />

Relatório de Actividades 2002/2003 191<br />

Como Concorrer a um Emprego<br />

Forma<strong>do</strong>res: Cristina Pinto da Silva, Estrela Carvalho, Joana Fernandes, Pedro<br />

Ruiz e Suzana Cunha<br />

1.3 Seminários<br />

Ferramentas Electrónicas para Tradução<br />

Docente: Alexandra Albuquerque<br />

Apesar da prática estar muitas vezes afastada <strong>do</strong>s pressupostos teóricos e<br />

das evidências, é hoje impensável conceber a actividade <strong>do</strong> tradutor<br />

especializa<strong>do</strong> sem o recurso a auxiliares multimédia e digitais, nomeadamente a<br />

Internet, a Tradução Automática, Memórias de Tradução, Bases<br />

Terminológicas. Assim, neste seminário, os alunos foram essencialmente<br />

convida<strong>do</strong>s a aprender a utilizar a Internet como ferramenta de investigação e<br />

consulta, descobrir/treinar a utilização de ferramentas electrónicas actuais em<br />

linha e a construir bases terminológicas (em Multiterm), essenciais à sua<br />

actividade de tradução.<br />

Tradução e Legendagem de Audiovisuais<br />

Docente: Paula Ramalho Almeida<br />

Pela primeira vez, o ISCAP oferece um Seminário de Tradução e<br />

Legendagem de Audiovisuais No mun<strong>do</strong> em que vivemos, onde pre<strong>do</strong>mina a<br />

imagem visual, a linguagem icónica serve, cada vez mais, de complemento à<br />

linguagem verbal. Neste contexto, o merca<strong>do</strong> actual exige ao tradutor um<br />

conhecimento abrangente <strong>do</strong>s vários mo<strong>do</strong>s de tradução e <strong>do</strong>s tipos de texto a<br />

traduzir, pelo que a versatilidade se torna uma mais-valia para quem pretende<br />

ingressar numa carreira profissional em tradução. Este seminário teve como<br />

objectivos familiarizar os alunos com as especificidades da linguagem<br />

cinematográfica e <strong>do</strong> texto audiovisual, demonstrar os processos envolvi<strong>do</strong>s na<br />

tradução de audiovisuais e traduzir e legendar audiovisuais.<br />

2. Formação de Docentes<br />

2.1 Acção de Formação em WebCT<br />

O Projecto de Apoio On-Line <strong>do</strong> ISCAP (PAOL) completou este ano a sua<br />

fase piloto. Enquadra<strong>do</strong> na área <strong>do</strong> Ensino à Distância, o projecto assumiu, no


192<br />

Em Anexo<br />

ISCAP e nesta primeira fase, uma vertente de apoio a alunos. Realizou-se uma<br />

Acção de Formação em WebCT, a plataforma de e-learning a<strong>do</strong>ptada, que contou<br />

com a participação voluntária de <strong>do</strong>centes das diferentes áreas científicas, das<br />

quais se destaca a de Línguas e Culturas. Estes <strong>do</strong>centes puderam, em seguida,<br />

desenvolver conteú<strong>do</strong>s e disponibilizar os seus cursos online. Procurou-se, com<br />

este projecto, potenciar novas competências a nível técnico, meto<strong>do</strong>lógico e<br />

pedagógico, quer de <strong>do</strong>centes, quer de discentes.<br />

2.2 Acção de Formação em Laboratórios Multimédia<br />

Esta acção enquadrou-se no desenvolvimento <strong>do</strong> projecto <strong>do</strong> Centro<br />

Multimédia de Línguas e teve por objectivos:<br />

–permitir aos <strong>do</strong>centes da área de Línguas e Culturas o completo <strong>do</strong>mínio<br />

de todas as ferramentas que o Centro Multimédia de Línguas disponibiliza;<br />

–aumentar o número de <strong>do</strong>centes habilita<strong>do</strong>s a utilizarem o Centro e,<br />

consequentemente, permitir um acesso alarga<strong>do</strong> aos alunos <strong>do</strong>s diferentes<br />

anos e cursos;<br />

–disponibilizar informação e recursos que facilitem a introdução de novas<br />

meto<strong>do</strong>logias e estratégias de ensino, bem como a construção de novos<br />

materiais a utilizar nas aulas leccionadas no ISCAP;<br />

–promover a introdução de novas tecnologias, meios e méto<strong>do</strong>s<br />

pedagógicos, que possibilitem um ensino actualiza<strong>do</strong>, de qualidade e de<br />

referência no contexto <strong>do</strong> ensino das línguas de especialidade;<br />

–optimizar a criação e utilização de novos meios que promovam a adesão<br />

à aprendizagem das línguas estrangeiras e combatam o insucesso escolar.<br />

2.3 Acção de Formação em TRADOS<br />

O propósito desta acção foi o de dar a conhecer o funcionamento das<br />

ferramentas de Tradução Assistida, em geral, e da aplicação TRADOS, em<br />

particular. Simultaneamente, sensibilizou-se o corpo <strong>do</strong>cente para as novas<br />

práticas no campo da tradução e para o papel fulcral que as novas tecnologias<br />

assumem no desenho da profissão <strong>do</strong> tradutor.<br />

3. Encontros e Congressos<br />

3.1 Oficina de Tradução 2003 – Prática da Tradução<br />

em Ambiente Multimédia


Relatório de Actividades 2002/2003 193<br />

Organiza<strong>do</strong>res: Alexandra Albuquerque, Joana Castro Fernandes, Manuel<br />

Moreira da Silva, Maria da Graça Chorão, Paula Ramalho Almeida, Suzana<br />

Noronha Cunha<br />

Forma<strong>do</strong>res: Alexandra Albuquerque, Carla Avelino, Manuel Moreira da<br />

Silva, Manuela Veloso, Marco Furta<strong>do</strong>, Maria da Graça Chorão, Paula Ramalho<br />

Almeida, Sandra Ribeiro, Sara Cerqueira, Suzana Noronha Cunha<br />

Objectivos: O Projecto OT2003 – Prática da Tradução em Ambiente Multimédia,<br />

que teve lugar no ISCAP, no dia 11 de Abril, foi uma iniciativa pioneira no<br />

âmbito <strong>do</strong>s encontros académicos da área científica da Tradução. Preconizou<br />

recriar uma verdadeira workshop ou oficina, onde os inscritos tiveram<br />

oportunidade de interagir em ambiente multimédia.<br />

A componente prática deste evento compreendeu três oficinas: uma de<br />

carácter obrigatório e duas de carácter opcional.<br />

Os forman<strong>do</strong>s experimentaram, na oficina Tradução e Internet, percursos<br />

auxiliares da prática tradutiva, através da potencialização <strong>do</strong>s motores de<br />

pesquisa mais comuns e da optimização <strong>do</strong>s recursos gratuitos, disponíveis em<br />

linha.<br />

Nas oficinas de carácter opcional, privilegiou-se igualmente a vertente<br />

experimental, facultan<strong>do</strong> o contacto com os instrumentos ao dispor da<br />

tradução assistida por aplicações informáticas, testan<strong>do</strong> a sua validade na<br />

tradução de textos técnicos ou audiovisuais (oficinas 2a e 2b, respectivamente).<br />

A componente expositiva <strong>do</strong> evento circunscreveu-se a uma Mesa<br />

Re<strong>do</strong>nda intitulada: Tradutor profissional = tradutor virtual?, a qual agregou<br />

profissionais que exploraram novas vertentes <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> tradutivo português.<br />

Acolhimento da iniciativa: Foi grande a receptividade ao evento, tanto por<br />

parte <strong>do</strong> público interno como externo, ten<strong>do</strong> a comissão organiza<strong>do</strong>ra si<strong>do</strong><br />

forçada a devolver inscrições, dada a limitação de espaços físicos e o carácter<br />

prático <strong>do</strong> evento (um computa<strong>do</strong>r por participante).<br />

Balanço geral: A OT2003 foi acolhida com grande entusiasmo por parte <strong>do</strong>s<br />

forman<strong>do</strong>s, que a qualificaram como uma iniciativa muito boa ou excelente,<br />

através <strong>do</strong> preenchimento <strong>do</strong> inquérito sobre a organização, os conteú<strong>do</strong>s e o<br />

desempenho <strong>do</strong> forma<strong>do</strong>res e ainda na sessão de encerramento.<br />

Em suma, to<strong>do</strong>s os objectivos preconiza<strong>do</strong>s foram plenamente<br />

consegui<strong>do</strong>s, tanto no que respeita ao formato <strong>do</strong> encontro, como à sua<br />

organização e conteú<strong>do</strong>. Por um la<strong>do</strong>, esta oficina “fugiu” ao tradicional<br />

formato unilateral das palestras académicas, que não obstante a sua validade


194<br />

Em Anexo<br />

científica, tende a relegar para segun<strong>do</strong> plano tanto os problemas como as maisvalias<br />

da prática tradutiva num “ecossistema virtual”; por outro la<strong>do</strong>, a<br />

profunda receptividade e as sugestões apresentadas para temas de encontros<br />

futuros animam-nos a prosseguir.<br />

3.2 II Congresso Internacional da AELFE<br />

A realizar no <strong>Porto</strong> entre 11 e 13 de Setembro de 2003.<br />

Dan<strong>do</strong> continuidade aos Congressos Luso-Espanhóis de Línguas<br />

Aplicadas às Ciências e Tecnologias, o ISCAP está a organizar o II Congresso<br />

Internacional da AELFE (Associação Europeia de Línguas para Fins<br />

Específicos), cuja temática ambiciona abrir caminhos para o futuro das Línguas<br />

Para Fins Específicos e Profissionais no contexto europeu <strong>do</strong> século XXI.<br />

Pretende-se promover o intercâmbio de experiências e a divulgação de<br />

trabalhos de investigação entre a comunidade académica e científica<br />

internacional, com vista a melhorar práticas lectivas e optimizar a futura<br />

inserção <strong>do</strong>s alunos no merca<strong>do</strong> de trabalho. Está já inscrito um número<br />

significativo de congressistas e assegurada a presença de duas investiga<strong>do</strong>ras de<br />

renome, Maria José Sá-Correia e Margaret McGuinity.<br />

4. A Escola e a Sociedade<br />

4.1 Protocolos<br />

Foram assina<strong>do</strong>s vários Protocolos que visam a cooperação e o<br />

estreitamento de relações institucionais entre vários parceiros <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

empresarial e académico. Estes protocolos facilitam ainda a inserção <strong>do</strong>s<br />

discentes <strong>do</strong> ISCAP no merca<strong>do</strong> de trabalho, já que lhes permitem aplicar os<br />

conhecimentos e formação obti<strong>do</strong>s em situações reais. De entre estes, destacase<br />

o protocolo de colaboração institucional com a EXPONOR, que se articula em<br />

vários eixos de actuação, a saber:<br />

Eixo 1: prestação de serviços de tradução, interpretação e consultoria<br />

linguística por parte <strong>do</strong> ISCAP.<br />

Eixo 2: oferta de estágios profissionais em ambiente real de trabalho,<br />

ministra<strong>do</strong>s por empresas a discentes <strong>do</strong> ISCAP.<br />

Eixo 3: colaboração no desenvolvimento de projectos inova<strong>do</strong>res, numa<br />

perspectiva de enquadramento entre o ensino superior e o merca<strong>do</strong> de<br />

trabalho, nomeadamente no âmbito <strong>do</strong> programa IDEIA.


Relatório de Actividades 2002/2003 195<br />

De realçar, ainda, pela sua importância, os Protocolos de prestação de<br />

serviços de Tradução e Interpretação com a ACP (Associação Comercial<br />

Portuense), com a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e, ainda<br />

em fase de negociação, com a ACICP (Associação Comercial e Industrial <strong>do</strong><br />

Concelho de Paredes).<br />

4.2 Estágios<br />

A Licenciatura em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de Tradução<br />

Especializada oferece aos seus alunos uma ampla e vasta formação científica,<br />

técnica e profissionalizante, particularmente na área da tradução técnica, com<br />

base em méto<strong>do</strong>s de ensino que privilegiam as novas tecnologias. Assim, o<br />

ISCAP tem da<strong>do</strong> relevo ao desenvolvimento de estágios curriculares que<br />

permitem ao aluno integrar-se num contexto real de trabalho, e se constituem<br />

como um espaço singular para o desenvolvimento das competências necessárias<br />

ao desempenho profissional futuro. No ano lectivo de 2002/2003, celebraramse<br />

protocolos com diversas instituições que ofereceram estágios a dezoito<br />

alunos finalistas. Esta é mais uma prova de um esforço continua<strong>do</strong> de estreitar<br />

a ligação entre o meio académico e a realidade profissional.<br />

4.3 Curso de Formação para Seniores<br />

Forma<strong>do</strong>res: Helena Anacleto, Pedro Ruiz e Sandra Ribeiro<br />

ISCAP, Julho de 2003

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