Untitled - Repositório CientÃfico do Instituto Politécnico do Porto
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3<br />
polissema<br />
Revista de Letras<br />
<strong>do</strong> <strong>Instituto</strong> Superior de Contabilidade e Administração <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />
2003 / Nº 3<br />
Direcção:<br />
Cristina Pinto da Silva<br />
Paula Ramalho Almeida<br />
Conselho Editorial:<br />
Clara Sarmento<br />
Joana Castro Fernandes<br />
Manuela Veloso<br />
Manuel Moreira da Silva<br />
Maria <strong>do</strong> Céu Pontes<br />
Sara Cerqueira<br />
Suzana Noronha Cunha<br />
Revisão: Luísa Langford, Marco Furta<strong>do</strong>, Maria Clara Carvalho, Maria da<br />
Conceição Pontes, Maria de Fátima Ferreira, Maria de Lurdes Guimarães, Pedro<br />
Ruiz, Sandra Ribeiro.<br />
Direcção e Edição<br />
Polissema<br />
<strong>Instituto</strong> Superior de Contabilidade e Administração <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />
Rua Jaime Lopes Amorim<br />
4465-111 S. Mamede de Infesta<br />
Tel: 22 905 00 82<br />
Fax: 22 902 58 99<br />
Correio electrónico: polissema@iscap.ipp.pt<br />
Solicita e corresponderá a permuta com outras publicações.<br />
Depósito legal nº:<br />
ISSN: 1645-1937<br />
Tiragem: 500 ex.<br />
Composição e paginação: Polissema<br />
Impressão: Marca AG_<strong>Porto</strong>_Junho.2002<br />
Design gráfico da capa: Steven Sarson
ÍNDICE<br />
PREÂMBULOS<br />
Agradecimentos<br />
Editorial<br />
Traduzir de Novo / Dalila Lopes<br />
Traduzir é Preciso / Alberto Manuel Carneiro <strong>do</strong> Couto<br />
TRADUZIR<br />
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude, de Paul Auster / Clara<br />
Sarmento<br />
Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation from German into<br />
Portuguese / Dalila Lopes<br />
Linguística Funcional e Tradução / Kai Immig<br />
Breakfast in America é só “Um Mata-Bicho à Americana”? / M. Helena A. G.<br />
Anacleto<br />
A Queda de Ícaro, de Brueghel e Schimmernde Inselchen im Meer, de Robert<br />
Walser – Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica / Maria Helena<br />
Guimarães<br />
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução / Maria José Almeida<br />
TRADUÇÕES<br />
Michel Houellebecq – “Consolation Technique”<br />
Elisabete Teixeira da Cunha<br />
Heinrich Böll – “Die Waage der Baleks”<br />
Álvaro Ferreira e Paula Cruz<br />
Ingrid Noll – “Stich für Stich”<br />
Micaela Marques Moura e Rosa Duarte e Silva<br />
Connie Zweig e Jeremiah Abrams – “The Sha<strong>do</strong>w” (excertos)<br />
Liliana Cruz<br />
Alice Walker – “The Flowers” (excerto)<br />
Sofia Morais d‟Almeida
5<br />
Marilyn Krysl – “The Thing Around Them” (excerto)<br />
Ana Maria Salgueiro Barbosa<br />
Edgar Allan Poe – “The Black Cat”<br />
Maria da Assunção Norinho e Sérgio Alves<br />
José Eduar<strong>do</strong> Agualusa – “Dos Perigos <strong>do</strong> Riso”<br />
Marilene Ribeiro<br />
Saúl Dias – “Retrato”<br />
Paula Ramalho Almeida<br />
TRADUÇÃO E MULTIMÉDIA<br />
A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> – Da Arte à Linha de Montagem /<br />
Alexandra Albuquerque e Maria de Lurdes Guimarães<br />
Sistemas Multimédia Aplica<strong>do</strong>s ao Ensino da Tradução – Estu<strong>do</strong> de um Caso /<br />
Manuel F. Moreira da Silva<br />
A Nova Torre de Babel – Que Futuro para a Tradução Automática? / Sara<br />
Cerqueira<br />
Alguns Recursos em Linha / Filipe Pinto<br />
RECENSÕES<br />
“Translators as Hostages of History”, de Theo Hermans e Ubal<strong>do</strong> Stecconi /<br />
Carla de Jesus<br />
Samurai: Nome de Código, de Neal Stephenson / Clara Sarmento<br />
The Dante Club, de Matthew Pearl / Clara Sarmento<br />
Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus, et al. / Joana<br />
Castro Fernandes<br />
EM ANEXO<br />
Relatório de Actividades 2002/2003
preâmbulos
AGRADECIMENTOS<br />
Agradecemos o apoio essencial <strong>do</strong> Conselho Directivo <strong>do</strong> ISCAP, o<br />
subsídio generoso da Caixa Geral de Depósitos, assim como a contribuição<br />
valiosa <strong>do</strong> Dr. Júlio Costa, <strong>do</strong> Gabinete de Comunicação e Relações Públicas<br />
<strong>do</strong> ISCAP.
EDITORIAL<br />
Chama-se este terceiro volume da Polissema “Traduzir”. Assim mesmo,<br />
no infinito, forma verbal que nos remete para o processo de tradução, caminho<br />
árduo <strong>do</strong>s que se situam entre palavras, o princípio de todas as coisas, e entre<br />
textos, entre línguas, entre culturas. Damos conta de alguns <strong>do</strong>s múltiplos<br />
desafios que os tradutores enfrentam, tocan<strong>do</strong> em muitas áreas, das novas<br />
tecnologias à semiótica, da literatura à linguística.<br />
Esta é uma revista académica e científica, mas serve também de<br />
testemunho <strong>do</strong> percurso que professores e alunos da Licenciatura em Tradução<br />
Especializada <strong>do</strong> ISCAP vão fazen<strong>do</strong> em conjunto. Daí o número significativo<br />
de traduções, de excelente qualidade, feitas por alunos, prova de um entusiasmo<br />
pela actividade tradutiva, que muito promete. Somos um conselho editorial<br />
privilegia<strong>do</strong>: não é só para os alunos que trabalhamos; é, de facto, com eles que<br />
esta revista se faz.<br />
Tem a última palavra o poeta, onde vislumbramos a essência da relação<br />
polissémica entre o tradutor, o autor, o texto e a linguagem:<br />
Não meu, não meu é quanto escrevo.<br />
A quem o devo?<br />
De quem sou o arauto na<strong>do</strong>?<br />
Porque engana<strong>do</strong>,<br />
Julguei ser meu o que era meu?<br />
Fernan<strong>do</strong> Pessoa<br />
Saudações aos nossos leitores.<br />
O conselho editorial<br />
A direcção
9<br />
TRADUZIR DE NOVO<br />
Dalila Lopes<br />
Como Presidente <strong>do</strong> Conselho Científico, congratulo-me com a saída da<br />
POLISSEMA 3, uma iniciativa <strong>do</strong>s <strong>do</strong>centes da área de Línguas e Culturas <strong>do</strong><br />
ISCAP (nos quais aliás me incluo), iniciativa que dignifica o nosso <strong>Instituto</strong>, na<br />
medida em que divulga o trabalho de investigação <strong>do</strong>s nossos <strong>do</strong>centes e<br />
alunos.<br />
É sabi<strong>do</strong> que manter a periodicidade de uma revista é uma tarefa tão ou<br />
mais complexa <strong>do</strong> que manter a sua qualidade. A POLISSEMA vai agora no seu<br />
número 3, cumprin<strong>do</strong> a periodicidade anual a que se propôs no início; quanto à<br />
qualidade, esta está à vista de to<strong>do</strong>s e aberta ao julgamento <strong>do</strong>s seus leitores.<br />
A POLISSEMA 3 tem como temática “Traduzir”. Esta temática dá conta<br />
<strong>do</strong>s progressos feitos por <strong>do</strong>centes e alunos a nível de investigação, e também<br />
<strong>do</strong> esforço de actualização feito pelo ISCAP nos últimos tempos, a nível de<br />
equipamento de apoio à actividade tradutiva.<br />
Saú<strong>do</strong>, por isso, não só to<strong>do</strong>s os que, no <strong>Instituto</strong>, contribuíram e<br />
contribuem para a actualização (e por que não dizê-lo?) para a criação de uma<br />
certa linha de vanguarda nos estu<strong>do</strong>s sobre tradução e na sua prática, como<br />
também, e muito em particular, os que directamente trabalharam e trabalham<br />
para o êxito da POLISSEMA, que, rapidamente, passou de um projecto a uma<br />
realidade.<br />
Em nome <strong>do</strong> Conselho Científico, os nossos sinceros parabéns.
TRADUZIR É PRECISO<br />
Alberto Manuel Carneiro <strong>do</strong> Couto 1<br />
Em nome <strong>do</strong> Conselho Directivo, quero felicitar, mais uma vez, to<strong>do</strong>s<br />
aqueles – da equipa editorial aos autores, passan<strong>do</strong> por todas as preciosas<br />
colaborações – que tornaram possível o lançamento <strong>do</strong> 3º volume da Revista<br />
Polissema, a revista de letras <strong>do</strong> ISCAP. Reitero também o voto de confiança que<br />
já tive oportunidade de exprimir anteriormente, bem como a disposição de<br />
manter total apoio a este projecto. Sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>cente da Área de Línguas e<br />
Culturas, liga<strong>do</strong> desde sempre à Licenciatura em Tradução e Interpretação<br />
Especializada, na sua designação mais recente, o tema deste número da Revista<br />
Polissema – “Traduzir” – interessa-me particularmente. Aproveitan<strong>do</strong> esta<br />
oportunidade, gostaria de deixar aqui umas breves reflexões sobre o tema.<br />
Traduzir é geralmente defini<strong>do</strong>, em senti<strong>do</strong> restrito, como uma operação<br />
de transposição de códigos linguísticos, com todas os problemas que esta<br />
aparentemente simples operação envolve. Mas é reconheci<strong>do</strong> pelos teóricos da<br />
tradução que essa operação implica também a passagem de um universo<br />
cultural para outro. Em senti<strong>do</strong> mais amplo poder-se-ia até ousar pretender que<br />
traduzir é passar, através da mediatização <strong>do</strong> signo linguístico, de um universo<br />
para outro, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real ao das representações mentais, numa palavra, <strong>do</strong><br />
físico ao metafísico. Afinal, nomear é conhecer.<br />
Traduzir pode ser também um acto de consequências concretas, de uma<br />
importância que pode transcender as intenções <strong>do</strong> tradutor. Gostaria apenas de<br />
recordar o exemplo, de to<strong>do</strong>s conheci<strong>do</strong>, mas raramente visto como contributo<br />
da tradução para toda a humanidade: a famosa Pedra da Roseta. Se um tradutor<br />
não tivesse regista<strong>do</strong> aquela tradução, talvez nunca tivesse si<strong>do</strong> encontrada a<br />
chave que abriria as portas ao conhecimento da civilização egípcia.<br />
Finalmente, traduzir não é só trabalhar sobre texto. É muitas vezes<br />
esquecida a outra grande vertente da tradução, a interpretação, em todas as suas<br />
modalidades. É uma actividade que incide sobre o discurso, a comunicação<br />
imediata, efémera, sobre palavras que vento leva… ainda que as ideias fiquem.<br />
O aspecto mais ingrato desta profissão da Tradução vem <strong>do</strong> facto que, quanto<br />
mais bem executa<strong>do</strong>, menos se dá por ele. As Torres de Babel <strong>do</strong> nosso tempo<br />
só são possíveis pelo trabalho destes agulheiros da língua, como alguém já lhes<br />
chamou.<br />
Na aldeia tout court to<strong>do</strong>s falam a mesma língua, ou a mesma variante<br />
diatópica, sen<strong>do</strong> esse o elemento aglutina<strong>do</strong>r que cria o sentimento de pertença<br />
à comunidade. Na aldeia global, não podemos esperar pelo aparecimento da<br />
Língua Universal, por muito promete<strong>do</strong>ras que sejam as candidatas que se<br />
perfilam. Recordemos simplesmente o que aconteceu ao Latim, língua oficial e<br />
universal <strong>do</strong> Império Romano. Dada a inevitabilidade da globalização, com<br />
todas as vantagens e inconvenientes que lhe queiramos ver, traduzir é preciso…<br />
1 Vice-Presidente <strong>do</strong> Conselho Directivo <strong>do</strong> ISCAP.
traduzir
A TRADUÇÃO REINVENTADA EM THE INVENTION OF SOLITUDE,<br />
DE PAUL AUSTER<br />
Clara Sarmento<br />
A obra de Paul Auster, desde os primeiros poemas e ensaios até à mais<br />
recente ficção, reflecte constantemente sobre o trabalho da escrita enquanto<br />
acto de criação literária ou de recriação por meio da tradução, centra<strong>do</strong> no seu<br />
protagonista, o personagem-escrevente, tanto escritor como tradutor. A<br />
designação advém da característica tipicamente austeriana de acompanhar esse<br />
personagem-escrevente nos seus dramas e movimentos, dentro de um espaço<br />
exposto ao olhar <strong>do</strong> leitor. Sen<strong>do</strong> o trabalho da escrita o tópico central da sua<br />
reflexão em prosa, poesia ou ensaio, o sujeito edifica<strong>do</strong>r dessa escrita será o<br />
personagem principal <strong>do</strong> texto de Auster. O personagem-escrevente<br />
protagoniza a ficção, é analisa<strong>do</strong> no ensaio e expressa-se na poesia, veiculan<strong>do</strong><br />
as vivências <strong>do</strong> próprio Auster, que tantas vezes não consegue evitar a anotação<br />
autobiográfica ou um qualquer significativo jogo onomástico. Mas de que<br />
forma encara Paul Auster esse personagem, seu duplo? Através de que imagens<br />
verbais transpõe a génese da obra escrita para essa mesma obra escrita?<br />
Na esquematização comparativa das características <strong>do</strong> modernismo e <strong>do</strong><br />
pós-modernismo, Ihab Hassan contrapõe o processo (performance/happening)<br />
pós-moderno ao objecto artístico como finished work <strong>do</strong> modernismo. Enquanto<br />
que o modernismo é lisible (readerly), o pós-moderno é scriptible (writerly),<br />
activamente focaliza<strong>do</strong> na escrita 1 . Com efeito, Auster, escritor integra<strong>do</strong> no<br />
perío<strong>do</strong> pós-moderno, equaciona metaficcional e metalinguisticamente o<br />
problema da escrita enquanto acto, permitin<strong>do</strong> ao leitor acompanhar esse<br />
processo de construção. A dinâmica de um texto na sua construção deve ser o<br />
princípio <strong>do</strong>minante da forma, definin<strong>do</strong> a sua estrutura em termos de cinética.<br />
Sen<strong>do</strong> o processo uma continuidade generativa, através da qual uma percepção<br />
conduz directamente a outra, a composição constitui um campo aberto capaz<br />
de admitir elementos apreendi<strong>do</strong>s durante o acto de escrita, sem pressupostos<br />
rígi<strong>do</strong>s em termos de técnica ou assunto. O leitor desfruta assim <strong>do</strong> conceito<br />
pós-moderno de participação, oposto ao da distância modernista, uma vez que<br />
Auster disseca o processo da escrita, <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s em criação, oferecen<strong>do</strong> livre<br />
acesso à mente <strong>do</strong> personagem-escrevente.<br />
The Invention of Solitude (1982) é simultaneamente uma arte poética<br />
inspirada na experiência efectiva <strong>do</strong> sujeito e o trabalho seminal da prosa de
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 15<br />
Paul Auster. Podemos considerá-lo como um romance-manifesto em duas<br />
partes (Portrait of an Invisible Man e The Book of Memory), para o qual to<strong>do</strong>s os<br />
livros posteriores remetem. The Invention of Solitude não é apenas uma confissão<br />
autobiográfica mas antes uma poderosa meditação acerca de questões comuns à<br />
humanidade, com especial incidência na exploração analítica da cena da escrita,<br />
utilizan<strong>do</strong> o escritor-tradutor e suas vivências como cobaia neste processo de<br />
auto e hetero-conhecimento:<br />
The Invention of Solitude is autobiographical, of course, but I <strong>do</strong>n‟t feel that I was<br />
telling the story of my life so much as using myself to explore certain questions<br />
that are common to us all: how we think, how we remember, how we carry our<br />
pasts around with us at every moment. I was looking at myself in the same way a<br />
scientist studies a laboratory animal. 2<br />
A subjectividade revela-se essencial para alcançar o conhecimento, para<br />
visualizar a projecção <strong>do</strong> sujeito e daí retirar conclusões objectivas e<br />
verdadeiras. Auster coloca a escrita no centro da vida e a vida no centro da<br />
escrita. Confronta<strong>do</strong> com a situação de “a man sitting alone in a room and<br />
writing a book” 3 , Auster faz dela um campo de meditação extremamente rico,<br />
onde profun<strong>do</strong>s temas intelectuais, históricos e pessoais emergem e fazem-se<br />
ouvir. O protagonista de The Invention of Solitude, A. (porque “The Invention of<br />
Solitude is autobiographical, of course”) confere um enorme potencial à<br />
linguagem, imaginan<strong>do</strong>-a como a matriz <strong>do</strong> ser, a matéria genética <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
(re)cria<strong>do</strong> entre as quatro paredes <strong>do</strong> quarto, uma vez que, e com inspiração em<br />
Heidegger, a linguagem é o mo<strong>do</strong> como nós existimos no mun<strong>do</strong>. O livro é um<br />
espaço alquímico onde Auster espera transformar a morte em palavras de vida,<br />
seguin<strong>do</strong> o pensamento de Arthur Schopenhauer:<br />
The word is the most enduring substance of the human race. Once a poet has<br />
properly embodied his most fleeting emotion in the most appropriate words, then<br />
this emotion will continue to live on through these words for millennia and will<br />
flourish anew in every sensitive reader. 4<br />
The Invention of Solitude desenrola-se preferencialmente dentro <strong>do</strong>s espaços<br />
fecha<strong>do</strong>s e solitários da criação literária, espaços que contêm em si toda uma<br />
potencial cosmogonia: “The world ends at that barricaded <strong>do</strong>or. For the room<br />
is not a representation of solitude, it is the substance of solitude itself” 5 . E a<br />
solidão é a substância deste livro, desde o título até à personagem motriz,<br />
passan<strong>do</strong> pelas circunstâncias biográficas da sua escrita. Mas esta solidão é<br />
inventada pelo sujeito, não é produto de uma metafísica universal, passa pela<br />
meditação, pela escrita e pela construção <strong>do</strong>s seus espaços, transforma<strong>do</strong>s no
16<br />
Traduzir<br />
local da busca insaciável: “A man sits alone in a room and writes. Whether the<br />
book speaks of loneliness or companionship, it is necessarily a product of<br />
solitude” 6 .<br />
Para Paul Auster, o termo solitude é por demais complexo e não apenas<br />
um sinónimo para o isolamento físico, carrega<strong>do</strong> de implicações disfóricas. Tal<br />
complexidade acarreta evidentes dificuldades na tradução <strong>do</strong> conceito, que tem<br />
de ter em conta a seguinte distinção: enquanto que a expressão inglesa<br />
loneliness veicula um sentimento de aban<strong>do</strong>no (“eu não quero estar só, eu<br />
ressinto-me <strong>do</strong> far<strong>do</strong> da solidão, eu quero estar com os outros”), relevan<strong>do</strong> a<br />
emoção, a sensação, o termo solitude é semanticamente neutro. Trata-se<br />
simplesmente da descrição de um esta<strong>do</strong>: estar só. Como nas palavras de<br />
Maurice Blanchot: “l‟absolu d‟un Je suis qui veut s‟affirmer sans les autres. C‟est<br />
là ce qu‟on appelle généralement solitude (au niveau du monde). [...] Écrire,<br />
c‟est se livrer à la fascination de l‟absence de temps. Nous approchons sans<br />
<strong>do</strong>ute ici de l‟essence de la solitude. L‟absence de temps n‟est pas un mode<br />
purement négatif” 7 . A tradução portuguesa para A Solidão Reinventada 8 dá-se<br />
conta da polissemia da língua inglesa, face à comparativa escassez lexical <strong>do</strong><br />
português, onde os sinónimos para “solidão” contêm invariavelmente<br />
conotações negativas. Para tal, foi necessário “reinventar” a solidão, com a<br />
tradução de invention por “reinventada”, reforçan<strong>do</strong> assim a noção patente ao<br />
longo da obra numa perspectiva dúplice, consoante o personagem focaliza<strong>do</strong>.<br />
Em Portrait of an Invisible Man vemos a solidão <strong>do</strong> personagem pai, na<br />
terceira pessoa, solidão inconsciente de alguém que vive o seu monótono<br />
quotidiano alhea<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros, não por uma qualquer opção ideológica mas<br />
antes por um sentimento inato de indiferença e neutralidade: “Solitary. But not<br />
in the sense of being alone. [...] Solitary in the sense of retreat. In the sense of<br />
not having to see himself, or not having to see himself being seen by anyone<br />
else” 9 . O isolamento apresenta-se em termos objectivos, na descrição da<br />
própria personagem.<br />
Em The Book of Memory, a perspectiva altera-se: Auster (A.) contempla a<br />
sua própria relação com o filho, na primeira pessoa, analisan<strong>do</strong> o seu percurso<br />
existencial e o isolamento auto-imposto <strong>do</strong> escritor em busca de si mesmo. A.<br />
reinventa a solidão através da metáfora recorrente <strong>do</strong> confinamento de Jonas<br />
no ventre da baleia, de Pinóquio e Gepeto dentro <strong>do</strong> tubarão e da obsessão<br />
pelo espaço claustrofobicamente delimita<strong>do</strong> <strong>do</strong> quarto. Descreve<br />
meticulosamente os quartos diversos e sempre exíguos onde habitou durante<br />
um percurso atribula<strong>do</strong> ou, então, a forma como vários cria<strong>do</strong>res artísticos<br />
encararam esse mesmo tema. Para Auster-filho, a solidão é consciente,
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 17<br />
racionalizada, analisada, mesmo dissecada nas suas implicações. O quarto,<br />
como espaço de solidão envolvente nas suas quatro paredes, está anima<strong>do</strong>,<br />
povoa<strong>do</strong> de pensamentos: “Each time he goes out, he takes his thoughts with<br />
him, and during his absence the room gradually empties of his efforts to inhabit<br />
it. When he returns, he has to begin the process all over again, and that takes<br />
work, real spiritual work” 10 .<br />
A entrevista concedida por Paul Auster a Larry McCaffery e Sinda<br />
Gregory (1989-90) ilustra mais claramente a problemática conceptual de solitude:<br />
Let‟s talk a bit about the question of “solitude”. It‟s a word that comes up<br />
often in your works – and of course it appears in the title of your first book of<br />
prose, The Invention of Solitude. It‟s a concept that seems to contain a lot of<br />
different resonances for you, both personal and aesthetic.<br />
PA: Yes, I suppose there‟s no getting rid of it. But solitude is a rather<br />
complex term for me; it‟s not just a synonym for loneliness or isolation. Most<br />
people tend to think of solitude as a rather gloomy idea, but I <strong>do</strong>n‟t attach any<br />
negative connotations to it. It‟s simply a fact, one of the conditions of being<br />
human, and even if we‟re surrounded by others, we essentially live our lives alone:<br />
real life takes place inside us. We‟re not <strong>do</strong>gs, after all. We‟re not driven solely by<br />
instincts and habits; we can think, and because we think, we‟re always in two<br />
places at the same time. 11<br />
“Solitude became a passageway into the self, an instrument of<br />
discovery” 12 , lemos em The Locked Room, a propósito <strong>do</strong> percurso literário de<br />
Fanshawe (tão semelhante ao de Paul Auster que começa até por um Ground<br />
Work poético), no qual a noção/esta<strong>do</strong> de solitude surge não só como motor<br />
da obra mas também como demarcação da maturidade artística <strong>do</strong><br />
protagonista. A solidão propicia a criação: o personagem-escrevente crê naquilo<br />
a que Keats chamou the truth of imagination. Toda a escrita possui elementos<br />
de solidão, mas poucos escritores norte-americanos acreditaram tanto no<br />
potencial dessa “verdade da imaginação” como Auster. Auster encara a solidão<br />
como um facto simples e inerente à condição humana, que se faz sentir mesmo<br />
no meio da multidão, deriva<strong>do</strong> da certeza de que as verdadeiras vivências<br />
ocorrem no interior de cada um. O olhar introspectivo proporciona mais <strong>do</strong><br />
que o autoconhecimento. Dentro de si próprio, em solidão, o personagemescrevente<br />
encontra o mun<strong>do</strong> inteiro, numa escrita simultaneamente solitária e<br />
solidária: “L‟oeuvre est solitaire: cela ne signifie pas qu‟elle reste<br />
incommunicable, que le lecteur lui manque. Mais qui la lit entre dans cette<br />
affirmation de la solitude de l‟oeuvre, comme celui qui l‟écrit appartient au<br />
risque de cette solitude” 13 .
18<br />
Traduzir<br />
Na sua investigação da cena da escrita, Auster invoca a tradução como<br />
imagem daquilo que ocorre quan<strong>do</strong> alguém entra no espaço de criação <strong>do</strong> livro:<br />
“Every book is an image of solitude [...] A. sits <strong>do</strong>wn in his own room to<br />
translate another man‟s book, and it is as though he were entering that man‟s<br />
solitude and making it his own” 14 . O tradutor espera que o resulta<strong>do</strong> efectivo<br />
<strong>do</strong> seu trabalho de “invasão” seja um texto consentâneo com a riqueza <strong>do</strong><br />
original. O tradutor surge assim como um fantasma temporaria e<br />
voluntariamente encerra<strong>do</strong> no espaço <strong>do</strong> livro, impressão ainda mais visível em<br />
The Book of Memory, que efectua a fusão entre a vida e a escrita de A. Ao<br />
escrever o livro, original ou tradução, o personagem-escrevente cria um<br />
universo paralelo de palavras onde pode movimentar-se a seu bel-prazer, sem<br />
na realidade sair <strong>do</strong> espaço delimita<strong>do</strong> pela mente, mas sem excluir também a<br />
possibilidade de comunicar com o mun<strong>do</strong> circundante: “As he writes, he feels<br />
that he is moving inward (through himself) and at the same time moving<br />
outward (towards the world)” 15 . Porque se escrever é comunicar, levar uma<br />
mensagem a outrem, também traduzir é traducere, fazer passar de um la<strong>do</strong> ou de<br />
um esta<strong>do</strong> para outro, conduzir, transportar, atravessar as pontes linguísticas<br />
que separam a humanidade.<br />
Na juventude, Paul Auster traduziu numerosos autores, como Sartre,<br />
Joubert, Blanchot, Mallarmé, Char, Dupin, de forma a descobrir a literatura e os<br />
escritores, a participar das suas palavras, num lento perío<strong>do</strong> de maturação e<br />
formação, em que escrever sobre os outros serviu para melhor se compreender<br />
a si próprio e para melhor escrever: “Traduire... c‟est briser le texte et le<br />
détruire, puis, à nouveau, le reconstruire entièrement. Au cours d‟un tel travail,<br />
on apprend autant sur soi que sur la poésie” 16 . O trabalho de Paul Austertradutor<br />
é rigorosamente contemporâneo <strong>do</strong> trabalho de Paul Auster-poeta, tal<br />
como se depreende da leitura desta passagem de The Invention of Solitude, onde o<br />
trabalho da tradução é descrito em termos metafóricos e em sintonia com o<br />
conceito de solidão plena e cria<strong>do</strong>ra, reinventa<strong>do</strong> na obra:<br />
For most of his adult life, he has earned his living by translating the books of<br />
other writers. He sits at his desk reading the book in French and then picks up his<br />
pen and writes the same book in English. It is both the same book and not the<br />
same book, and the strangeness of this activity has never failed to impress him.<br />
Every book is an image of solitude. It is a tangible object that one can pick up, put<br />
<strong>do</strong>wn, open, and close, and its words represent many months, if not many years,<br />
of one man‟s solitude, so that with each word one reads in a book one might say<br />
to himself that he is confronting a particle of that solitude. A man sits alone in a<br />
room and writes. Whether the book speaks of loneliness or companionship, it is<br />
necessarily a product of solitude. A. sits <strong>do</strong>wn in his own room to translate<br />
another man‟s book,... and it is as though he were entering that man‟s solitude and
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 19<br />
making it his own. But surely that is impossible. For once a solitude has been<br />
breached, once a solitude has been taken on by another, it is no longer solitude,<br />
but a kind of companionship. Even though there is only one man in the room,<br />
there are two. A. imagines himself as a kind of ghost of that other man, who is<br />
both there and not there, and whose book is both the same and not the same as<br />
the one he is translating. Therefore, he tells himself, it is possible to be alone and<br />
not alone at the same moment.<br />
A word becomes another word, a thing becomes another thing. In this way, he<br />
tells himself, it works in the same way that memory <strong>do</strong>es. He imagines an<br />
immense Babel inside him. There is a text, and it translates itself into an infinite<br />
number of languages. Sentences spill out of him at the speed of thought, and each<br />
word comes from a different language, a thousand tongues that clamor inside him<br />
at once, the din of it echoing through a maze of rooms, corri<strong>do</strong>rs, and stairways,<br />
hundreds of stories high. He repeats. In the space of memory, everything is both<br />
itself and something else. 17<br />
A tradução, motivo central da crítica literária de Auster, conduz o cria<strong>do</strong>r à<br />
exploração <strong>do</strong>s seus limites linguísticos e da linguagem em geral. Auster<br />
também se serve da tradução para explorar literariamente as ambiguidades da<br />
sua própria identidade biográfica e literária, pois a tradução tem o poder de<br />
des<strong>do</strong>brar o autor. Mas será a tradução uma forma de criação mascarada?<br />
Escrever é sempre traduzir, sugere Auster ao longo <strong>do</strong>s seus textos. A tradução<br />
coloca em prática textual o tema da originalidade, <strong>do</strong> duplo e, mais<br />
genericamente, a questão da identidade, cujo enigma está no cerne de The<br />
Invention of Solitude. A. tenta entrar na solidão <strong>do</strong> pai e descodificar os seus<br />
silêncios, num processo semelhante ao da tradução, o seu ofício. Traduzir é<br />
entrar na solidão <strong>do</strong> outro e, consequentemente, essa solidão desvanece-se ou<br />
transforma-se numa solidão palimpsesto, a várias vozes. O tradutor é um<br />
escritor fantasma que, duplican<strong>do</strong> as vozes <strong>do</strong>s outros, duplica-se a si mesmo e<br />
descobre até que ponto o seu próprio sujeito é um estranho, um outro,<br />
traduzi<strong>do</strong> a partir de uma língua estrangeira.<br />
“New York Babel” é um ensaio de 1974 sobre a obra Le Schizo et les<br />
Langues, escrita em francês por Louis Wolfson, um esquizofrénico novaiorquino,<br />
nasci<strong>do</strong> em 1931, que não tolerava ouvir ou pronunciar uma única<br />
palavra na sua língua materna. Neste ensaio, Auster confessa o fascínio que<br />
sente por tal livro e pelo acto de tradução em geral, que Wolfson leva ao limite<br />
extremo:<br />
To say that it is a work written in the margins of literature is not enough: its place,<br />
properly speaking, is in the margins of language itself. Written in French by an<br />
American, it has little meaning unless it is considered an American book; and yet<br />
[…] it is also a book that excludes all possibility of translation. It hovers
20<br />
Traduzir<br />
somewhere in the limbo between the two languages, and nothing will ever be able<br />
to rescue it from this precarious existence. For what we are presented with here is<br />
not simply the case of a writer who has chosen to write in a foreign language. The<br />
author of this book has written in French precisely because he had no choice. It is<br />
the result of brute necessity, and the book itself is nothing less than an act of<br />
survival. 18<br />
Este excerto recorda as personagens atormentadas de The New York Trilogy,<br />
como Quinn, o detective involuntário de City of Glass, que é confronta<strong>do</strong> com o<br />
mistério de Peter Stillman, o jovem encerra<strong>do</strong> pelo próprio pai durante anos<br />
nas trevas e no silêncio, na esperança vã de que um dia viesse a falar<br />
espontaneamente a linguagem divina anterior a Babel:<br />
Peter kept the words inside him. All those days and months and years. There in<br />
the dark, little Peter all alone, and the words made noise in his head and kept him<br />
company. This is why his mouth <strong>do</strong>es not work right. Poor Peter. Boo hoo. Such<br />
are his tears. The little boy who can never grow up. Peter can talk like people<br />
now. But he still has the other words in his head. They are God‟s language, and<br />
no one else can speak them. They cannot be translated. That is why Peter lives so<br />
close to God. That is why he is a famous poet. 19<br />
Encontramos nestes projectos insanos um eco <strong>do</strong> pensamento de Octavio<br />
Paz, para quem aprender a falar será aprender a traduzir. A linguagem perde a<br />
sua universalidade e revela-se como uma pluralidade de línguas, todas elas<br />
estranhas e ininteligíveis entre si. A universalidade <strong>do</strong> espírito é a resposta a esta<br />
confusão babélica: há muitas línguas mas o senti<strong>do</strong> é único e a tradução será o<br />
veículo de todas as singularidades 20 . Auster mostra-se ciente desta problemática<br />
também na entrevista que Gérard de Cortanze intitulou significativamente de<br />
“Le monde est dans ma tête, mon corps est dans le monde”:<br />
Les arts et les littératures de chaque pays possèdent des caractéristiques qui leur<br />
sont propres, c‟est un fait. Mais on participe aussi d‟un courant plus vaste: celui de<br />
la littérature mondiale. Les traductions existent depuis l‟aube de l‟imprimerie. Les<br />
écrivains subissent des influences extérieures à celles de leur pays d‟origine. [...]<br />
Flaubert, le Français, a beaucoup influencé l‟Irlandais Joyce, qui a beaucoup<br />
influencé l‟Américain Faulkner, qui a beaucoup influencé le Sud-Américain<br />
Gabriel Garcia Marquez, qui a beaucoup influencé Toni Morrison. Ces frontières<br />
sont absurdes. 21<br />
Posteriormente, ainda em City of Glass, e a propósito <strong>do</strong> Quijote de<br />
Cervantes, Quinn discute com Paul Auster (o personagem-escritor inseri<strong>do</strong> na<br />
ficção criada pelo escritor homónimo não personagem) a questão da tradução<br />
como corrupção da veracidade <strong>do</strong> texto e dupla alteração da realidade. Há na<br />
escrita um ideal linguístico jamais alcança<strong>do</strong>, a utopia <strong>do</strong>s tradutores. Com
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 21<br />
efeito, a utopia última <strong>do</strong> tradutor será a busca <strong>do</strong> paraíso perdi<strong>do</strong>, com a sua<br />
linguagem universal, evocan<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s jogos de linguagem que Ludwig<br />
Wittgenstein comparava ao estu<strong>do</strong> das línguas primitivas, ao buscar igualmente<br />
a natureza última da linguagem, com a sua gramática logicamente correcta. No<br />
conceito base de Wittgenstein, a linguagem reproduz a realidade à maneira de<br />
um quadro: a proposição é uma espécie de representação pictórica daquilo que<br />
descreve e as relações entre os elementos dessa imagem reflectem as relações<br />
existentes entre os constituintes da realidade descrita. Numa proposição<br />
elementar, os nomes estabelecem uma correspondência bi-unívoca com os<br />
objectos determina<strong>do</strong>s, comprovan<strong>do</strong> que a língua e a realidade estão, entre si,<br />
numa relação projectiva de isomorfia. Por isso, uma série de personagens<br />
austerianas procura encontrar respostas através da observação da linguagem<br />
com que se exprimem, buscan<strong>do</strong> a compreensão através da descrição<br />
minuciosa, com as palavras mais adequadas. Escrever uma narrativa – e a maior<br />
parte das personagens de Auster são escritores num determina<strong>do</strong> momento – é<br />
uma forma de ganhar controlo sobre o caos em que se encontram submergi<strong>do</strong>s.<br />
Mas, muitas vezes, os acontecimentos ultrapassam a capacidade de alcance e<br />
fluência das palavras.<br />
Algo semelhante sucede com a tradução, quan<strong>do</strong> os recursos de uma<br />
determinada língua (ou de um determina<strong>do</strong> tradutor) não correspondem ao<br />
alcance e fluência das palavras <strong>do</strong> original a traduzir. Auster-tradutor partilha e<br />
verbaliza essa experiência em ensaios como “The Poetry of Exile” 22 , sobre as<br />
dificuldades de tradução para inglês de um original em alemão de Paul Celan,<br />
ou “Twentieth-Century French Poetry”, de 1981, onde lemos:<br />
Its purpose is not only to present the work of french poets in French, but to offer<br />
translations of that work as our own poets have re-imagined and re-presented it.<br />
(…) Many of these differences reside in the disparities between the two languages.<br />
Although English is in large part derived from French, it still holds fast to its<br />
Anglo-Saxon origins. Against the gravity and substantiality to be found in the<br />
work of our greatest poets (Milton, say, or Emily Dickinson), which embodies an<br />
awareness of the contrast between the thick emphasis of Anglo-Saxon and the<br />
nimble conceptuality of French/Latin – and to play one repeatedly against the<br />
other – French poetry often seems almost weightless to us, to be composed of<br />
ethereal puffs of lyricism and little else. French is necessarily a thinner medium<br />
than English. But that <strong>do</strong>es not mean it is weaker. If English writing has staked<br />
out as its territory the world of tangibility, of concrete presence, of surface<br />
accident, French literary language has largely been a language of essences.<br />
Whereas Shakespeare, for example, names more than five hundred flowers in his<br />
plays, Racine adheres to the single word “flower”. In all, the French dramatist‟s<br />
vocabulary consists of roughly fifteen hundred words, while the word count in<br />
Shakespeare‟s plays runs upward of twenty-five thousand. 23
22<br />
Traduzir<br />
Auster afirma não ter o hábito de seguir uma meto<strong>do</strong>logia consistente nas<br />
suas traduções. Apesar de a maior parte das traduções que assina ser bastante<br />
fiel ao original, algumas há que não passam de simples adaptações. A tradução<br />
de poesia, então, é para Auster algo de muito vago, livre de regras e opções<br />
meto<strong>do</strong>lógicas. Prefere utilizar o seu “instinto poético”, o ouvi<strong>do</strong>, a experiência,<br />
optan<strong>do</strong> sempre pela liberdade criativa quan<strong>do</strong> confronta<strong>do</strong> com a escolha fatal<br />
entre literalidade e literariedade. Enquanto tradutor de francês, Auster prefere<br />
oferecer aos seus leitores a experiência <strong>do</strong> poema “como poema” e não uma<br />
rigorosa versão palavra-a-palavra <strong>do</strong> original. Porque a experiência <strong>do</strong> poema<br />
reside não só nas suas palavras mas também na interacção entre essas mesmas<br />
palavras – a musicalidade, os silêncios, as formas – e se o leitor não tiver a<br />
oportunidade de partilhar da plenitude dessa experiência, ficará para sempre<br />
priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> verdadeiro espírito <strong>do</strong> original. É por essa razão que Paul Auster<br />
defende que a poesia deve ser traduzida por poetas. A esta afirmação, o ensaio<br />
de Octavio Paz “Traducción, Literatura y Literalidad”, de 1970, parece<br />
contrapor:<br />
En teoría, sólo los poetas deberían traducir poesía; en la realidad, pocas veces los<br />
poetas son buenos traductores. No lo son porque casi siempre usan el poema<br />
ajeno como un punto de partida para escribir su poema. El buen traductor se<br />
mueve en una dirección contraria: su punto de llegada es un poema análogo, ya<br />
que no idéntico, al poema original. No se aparta del poema sino para seguirlo más<br />
de cerca. El buen traductor de poesía es un traductor que, además, es un poeta o<br />
un poeta que, además, es un buen traductor. 24<br />
Para Octavio Paz, a razão da incapacidade de muitos poetas para traduzir<br />
poesia não é de ordem puramente psicológica, se bem que o egocentrismo<br />
desempenhe aqui um certo papel, pelo menos funcional. A tradução poética é<br />
uma operação análoga à criação poética, só que se desenvolve em senti<strong>do</strong><br />
inverso. Paz conclui que tradução e criação literária são operações gémeas, mas<br />
com identidades claramente distintas:<br />
El punto de partida del traductor no es el lenguaje en movimiento, materia prima<br />
del poeta, sino el lenguaje fijo del poema. Lenguaje congela<strong>do</strong> y, no obstante,<br />
perfectamente vivo. Su operación es inversa a la del poeta: no se trata de construir<br />
con signos móviles un texto inamovible, sino desmontar los elementos de ese<br />
texto, poner de nuevo en circulación los signos y devolverlos al lenguaje. Hasta<br />
aquí, la actividad del traductor es parecida a la del lector y a la del crítico: cada<br />
lectura es una traducción, y cada crítica es, o comienza por ser, una interpretación.<br />
Pero la lectura es una traducción dentro del mismo idioma y la crítica es una<br />
versión libre del poema o, más exactamente, una trasposición. Para el crítico el
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 23<br />
poema es un punto de partida hacia otro texto, el suyo, mientras que el traductor,<br />
en otro lenguaje y con signos diferentes, debe componer un poema análogo al<br />
original. Así, en su segun<strong>do</strong> momento, la actividad del traductor es paralela a la del<br />
poeta, con esta diferencia capital: al escribir, el poeta no sabe como será su poema;<br />
al traducir, el traductor sabe que su poema deberá reproducir el poema que tiene<br />
bajo los ojos. En sus <strong>do</strong>s momentos la traducción es una operación paralela,<br />
aunque en senti<strong>do</strong> inverso, a la creación poética. El poema traduci<strong>do</strong> deberá<br />
reproducir el poema original que, como ya se ha dicho, no es tanto su copia como<br />
su trasmutación. El ideal de la traducción poética, según alguna vez lo definió Paul<br />
Valéry de manera insuperable, consiste en producir con medios diferentes efectos<br />
análogos. 25<br />
Auster desenvolve o princípio desta analogia entre tradução e criação<br />
literária em “Translations: An Interview with Stephen Rodefer” (1985), onde<br />
novamente preconiza a tradução como méto<strong>do</strong> de aprendizagem para a escrita<br />
poética, servin<strong>do</strong>-se de exemplos autobiográficos:<br />
Stephen Rodefer: When did you begin <strong>do</strong>ing translations?<br />
Paul Auster: Back when I was nineteen or twenty years old, as an<br />
undergraduate at Columbia. They gave us various poems to read in French class –<br />
Baudelaire, Rimbaud, Verlaine – and I found them terribly exciting, even if I<br />
didn‟t always understand them. The foreignness was daunting to me – as though a<br />
work written in a foreign language was somehow not real – and it was only by<br />
trying to put them into English that I began to penetrate them. […] I was driven<br />
by a need to appropriate these works, to make them part of my own world.<br />
S.R.: Were you writing poetry of your own at that time, too?<br />
P.A.: Yes. But like most young people, I had no idea what I was <strong>do</strong>ing.<br />
One‟s ambitions at that stage are so enormous, but you <strong>do</strong>n‟t necessarily have the<br />
tools to carry them out. It leads to frustration, a deep sense of your own<br />
inadequacy. I struggled along during those years to find my own way, and in the<br />
process I discovered that translation was an extremely helpful exercise. Pound<br />
recommends translation for young poets, and I think that shows great<br />
understanding, on his part. You have to begin slowly. Translation allows you to<br />
work on the nuts and bolts of your craft, to learn how to live intimately with<br />
words, to see more clearly what you are actually <strong>do</strong>ing. […] A young poet will<br />
learn more about how Rilke wrote sonnets by trying to translate one than by<br />
writing an essay about it.<br />
[…] My first translations years ago of modern French poets were real acts of<br />
discovery, labors of love. Then I went through a long period when I earned my<br />
living by <strong>do</strong>ing translations. […] For the past five or six years, I‟ve tried to limit<br />
myself to things that I am passionately interested in – works that I have<br />
discovered and want to share with other people. If those books are not exactly<br />
connected to my writing, they still belong to my inner world. […] There are<br />
sublimely talented translators out there in America today – Manheim, Rabassa,<br />
Wilbur, Mandelbaum, to name just a few. But I <strong>do</strong>n‟t think of myself as belonging<br />
to the fraternity of translators. I‟m just someone who likes to follow his nose, and<br />
more often than not this leads me into some odd corners. 26
24<br />
Traduzir<br />
Auster compreende a função da tradução como princípio basilar da<br />
comunicação intercultural, numa nova sintonia com o pensamento de Octavio<br />
Paz, que começa por afirmar: “En el interior de cada civilización renacen las<br />
diferencias: las lenguas que nos sirven para comunicarnos también nos<br />
encierran en una malla invisible de soni<strong>do</strong>s y significa<strong>do</strong>s, de mo<strong>do</strong> que las<br />
naciones son prisioneras de las lenguas que hablan. Dentro de cada lengua se<br />
reproducen las divisiones: épocas históricas, clases sociales, generaciones. En<br />
cuanto a las relaciones entre indivíduos aisla<strong>do</strong>s y que pertenecen a la misma<br />
comunidad: cada uno es un empareda<strong>do</strong> vivo en su propio yo” 27 .<br />
Descartes encetou a busca individual da verdade, afastan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s <strong>do</strong>gmas<br />
da sua época e cultura. Descobriu que a mente humana estava preparada para<br />
encontrar a verdade por si mesma e que o espírito humano seria o ponto de<br />
partida e de chegada de to<strong>do</strong> o conhecimento. Em última análise, incorrer-se-ia<br />
numa espécie de solitary confinement: “If you accept the cognitive authenticity<br />
of nothing other than your own directly accessible data, in the end you are<br />
confined to a prison whose limits are indeed those data. If they are constituted<br />
by your immediate consciousness, by yourself in effect, then your self<br />
eventually becomes your prison. The self is your world, the world is your<br />
self” 28 . Ou seja, de novo: cada um está empareda<strong>do</strong> vivo no seu próprio ser,<br />
como afirma Paz, ou no seu próprio espaço fecha<strong>do</strong>, como os personagens de<br />
Auster.<br />
Mas Octavio Paz (e Paul Auster) compreendem que a escrita, a criação –<br />
ou a tradução – de novos mun<strong>do</strong>s liberta a mente e sintoniza-a com a<br />
humanidade e o universo, cumprin<strong>do</strong> a referida função de comunicação<br />
intercultural:<br />
To<strong>do</strong> esto debería haber desanima<strong>do</strong> a los traductores. No ha si<strong>do</strong> así: por un<br />
movimiento contradictorio y complementario, se traduce más y más. La razón de<br />
esta para<strong>do</strong>ja es la siguiente: por una parte la traducción suprime las diferencias<br />
entre una lengua y otra; por la otra, las revela más plenamente: gracias a la<br />
traducción nos enteramos de que nuestros vecinos hablan y piensan de un mo<strong>do</strong><br />
distinto al nuestro. En un extremo el mun<strong>do</strong> se nos presenta como una colección<br />
de heterogeneidades; en el otro, como un superposición de textos, cada uno<br />
ligeramente distinto al anterior: traducciones de traducciones de traducciones.<br />
Cada texto es único y, simultáneamente, es la traducción de otro texto. Ningún<br />
texto es enteramente original porque el lenguaje mismo, en su esencia, es ya una<br />
traducción: primero, del mun<strong>do</strong> no-verbal y, después, porque cada signo y cada<br />
frase es la traducción de otro signo y de otra frase. Pero ese razonamiento puede<br />
invertirse sin perder validez: to<strong>do</strong>s los textos son originales porque cada<br />
traducción es distinta. Cada traducción es, hasta cierto punto, una invención y así<br />
constituye un texto único. 29
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 25<br />
Na língua espanhola, informa Octavio Paz, a tradução literal é<br />
significativamente chamada de tradução servil. Não que a tradução literal seja<br />
impossível, mas não deverá ser considerada como a verdadeira tradução. Será<br />
antes um dispositivo, geralmente composto por uma sucessão de palavras, que<br />
ajuda à compreensão <strong>do</strong> texto na sua língua original, num processo mais<br />
próximo <strong>do</strong> dicionário <strong>do</strong> que da tradução, que é sempre uma operação<br />
literária. De qualquer forma, e sem excluir aqueles casos em que é apenas<br />
necessário traduzir o conteú<strong>do</strong> informativo <strong>do</strong> texto, como nas obras<br />
científicas, a tradução implica invariavelmente a transformação <strong>do</strong> original.<br />
Georges Mounin defende que é possível traduzir os significa<strong>do</strong>s denotativos de<br />
um texto, mas nunca os conotativos 30 . Paz e Auster não concordam: feita de<br />
ecos, reflexos e correspondências entre som e senti<strong>do</strong>, a poesia é um teci<strong>do</strong> de<br />
conotações e seria, numa tal perspectiva, intraduzível. “E as „máquinas‟ que<br />
traduzem?”, pergunta Octavio Paz:<br />
Cuan<strong>do</strong> estos aparatos logren realmente traducir, realizarán una operación<br />
literaria; no harán nada distinto a lo que hacen ahora los traductores: literatura. La<br />
traducción es una tarea en la que, desconta<strong>do</strong>s los indispensables conocimientos<br />
lingüísticos, lo decisivo es la iniciativa del traductor, sea éste una máquina<br />
“programada” por un hombre o un hombre rodea<strong>do</strong> de diccionarios. Para<br />
convencernos oigamos al poeta británico Arthur Waley: “A French scholar wrote<br />
recently with regard to translators: „Qu‟ils s‟effacent derrière les textes et ceux-ci,<br />
s‟ils ont été vraiment compris, parleront d‟eux-mêmes‟. Except in the rather rare<br />
case of plain concrete statements such as „The cat chases the mouse‟ there are<br />
sel<strong>do</strong>m sentences that have exact word-to-word equivalents in another language.<br />
It becomes a question of choosing between various approximations... I have<br />
always found that it was I, not the texts, that had to <strong>do</strong> the talking”. 31<br />
Também Walter Benjamin, no ensaio de 1923 “The Task of the<br />
Translator”, defende pontos de vista que, de certo mo<strong>do</strong>, parecem contrariar a<br />
proximidade que Paz e Auster encontram entre tradução e criação literária:<br />
Unlike a work of literature, translation <strong>do</strong>es not find itself in the center of the<br />
language forest but on the outside facing the wooded ridge, it calls into it without<br />
entering, aiming at that single spot where the echo is able to give, in its own<br />
language, the reverberation of the work in the alien one. Not only <strong>do</strong>es the aim of<br />
translation differ from that of a literary work – it intends language as a whole,<br />
taking an individual work in an alien language as a point of departure – but it is a<br />
different effort altogether. 32<br />
O esforço poderá ser pontualmente distinto. No entanto, são inúmeras as<br />
ocasiões em que o tradutor, tal como o escritor (ambos personagensescreventes),<br />
mergulha, explora e se perde no coração da “floresta da
26<br />
Traduzir<br />
linguagem”, ao tentar cumprir a imensa tarefa que Benjamin considera ser the<br />
task of the translator: “to release in his own language that pure language which<br />
is under the spell of another, to liberate the language imprisoned in a work in<br />
his re-creation of that work. For the sake of pure language, he breaks through<br />
decayed barriers of his own language” 33 .<br />
Em The Invention of Solitude, Auster demonstra como a tradução é uma<br />
forma de libertar o espírito cria<strong>do</strong>r de um autor de língua estrangeira, encerra<strong>do</strong><br />
dentro das páginas de um livro ilegível até ao momento da intervenção discreta<br />
(quase espectral) mas imprescindível <strong>do</strong> tradutor. Na sua obra, Auster-tradutor<br />
e Auster-escritor, observa<strong>do</strong>r e observa<strong>do</strong>, equaciona(m) o problema da escrita<br />
enquanto acto, permitin<strong>do</strong> ao leitor acompanhar e participar desse processo de<br />
construção. A narrativa e a linguagem intelectualizam-se, tornam-se<br />
conscientes, algo que, no caso presente, possibilita uma reflexão e uma<br />
aproximação privilegiadas ao ensino da tradução de textos literários, através da<br />
própria literatura. Porque a missão <strong>do</strong> tradutor é, em conclusão, e tal como<br />
John Dryden já escrevera no século XVII, “to make his author appear as<br />
charming as possibly he can, provided he maintains his character, and makes<br />
him not unlike himself. Translation is a kind of drawing after the life” 34 .<br />
________<br />
1 Hassan, Ihab, “Postface 1982: Towards a Concept of Postmodernism” in<br />
Trachtenberg, Stanley (ed.), Critical Essays on American Postmodernism, New York,<br />
G.K.Hall and Co., 1995, p. 87.<br />
2 Auster, Paul, The Art of Hunger: Essays, Prefaces, Interviews, Los Angeles, Sun &<br />
Moon Press, 1992, p. 292.<br />
169.<br />
3 Auster, Paul, The New York Trilogy, Lon<strong>do</strong>n, Faber and Faber, 1992 1987, p.<br />
4 Schopenhauer, Arthur, “On Language and Words” cita<strong>do</strong> por: Schulte, Rainer;<br />
Biguenet, John (eds.), Theories of Translation: An Anthology of Essays from Dryden to Derrida,<br />
University of Chicago Press, 1992, p. 32.<br />
5 Auster, Paul, The Invention of Solitude, Lon<strong>do</strong>n, Penguin, 1988 1982, p. 143.<br />
6 Idem, p. 136.<br />
7 Blanchot, Maurice, L‟Espace Littéraire, Paris, Gallimard, 1955, pp. 342 e 22.<br />
8 Auster, Paul, A Solidão Reinventada, trad. Ana Luísa Faria, Venda Nova, Bertrand<br />
Editora, 1994.<br />
9 Auster, Paul, The Invention of Solitude, pp. 16-17.
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 27<br />
10 Idem, p. 77.<br />
11 Auster, Paul, The Art of Hunger, p. 299.<br />
12 Auster, Paul, The New York Trilogy, pp. 277-8.<br />
13 Blanchot, Maurice, L´Espace Littéraire, p. 11.<br />
14 Auster, Paul, The Invention of Solitude, p. 136.<br />
15 Idem, p. 139.<br />
16 Auster, Paul, Introdução ao “Dossier Jacques Dupin”, Les Cahiers de la Table<br />
Ronde, automne 1995.<br />
17 Auster, Paul, The Invention of Solitude, p. 136.<br />
18 Auster, Paul, Ground Work: Selected Poems and Essays 1970- 1979, Lon<strong>do</strong>n, Faber<br />
and Faber, 1991 1990, p. 120.<br />
19 Auster, Paul, The New York Trilogy, p. 20.<br />
20 A este propósito consultar: Paz, Octavio. Traducción, Literatura y Literalidad,<br />
Barcelona, Tusquets Editores, 1990 [1971].<br />
21 Cortanze, Gérard de (ed.), “Dossier Paul Auster: de la Trilogie New-Yorkaise à<br />
Smoke”, Magazine Littéraire 338, Décembre 1995, p. 21.<br />
22 Auster, Paul, The Art of Hunger, pp. 82-94.<br />
23 Idem, pp. 195-6. Ver também a seguinte passagem: “Samuel Beckett, who has<br />
spent the greater part of his life writing in both languages, translating his own work<br />
from French into English and from English into French, is no <strong>do</strong>ubt our most reliable<br />
witness to the capacities and limitations of the two languages. In one of his letters from<br />
the mid-fifties, he complained about the difficulty he was having in translating Fin de<br />
partie (Endgame) into English. The line Clov addresses to Hamm, “Il n‟y a plus de<br />
roues de bicyclette” was a particular problem. In French, Beckett contended, the line<br />
conveyed the meaning that bicycle wheels as a category had ceased to exist, that there<br />
were no more bicycle wheels in the world. The English equivalent, however, “There are<br />
no more bicycle wheels” meant simply that there were no more bicycle wheels available,<br />
that no bicycle wheels could be found in the place where they happened to be. A world<br />
of difference is embedded here beneath apparent similarity. Just as the Eskimos have<br />
more than twenty words for snow (a frequently cited example), which means they are<br />
able to experience snow in ways far more nuanced and elaborate than we are – literally<br />
to see things we cannot see – the French live inside their language in ways that are<br />
somewhat at odds with the way we live inside English” (idem, p. 197).<br />
24 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, p. 20.<br />
25 Idem, pp. 22-3.<br />
26 Auster, Paul, The Art of Hunger, pp. 253-5.<br />
27 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, p. 12.<br />
28 Gellner, Ernest, “Wittgenstein: the loneliness of the long-distance empiricist” in<br />
Language and Solitude: Wittgenstein, Malinowski and the Habsburg Dilemma, Cambridge<br />
University Press, 1999 [1998], p. 43. Ver também as proposições de Ludwig<br />
Wittgenstein: “The world and life are one”; “I am my world (the microcosm)”; “There<br />
is no such thing as the subject that thinks or entertains ideas”; “The subject <strong>do</strong>es not
28<br />
Traduzir<br />
belong to the world but rather, it is a limit of the world”; “Here it can be seen that<br />
solipsism, when its implications are followed out strictly, coincides with pure realism.<br />
The self of solipsism shrinks to a point without extension, and there remains the reality<br />
co-ordinated with it” (Wittgenstein, Ludwig, Tractatus Logico-Philosophicus, trad. D. F.<br />
Pears e B. F. McGuinness, Lon<strong>do</strong>n, Routledge, 1974 [1921], propositions 5.621, 5.63,<br />
5.631, 5.632, 58 e 5.64).<br />
29 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, pp. 12-13.<br />
30 Consultar: Mounin, Georges, Problèmes Théoriques de la Traduction, Paris,<br />
Gallimard, 1963.<br />
31 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, p. 19.<br />
32 Benjamin, Walter, “The Task of the Translator”, cita<strong>do</strong> por: Schulte e Biguenet<br />
(eds.), Theories of Translation, p. 77.<br />
33 Idem, p. 80.<br />
34 Dryden, John, “On Translation”, cita<strong>do</strong> por: Schulte e Biguenet (eds.), Theories<br />
of Translation, p. 23.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
AA. VV., “Dossier Jacques Dupin”, Les Cahiers de la Table Ronde, automne 1995.<br />
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A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude 29
PRONOUN-DROPPING OR ZERO ANAPHORA IN TRANSLATION<br />
FROM GERMAN INTO PORTUGUESE<br />
Dalila Lopes<br />
1. Subject Personal Pronouns and Subject-Dropping<br />
1.1 When contrasting the use of subject personal pronouns in translation<br />
from Portuguese into German, Koller (1982) found out that in narrative texts<br />
there occur 60% cases of subject-dropping in Portuguese against only 15%<br />
cases of subject-dropping in German. Subject-dropping in Portuguese is a wellknown<br />
practice, and the explanation for this phenomenon lays, according to<br />
most linguists like Mateus et al. (1992 3 :211) or Cunha/Cintra (1996 12 :284), in<br />
the fact that the verbal flexion in Portuguese is rich enough to enable the<br />
listener/reader to identify 1st, 2nd and 3rd persons, thus making the use of the<br />
subject pronoun redundant.<br />
Nevertheless, a closer analysis of the phenomenon of subject-dropping in<br />
Portuguese reveals that this explanation <strong>do</strong>es not account for the fact that<br />
subject-dropping also occurs in Portuguese when, for example, 1st and 3rd<br />
person singular are served by the same verbal form, as happens in the case of<br />
the Imperfect Indicative: a form like „andava‟ („walked‟) admits a 1st person<br />
singular subject (eu andava) and two 3rd person singular subjects, a masculine<br />
and a feminine pronoun (ele/ela andava). And yet, as Wandruszka (1969:258-<br />
259) points out, subject-dropping remains a tendency even in these cases. He<br />
argues that subject-dropping in such cases is allowed when context or co-text<br />
give us enough clues to identify who (or what) the subject is.<br />
1.2 Koller (1982) goes a bit further in the explanation of this<br />
phenomenon. He addresses the issue by means of the theme-rheme distinction,<br />
or rather, by means of the analysis of topic continuity/discontinuity in<br />
discourse. He claims that subject-dropping is prevailing in Portuguese if there<br />
is topic continuity in the 2nd sentence of a sequence of two, while in the case<br />
of topic discontinuity the subject pronoun must necessarily be expressed in the<br />
second sentence 1 ; otherwise the reference in the 2nd sentence of the sequence<br />
will be ambiguous.
Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation 31<br />
2. Subject Personal Pronouns and Subject-Dropping in the Translation of<br />
Anaphora<br />
2.1 The tendencies/rules just referred to may be illustrated by means of<br />
examples selected from Heinrich Böll‟s novel Haus ohne Hüter and its<br />
translation into Portuguese by Jorge Rosa with the title Casa Indefesa.<br />
In example [1],<br />
[1] (German) Wenn Nella Besuch mitbrachte, rief sie Albert […]. (p. 94)<br />
the translator, following the subject-dropping rule in topic continuity just<br />
referred to, omits the subject pronoun in the 2nd sentence (zero anaphora):<br />
[1] (Portuguese) Quan<strong>do</strong> Nella aparecia em casa com visitas, [ø] chamava<br />
Albert […]. (p. 99)<br />
In the case of topic discontinuity, as in example [2],<br />
[2] (German) […] wenn er [Glum] mit Tata auf dem Bett lag, erzählte sie<br />
ihm alles […]. (p. 163)<br />
the translator uses the subject pronoun in the 2nd sentence:<br />
[2] (Portuguese) […] quan<strong>do</strong> [ø] estava deita<strong>do</strong> com Tata, ela falava-lhe em<br />
tu<strong>do</strong> […]. (p. 170)<br />
In cases of topic discontinuity similar to example [2], the translator<br />
sometimes uses referential definite NPs rather than pronominal forms:<br />
[3] (German) Martin nahm Wilma wieder auf den Schoß. Sie steckte den<br />
Daumen in den Mund […]. (p. 257)<br />
[3] (Portuguese) Martin tornou a pegar em Wilma ao colo. A garota meteu o<br />
polegar na boca […]. (p. 271)<br />
2.2 Examples [1], [2] and [3] involve references to persons. When dealing<br />
with references to objects, the subject-dropping tendency in Portuguese seems<br />
to be even stronger. In example [4],
32<br />
Traduzir<br />
[4] (German) […] manchmal waren gar keine Zigaretten im Haus, und<br />
Onkel Albert mußte […] mit seinem Auto in die Stadt fahren um welche zu<br />
holen […]. “Oh, sie müssen aber frisch sein, lieber Junge” […] (p. 7)<br />
there is topic discontinuity. Onkel Albert is the topic of the 2nd and 3rd<br />
sentences and the pronoun sie in the 4th sentence refers to Zigaretten.<br />
Nevertheless, the translator follows the subject-dropping tendency and so there<br />
is zero anaphora in the 4th sentence:<br />
[4] (Portuguese) […] e muitas vezes não havia mesmo cigarros em casa, e o<br />
tio Albert não tinha outro remédio senão […] ir no carro até à cidade comprálos<br />
[…] “Oh, mas [ø] devem ser frescos, meu rapaz” […]. (pp. 7-8)<br />
The tendency to drop the subject personal pronoun in Portuguese when<br />
referring to objects is really all prevailing. An analysis of the translation of the<br />
whole novel reveals only one case of the use of a subject personal pronoun<br />
when referring to objects. That is example [5]:<br />
[5] (German) [...] [Martin] brachte den Schlüssel an der Schnur so heftig<br />
zum Pendeln, daß er links am Ohr vorbei um den Kopf herum auf die rechte<br />
Wange schlug. (p. 64)<br />
[5] (Portuguese) […] [Martin] fez pender a chave com tanta violência que<br />
ela lhe passou junto à orelha esquerda. (p. 67)<br />
3. Non-Subject Personal Pronouns in Translation<br />
As for non-subject personal pronouns in anaphoric uses, pronoundropping<br />
or zero anaphora is extremely rare. Personal pronouns functioning as<br />
direct, indirect or prepositional objects in the German source text sentences<br />
are, as a rule, translated by means of their correspondents in Portuguese.<br />
However, the analysis of the Portuguese translation of this novel shows that<br />
there is a tendency to avoid the repetition of identical forms in near co-text.<br />
This applies both to pronouns and to nominal forms.<br />
In example [6],
Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation 33<br />
[6] (German) Nachmittags war er meistens mit ihr allein und dann war sie<br />
ruhig und weinte nie. (p. 89)<br />
the pronoun form ihr is translated into Portuguese by means of a nominal<br />
form, a pequena, in order to avoid the repetition of the identical form „ela‟ in the<br />
near co-text:<br />
[6] (Portuguese) Da parte da tarde, era quase sempre ele quem ficava<br />
sòzinho [sic] com a pequena, e então ela mostrava-se tranquila, nunca chorava.<br />
(p. 92).[ ≠ (...) era quase sempre ele quem ficava com ela, e então<br />
ela mostrava-se tranquila (...)].<br />
4. Possessives<br />
4.1 In a contrastive analysis of the possessive pronoun system and use in<br />
both German and Portuguese, Sousa-Möckel (1997) showed that there is a<br />
tendency in Portuguese to avoid the use of possessives in a number of cases in<br />
which they are compulsory in German. These cases involve, among others,<br />
references to body parts, objects of normal use, family members and usual<br />
habits. In these cases, the possessive pronoun in Portuguese is implicit rather<br />
than explicit.<br />
That is why in example [7],<br />
[7] (German) Als der Lehrjunge gegangen war, legte der Bäcker wieder seine<br />
Hand auf ihre Hand. (p. 266)<br />
the German possessive seine is not translated into Portuguese:<br />
[7] (Portuguese) Quan<strong>do</strong> o aprendiz se foi embora, o pasteleiro tornou a<br />
pousar a [ø] mão na dela. (p. 281)<br />
4.2 At the same time, Sousa-Möckel also points out that the Portuguese<br />
system of possessives allows for a more precise distinction of the gender of the<br />
possessor than the German system. This is achieved by means of the so-called<br />
analytical forms like „dele‟, „dela‟, „deles‟, „delas‟. This is clear in example [7],<br />
where the analytical form dela is used, rather than the synthetical form „sua‟ that<br />
<strong>do</strong>es not allow for gender distinction of the possessor.
34<br />
Traduzir<br />
4.3 The tendency to avoid repetition of identical forms in the near co-text<br />
referred to above sometimes leads to translations where parts of the sentence,<br />
which are not essential to its interpretation, are omitted. This can be seen in<br />
example [8],<br />
[8] (German) […] legte er seine Hand auf ihre Hand und sie ließ seine<br />
Hand <strong>do</strong>rt liegen. (p. 266)<br />
where the Portuguese translation omits the segment in bold:<br />
[8] (Portuguese) […] ele pousou a sua mão na dela e ela consentiu. (p.<br />
281)<br />
[… que a mão dele assim ficasse]<br />
4.4 This tendency to avoid repetition of identical forms in the near co-text<br />
can also lead to other solutions in translation rather than omitting parts of the<br />
sentence. In example [9],<br />
[9] (German) Sie steckte den Daumen in den Mund und legte ihren Kopf<br />
auf seine Brust. (p. 257)<br />
both possessives, ihren and seine, are not symmetrically translated in the target<br />
text. The translator prefers to use the dative form of the personal pronoun, lhe,<br />
rather than the possessive:<br />
[9] (Portuguese) A garota meteu o polegar na boca e encostou-lhe a cabeça<br />
ao peito. (p. 271)<br />
This and other solutions for translation problems seem to point to the fact<br />
that pronominal sub-systems (personal pronouns, possessives, demonstratives<br />
and so forth) function in complementarity, thus forming a cohesive<br />
pronominal system: where a particular pronoun <strong>do</strong>es not seem suitable for any<br />
sort of reason, another type of pronoun steps in, allowing for an acceptable<br />
translation.<br />
5. Unsolved Problems
Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation 35<br />
5.1 In spite of the tendencies and rules explained and exemplified in this<br />
article, we are still left with some problems that can not be solved within the<br />
scope of syntax and/or semantics.<br />
Let us leave translation problems aside for a while and concentrate on<br />
anaphor in a particular language. Sentences containing structures of the type<br />
F because PRO<br />
are a case in point, where F contains two antecedents of the same gender, like<br />
in example [10]:<br />
[10] (English) The policeman hit the suspect because he was trying to escape.<br />
To interpret examples like [10], that is, to solve the anaphoric use of he in<br />
the 2nd sentence, some linguists seem to claim that the rule of topic<br />
continuity/discontinuity <strong>do</strong>es not apply here, because the 1st sentence contains<br />
a verb with a bias. Some verbs like „envy‟, „blame‟ or „hit‟ would have a bias<br />
towards the direct object. So, in example [10], the subject of the 2nd sentence,<br />
he, would be co-referent with the direct object of the 1st sentence, the suspect<br />
(and not the policeman).<br />
5.2 And yet, as Reboul (1994) notes, we can still find enough examples<br />
where neither the rule of topic continuity/discontinuity, nor the rule of verbs<br />
with a bias seem to apply. Examples [11] and [12] of the structure<br />
F because PRO<br />
[11] (English) The policeman hit the suspect because he is a Jew.<br />
[12] (English) The policeman hit the suspect because he is an Arab.<br />
both containing the verb „hit‟ in the 1st sentence – a verb supposedly with a<br />
bias towards the direct object – would necessarily have different interpretations<br />
and different anaphor resolutions. If [11] and [12] were to be uttered by<br />
Palestinians, the subject of the 2nd sentence would necessarily have different<br />
interpretations and different anaphor resolutions: in [11], he would refer to the<br />
policeman, whereas in [12], he would refer to the suspect. The same examples
36<br />
Traduzir<br />
would have exactly the opposite interpretation and the opposite anaphor<br />
resolution if they were to be uttered by Israelis.<br />
These examples seem then to prove that syntactic rules alone can not<br />
account for anaphor resolution in a number of cases. Pragmatics and cultural<br />
knowledge/world knowledge will necessarily have to step in to solve problems<br />
such as these.<br />
________<br />
1 If the personal pronoun is not enough to avoid ambiguity, one would necessarily<br />
have to resort to stronger forms, such as NPs containing a noun.<br />
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WANDRUSZKA, Mario (1969), Sprachen vergleichbar und unvergleichlich, München: Piper<br />
& Co.
LINGUÍSTICA FUNCIONAL E TRADUÇÃO<br />
Kai Immig<br />
INTRODUÇÃO<br />
No âmbito da tradução nas suas múltiplas vertentes e face às diferentes<br />
abordagens que nem sempre se articulam de maneira inequívoca, é conveniente<br />
termos referências bem definidas. A linguística na linha de André Martinet 1 , que<br />
elabora sobre o funcionamento de um sistema linguístico de forma simples e<br />
não-normativa, parece-nos fornecer uma excelente base para quem estuda e<br />
trabalha em tradução e, em geral, na área das Línguas. A abordagem em questão<br />
é aplicável aos fenómenos linguísticos, nomeadamente aos níveis fonológico e<br />
morfo-sintáctico. A ponte para abordagens de carácter semântico-pragmático<br />
pode estabelecer-se através <strong>do</strong> plano da axiologia – área intermédia entre sintaxe<br />
e semântica – em que conseguimos operar com elementos discretos, intimamente<br />
liga<strong>do</strong>s aos processos da significação. Veremos, no esboço que se segue, como<br />
se pode, num primeiro momento, analisar um determina<strong>do</strong> fenómeno<br />
gramatical existente em <strong>do</strong>is sistemas linguísticos. Vamos concentrar-nos no<br />
conjuntivo em alemão e em português, ten<strong>do</strong> em linha de conta os princípios da<br />
linguística martinetiana.<br />
UM ESQUEMA PARA O SINTAGMA VERBAL PORTUGUÊS<br />
O enquadramento sintáctico <strong>do</strong> verbo português que apresentamos a<br />
seguir foi desenvolvi<strong>do</strong> por Barbosa 2 . Vinte e uma manifestações formais <strong>do</strong><br />
verbo português caracterizam-se inequivocamente através da determinação<br />
sintáctica <strong>do</strong> monema verbal por diferentes monemas gramaticais, mais<br />
precisamente, por modalidades verbais. Distinguem-se quatro classes dessas<br />
modalidades verbais: classe <strong>do</strong> “tempo”, da “perspectiva”, <strong>do</strong> “aspecto” e <strong>do</strong><br />
“mo<strong>do</strong>” 3 . Com a introdução da classe da “perspectiva” tornou-se possível uma<br />
caracterização puramente sintáctica das formas verbais existentes no sistema<br />
linguístico português 4 .<br />
Salienta-se que os nomes das classes não devem ser confundi<strong>do</strong>s com usos<br />
desses mesmos nomes em outros contextos de investigação linguística ou<br />
científica em geral. É pertinente esta observação não só pelo facto de uma<br />
vertente <strong>do</strong> presente trabalho ser de ordem contrastiva e dar-se conta das
Linguística Funcional e Tradução 39<br />
abordagens alemãs cuja concepção de «tempo», («perspectiva»), «aspecto» e<br />
«mo<strong>do</strong>» é diferente. Geralmente, no âmbito da gramática tradicional, esses<br />
conceitos são aborda<strong>do</strong>s sob pontos de vista mistos, isto é, características<br />
semânticas e/ou pragmáticas entram na descrição e explicação das formas<br />
verbais. Na abordagem funcionalista são tomadas em consideração a<br />
manifestação formal e o valor das modalidades em causa. Neste senti<strong>do</strong>,<br />
podemos entender as quatro classes de modalidades verbais (que poderiam ter<br />
os nomes: classes 1, 2, 3 e 4) como classes de monemas que transportam traços<br />
pertinentes, que atribuem valores distintos ao monema verbal com o qual estão<br />
em relação funcional. Sob uma perspectiva funcionalista o mais interessante<br />
não é o senti<strong>do</strong> que as modalidades verbais evocam em combinação com o<br />
monema verbal, mas sim o facto de elas transportarem valores (traços, ou<br />
conjuntos de traços) diferentes. As possíveis combinações <strong>do</strong>s monemas das<br />
quatro classes constituem uma „grelha delimita<strong>do</strong>ra‟, a nível <strong>do</strong>s valores<br />
axiológicos, que, em ligação com qualquer monema verbal, possibilita o pleno<br />
„desabrochar‟ de senti<strong>do</strong> contextualiza<strong>do</strong>. O esquema desenvolvi<strong>do</strong> por<br />
Barbosa, que trabalha com treze unidades distintas para a determinação <strong>do</strong><br />
monema verbal 5 , apresenta-se da seguinte forma:<br />
tempo perspectiva aspecto mo<strong>do</strong><br />
1 ama<br />
2 amava passa<strong>do</strong><br />
3 amou pretérito<br />
4 amara passa<strong>do</strong> anterior<br />
5 amará posterior<br />
6 amaria passa<strong>do</strong> posterior<br />
7 tem ama<strong>do</strong> perfeito<br />
8 tinha ama<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> perfeito<br />
9 terá ama<strong>do</strong> posterior perfeito<br />
10 teria ama<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> posterior perfeito<br />
11 ame conjuntivo<br />
12 amasse passa<strong>do</strong> conjuntivo<br />
13 amar posterior conjuntivo<br />
14 tenha ama<strong>do</strong> perfeito conjuntivo<br />
15 tivesse ama<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> perfeito conjuntivo<br />
16 tiver ama<strong>do</strong> posterior perfeito conjuntivo<br />
17 amar infinitivo<br />
18 ter ama<strong>do</strong> perfeito infinitivo<br />
19 aman<strong>do</strong> gerúndio<br />
20 ten<strong>do</strong> ama<strong>do</strong> perfeito gerúndio<br />
21 ama imperativo<br />
(Quadro 1: Esquema de determinação sintáctica <strong>do</strong> monema verbal português segun<strong>do</strong> Barbosa)
40<br />
Traduzir<br />
Em suma: o monema verbal português é compatível com os monemas das<br />
cinco classes de tempo, perspectiva, mo<strong>do</strong>, aspecto e pessoa. Cada forma verbal é<br />
inequivocamente determinada e, portanto, identificável através da presença ou<br />
ausência <strong>do</strong>s monemas pertencentes às referidas classes. Note-se que a<br />
determinação <strong>do</strong> monema verbal por um monema da classe de “pessoa” é<br />
obrigatória. O “infinitivo”, o “imperativo” e o “gerúndio” são identifica<strong>do</strong>s<br />
como “modalidades verbais” e enquadram-se no esquema. O “conjuntivo” não<br />
é “mo<strong>do</strong>” mas, sim, monema da classe <strong>do</strong> mo<strong>do</strong>.<br />
APLICABILIDADE AO SINTAGMA VERBAL ALEMÃO<br />
As abordagens alemãs diferem fundamentalmente da concepção que se<br />
tem vin<strong>do</strong> a desenvolver no ramo da linguística funcionalista. Seja relembra<strong>do</strong> o<br />
facto de a tradução <strong>do</strong>s Elementos para a língua alemã já não ser reeditada desde<br />
1987. No que respeita à língua alemã, a investigação recorre à categorização<br />
tradicional que distingue, em primeiro lugar, entre formas «finitas» e «infinitas»<br />
<strong>do</strong> verbo 6 . As formas «finitas» são caracterizadas pela existência das cinco<br />
«categorias» 7 de pessoa (1ª a 3ª); número («singular» e «plural»); mo<strong>do</strong> («indicativo» e<br />
«conjuntivo» e, por vezes, «imperativo» 8 ); tempo («Präsens» – «presente»; «Futur<br />
I» – «futuro I»; «Präteritum» – «pretérito»; «Perfekt» – «perfeito»;<br />
«Plusquamperfekt» – «mais-que-perfeito»; «Futur II» – «futuro II» 9 ) e género <strong>do</strong><br />
verbo («genus verbi»; «voz activa» e «voz passiva»). As formas «infinitas» são<br />
caracterizadas pela ausência de «pessoa» e «número», as outras «categorizações»<br />
estão, segun<strong>do</strong> Radtke 1998: 24, “representadas só rudimentarmente (“nur<br />
rudimentär vertreten”)” 10 . O esquema das «categorias» <strong>do</strong> verbo alemão<br />
apresenta-se como segue:<br />
verbal<br />
Numerus<br />
Modus<br />
Singular Plural Indikativ (Imper.) Konjunktiv<br />
Person Tempus Genus verbi<br />
1ª 2ª 3ª Präsens Futur II Aktiv Passiv<br />
Präteritum Plusquamperfekt<br />
Futur I Perfekt<br />
(Quadro 2: “As «categorias de unidade» <strong>do</strong> verbo (finito) alemão” 11 )
Linguística Funcional e Tradução 41<br />
Radtke discute os conceitos de formas «finitas» e «infinitas» em relação ao<br />
conceito de «flexão», o que resulta no seguinte esquema, basea<strong>do</strong> em Wurzel 12 ,<br />
em que são inseri<strong>do</strong>s os «infinitivos» e os «particípios»:<br />
Verb/”verbo”<br />
grammatische Marker/ “marca<strong>do</strong>res gramaticais”<br />
Person Numerus Tempus Modus Genus verbi Infinitive Partizipien<br />
1ª 2ª 3ª Sg Pl Präs Fut II Ind Imp Akt Pass<br />
Prät Fut Konj<br />
Perf Pqperf<br />
(Quadro 3: Categorização <strong>do</strong> verbo alemão segun<strong>do</strong> Wurzel)<br />
Não consideraremos, no âmbito desta reflexão, o «género <strong>do</strong> verbo», pelo<br />
simples facto de esta «categoria» ser dispensável no ramo de uma descrição e<br />
explicação <strong>do</strong> funcionamento <strong>do</strong> conjuntivo, tema central <strong>do</strong> presente artigo.<br />
Dispensamos, também, a «categoria» <strong>do</strong> «número», optan<strong>do</strong> por uma contagem<br />
da 1ª à 6ª pessoa, como se tem vin<strong>do</strong> a fazer no ramo da linguística funcional 13 .<br />
As abordagens, teórica e meto<strong>do</strong>logicamente diferentes, são postas em<br />
comparação no seguinte esquema:<br />
verbo alemão<br />
marca<strong>do</strong>res gramaticais<br />
“categorias”: pessoa: tempos: ( ) ( ) mo<strong>do</strong>s: infinitivos: particípios:<br />
1ª a 6 a seis ind conj imp quatro 14 I e II 15<br />
monema verbal português<br />
determina<strong>do</strong> por/compatível com<br />
classes: pessoa tempo persp. aspecto mo<strong>do</strong> ( ) ( )<br />
mod. verbais: (1ª-6 a ) (pr ps --) (an po --) (pf --) (-- conj imp inf ger)<br />
(Quadro 4: Esquematização das abordagens alemã (tradicional)<br />
e portuguesa (funcional) <strong>do</strong> verbo/sintagma verbal em comparação)<br />
Esboçamos, brevemente, as diferenças e semelhanças relevantes para o<br />
presente estu<strong>do</strong>:
42<br />
Traduzir<br />
1) A contagem “1 a à 6 a pessoa” aplica-se sem problemas à língua alemã.<br />
2) A percepção da «categoria» <strong>do</strong> «tempo» no esquema alemão é, na sua<br />
estrutura elementar, parecida com a percepção <strong>do</strong> «tempo» manifestada na<br />
gramática portuguesa tradicional 16 . No ramo da investigação linguística alemã<br />
da «categoria» <strong>do</strong> «tempo», Reichenbach é geralmente ponto de referência com<br />
a sua divisão <strong>do</strong> «tempo» em „point of event‟ (tE), „point of reference‟ (tR) e<br />
„point of speech‟ (tS) 17 . Em Eisenberg, notam-se as dificuldades relativamente à<br />
delimitação de „point of event‟ (“Betrachtzeit”) 18 . Salienta-se que toda essa<br />
concepção <strong>do</strong> conceito <strong>do</strong> «tempo» é diferente <strong>do</strong> tempo linguístico utiliza<strong>do</strong> no<br />
âmbito <strong>do</strong> funcionalismo, em que esse constitui uma classe sintáctica 19 .<br />
3) A classe da perspectiva permite, como já se salientou, uma abordagem<br />
puramente sintáctica <strong>do</strong> sintagma verbal português. De certa forma, encontrase<br />
a “perspectiva” integrada na «categoria» <strong>do</strong> «tempo» tradicional (cf. pág. 16,<br />
nota 14). Não nos foi possível encontrar o conceito, assim concebi<strong>do</strong>, nos<br />
registos da investigação linguística alemã.<br />
4) Relativamente à discussão <strong>do</strong> aspecto, constatamos que não há consenso<br />
sobre o conceito entre os linguistas que investigam a língua alemã. Thierhoff<br />
(1992) parte <strong>do</strong> princípio que o alemão é uma língua “sem categorias de<br />
aspecto‟‟ 20 e P. ten Cate (1998), na mesma linha de pensamento, afirma que<br />
“não se deixam atribuir funções aspectuais próprias a qualquer tempo verbal” 21 .<br />
Eisenberg (1989), por sua parte, defende a existência da «categoria» <strong>do</strong><br />
«aspecto» 22 . Em Vater (1997) lemos que, “em língua alemã (e em língua<br />
francesa), a categoria <strong>do</strong> tempo é <strong>do</strong>minante sobre o aspecto, enquanto em<br />
língua russa o aspecto é <strong>do</strong>minante sobre o tempo” 23 . A divisão de opiniões<br />
sobre o assunto é nítida. Relembre-se que essas reflexões juntam os diferentes<br />
planos (sintáctico e semântico-pragmático, até cognitivo) numa só abordagem 24 .<br />
5) «Indicativo», «conjuntivo» e «imperativo» são, na abordagem alemã,<br />
considera<strong>do</strong>s «mo<strong>do</strong>s» e têm, portanto, estatuto de «categoria gramatical». Na<br />
abordagem funcional <strong>do</strong> sintagma verbal português o “conjuntivo” e o<br />
“imperativo” são, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> “infinitivo” e <strong>do</strong> “gerúndio”, considera<strong>do</strong>s<br />
monemas pertencentes à classe <strong>do</strong> mo<strong>do</strong>. O estatuto <strong>do</strong> “indicativo” é visto de formas<br />
diferentes. Vieira Santos (1999: 377-383) defende a existência de um monema<br />
“indicativo” (tal como a existência de um monema “presente”). Segun<strong>do</strong> a<br />
posição „clássica‟ <strong>do</strong> funcionalismo martinetiano, o monema verbal em<br />
“indicativo” caracteriza-se através da ausência de determinação pelos outros<br />
quatro monemas da classe <strong>do</strong> “mo<strong>do</strong>”. Ten<strong>do</strong> em linha de conta uma possível<br />
remodelação teórica <strong>do</strong> sintagma verbal alemão sob uma perspectiva
Linguística Funcional e Tradução 43<br />
funcionalista (ver quadro 4) seria preciso, relativamente ao “mo<strong>do</strong>”, clarificar<br />
até que ponto se justificaria a introdução <strong>do</strong> “infinitivo” (particularmente a<br />
construção sintáctica de „zu + infinitivo‟) como monema na classe <strong>do</strong> “mo<strong>do</strong>”.<br />
Seria igualmente necessário esclarecer o estatuto <strong>do</strong> «Partizip Präsens»<br />
(«particípio <strong>do</strong> presente»). Ele poderia eventualmente obter o mesmo estatuto<br />
que o “gerúndio” tem em português. O estatuto <strong>do</strong> «Partizitp II» teria de ser<br />
discuti<strong>do</strong>. Seria, ainda, necessária a discussão <strong>do</strong> “imperativo”. A problemática<br />
não parece ser substancialmente diferente da problemática na língua<br />
portuguesa.<br />
Não pode fazer parte deste trabalho uma análise comparativa, em termos<br />
exaustivos, das treze unidades válidas para o sistema linguístico português com<br />
os critérios aplica<strong>do</strong>s ao verbo alemão. Em princípio, encontram-se os valores e<br />
os diferentes senti<strong>do</strong>s por eles despoleta<strong>do</strong>s também no sistema linguístico<br />
alemão, como salientámos supra. Devi<strong>do</strong> à estrutura da língua alemã, porém,<br />
nem sempre serão transporta<strong>do</strong>s através <strong>do</strong> próprio sintagma verbal. Toda a<br />
problemática das relações entre „«tempos verbais», «advérbios temporais»,<br />
«aspectos», «modalidades de acção» 25 , «mo<strong>do</strong>s» e «mo<strong>do</strong>s verbais»„ 26 teria de ser<br />
analisada sob a luz <strong>do</strong> pensamento funcionalista. Entraria também a discussão<br />
sobre a referenciação espacial, temporal, social («Deixis» (deítica) e «Distanz»<br />
(distância)), realizada até ao momento, no ramo da investigação linguística<br />
alemã 27 .<br />
No que respeita ao tema <strong>do</strong> presente trabalho, salientamos que é<br />
perfeitamente possível identificar a manifestação formal <strong>do</strong> monema <strong>do</strong><br />
“conjuntivo” no sintagma verbal alemão 28 , facto que justifica a sua abordagem<br />
sob uma perspectiva funcionalista. Seguiremos com uma primeira análise de<br />
ordem comparativa entre sintagmas verbais portugueses e alemães.<br />
PRIMEIRO MOMENTO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA<br />
É óbvio que cada sistema linguístico organiza as suas formas verbais de<br />
forma particular. É igualmente óbvio que a comparação de <strong>do</strong>is sistemas deve<br />
recorrer a um único méto<strong>do</strong> de abordagem. Compararemos, num primeiro<br />
momento de análise, as formas verbais portuguesas com as respectivas<br />
traduções alemãs, seguin<strong>do</strong> o esquema de Barbosa. Manteremos a enumeração<br />
(1 a 21) aplicada ao esquema (cf. capítulo I.2.1., quadro 1). Inseriremos os<br />
sintagmas verbais em frases. Indicaremos, no caso <strong>do</strong>s sintagmas verbais<br />
portugueses, quais os monemas das quatro classes que determinam o monema<br />
verbal em causa. Não aplicaremos essa classificação aos sintagmas verbais<br />
alemães. Não é nosso objectivo a apresentação de um esquema completo das
44<br />
Traduzir<br />
possibilidades de tradução, mas sim a delimitação das diferenças fundamentais<br />
entre os <strong>do</strong>is sistemas, nomeadamente no que toca aos usos <strong>do</strong> “conjuntivo”.<br />
Marcaremos essas formas com negritos:<br />
O monema verbal português não determina<strong>do</strong> por um <strong>do</strong>s monemas<br />
pertencentes às quatro classes em causa tem, na tradução para língua alemã, a<br />
sua correspondência no «tempo verbal» <strong>do</strong> «Präsens»:<br />
tem per asp md<br />
(1) O João ama a Joana. -- -- -- --<br />
(1t) João liebt Joana.<br />
(1') “Amanhã vou ao cinema.”<br />
(1't) “Morgen gehe ich ins Kino.”<br />
(1'') “Ontem fui ao teatro. E quem encontro? Miguel.”<br />
(1''t) “Gestern bin ich ins Theater gegangen. Und wen treffe ich da? Miguel.”<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “passa<strong>do</strong>” pode<br />
ser traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt» (2'ta) ou com o «Präteritum» ((2t), (2't))<br />
(dependente de diferentes factores). Quan<strong>do</strong> actualiza um senti<strong>do</strong> potencial é<br />
traduzi<strong>do</strong> com o « Konjunktiv II-Futur I» (a forma de „würden + infinitivo‟; (2''t),<br />
(2'''t)). O uso da forma simples («Konjunktiv II-Präteritum» (2''ta)) que coincide,<br />
formalmente, com o «Indikativ-Präteritum» parece, nesse contexto, antiqua<strong>do</strong>:<br />
(2) O João cantava bem. ps -- -- -- --<br />
(2t) João sang gut.<br />
(2') O João cantava sempre bem.<br />
(2't) João sang immer gut.<br />
(2'ta) João hat immer gut gesungen.<br />
(2'') O João visitava a Joana se ela estivesse sozinha.<br />
(2''t) João würde Joana besuchen, wenn sie alleine wäre.<br />
(2''ta) João besuchte Joana, wenn sie alleine wäre.<br />
(2''') “Passava-me o sal, por favor?”<br />
(2'''t) “Würden Sie mir bitte das Salz reichen?”
Linguística Funcional e Tradução 45<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “pretérito” pode<br />
ser traduzi<strong>do</strong> com o «Präteritum» ((3t): „war‟, (3''t)) ou com o «Perfekt» ((3t): „bin<br />
gegangen‟, (3't), (3''ta)) (dependen<strong>do</strong> de diferentes factores):<br />
(3) “Ontem fui ao cinema. O filme foi péssimo.” pr -- -- --<br />
(3t) “Gestern bin ich ins Kino gegangen. Der Film war total schlecht”.<br />
(3') “Não sei se a bebé já comeu ou não.”<br />
(3't) “Ich weiß nicht, ob das Baby schon gegessen hat oder nicht.”<br />
(3'') Ele viveu no <strong>Porto</strong> até 1952 e depois foi para Lisboa.<br />
(3''t) Er lebte bis 1952 in <strong>Porto</strong> und ging dann nach Lissabon.<br />
(3''ta) Er hat bis 1952 in <strong>Porto</strong> gelebt und ist... gegangen.<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>” e<br />
“anterior” é traduzi<strong>do</strong> com o «Plusquamperfekt»:<br />
(4) O João amara a Joana. ps an -- --<br />
(4t) João hatte Joana geliebt.<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “posterior” é<br />
traduzi<strong>do</strong> com o «Futur I». Mesmo na actualização de um senti<strong>do</strong> de dúvida<br />
pode manter-se esse «tempo verbal» na tradução, isto é, o «Futur I» em língua<br />
alemã pode servir o mesmo propósito (de actualização de um senti<strong>do</strong> de<br />
incerteza) que o «futuro» em língua portuguesa:<br />
(5) Depois <strong>do</strong> verão, João irá para França. -- po -- --<br />
(5t) Nach dem Sommer wird João nach Frankreich gehen.<br />
(5') “Está a tocar. Será Matilde?”<br />
(5't) “Es klingelt. Wird das Matilde sein?”<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>” e<br />
“posterior” é traduzi<strong>do</strong> com o «Konjuntiv II-Futur I» ((6t), (6''t), (6'''t)) (possível,<br />
também, o „antiqua<strong>do</strong>‟ «Konjunktiv II-Präteritum» (6ta)) ou o «Konjunktiv II-<br />
Plusquamperfekt» ((6't), (6''t)):<br />
(6) O João convidaria a Joana se ela fosse mais simpática. ps po -- --<br />
(6t) João würde Joana einladen, wenn sie netter wäre.
46<br />
Traduzir<br />
(6ta) João lüde Joana ein, wenn sie netter wäre.<br />
(6') “A bola iria para fora, mas o guarda-redes não viu.”<br />
(6't) “Der Ball wäre ins Aus gegangen, aber der Torwart hatte das nicht gesehen.”<br />
(6'') “Quem diria que ela iria para Tóquio?”<br />
(6''t) “Wer hätte gedacht, dass sie nach Tokio gehen würde?”<br />
(6''') Sentia-se nos ossos que o tempo iria mudar.<br />
(6'''t) Man spürte es in den Knochen, dass das Wetter umschlagen würde. 29<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “perfeito” é<br />
traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt»:<br />
(7) O João tem ama<strong>do</strong> a Joana desde o primeiro dia. -- -- pf --<br />
(7t) João hat Joana vom ersten Tag an geliebt.<br />
(7') “Tenho canta<strong>do</strong> em Paris.”<br />
(7't) “Ich habe (oft) in Paris gesungen.”<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>” e<br />
“perfeito” é traduzi<strong>do</strong> com o «Plusquamperfekt»:<br />
(8) Até àquele dia, o rapaz tinha confia<strong>do</strong> cegamente no padre. ps -- pf --<br />
(8t) Bis zu jenem Tag hatte der Junge dem Pfarrer blind vertraut.<br />
(8') “Desculpa, mas tinha-me esqueci<strong>do</strong> completamente!”<br />
(8't) “Entschuldige, aber das hatte ich völlig vergessen!”<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “posterior” e<br />
“perfeito” é traduzi<strong>do</strong> com o «Futur II» ((9t), (9't)). Quan<strong>do</strong> actualiza um senti<strong>do</strong><br />
de incerteza é, por vezes, traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt» ((9'ta), (9''t)):<br />
(9) Quan<strong>do</strong> eles chegarem já ela terá canta<strong>do</strong>. -- po pf --<br />
(9t) Wenn sie ankommen, wird sie schon gesungen haben.<br />
(9') “Onde terá i<strong>do</strong> ele ontem?”<br />
(9't) “Wo wird er gestern hingegangen sein?”<br />
(9'ta) “Wo ist er wohl gestern hingegangen?”<br />
(9'') “Não sei se a bebé já terá comi<strong>do</strong>.”<br />
(9''t) “Ich weiß nicht, ob das Baby schon gegessen hat.”<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>”,<br />
“posterior” e “perfeito” é traduzi<strong>do</strong> com o «Konjunktiv II-Plusquamperfekt» (10t), com
Linguística Funcional e Tradução 47<br />
o «Konjunktiv II- Futur II» (10't) ou, numa versão simplificada, com o «Konjunktiv<br />
II-Präteritum» (10'ta). Note-se que a frase (10') e as respectivas traduções são de<br />
tipo «discurso indirecto» («indirekte Rede»; ver capítulo II.2.):<br />
(10) “Se o João não tivesse me<strong>do</strong> de sair à noite teríamos i<strong>do</strong> ao cinema.” ps po pf --<br />
(10t) “Wenn João keine Angst hätte, nachts rauszugehen, wären wir ins Kino<br />
gegangen.”<br />
(10') “Disse-me que ao meio-dia já teria chega<strong>do</strong>.”<br />
(10't) “Er sagte mir, dass er zu Mittag schon angekommen sein würde.”<br />
(10'ta) “Er sagte mir, dass er zu Mittag schon da wäre.” 30<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “conjuntivo” pode<br />
ser traduzi<strong>do</strong> com o «Präsens» (11t, 11't, 11''ta), com o «Konjunktiv I-Präsens»<br />
(11'ta, 11''t, 11'''t) ou com o «Konjunktiv II-Präteritum» (11'tb). A frase (11) não<br />
pode ser traduzida com «Konjunktiv» (11ta*):<br />
(11) “Lamento que cantes tão mal.” -- -- -- con<br />
(11t) “Ich bedaure, dass du so schlecht singst.”<br />
(11ta) * “Ich bedaure, dass du so schlecht singest/sängest.”<br />
(11') O João deseja que a Joana esteja com ele.<br />
(11't) João wünscht, dass Joana bei ihm ist.<br />
(11'ta) João wünscht, dass Joana bei ihm sei. 31<br />
(11'tb) João wünscht, dass Joana bei ihm wäre.<br />
(11'') “Queira Deus!”<br />
(11''t) “So Gott wolle!”<br />
(11''ta) “So Gott will!”<br />
(11''') “Cantemos!”<br />
(11'''t) “Lass(e)t uns singen!”<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>” e<br />
“conjuntivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com o «Konjunktiv II-Präteritum» (12t), o<br />
«Konjunktiv II-Plusquamperfekt» (12ta) ou com o «Konjunktiv II-Futur I» (12't):<br />
(12) O João desejava que a Joana estivesse com ele. ps -- -- con<br />
(12t) João wünschte, dass Joana bei ihm wäre.<br />
(12ta) João wünschte, dass Joana bei ihm gewesen wäre.<br />
(12') Se ela se casasse com o Francisco não lhe faltariam motivos de preocupação.<br />
(12't) Wenn sie Francisco heiraten würde, hätte sie reichlich Grund zur Sorge.
48<br />
Traduzir<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “posterior” e<br />
“conjuntivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com o «Präsens» ((13t), (13't), (13''t), (13'''t)) ou<br />
com a „construção com verbo modal em «Konjunktiv»‟ ((13tb), (13''ta)), mas não com o<br />
«Konjunktiv» „típico‟ (13ta*):<br />
(13) Quan<strong>do</strong> o João, um dia, tiver filhos, será feliz. -- po -- con<br />
(13t) Wenn João eines Tages Kinder hat, dann wird er glücklich sein.<br />
(13ta) *Wenn João eines Tages Kinder habe/hätte, dann wird er glücklich sein.<br />
(13tb) Wenn João eines Tages Kinder haben sollte 32 ,...<br />
(13') “Quan<strong>do</strong> fores para Coimbra, avisa-me!”<br />
(13't) “Wenn du nach Coimbra fährst, sage mir Bescheid!”<br />
(13'') “Se fores para Coimbra, avisa-me!”<br />
(13''t) “Falls du nach Coimbra fährst, sage mir Bescheid!”<br />
(13''ta) “Falls du nach Coimbra fahren solltest,...”<br />
(13''') “Quan<strong>do</strong> acabares os deveres podes ver televisão.”<br />
(13'''t) “Wenn du die Hausaufgaben fertig hast, darfst du fernsehen.”<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “perfeito” e<br />
“conjuntivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt» ((14t), (14't), (14''t), (14'''t),<br />
(14''''t)), com o «Konjunktiv II-Plusquamperfekt» ((14'ta)), com „construção com verbo<br />
modal em «Konjunktiv»‟ (14'''ta), ou com „construção com verbo modal em «Indikativ»‟<br />
(14''''ta). A frase (14) não pode ser traduzida com «Konjunktiv» (14ta*):<br />
(14) “Não acredito que o João tenha ama<strong>do</strong> a Joana.” -- -- pf con<br />
(14t) “Ich glaube nicht, dass João Joana geliebt hat.”<br />
(14ta) * “Ich glaube nicht, dass João Joana geliebt habe/hätte/ haben sollte.”<br />
(14') “Não posso dizer que o João a tenha ama<strong>do</strong>.”<br />
(14't) “Ich kann nicht sagen, dass João sie geliebt hat.” 33<br />
(14'ta) “Ich kann nicht sagen, dass João sie geliebt hätte.”<br />
(14'') “Não é verdade que o João a tenha ama<strong>do</strong>.”<br />
(14''t) “Es stimmt nicht, dass João sie geliebt hat.”<br />
(14''') “Caso a bebé já tenha comi<strong>do</strong> posso eu jantar agora.”<br />
(14'''t) “Wenn das Baby schon gegessen hat, kann ich jetzt essen.”<br />
(14'''ta) “Wenn das Baby (tatsächlich) schon gegessen haben sollte 34 , dann kann ich<br />
jetzt essen.”<br />
(14'''') “Temos que aceitar que tenha si<strong>do</strong> assim.” 35<br />
(14''''t) “Wir müssen akzeptieren, dass dem so gewesen ist.”
Linguística Funcional e Tradução 49<br />
(14''''ta) “Wir müssen akzeptieren, dass dem so gewesen sein soll.” 36<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “passa<strong>do</strong>”,<br />
“perfeito” e “conjuntivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt» (15t), com o<br />
«Plusquamperfekt» (15ta) ou com o «Konjunktiv II <strong>do</strong> Plusquamperfekt» ((15't),<br />
(15''t)). A frase (15) não pode ser traduzida com «Konjunktiv» (15tb*):<br />
(15) “Não acredito que o João tivesse ama<strong>do</strong> a Joana verdadeiramente.”ps -- pf con<br />
(15t) “Ich glaube nicht, dass João Joana wirklich geliebt hat.”<br />
(15ta) “Ich glaube nicht, dass João Joana wirklich geliebt hatte.”<br />
(15tb) * “Ich glaube nicht, dass João Joana wirklich geliebt habe/ hätte.”<br />
(15') “Não acredito que Portugal tivesse joga<strong>do</strong> melhor com um segun<strong>do</strong> ponta de lança.”<br />
(15't) “Ich glaube nicht, dass Portugal mit einem zweiten Stürmer besser gespielt hätte.”<br />
(15'') Se ela se tivesse casa<strong>do</strong> com o Francisco não lhe faltariam motivos de preocupação.<br />
(15''t) Wenn sie Francisco geheiratet hätte, hätte sie reichlich Grund zur Sorge.<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “posterior”,<br />
“perfeito” e “conjuntivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com o «Perfekt» ((16t), (16't), (16''t)) ou<br />
com „construção com verbo modal em «Konjunktiv»‟ ((16'ta), (16''ta)). A frase (16) não<br />
pode ser traduzida com «Konjunktiv» (16ta*):<br />
(16) “Quan<strong>do</strong> tiveres acaba<strong>do</strong> os deveres podes ver televisão.” -- po pf con<br />
(16t) “Wenn du die Hausaufaben fertig (gemacht) hast, darfst du fernsehen.”<br />
(16ta) * “Wenn du die Hausaufaben fertig (gemacht) habest/ hättest, darfst du<br />
fernsehen.”<br />
(16') “Se tiveres acaba<strong>do</strong> o trabalho na sexta-feira, avisa-me.”<br />
(16't) “Wenn/falls du die Arbeit Freitag schon fertig (gemacht) hast, sag mir<br />
Bescheid.”<br />
(16'ta) “Wenn/falls du die Arbeit Freitag schon fertig (gemacht) haben solltest 37 , sag<br />
mir Bescheid.”<br />
(16'') “Se a bebé já tiver comi<strong>do</strong>...”<br />
(16''t) “Wenn/falls das Baby schon gegessen hat...”<br />
(16''ta) “Wenn/falls das Baby schon gegessen haben sollte...”<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “infinitivo” pode<br />
ser traduzi<strong>do</strong> com o «Infinitiv Präsens» (17t), com „zu‟ + «Infinitiv Präsens» (17t) ou<br />
com o «Präsens» (17't):<br />
(17) “Mergulhar é amar o mar.” -- -- -- inf
50<br />
Traduzir<br />
(17t) “Tauchen bedeutet das Meer zu lieben.”<br />
(17') “Antes de ires para a escola, toma o leite.”<br />
(17't) “Bevor du zur Schule gehst, trinke deine Milch.”<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “perfeito” e<br />
“infinitivo” pode ser traduzi<strong>do</strong> com „zu‟ + «Infinitiv Perfekt» (18t), com o<br />
«Plusquamperfekt» (18't), com o «Futur II» (18''t) ou com o «Perfekt» (18''ta):<br />
(18) Ter fala<strong>do</strong> com a Joana foi importante para o João. -- -- pf inf<br />
(18t) Mit Joana gesprochen zu haben war wichtig für João.<br />
(18') Depois de ter fala<strong>do</strong> com a Joana, João sentiu-se feliz.<br />
(18't) Nachdem er mit Joana gesprochen hatte, fühlte João sich glücklich.<br />
(18'') Depois de ter fala<strong>do</strong> com a Joana, João sentir-se-á feliz.<br />
(18''t) Nachdem (wenn) er mit Joana gesprochen haben wird, wird João sich glücklich<br />
fühlen.<br />
(18''ta) Wenn (nachdem) er mit Joana gesprochen hat, wird João sich glücklich fühlen.<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “gerúndio” pode<br />
ser traduzi<strong>do</strong> com o «Partizip I» ((19ta), (19'ta)), no entanto não costuma ser<br />
usa<strong>do</strong> em contextos de língua corrente. O SV português também pode ser<br />
traduzi<strong>do</strong> com o «Präsens» ((19t), (19tb)) (modificação <strong>do</strong> contexto sintáctico<br />
necessária), ou com „zu + «Infinitiv Präsens»‟ (19't):<br />
(19) Aman<strong>do</strong> a Joana, o João viverá feliz. -- -- -- ger<br />
(19t) Indem er Joana liebt, wird João glücklich leben.<br />
(19ta) Joana liebend wird João glücklich leben.<br />
(19tb) João wird Joana lieben und glücklich leben.<br />
(19') Eles passam a vida falan<strong>do</strong> de futebol.<br />
(19't) Sie verbringen ihr Leben damit, über Fußball zu reden.<br />
(19'ta) Über Fußball redend verbringen sie ihr Leben.<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelos monemas “perfeito” e<br />
“gerúndio” é traduzi<strong>do</strong> com o «Plusuqamperfekt»:<br />
(20) Ten<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> em Angola durante anos, João sentiu dificuldades em adaptar-se à<br />
vida na Europa. -- -- pf ger<br />
(20t) Weil/nachdem João jahrelang in Angola gelebt hatte, hatte er Schwierigkeiten,<br />
sich an das Leben in Europa zu gewöhnen.
Linguística Funcional e Tradução 51<br />
O monema verbal português determina<strong>do</strong> pelo monema “imperativo” é<br />
traduzi<strong>do</strong> com o «Imperativ»:<br />
(21) “Abre a porta, por favor!” -- -- -- imp<br />
(21t) “Mach bitte die Tür auf!”<br />
A análise de exemplos <strong>do</strong>s 21 grupos mostra as diferenças entre usos <strong>do</strong><br />
“conjuntivo” em língua portuguesa e em língua alemã. Observámos casos em<br />
que a tradução de uma frase em língua portuguesa com o monema verbal<br />
determina<strong>do</strong> pelo monema <strong>do</strong> “conjuntivo” ([SVconj]) tem de ser feita,<br />
obrigatoriamente, com o monema verbal alemão igualmente determina<strong>do</strong> pelo<br />
monema <strong>do</strong> “Konjunktiv”. Um exemplo é o tipo de frase «condicional irreal»<br />
(«irrealer Konditionalsatz») ((12')-(12't)). Verificámos que há casos em que a<br />
manutenção <strong>do</strong> [SVconj] é possível mas não obrigatória (frases <strong>do</strong>s grupos 11; 13; 14;<br />
15; 16). Constatámos, nesse contexto, a possibilidade de constituição <strong>do</strong><br />
[SVconj] em língua alemã através de uma „construção com «verbo modal» em<br />
«Konjunktiv»‟ ((13''ta); (13tb); (14'''ta), (16'ta); (16''ta)). Nas gramáticas<br />
tradicionais, esse tipo de construção sintáctica não se encontra regista<strong>do</strong> como<br />
«forma de conjuntivo», todavia não se opõe a uma classificação formal como tal<br />
(cf. nota 29). Identificámos, também, casos em que é impossível manter o [SVconj]<br />
na tradução para língua alemã ((11ta); (13ta); (14ta); (15tb); (16ta)). Num caso,<br />
constatámos uma „modalização‟ através <strong>do</strong> uso de „construção com verbo modal em<br />
«Indikativ»‟ (14''''ta). Reparámos, em alguns exemplos, que frases em língua<br />
portuguesa com o monema verbal não determina<strong>do</strong> pelo monema <strong>do</strong> “conjuntivo”<br />
([SVind]) traduzidas para alemão resultam ou obrigatória ou facultativamente em<br />
frases alemãs com [SVconj]. Encontrámos, entre esses exemplos, novamente<br />
frases consideradas «condicionais irreais» (frases <strong>do</strong>s grupos 2, 6 e 10). Ainda<br />
verificámos em frases de tipo «discurso indirecto» («indirekte Rede»), que a língua<br />
alemã, contrariamente à língua portuguesa, dispõe, nesse contexto, da<br />
possibilidade de determinação <strong>do</strong> SV através <strong>do</strong> monema <strong>do</strong> “Konjunktiv”.<br />
Encontram-se exemplos no grupo 10, mas poder-se-iam encontrar em outros<br />
grupos também.<br />
OBSERVAÇÃO FINAL<br />
A análise acima apresentada constitui o primeiro de três momentos<br />
empíricos para uma classificação funcional de um fenómeno gramatical – o<br />
conjuntivo –, presente em <strong>do</strong>is sistemas linguísticos, o alemão e o português.
52<br />
Traduzir<br />
A meto<strong>do</strong>logia em vigor pode, não só, ser aplicada a estu<strong>do</strong>s de ordem<br />
comparativa e contrastiva de mais <strong>do</strong> que <strong>do</strong>is sistemas, mas, também, ser<br />
transferida para a análise de outros fenómenos linguísticos existentes noutros<br />
sistemas. Proporciona, por conseguinte, uma mais-valia na análise, na<br />
percepção e na categorização tanto <strong>do</strong> funcionamento da língua materna como<br />
de outras línguas e das respectivas correspondências funcionais, razão pela qual<br />
se torna uma ferramenta preciosa, também no âmbito da tradução.<br />
________<br />
1 Da vasta produção de obras de André Martinet sejam, aqui, referidas Martinet<br />
1973, 1980 e 1989.<br />
2 Barbosa 1998: 82.<br />
3 Aspas altas (“...”) assinalam noções da teoria funcionalista, aspas baixas («...»)<br />
assinalam conceitos usa<strong>do</strong>s nas gramáticas tradicionais.<br />
4 Nunes de Silva 1998: 49: "... onde a gramática tradicional vislumbrava difusos<br />
senti<strong>do</strong>s temporais, há, segun<strong>do</strong> a perspectiva funcional, duas classes de monemas que<br />
designamos por "tempo" e por "perspectiva".<br />
5 Constatamos na classe de "tempo" três unidades (<strong>do</strong>is monemas – passa<strong>do</strong> e<br />
pretérito – e a ausência deles), na classe de "perspectiva" três (<strong>do</strong>is monemas – anterior<br />
e posterior – e a ausência deles), na classe de "aspecto" duas (um monema – perfeito –<br />
e a ausência dele), na classe de "mo<strong>do</strong>" cinco (quatro monemas – conjuntivo, infinitivo,<br />
imperativo e gerúndio – e a ausência deles). Obtemos um total de treze unidades<br />
distribuídas por quatro classes.<br />
6 Cf. Duden, vol. 4. 1984: 114.<br />
7 Todas as abordagens alemãs, a que tivemos acesso, baseiam-se na existência a<br />
priori de «categorias» <strong>do</strong> verbo. Essas abordagens diferem, por isso mesmo,<br />
substancialmente <strong>do</strong> funcionalismo. Na linha da tradição gramatical latina, o verbo<br />
alemão tem si<strong>do</strong> categoriza<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> os 5 critérios referi<strong>do</strong>s (cf. Thierhoff 1992: 3).<br />
8 A questão da pertença <strong>do</strong> «imperativo» em língua alemã à «categoria» <strong>do</strong> «mo<strong>do</strong>»<br />
tem si<strong>do</strong> discutida devi<strong>do</strong> à sua semântica (no ramo da sintaxe funcionalista interessa<br />
identificar a sua manifestação formal e o seu valor) e por causa <strong>do</strong> facto de só existirem<br />
duas formas; uma pertencente ao «singular», outra ao «plural» (cf. Eisenberg 1989: 108,<br />
109). A questão mantém-se em aberto.<br />
9 Esta divisão em seis «tempos verbais» está na tradição latina e é, habitualmente,<br />
referência geral, não só no ramo <strong>do</strong> ensino. Há, no entanto, diferentes propostas para a<br />
«categorização» <strong>do</strong> verbo alemão, por exemplo a de Thierhoff que trabalha com dez<br />
«tempos verbais» (os 'clássicos' mais o «perfeito II» e o «mais-que-perfeito II», tal como<br />
<strong>do</strong>is «pretéritos <strong>do</strong> futuro») e a proposta de Mugler que só identifica um «tempo<br />
verbal», o «Präteritum», não toman<strong>do</strong> em consideração os ditos «tempos compostos»<br />
(cf. Thierhoff 1992: 62-64, 276).
Linguística Funcional e Tradução 53<br />
10 Esta formulação é algo ambígua. Na nossa perspectiva sintáctica, uma<br />
«categoria» ou está presente e manifesta-se, por conseguinte, ao nível formal, ou não<br />
está, de to<strong>do</strong>, presente. Para o linguista funcionalista interessava, nesse contexto,<br />
identificar as manifestações formais das "categorias rudimentarmente presentes" (as<br />
quais necessitavam de ser reorganizadas em «classes» adequadas) e atribuir-lhes valores<br />
axiológicos, tarefa que, no entanto, extrapolaria o âmbito <strong>do</strong> presente trabalho.<br />
11 Eisenberg 1989: 108: "Die Einheitenkategorien des Verbs".<br />
12 Apesar das diferenças com a abordagem funcionalista, Wurzel, discuti<strong>do</strong> e<br />
ilustra<strong>do</strong> por Radtke 1998: 29-42, aproxima-se <strong>do</strong> enquadramento <strong>do</strong> verbo feito por<br />
Barbosa, na medida em que parte da manifestação formal. Wurzel distingue ao nível<br />
morfológico entre «morfemas básicos», «morfemas de derivação» e «morfemas<br />
gramaticais».<br />
13 Acerca <strong>do</strong> número, ver Barbosa 1994: 17/8 e Silva 1998: 54-57.<br />
14 O Duden 1984: 191, distingue entre quatro «formas de infinitivo» em «voz<br />
activa». São as «formas» de «Präsens» (lieben), «Perfekt» (geliebt haben), «Futur I»<br />
(lieben werden), «Futur II» (geliebt haben werden).<br />
15 O sistema linguístico alemão dispõe de <strong>do</strong>is «particípios» diferentes: o<br />
«particípio I» (wissend), comparável, embora com ressalvas, com o "gerúndio" em língua<br />
portuguesa (saben<strong>do</strong>), e o «particípio II» (gewusst), usa<strong>do</strong> principalmente em «tempos<br />
compostos» e comparável com o «particípio» em língua portuguesa (sabi<strong>do</strong>) (vd.<br />
exemplos <strong>do</strong>s grupos (19) e (20).<br />
16 Nas gramáticas tradicionais encontramos as seguintes designações para os<br />
«tempos verbais» (constituí<strong>do</strong>s com o «verbo finito»): «presente», «pretérito imperfeito»,<br />
«pretérito perfeito», «pretérito mais-que-perfeito», «futuro» e «condicional» (cf. Vilela<br />
1999: 83). No que toca à língua alemã, a questão da «categorização» <strong>do</strong>s «condicionais»<br />
está em discussão (cf. Thierhoff 1992: 56).<br />
17 Apud Thierhoff 1992: 53.<br />
18 Eisenberg 1989: 120. Toda a discussão <strong>do</strong> «tempo» segun<strong>do</strong> o ponto de vista de<br />
Reichenbach tem levanta<strong>do</strong> opiniões, por vezes, bastante controversas (cf. Thierhoff<br />
1992: 80 e seguintes).<br />
19 É, neste contexto, notável a dificuldade teórica e meto<strong>do</strong>lógica que existe<br />
devi<strong>do</strong> às abordagens <strong>do</strong> sistema linguístico alemão 'mistas'. Diferentes linguistas<br />
alemães, nos anos 80, exigiram, por isso mesmo, uma "nítida distinção entre 'sistema <strong>do</strong><br />
tempo' e 'usos de tempo'": "... favorisieren neuere linguistische Ansätze den Gedanken<br />
einer klaren Unterscheidbarkeit zwischen Tempussystem und Tempusgebrauch."<br />
(Itálico nosso.) Cf. Eisenberg 1989: 126.<br />
20 Thierhoff 1992: 78: "..., eine Sprache ohne Aspekt-Kategorien ist... das<br />
Deutsche." Esta afirmação refere-se ao sintagma verbal. É obvio, na nossa opinião, que<br />
um sistema linguístico, na sua globalidade, tenha possibilidades de referenciação<br />
aspectual. A questão é como uma língua manifesta essas referências formalmente<br />
manifestas no próprio sintagma verbal, em outras 'partes' da frase ou em outros planos<br />
<strong>do</strong> discurso. Leiss 1992 argumenta, que "muitas línguas dispõem de categorias não<br />
visíveis" e resume que "não se deve, precipitadamente, concluir que uma língua não
54<br />
Traduzir<br />
disponha de uma determinada categoria gramatical só por esta não ser transparente<br />
através <strong>do</strong>s padrões/meios habituais": "[...] viel Sprachen über unsichtbare Kategorien<br />
verfügen [...] Man sollte einer Sprache eine grammatische Kategorie nicht vorschnell<br />
absprechen, nur weil sie nicht in den gewohnten Mustern transparent wird." (Apud<br />
Vater 1997: 62.) Este excerto mostra, na nossa opinião, a dificuldade que se estabeleceu<br />
devi<strong>do</strong> à falta de uma base teórica e meto<strong>do</strong>lógica claramente definida. No ramo da<br />
sintaxe funcionalista parte-se da manifestação formal. Caso haja formas ambíguas, serve<br />
o teste da comutação para mostrar a existência de uma classe ou de um monema.<br />
Aquilo que não tem manifestação formal própria não será ti<strong>do</strong> em consideração<br />
linguística.<br />
21 P. ten Cate 1998: 33 "In dieser Arbeit wird davon ausgegangen, daß keiner<br />
Tempusform eine inhärente aspektuale Funktion zugeschrieben werden kann."<br />
22 Eisenberg parte <strong>do</strong> princípio que a «categoria» <strong>do</strong> «tempo» também assinala o<br />
«aspecto»: "...schreiben wir dem Tempus auch die Funktion zu, die (Nicht-)<br />
Abgeschlossenheit eines Vorgangs zu signalisieren" e distingue, explicitamente, entre<br />
«aspecto» e «Aktionsart» (modalidade de acção), característica semântica <strong>do</strong> verbo (cf.<br />
Eisenberg 1989: 122/3).<br />
23 Vater 1997: 62 "So ist im Russischen Aspekt über Tempus <strong>do</strong>minant, im<br />
Deutschen und Französischen Tempus über Aspekt."<br />
24 Idem: cf. introdução; pág. i, vi.<br />
25 «Aktionsarten»; cf. Eisenberg 1989: 121-123, Vater 1997: 62-65, Bußmann 1990:<br />
59-61 e 103.<br />
26 Cf. Vater 1997: ii.<br />
27 Idem 53-56, ten Cate: 1998, Thierhoff 1992: 274-299.<br />
28 Cf. Immig: 2002: 38-48.<br />
29 Na investigação linguística alemã está a ser discuti<strong>do</strong> se, no contexto em causa,<br />
a forma 'umschlagen würde', deveria ser considerada «indicativo <strong>do</strong> pretérito <strong>do</strong> futuro<br />
I» («Indikativ-FuturPräteritum I»). Os critérios aplica<strong>do</strong>s são de natureza semânticosintáctica<br />
(cf. Thierhoff 1992: 151 e 239). Constatamos que o SV em causa é,<br />
formalmente, um "conjuntivo".<br />
30 A retroversão dessa tradução 'pragmática' resultaria em: "Disse-me que ao<br />
meio-dia já lá estava/estaria."<br />
31 A frase parece pouco usual em linguagem corrente. No entanto, encontramos<br />
esse tipo de construção frequentemente na literatura alemã; assim, a título ilustrativo,<br />
em Nietzsche (Also sprach Zarathustra – Von Kind und Ehe): "Ich will, daß dein Sieg<br />
und deine Freiheit sich nach einem Kinde sehne." ("Eu quero, que a tua vitória e a tua<br />
liberdade desejem um filho."), in: Friedrich Nietzsche - Werke in drei Bänden, Phai<strong>do</strong>n<br />
Verlag, Kettwig 1990: 185.<br />
32 Está em discussão a integração de verbos como 'sollen' e 'wollen' na «categoria»<br />
<strong>do</strong>s «verbos auxiliares» (cf. Eisenberg 1989: 137). Consideran<strong>do</strong> 'sollen' «verbo auxiliar»<br />
podemos «categorizar» as formas 'haben sollte' (13tb) e 'fahren solltest' (13''ta) como<br />
«Konjunktiv II-Futur I». No caso da frase (13tb), a retroversão resultaria em: "Se o<br />
João, um dia, tiver filhos, será feliz."
Linguística Funcional e Tradução 55<br />
33 Quase 'automaticamente', traduz-se a frase (14') dessa forma. No entanto,<br />
resulta a retroversão em „Não posso dizer que o João a tem ama<strong>do</strong>‟. Ten<strong>do</strong>, nos <strong>do</strong>is<br />
sistemas linguísticos, a escolha entre determinação <strong>do</strong> monema verbal pelo monema <strong>do</strong><br />
"conjuntivo" ou pela ausência dele, consideramos (14'ta) a tradução mais adequada.<br />
Interessante, neste contexto, é o facto de a frase (14) não ter possibilidade de tradução<br />
para alemão com "Konjunktiv" (*14ta).<br />
34 Consideran<strong>do</strong> 'sollen' «verbo auxiliar» (cf. nota 41), podemos «categorizar»<br />
'gegessen haben sollte' (14'''ta) como «Konjunktiv II-Futur II» e 'gewesen sein<br />
soll'(14''''ta) como «Futur II».<br />
35 Valentim Loureiro, em entrevista televisiva, acerca <strong>do</strong> penalty contra Portugal no<br />
jogo das ½-finais Portugal-França, Campeonato Europeu 2000.<br />
36 Não é possível uma tradução de (14'''') para língua alemã com "Konjunktiv".<br />
Repare-se na 'modalização' através <strong>do</strong> «verbo modal» 'sollen' no «Indikativ» ((14''''ta).<br />
37 Consideran<strong>do</strong> 'sollen' «verbo auxiliar» (cf. nota 41), podemos «categorizar»<br />
(16'ta) e (16''ta) como «Konjunktiv II-Futur II».<br />
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VILELA, Mário (1999), Gramática da língua portuguesa, 2ª ed., Coimbra, Almedina.
Linguística Funcional e Tradução 57
BREAKFAST IN AMERICA É SÓ UM “MATA-BICHO À AMERICANA”?<br />
M. Helena A. G. Anacleto<br />
I. PROPOSTA PARA UMA NOBILIDADE TRADUTIVA<br />
Breakfast in America foi um disco marginal que esteve no centro das<br />
atenções da geração europeia e norte-americana que atingiu agora a casa <strong>do</strong>s<br />
trinta, quarenta anos de idade. De um grupo da era <strong>do</strong> vinil, tão assumidamente<br />
marginal que escolheu para seu nome “SuperTramp”, a letra da faixa que deu o<br />
título ao disco, Breakfast in America, será comparativamente analisada com a sua<br />
tradução, aliás criada para o efeito.<br />
A criação de uma tradução lírica é deveras um desafio, constituin<strong>do</strong> uma<br />
tipologia à parte dentro da tradução literária. É assumidamente reconheci<strong>do</strong> por<br />
tradutores de todas as eras e áreas de trabalho que a tradução literária é uma das<br />
mais complexas, pois a dimensão semântica polissémica de determina<strong>do</strong>s<br />
vocábulos ou expressões que comportam conotações interpretativas e/ou<br />
dimensões simbólicas ao texto literário é uma constante. É mesmo essa a<br />
natureza <strong>do</strong> discurso literário: a construção interpretativa que o leitor faz <strong>do</strong><br />
texto provém da riqueza <strong>do</strong>s termos e da sua rede de relações conotativas que<br />
provoca o prazer da leitura.<br />
A tradução literária de um conto parece-me ser “menos nobre” dentro da<br />
tradução literária latu sensu. Passo a explicar porquê: a unidade <strong>do</strong> conto é, em<br />
termos de número de palavras, a mais económica da tipologia literária. Mas a<br />
tradução de um conto pode (e certamente é o que acontece) oferecer menos<br />
desafios de investigação tradutológica <strong>do</strong> que a tradução de um romance ou de<br />
uma novela, devi<strong>do</strong> não só à curta extensão <strong>do</strong> texto, mas também, e<br />
sobretu<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong> à relativa e menor complexidade interpretativa que as<br />
relações inter-palavras nas construções frásicas e nos segmentos de senti<strong>do</strong><br />
poderão oferecer.<br />
Na realidade, a dimensão simbólica de um romance ou novela é<br />
nitidamente superior à <strong>do</strong> conto, tornan<strong>do</strong>-se assim um desafio maior para o
Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”? 59<br />
tradutor que se propõe traduzir ou até retroverter um romance ou novela,<br />
preterin<strong>do</strong> a tradução de um conto.<br />
Temos assim que, numa “cadeia de nobilidade de tradução”, (termo que<br />
proponho mas que é discutível e portanto não postulável como sen<strong>do</strong> perfeito<br />
na totalidade), o conto traduzi<strong>do</strong> é o “menos nobre” e o romance e a novela<br />
são “mais ou menos nobres” nas suas dimensões tradutivas. No topo da<br />
“nobilidade tradutiva”, está, quanto a mim, a Poesia.<br />
Na realidade, a Poesia, quer seja de natureza intimista ou concreta, quer<br />
seja exclusivamente subjectivista ou de carácter interpretavelmente realista,<br />
pode e deve ser traduzida. Não partilho em absoluto <strong>do</strong>s pu<strong>do</strong>res<br />
tradutológicos de alguns tradutores literários que se dizem “atrever” a traduzir<br />
um conto, uma novela ou um romance, “mas Poesia, isso é que não”.<br />
Reconheço que a métrica, a rima, o ritmo, a dimensão fónica ou de<br />
pronunciação, possam oferecer dificuldades acrescidas ao tradutor literário; no<br />
entanto, essas dificuldades devem ser vistas como estímulo a um desafio<br />
superior e não como obstáculos intransponíveis.<br />
II. RETROVERSÃO VERSUS TRADUÇÃO LITERÁRIA?<br />
Se atentarmos na natureza <strong>do</strong> trabalho tradutológico, temos de considerar<br />
que é, também ele, um trabalho menos complexo <strong>do</strong> que aquele que um<br />
retrovertor terá de fazer. Trata-se de traduzir da Língua de Partida (LP) para<br />
uma Língua de Chegada (LC) que não é a língua materna <strong>do</strong> tradutor. Mas será<br />
este um óbice para o seu trabalho? É óbvio que não é, pois um bom tradutor<br />
deverá ser igualmente proficiente nas duas línguas – pelo menos numa situação<br />
ideal. Embora um tradutor deva estar bem apetrecha<strong>do</strong> linguisticamente para<br />
<strong>do</strong>minar os seus textos de partida e conceber os seus textos de chegada, é<br />
fundamental distinguir as áreas: se acerca da tradução literária muito se pode<br />
dizer, acerca da tradução técnica e científica, também. No caso da tradução<br />
técnica, em concreto, há a apontar que a questão das equivalências, tal como é<br />
proposta pela maioria <strong>do</strong>s críticos tradutivos, é muito mais óbvia <strong>do</strong> que no<br />
caso literário. A saber, a transposição de uma LP para uma outra LC é muito<br />
mais directa, pois um vocábulo costuma ter apenas um equivalente ou um<br />
número reduzi<strong>do</strong> de equivalentes. No texto literário, há uma necessidade de<br />
escolha mais criteriosa ainda. Ou seja, a ajuda de glossários, quer em suporte de
papel que o tradutor vai compilan<strong>do</strong> a partir de todas as suas tarefas<br />
tradutológicas, quer aos que ele vai ten<strong>do</strong> acesso em linha, não é tão imperiosa<br />
como no caso da tradução de um manual técnico ou de um artigo científico. As<br />
traduções jurídicas e económicas configuram uma necessidade intermédia de<br />
glossários, isto é, há termos de equivalência directa e, por isso, os glossários são<br />
fundamentais. Porém, tal como os próprios sistemas culturais, económicos e<br />
principalmente jurídicos são diferentes, também os glossários não conseguem<br />
responder a necessidades ipsis verbis, que são mais facilmente resolúveis no<br />
caso da tradução técnica e mesmo científica.<br />
Mas reflectia sobre a tradução e a retroversão. É fundamental notar que a<br />
tradução é notoriamente mais fácil que a retroversão, pois na retroversão há<br />
uma transposição de personalidade <strong>do</strong> tradutor. Isto é, o tradutor de uma língua<br />
materna X tem de se “pôr na pele” de um determina<strong>do</strong> falante da língua Y. Isto<br />
implica como que um processo mental de “re-encarnação”, como se se tratasse<br />
de um intérprete. Este processo tem tanto de criativo, quanto de<br />
potencialmente patológico, já que, se por um la<strong>do</strong>, tem a ver com a riqueza de<br />
uma performance, como se de um actor a desempenhar um papel no palco se<br />
tratasse, por outro la<strong>do</strong>, há uma nítida característica que ronda as raias da<br />
esquizofrenia patológica. Um bom tradutor deve estar acima de todas estas<br />
problemáticas acerca das quais os bons teoriza<strong>do</strong>res das actividades<br />
tradutológicas gostam de discorrer; realmente, um tradutor profissional não tem<br />
tempo para reflectir sobre o acto tradutivo, ela ou ele têm é de produzir um<br />
texto coerente, que responda às necessidades <strong>do</strong> cliente que os remunerará,<br />
mais ou menos generosamente, mais ou menos atempadamente, consoante as<br />
cláusulas que o tradutor impõe quan<strong>do</strong> aceitou tomar conta da encomenda de<br />
tradução. Os processos mentais de um bom tradutor têm de ser tão versáteis<br />
quanto as suas actividades são variáveis: o tradutor é um ser polivalente, que<br />
hoje de manhã pode estar a traduzir um texto de contabilidade, um relatório de<br />
um parecer económico vin<strong>do</strong> de uma empresa americana, por exemplo, e logo<br />
de tarde pode ter de acompanhar em missão de interpretação um empresário<br />
alemão que se deslocou a uma feira de exposições; amanhã de manhã, esse<br />
mesmo tradutor poderá começar a traduzir um manual de instruções de uma<br />
máquina corta<strong>do</strong>ra de metal, por exemplo, e, para variar o seu trabalho, de<br />
tarde, lança-se num projecto de tradução literária mais criativo ainda. Este é um<br />
cenário real: no princípio de carreira, um bom tradutor não pode ser muito
Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”? 61<br />
criterioso nas suas recusas de trabalho; pelo contrário, os tradutores que se<br />
lançam no merca<strong>do</strong> devem aceitar qualquer tarefa de tradução, desde que esteja<br />
ao seu alcance fazer um bom trabalho e satisfazer o cliente. Só quan<strong>do</strong> criar<br />
nome no merca<strong>do</strong> é que um tradutor se poderá dar ao luxo de escolher as suas<br />
encomendas de tradução e de retroversão e delegar os trabalhos que não lhe<br />
agradam em assistentes de tradução ou estagiários que contrata para o efeito. É<br />
claro que, neste segun<strong>do</strong> caso, o tradutor que é um bom gestor da sua empresa<br />
de tradução deverá rever muito criteriosamente o trabalho de tradução <strong>do</strong>s seus<br />
assistentes mais inexperientes, pois se o trabalho de revisão é sempre<br />
importante, torna-se fundamental quan<strong>do</strong> se trata de colmatar lacunas<br />
provocadas pela inexperiência ou pela menor exposição a tarefas de tradução<br />
que os principiantes necessariamente terão.<br />
III. TRADUÇÃO E RETROVERSÃO DAS LETRAS DE CANÇÕES: UM GRANDE<br />
DESAFIO<br />
De acor<strong>do</strong> com o conceito de “nobilidade tradutiva” já proposto e na<br />
mesma linha de pensamento, considero que há uma nobilidade tradutiva da lírica<br />
que é superior à nobilidade tradutiva da ficção. Quan<strong>do</strong> se trata de Poesia, há um<br />
desafio significativo para o tradutor que quer produzir um texto, mais ou<br />
menos fiel, àquele que o poeta engendrou. A questão da fidelidade no que toca<br />
à tradução de Poesia é para nós muito discutível. Imaginemos a seguinte<br />
situação: o poeta A produz um poema (P), resulta<strong>do</strong> da sua inspiração e da sua<br />
capacidade de engendrar um poema que é um jogo fónico, métrico, rimático,<br />
ritma<strong>do</strong> – é ele ou ela o autor; o tradutor B, além de ser o autor da sua<br />
tradução, ainda tem o trabalho da transposição da LP para a LC. Ou seja, além<br />
de poeta, deve ser linguista na sua actividade de tradutor. Trata-se de uma tarefa<br />
que requer uma perspectiva polifacetada, multidisciplinar e, portanto, mais<br />
completa. No fim <strong>do</strong> trabalho tradutivo <strong>do</strong> tradutor B, o texto traduzi<strong>do</strong> (TT)<br />
deverá ser “fiel” ao texto produzi<strong>do</strong> por A? Deverá, pelo contrário, assumir-se<br />
como entidade distinta de P? Afinal de contas, o TT e o P pertencem a sistemas<br />
linguísticos diferentes, como no caso concreto que passarei brevemente a<br />
ensaiar, onde P é em inglês e o nosso TT é em português. E não é só uma<br />
questão de os sistemas linguísticos serem diferentes; temos de considerar que o<br />
texto poético se constrói também, e sobretu<strong>do</strong>, não só com a subjectividade <strong>do</strong><br />
poeta que escreveu, mas com a subjectividade <strong>do</strong> leitor que o está a ler – afinal,
para que serve um Poema? Serve na medida em que provoca prazer no leitor,<br />
tal como outras formas de arte. Serve na medida da sua actualização através da<br />
leitura, interpretação e extrapolação conotativo-interpretativa de que o leitor é<br />
detentor na sua especificidade de indivíduo. As memórias e as ideologias de<br />
cada leitor são diferentes e, por isso, as interpretações são também diferentes.<br />
Quan<strong>do</strong> se fala da interpretação <strong>do</strong> Poema P e <strong>do</strong> seu texto traduzi<strong>do</strong> TT, a<br />
problemática da fidelidade complica-se: os sistemas individuais já são de si<br />
diferentes; quan<strong>do</strong> se trata <strong>do</strong>s sistemas linguísticos, eles também são diferentes<br />
– a interpretação <strong>do</strong> TT terá de ter em conta a memória colectiva de toda uma<br />
comunidade linguística, de to<strong>do</strong> um povo falante da mesma língua, que é<br />
diferente <strong>do</strong> povo que produziu o poeta, que por sua vez produziu o poema P.<br />
Então, na discussão da necessidade de fidelidade na transposição linguística de<br />
P para TT (ou na negação dessa fidelidade), a<strong>do</strong>ptei uma posição reservada, por<br />
me parecer que, de facto, essa é uma falsa questão – não se trata de necessidade,<br />
trata-se antes de possibilidade, ou não, dessa fidelidade. Na realidade, e como<br />
preten<strong>do</strong> demonstrar em seguida, temos de ter em conta que a fidelidade tem a<br />
ver com a traduzibilidade ou intraduzibilidade de poemas. Há poemas mais<br />
factuais, na sua escolha de vocábulos vernaculares, que apresentam uma<br />
dificuldade que lhes é específica; há poemas que pertencem aos chama<strong>do</strong>s ismos<br />
– realismo ou concretismo. Também têm dificuldades tradutivas que lhes são<br />
inerentes. Passar um texto de uma língua para a outra assim o exige. Então, qual<br />
é o enquadramento da tradução de poemas musica<strong>do</strong>s no panorama da<br />
tradução lírica em geral e na problemática que tenho vin<strong>do</strong> presentemente a<br />
expor?<br />
Por vezes, e por necessidade de merca<strong>do</strong>, o tradutor português tem de<br />
traduzir letras de canções de inglês para português. O caso específico de filmes<br />
destina<strong>do</strong>s ao merca<strong>do</strong> infantil, por exemplo, é assinalável. Referimo-nos em<br />
concreto aos filmes de Anime japoneses, ou, mais próximo de nós, os filmes<br />
das produções Walt Disney. Um caso muito recente é o de “Planeta<br />
Encanta<strong>do</strong>”, exibi<strong>do</strong> nos cinemas portuenses há muito pouco tempo.<br />
A nossa escolha <strong>do</strong> álbum discográfico Breakfast in America prende-se com<br />
factos de natureza distinta. Se, por um la<strong>do</strong>, houve uma escolha subjectiva deste<br />
álbum, já que em a<strong>do</strong>lescente fui aprecia<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> grupo SuperTramp, por um<br />
outro la<strong>do</strong>, a edição recente em Portugal de um disco-compacto <strong>do</strong> tipo “Best<br />
Of”, decerto um prazer para as gerações mais novas, assim o justifica.
Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”? 63<br />
Quanto às tendências musicais deste grupo rock, o crítico musical francês<br />
James Petit afirmou: “[les] influences pop, jazzy et progressives se mêlent dans<br />
des compositions imparables, aux arrangements particulièrement bien sentis,<br />
illustrant une vision plutôt ironique des Etats Unis.”<br />
É preciso referir a necessidade <strong>do</strong> conhecimento das culturas das línguas<br />
de partida e de chegada para que o agente translatório, vulgarmente chama<strong>do</strong><br />
“il tradittore”, consiga apresentar um produto final fiel ao original e ao mesmo<br />
tempo criativamente significativo para o público da língua de chegada. Estas<br />
reflexões partem de uma perspectiva (infelizmente já não tão?) marginal... Tal<br />
como os SuperTramp eram marginais, o seu público por excelência assumia-se<br />
também ele como marginal, ou, pelo menos, de tendências não alinhadas.<br />
Mas será que o poema da faixa discográfica de Breakfast in America <strong>do</strong>s<br />
SuperTramp será mesmo só “Um almoço-pequeno na América”? Um pequenoalmoço<br />
na América, na realidade é diferente de um pequeno-almoço em<br />
Portugal; o menú tradicional português será composto por uma chávena de café<br />
com leite e uma torrada com manteiga <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s. Este conceito é muito<br />
mais alarga<strong>do</strong> nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s: um verdadeiro breakfast pressupõe um bom<br />
copo de sumo de laranja, um café fraco numa chávena grande, ovos mexi<strong>do</strong>s<br />
com bacon frito; as variantes possíveis são French toast ou flocos de aveia, ou<br />
panquecas com molho <strong>do</strong>ce. Como se vê, a evocação cultural nos <strong>do</strong>is leitores,<br />
português e norte-americano, é diferente. O “mata-bicho” português, assim<br />
chama<strong>do</strong> no país profun<strong>do</strong>, é um copinho de aguardente, o qual, embora já a<br />
entrar em desuso nas aldeias portuguesas devi<strong>do</strong> às campanhas anti-alcoolismo,<br />
é dificilmente comparável ao conceito <strong>do</strong> Breakfast in America. Metaforicamente,<br />
os SuperTramp comeram a América, deglutin<strong>do</strong> as suas incoerências e, numa<br />
perspectiva irónica, não ficaram propriamente “a chorar por mais”, para usar<br />
uma expressão bem portuguesa.<br />
As evocações gastronómicas que os títulos exercem na mente <strong>do</strong>s públicos<br />
receptores são diferentes, porque os arquétipos mentais e socio-culturais de<br />
“pequeno-almoço” são muito distintos – o quebrar <strong>do</strong> jejum à americana não é<br />
propriamente um “matar o bicho” à portuguesa.<br />
Breakfast in America é uma criação cultural da tantas vezes intitulada com<br />
desprezo “pop culture” que critica a sociedade americana urbana estabelecida<br />
<strong>do</strong>s anos 70 <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>. Proponho que os leitores façam uma análise
contrastiva <strong>do</strong> poema original de uma das faixas mais passadas na rádio e da sua<br />
tradução, aliás criada para o efeito, e que transcrevo de imediato:<br />
Breakfast in America<br />
Mata-bicho americano<br />
Take a look at my girlfriend<br />
She‟s the only one I got<br />
Not much of a girlfriend<br />
Never seem to get a lot<br />
Take a jumbo cross the water<br />
Like to see America<br />
See the girls in California<br />
I‟m hoping it‟s going to come true<br />
But there‟s not a lot I can <strong>do</strong><br />
Could we have kippers for breakfast<br />
Mummy dear, Mummy dear<br />
They got to have „em in Texas<br />
„Cos everyone‟s a millionaire<br />
I „m a winner, I‟m a sinner<br />
Do you want my autograph<br />
I‟m a loser, what a joker<br />
I‟m playing my jokes upon you<br />
While there‟s nothing better to <strong>do</strong><br />
Don‟t you look at my girlfriend<br />
She‟s the only one I got<br />
Not much of a girlfriend<br />
Never seem to get a lot<br />
Take a jumbo cross the water<br />
Like to see America<br />
See the girls in California<br />
I‟m hoping it‟s going to come true<br />
But there‟s not a lot I can <strong>do</strong>.<br />
Olha p‟rà minha miúda<br />
É aquela que eu tenho<br />
Não que preste p‟ra muito<br />
Ela nunca „stá contente<br />
Vai p‟rò outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong><br />
Quero ver a América<br />
Ver as miúdas na Califórnia<br />
Eu „spero que se realize<br />
Mas não há muito a fazer<br />
– Dá-me bolinhos ao almoço<br />
Qu‟rida Mãe, qu‟rida Mãe<br />
Há muitos no Texas<br />
Porque to<strong>do</strong>s são ricaços<br />
Eu ganho, eu peco<br />
Se quiseres <strong>do</strong>u-t‟o autógrafo<br />
Eu perco, mas que gozo<br />
Eu „stou a gozar é contigo<br />
Sem nada mais que fazer…<br />
Não olhes p‟rà miúda<br />
É aquela que eu tenho<br />
Não que preste p‟ra muito<br />
Ela nunca „stá contente<br />
Vai p‟rò outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong><br />
Quero ver a América<br />
Ver as miúdas na Califórnia<br />
Eu „spero que se realize<br />
Mas não há muito a fazer<br />
(LyricsFreak.com)<br />
James Petit comentou também quanto a Roger Hog<strong>do</strong>n e Richard Davies:<br />
“[…] entre le sens de la mélodie du premier et la maîtrise du rythme et des
Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”? 65<br />
arrangements du second aura été la clé magique de ce Breakfast in America de<br />
légende”.<br />
Numa entrevista publicada na Internet, Richard Davies afirmou quanto à<br />
escrita das letras das canções:<br />
[…] when you are <strong>do</strong>ing lyrics for example, sometimes I <strong>do</strong> lyrics without really<br />
knowing what I‟m writing about. Just basing it on if the line works, and then – it‟s<br />
almost like a subconscious thing – and then you sort of build it up from that, and<br />
then you try to find lines that would match something you‟d liked but you weren‟t<br />
sure what it meant. It‟s kind of... so there‟s a few kind of slightly abstract things<br />
on this record, that are just <strong>do</strong>ne around lines that seem to work, as opposed to<br />
any deep meaning to them.<br />
Um autor de letras de canções pode dar-se ao luxo de afirmar que a<br />
criação lírica é algo “que tem a ver com o subconsciente”; o tradutor <strong>do</strong> poema<br />
musica<strong>do</strong> tem, pelo contrário, de estar consciente quan<strong>do</strong> faz a tradução desse<br />
mesmo poema. Foi isso que tentei fazer quan<strong>do</strong> produzi uma possível tradução<br />
da faixa de Breakfast in America.<br />
O título escolhi<strong>do</strong> é bastante polémico: porque não simplesmente<br />
“Pequeno-almoço na América”? Exactamente por as evocações psicológicas e<br />
emotivas suscitadas no leitor e na tradução serem diferentes daquelas que são<br />
provocadas no leitor <strong>do</strong> poema de partida, pois ambos possuem uma herança<br />
cultural diferente.<br />
De notar que a tradução lírica de Breakfast in America privilegiou o seu<br />
enquadramento na música com o ritmo, esquecen<strong>do</strong> um pouco a rima. Há<br />
desrespeito por equivalências de um poema para o outro, devi<strong>do</strong> exactamente a<br />
essa causa – tentou-se enquadrar o poema português na melodia original da<br />
faixa <strong>do</strong>s SuperTramp.<br />
“The lyrics on that [album] sort of, are really about these days [...]”,<br />
afirmou Rick Davies na entrevista já citada. De facto, esta faixa é ao mesmo<br />
tempo irónica e crítica da realidade americana e está directamente relacionada<br />
com a vivência <strong>do</strong> autor da letra em Los Angeles – daí a referência à Califórnia:<br />
“Well, I love the atmosphere of being out in this part of the world [Long Island<br />
– Esta<strong>do</strong> de Nova Iorque], because it has seasons. The old cliché where people<br />
in L. A. miss the seasons and all that – that‟s true […]”.<br />
A tradução lírica é deveras um desafio que o tradutor deve encarar como<br />
uma possibilidade de exercício tradutológico fundamental, pois requer uma
grande disciplina tradutiva e um talento lírico que nem to<strong>do</strong>s os tradutores têm<br />
coragem de ousar exercitar.<br />
“I‟ll always love to write songs and just see what I can create”, afirmou<br />
Rick Davies. O mesmo se aplica à criação de traduções líricas por parte <strong>do</strong><br />
tradutor.<br />
PÁGINAS CONSULTADAS<br />
http://www.amazon.fr/exec/obi<strong>do</strong>s/ASIN/B000024RQV/<br />
http://www.LyricsFreak.com<br />
http://www.supertramp.com/interview/2002jan_rick2.shtml
Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”? 67
A QUEDA DE ÍCARO, DE BRUEGHEL E SCHIMMERNDE INSELCHEN<br />
IM MEER, DE ROBERT WALSER –<br />
UMA VIAGEM AO MUNDO DA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA<br />
Maria Helena Guimarães<br />
En vain j‟ai voulu de l‟espace<br />
Trouver la fin et le milieu;<br />
Sous je ne sais quel oeil de feu<br />
Je sens mon aile qui se casse;<br />
Charles Baudelaire, Les plaintes d‟un Icare.<br />
1. O mito: um pouco de história<br />
Seguin<strong>do</strong> a classificação criada por Lévi-Strauss (1996: 225-250), Ícaro é<br />
um mitema, isto é, estamos perante uma unidade constitutiva <strong>do</strong> mythos,<br />
porta<strong>do</strong>ra de uma função significante. Para este autor, cada unidade constitutiva<br />
tem a natureza de uma relação, relação essa que não é isolada; ela é, sim, um<br />
grupo de relações, de cuja combinação resulta, aliás, a função significante das<br />
referidas unidades constitutivas. Lévi-Strauss afirma ainda “que le mythe fait<br />
partie intégrante de la langue; c‟est par la parole qu‟on le connaît, il relève du<br />
discours” (ibid.: 230), isto é, a langue pertence, segun<strong>do</strong> ele, ao <strong>do</strong>mínio de um<br />
tempo reversível, enquanto a parole, àquele de um tempo irreversível. O mito<br />
define-se, assim, por um sistema temporal que combina as propriedades de <strong>do</strong>is<br />
outros tempos. Um mito refere-se sempre a acontecimentos passa<strong>do</strong>s, mas o<br />
seu valor intrínseco resulta <strong>do</strong> facto de os acontecimentos desenrola<strong>do</strong>s num<br />
determina<strong>do</strong> momento <strong>do</strong> tempo formarem uma estrutura permanente, a qual,<br />
como diz este autor, “[...] se rapporte simultanément au passé, au présent et au<br />
futur” (ibid: 231).<br />
A substância <strong>do</strong> mito não se encontra nem no estilo, nem no mo<strong>do</strong> de<br />
narração, nem na sintaxe, mas na „história‟ que é contada: “le mythe est<br />
langage” (ibid: 232), “[...] le mythe reste mythe aussi longtemps qu‟il est perçu<br />
comme tel” (ibid: 240). Lévi-Strauss chama ainda a nossa atenção para a<br />
estrutura sincro-diacrónica <strong>do</strong> mito, que nos permite ordenar os seus elementos<br />
em sequências diacrónicas, a serem li<strong>do</strong>s e considera<strong>do</strong>s em termos sincrónicos.<br />
De forma a podermos, no entanto, analisar as metamorfoses <strong>do</strong> mito ao<br />
longo <strong>do</strong>s tempos, creio ser necessário definir, de uma forma simples e o mais<br />
lata possível (na esteira de Mircea Eliade), a complexa realidade cultural que é o
Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 69<br />
mito. Ele é, antes de tu<strong>do</strong>, um relato da origem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s acontecimentos<br />
que tiveram lugar num tempo primordial, isto é, conta-nos como, graças à<br />
intervenção de seres sobrenaturais, uma realidade passou a existir, ou, de uma<br />
forma mais alargada ainda, “[...] <strong>do</strong>rt, wo lebendiges Geschehen alles in sich<br />
aufnimmt und sozusagen restlos in sich selber aufgeht, [...], da wird Geschehen<br />
Mythe” (Jolles, 1982: 123).<br />
O mito, um saber por histórias, dava ao homem primitivo uma certa<br />
segurança, já que, pela “repetição periódica daquilo que foi feito in illo tempore,<br />
impõe-se a certeza de que qualquer coisa existe de uma maneira absoluta”<br />
(Eliade, 1989: 119). To<strong>do</strong>s os actos <strong>do</strong> comportamento consciente <strong>do</strong> homem<br />
arcaico são, assim, “uma repetição ininterrupta de gestos inaugura<strong>do</strong>s por<br />
outros” (Eliade, 1985: 19).<br />
Os contextos originais <strong>do</strong>s mitos não são, no entanto, reconstituíveis, já<br />
que a sua origem se perde nos tempos. Dispomos apenas de uma organização<br />
estrutural de elementos míticos, que não estão presos a ideias e que flutuam<br />
livremente face ao mito original, cujo contexto primitivo não é possível<br />
restabelecer.<br />
A mitologia grega e a mitologia romana constituem a base <strong>do</strong>s referentes<br />
míticos no mun<strong>do</strong> ocidental. Segun<strong>do</strong> Platão, a mitologia é um género da<br />
ποιησις (poiesis) que “tem por material histórias sobre „deuses, seres divinos,<br />
heróis e viagens ao além‟” (Jesi, 1988: 14). Nenhum mito grego foi, contu<strong>do</strong>,<br />
transmiti<strong>do</strong> no seu contexto cultural. Eles foram-nos transmiti<strong>do</strong>s no esta<strong>do</strong> de<br />
<strong>do</strong>cumentos literários e artísticos, já que o mito inspirou não só a poesia épica,<br />
a tragédia e a comédia, mas também as artes plásticas. O mito, métaphore géante<br />
(Lotman/Gasparov, 1979: 83), é exemplo lapidar de que, fora da<br />
intertextualidade, a obra literária (e não só) seria, muito simplesmente,<br />
incompreensível, pois “la citation représente la pratique première du texte, au<br />
fondement de la lecture et de l‟écriture; citer, c‟est répéter le geste archaïque du<br />
découper-coller, [...], un mode de la signification et de la communication<br />
linguistique” (Compagnon, 1979: 34). São os factos intertextuais que nos fazem<br />
voltar, por um processo de ananmese intelectual, ao(s) pré-texto(s) que lhes<br />
estão subjacentes, abrin<strong>do</strong> o espaço semântico <strong>do</strong> texto. Embora modifica<strong>do</strong>, o<br />
mito vai manter-se vivo, se bem que sob formas diferentes. Assim, os deuses<br />
gregos vão sobreviver, durante toda a Idade Média, camufla<strong>do</strong>s sob as mais<br />
variadas formas (o Anticristo, por exemplo, poderá ser visto como símbolo de<br />
um regresso ao Caos) e tolera<strong>do</strong>s como manifestações de uma época<br />
ultrapassada, para serem finalmente salvos, no Renascimento, por poetas e<br />
artistas.
70<br />
Traduzir<br />
Os mitos mantiveram-se flexíveis, abertos à reciclagem, tanto em detalhes<br />
da narrativa como no significa<strong>do</strong> que deles pode ser extraí<strong>do</strong> (caso <strong>do</strong> mito de<br />
Ícaro). O seu poder formativo variou, por isso mesmo, grandemente. Nos sécs.<br />
XVII e XVIII, eles eram principalmente um ornamento convencional ofereci<strong>do</strong><br />
pelo autor ao seu leitor, enquanto, no perío<strong>do</strong> romântico, eles foram<br />
novamente trata<strong>do</strong>s como matéria-prima, e isto mostrou-se mais liberta<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
que restritivo, como o provam poetas como Hölderlin. Com os importantes<br />
desenvolvimentos regista<strong>do</strong>s nas áreas da antropologia e da psicologia são<br />
atribuí<strong>do</strong>s aos mitos novos senti<strong>do</strong>s, profusamente explora<strong>do</strong>s pelos autores<br />
modernistas, conscientes de que o mito é um sistema de comunicação, uma<br />
mensagem [...], um mo<strong>do</strong> de significação (Barthes, 1988: 181).<br />
2. A metamorfose <strong>do</strong>s mitemas: Dédalo e Ícaro ou o vôo e a queda<br />
As imagens dinâmicas da queda são, porventura, fonte de uma das mais<br />
antigas angústias <strong>do</strong> Homem face à temporalidade. De facto, “la chute apparaît<br />
même comme la quintessence vécue de toute la dynamique des ténèbres”<br />
(Durand, 1992: 122). Por outro la<strong>do</strong>, o vôo simboliza a ascensão, a<br />
transcendência, o ultrapassar da condição humana: o vôo proclama que o peso<br />
foi aboli<strong>do</strong>, que se efectuou uma mutação ontológica no próprio ser humano<br />
(Eliade, 1987: 149). Ao mesmo tempo que símbolo de poder, o vôo é também<br />
um desejo de ultrapassar os deuses, os únicos então capazes de voar. Existia<br />
tanto uma imaginação da queda, como uma imaginação <strong>do</strong> vôo, símbolo de<br />
liberdade; só que da queda existia também uma experiência temporal e<br />
existencial, o que levaria Bachelard a escrever “nous imaginons l‟élan vers le<br />
haut et nous connaissons la chute vers le bas” (apud Durand, 1992: 123).<br />
O mito de Ícaro é constituí<strong>do</strong> por vários mitologemas, correspondentes a<br />
outras tantas tentativas de questionar o mun<strong>do</strong>: Dédalo, que constrói as asas<br />
que lhe permitirão sair <strong>do</strong> labirinto; Ícaro, seu filho, que, inebria<strong>do</strong> por poder<br />
voar, se aproxima demasia<strong>do</strong> <strong>do</strong> Sol, cujo calor lhe derrete as asas; a fuga <strong>do</strong><br />
labirinto, etc. No caso de Ícaro, é importante salientar o aspecto catastrófico da<br />
vertigem e da queda: desfeitas as suas asas pelo Sol, Ícaro precipita-se no mar.<br />
O horror <strong>do</strong> vôo interrompi<strong>do</strong> e a queda na água são aqui <strong>do</strong>is factores<br />
importantes que põem em evidência os símbolos que formam a própria<br />
semântica <strong>do</strong> mito, mito que contém em si mesmo o seu próprio senti<strong>do</strong>:<br />
“recherche du temps perdu, et surtout effort compréhensif de réconciliation<br />
avec un temps euphémisé et avec la mort vaincue ou transmuée en aventure<br />
paradisiaque, tel apparaît bien le sens inducteur dernier de tous les grands<br />
mythes” (Durand, 1992: 433).
Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 71<br />
Conforme as épocas, as ideologias, as correntes literárias e artísticas, assim<br />
os mitemas e mitologemas formativos <strong>do</strong> mito em análise foram sofren<strong>do</strong><br />
transformações de vária ordem. Uma vez é dada maior importância a Dédalo<br />
pela sua prudência e pela sua inventiva técnica; noutros casos assistimos a uma<br />
culpabilização ou, pelo contrário, ao encómio de Ícaro pelo seu arrojo e desejo<br />
de libertação, enquanto outros exaltam o processo de individuação presente em<br />
Ícaro, não sen<strong>do</strong> poucos os que vêem nele um símbolo da curiosidade humana,<br />
da poetologia, da liberdade.<br />
3. Descontextualização <strong>do</strong> mito na obra literária e artística<br />
Como já vimos, os contextos originais <strong>do</strong>s mitos perderam-se no tempo.<br />
A literatura e a arte, tal como o mito, questionam-se sobre o mun<strong>do</strong> e as<br />
origens. Neste processo, quer a literatura quer a arte vão socorrer-se, vezes sem<br />
fim, de elementos míticos que descontextualizam a nível social, num<br />
movimento de libertação próprio das mesmas, conforme os fins que se<br />
propõem atingir e as épocas em que se inserem. A recontextualização é<br />
posteriormente feita a nível <strong>do</strong> receptor. Os mitos, tal como os conhecemos,<br />
são eles também recontextualizações, isto é, interpretações de outras<br />
interpretações.<br />
Desde o final da Antiguidade que os mitos foram veicula<strong>do</strong>s pelas criações<br />
literárias e artísticas e por elas, não raras vezes, seculariza<strong>do</strong>s e até mesmo<br />
desmitifica<strong>do</strong>s, em parte através da sua descontextualização social, em parte<br />
através <strong>do</strong>s contextos de produção das obras, já que “não há nenhuma fixidez<br />
nos conceitos míticos: eles podem formar-se, alterar-se, desfazer-se,<br />
desaparecer completamente” (Barthes, 1988: 191).<br />
Poder-se-ia até dizer que a tentativa de libertação literária <strong>do</strong>s autores ao<br />
longo <strong>do</strong>s séculos (que os levou a recorrer aos mitos como forma de se<br />
libertarem <strong>do</strong> tempo histórico para assim poderem mergulhar num tempo<br />
desconheci<strong>do</strong>), é, por si só, um comportamento mitológico, na medida em que se<br />
sai <strong>do</strong> tempo histórico e pessoal e se mergulha num tempo fabuloso. A obra<br />
literária ou artística não tem acesso ao tempo primordial <strong>do</strong>s mitos, mas, na<br />
medida em que narra ou descreve uma história plausível, ela utiliza um tempo<br />
que dispõe de todas as liberdades <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s imaginários, pelo que a<br />
descontextualização <strong>do</strong>s mitos acaba por ser uma constante nas várias obras<br />
literárias e artísticas.
72<br />
Traduzir<br />
4. O processo estético-literário como veículo de projecção de arquétipos:<br />
„Paisagem com a queda de Ícaro‟ de Pieter Brueghel, uma<br />
recontextualização <strong>do</strong> mito<br />
O Mito é, pois, um objecto de reminiscência. Os elementos míticos são<br />
eleva<strong>do</strong>s à categoria de arquétipos. Basta uma simples alusão/imagem para<br />
introduzir, num texto, um senti<strong>do</strong>, uma história, que passa, assim, a estar<br />
virtualmente presente na obra, sem que seja necessário enunciá-la na sua<br />
totalidade.<br />
Mas detenhámo-nos agora na análise da obra de Brueghel Paisagem com a<br />
queda de Ícaro. Esta pintura data de 1555, sen<strong>do</strong> a única obra deste pintor que<br />
tem um tema retira<strong>do</strong> da mitologia. Dois esboços realiza<strong>do</strong>s pelo autor sobre o<br />
mesmo tema provam, contu<strong>do</strong>, o interesse <strong>do</strong> pintor por este mito. Em to<strong>do</strong>s<br />
os casos, no entanto, o mito constitui a estrutura primária, o pano de fun<strong>do</strong>,<br />
sobre o qual Brueghel vai desenvolver uma série de interpretações<br />
suplementares, dan<strong>do</strong>-nos <strong>do</strong> mito uma perspectiva sincro-diacrónica, fazen<strong>do</strong><br />
passar, constantemente, o nosso olhar da intemporalidade <strong>do</strong> mito para o<br />
tempo, quase idílico, de uma paisagem flamenga renascentista, em que a<br />
atenção se centra na representação das principais actividades produtivas da<br />
época: a exploração da terra e <strong>do</strong>s mares. De Ícaro, apenas vemos as pernas a<br />
lutarem contra a força da água que, vorazmente, o engole. To<strong>do</strong>s os outros<br />
mitemas que integram este mito encontram-se subentendi<strong>do</strong>s na obra, já que<br />
este quadro é uma transposição; poder-se-ia mesmo dizer, uma quase imitação<br />
(tão cara aos renascentistas), na tela, da obra As Metamorfoses de Ovídio, texto<br />
que o artista segue quase à letra.<br />
Assim, o ceifeiro, o pesca<strong>do</strong>r e o pastor de que nos fala Ovídio aparecem<br />
to<strong>do</strong>s representa<strong>do</strong>s no quadro:<br />
hos aliquis tremula dum captat harundine pisces,<br />
aut pastor baculo stivave innixus arator<br />
vidit et obstipuit, quique aethera carpere possent<br />
credidit esse deos. et iam Iunonia laeva 1<br />
É, todavia, curioso verificar que o sol, descen<strong>do</strong>, e já no ocaso, se<br />
encontra, no poema, alto e ardente no céu, como se depreende <strong>do</strong>s versos<br />
seguintes:<br />
[...] rapidi vicinia Solis<br />
mollit o<strong>do</strong>ratas, pennarum vincula, ceras 2
Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 73<br />
Esta alteração permite a Brueghel dar maior coesão à recontextualização<br />
que ele próprio faz <strong>do</strong> mito, permitin<strong>do</strong>-lhe, por outro la<strong>do</strong>, articulá-lo com<br />
outro pré-texto, um provérbio holandês, que vem reforçar a mensagem moral<br />
que Brueghel tenta aqui transmitir em forma de alegoria.<br />
Quan<strong>do</strong> comparamos as duas obras, verifica-se ainda ser da<strong>do</strong> por<br />
Brueghel maior significa<strong>do</strong> ao motivo <strong>do</strong> camponês com o ara<strong>do</strong>, ao introduzir<br />
a representação <strong>do</strong> cadáver de um velho, pouco visível, jazen<strong>do</strong> nas moitas, à<br />
esquerda, e que se refere ao provérbio flamengo, nenhuma charrua pára por um<br />
homem morrer, pormenor interessante, já que chama a nossa atenção quer para o<br />
recurso frequente, por parte <strong>do</strong> pintor, a provérbios flamengos para, a partir<br />
deles, edificar as suas obras, por exemplo, o quadro Os Provérbios Holandeses, de<br />
1559, quer para a mensagem moral que ele tenta sempre transmitir ao leitor <strong>do</strong>s<br />
seus textos plásticos. Brueghel, fiel à sua época, acreditava que a arte deveria ter<br />
uma finalidade didáctica, ajudan<strong>do</strong> os homens a levarem uma vida mais moral.<br />
Assim, a referência ao provérbio holandês funciona como comentário icónico<br />
<strong>do</strong> comportamento irreflecti<strong>do</strong> e louco de Ícaro, reduzin<strong>do</strong> o seu acto heróico a<br />
uma acção única, sem senti<strong>do</strong>, que em nada pode mudar o curso <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
A pintura deste autor é, sem dúvida, não só uma re-escrita recontextualizada da<br />
leitura/recontextualização que o próprio Ovídio faz <strong>do</strong> mito de Ícaro, como é<br />
também uma re-enunciação de um provérbio holandês, o que, evidentemente,<br />
dá a esta obra um forte poder alegórico e metafórico, nascen<strong>do</strong> o seu<br />
significa<strong>do</strong> da conjunção recíproca <strong>do</strong> sub-texto verbal, o título, que nos<br />
convida a uma revisitação <strong>do</strong> mito pela pena de Ovídio com o sub-texto<br />
pictórico que nos remete, por sua vez, para outro pré-texto: o provérbio. Ao<br />
lermos este quadro somos, pois, leva<strong>do</strong>s a rememorar os seus pré-textos, numa<br />
tentativa de decifrar a relação intertextual com o modelo antigo e as<br />
transformações/interligações operadas pelo texto centraliza<strong>do</strong>r que é o quadro<br />
em si, mudanças/assimilações estas que conferem unidade de senti<strong>do</strong> à obra,<br />
que ganha, assim, uma nova dimensão interpretativa, tornan<strong>do</strong>-se, pela<br />
transposição mediática e respectivo processo transformativo, autónoma em<br />
relação aos textos que lhe estão na origem. Como em qualquer outro processo<br />
tradutivo, o texto de Ovídio é-nos apresenta<strong>do</strong> sem nunca de facto estar<br />
presente, já que é impossível transmitir qualquer texto intacto, sem<br />
modificações resultantes da leitura/interpretação que o próprio tradutor faz da<br />
obra.<br />
No caso deste texto pictórico, pode-se, pois, falar de intertextualidade em<br />
termos de mudança de medium, de transposição de um texto de um sistema de<br />
signos para outro, ou de intermedialidade. Isto é, estamos na presença de um
74<br />
Traduzir<br />
poema de Ovídio (séc. I) transposto para a tela por um pintor flamengo <strong>do</strong> séc.<br />
XVI. Mas, porque representação de uma leitura, ela não é uma mera transfusão;<br />
ela é, acima de tu<strong>do</strong>, uma representação de uma interpretação, ganhan<strong>do</strong>, deste<br />
mo<strong>do</strong>, novo(s) senti<strong>do</strong>(s). Assim, para além das diferenças já assinaladas, é de<br />
referir ainda que, enquanto Ovídio faz, no seu poema, referência especial a<br />
Dédalo, dada a importância <strong>do</strong> la<strong>do</strong> técnico <strong>do</strong> vôo como forma de <strong>do</strong>mínio da<br />
Natureza (servin<strong>do</strong>-se, para tal, <strong>do</strong>s elementos míticos por ele recolhi<strong>do</strong>s<br />
noutros pré-textos, o que, aliás, explica também a ambivalência da relação Pai-<br />
Filho 3 ), Brueghel, por razões que, em parte, se prendem com o código estético<br />
específico das artes plásticas, vai preocupar-se com certos aspectos culturais e<br />
formais característicos <strong>do</strong> Renascimento, como seja o senti<strong>do</strong> de perspectiva<br />
(de notar, o ponto de fuga eleva<strong>do</strong> e a cidade que se avista ao longe) e o<br />
naturalismo das cenas retratadas, aparecen<strong>do</strong>-nos o mito numa posição<br />
aparentemente secundária e em traços que nos permitem claramente falar de<br />
uma recontextualização quer <strong>do</strong> mito, quer <strong>do</strong> poema.<br />
A ideia de intertextualidade com mudança de medium, por alguns<br />
contestada 4 , obriga à aceitação de um conceito mais alarga<strong>do</strong> de<br />
intertextualidade. Kristeva, na sua teoria de intertextualidade, havia já<br />
considera<strong>do</strong> a possibilidade de transposição/passagem de um sistema<br />
significante para outro 5 . Concordan<strong>do</strong> com o conceito universal de<br />
intertextualidade desta autora, parece-me, no entanto, por razões que se<br />
prendem com o processo heurístico, ser necessário, no que respeita à análise<br />
comparada de textos, restringir a sua aplicação aos pré-textos verbais ou<br />
artísticos em relação mais directa com a(s) obra(s) analisada(s). Só assim, creio,<br />
se poderá (em particular no caso da intermedialidade, que exige uma nova<br />
articulação da posicionalidade enunciativa e denotativa) estabelecer os graus de<br />
referencialidade, comunicabilidade, autoreflexividade e dialogicidade<br />
relativamente ao(s) seu(s) pré-texto(s), tarefa impossível de realizar, caso se<br />
considerasse a totalidade das relações intertextuais, a polifonia de textos, de<br />
facto, presentes numa obra.<br />
No caso da pintura, estamos perante um medium cujo sistema de signos é<br />
relativamente concreto em termos semânticos, mas que só pode, de forma<br />
limitada, reproduzir uma acção, pelo que, só através da relação intertextual em<br />
si, é possível, por exemplo, captar to<strong>do</strong>s os mitemas subentendi<strong>do</strong>s no quadro<br />
de Brueghel. No caso das artes plásticas, o problema reside, pois, muitas vezes,<br />
a nível da marcação da referência ao pré-texto, já que o pintor, de forma a<br />
realizar essa transposição para um espaço concreto limita<strong>do</strong>, a tela, se vê<br />
obriga<strong>do</strong> a recorrer ao uso de metáforas visuais, a jogos de luz e sombra, à cor,
Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 75<br />
à perspectiva e ao jogo de planos para transmitir conceitos, relações espáciotemporais,<br />
inserir o diacrónico no sincrónico.<br />
5. „Schimmernde Inselchen im Meer‟ de Robert Walser: a construção <strong>do</strong><br />
Eu textual no lugar <strong>do</strong> Outro – de novo a questão da intertextualidade<br />
Kristeva, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> o prima<strong>do</strong> da intersubjectividade, equacionará a<br />
problemática da criação sob o conceito de intertextualidade, o que faz<br />
pressupor uma desvalorização <strong>do</strong> Sujeito em favor de uma valorização <strong>do</strong><br />
discurso que adquire força e lógica próprias. O Sujeito, deixan<strong>do</strong> de ser<br />
conceptualiza<strong>do</strong> na sua subjectividade de Sujeito-Pessoa, passará a ser<br />
postula<strong>do</strong> como uma palavra textual ambivalente, dupla, isto é, comportan<strong>do</strong> o<br />
discurso <strong>do</strong> Outro dentro de si, resultan<strong>do</strong> este de um trabalho de fusão e<br />
reescrita de outro(s) texto(s) 6 .<br />
O texto literário reflecte, assim, uma dupla actividade de leitura e escrita.<br />
Ele não releva de um processo de mera imitação, mas constrói-se pela leitura,<br />
vista como exercício de apropriação e transformação que o texto opera<br />
relativamente a um corpus, anterior ou sincrónico: o intertexto.<br />
No caso <strong>do</strong> poema de Robert Walser estamos, conforme o próprio afirma<br />
claramente, perante um texto/poema resultante de um pré-texto proveniente de<br />
um outro medium, a pintura: [...] “was ich hier schrieb, verdanke ich einem<br />
Brueghelbild, [...]” 7 (Walser, 1990: 286). O intertexto resultante deste trabalho<br />
de Walser parece, a uma primeira leitura, muito próximo <strong>do</strong> pré-texto<br />
bruegheliano, que é li<strong>do</strong> como obra autónoma. Em lugar algum <strong>do</strong> poema<br />
aparece qualquer referência aos textos de que aquele é transposição. Mas, ao<br />
verter o texto de um sistema de signos, que é a pintura, para outro que é a lexis,<br />
além de se perder a referencialidade ao(s) pré-texto(s) transpostos para a tela (só<br />
possível de se estabelecer, caso se conheça a obra) perde-se ainda, em grande<br />
medida, o efeito não só físico, mas também psíquico, que a cor provoca no<br />
leitor <strong>do</strong> quadro. Assim, como em qualquer outra tradução, lê-se um texto,<br />
neste caso, uma obra plástica, que, na verdade, não podemos ler, porque a<br />
tradução/transposição é, antes de tu<strong>do</strong>, uma promessa de comunicação, onde,<br />
por definição, ela não pode ter lugar, pois o quadro é posto perante os nossos<br />
olhos sem o estar.<br />
Mas olhemos um pouco mais de perto para o poema. A minúcia descritiva<br />
é grande; a tal ponto, que Walser reflecte mesmo sobre a hora <strong>do</strong> dia a que a<br />
cena representada se passa<br />
so gegen neunzehn bis zwanzig Uhr
76<br />
Traduzir<br />
abends mag‟s sein,<br />
<strong>do</strong>ch nein<br />
noch nicht so spät, denn [...]<br />
(Walser, 1990: 286)<br />
mas, ao contrário da obra de Brueghel, Walser utiliza essa minúcia para nos dar<br />
um quadro da (pequena) burguesia, cheio de fina ironia (“so ein emsiger<br />
Batzenzummenrackerer,/arbeitet noch auf seinem Feld/als landwirtschaflticher<br />
Held”). Aparentemente, Walser limita-se a descrever o que vê, um herói <strong>do</strong><br />
trabalho da terra, um herói real e não um herói mítico ou sonha<strong>do</strong>r, em<br />
aparente consonância com o texto original. Contu<strong>do</strong>, Walser ignora o corpo <strong>do</strong><br />
homem morto, em que talvez nem tenha repara<strong>do</strong>, contrapon<strong>do</strong> à mensagem<br />
moralista de Brueghel a afirmação de que “annerkennenswert sind immerhin<br />
die Gaben der Unternehmungslust” (ibid.: 286). À passividade, à organização e à<br />
rotina da burguesia, Walser vai contrapor o sonho, o vôo, o risco:<br />
Allem Streben,<br />
über das gemeine Leben<br />
uns emporzuheben,<br />
ist ein Ziel gesetzt im Leben.<br />
(Walser, 1990: 287)<br />
Para Walser, o „vôo‟ era artístico, poético. E, segun<strong>do</strong> ele, vale a pena. Vale<br />
a pena sonhar, tentar ir mais longe e ver no mar/mun<strong>do</strong> que, “mit höchstem<br />
Gezier” 8 , troça <strong>do</strong> desejo de Ícaro de se unir “mit der göttlichen Schönheit der<br />
Azur” 9 , de se transformar numa daquelas pequenas ilhas cintilantes que não se<br />
deixam engolir pelo mar.<br />
6. Conclusão<br />
O poema de Walser é um simples exemplo, entre muitos, de<br />
intertextualidade/intermedialidade de um mesmo pré-texto: Paisagem com a<br />
queda de Ícaro, de Pieter Brueghel. Wolf Biermann, Albin Zollinger, Michael<br />
Hamburger, William Carlos William são apenas alguns <strong>do</strong>s autores que<br />
tentaram traduzir para a lexis a eloquência pictoral de Brueghel. O resulta<strong>do</strong> são<br />
diferentes interpretações/traduções, são novos textos, que testemunham da<br />
possibilidade impossível de apresentar um texto que, na realidade, está sempre<br />
ausente.<br />
Die Schwerkraft der Erde zog den entflügelten Jünglingskörper<br />
immerhin mit einer Beschleunigung von
Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 77<br />
g = 9,807 m/sec2 in die Tiefe.<br />
Wolf Biermann, «à la lanterne! à la lanterne!»<br />
________<br />
1 Tradução livre: Eles (Dédalo e Ícaro) são vistos por alguém que apanha peixes<br />
com a sua cana oscilante, ou por um pastor que se apoia em seu caja<strong>do</strong>, ou ainda um<br />
lavra<strong>do</strong>r apoia<strong>do</strong> a seu ara<strong>do</strong>[...].<br />
2 Tradução livre: [...]. A proximidade <strong>do</strong> sol ardente depressa faz derreter a cera<br />
perfurmada que prende as suas asas.<br />
3 Por um la<strong>do</strong>, o vôo de Ícaro significa um desafio à autoridade paternal, pois ele<br />
não segue as instruções que lhe são dadas pelo pai, sen<strong>do</strong>, assim, a sua queda, uma<br />
punição, por outro la<strong>do</strong>, a sua morte, no entanto, surge, simultaneamente, como um<br />
acto heróico, sen<strong>do</strong> o seu corpo recolhi<strong>do</strong> e sepulta<strong>do</strong> por Dédalo, seu pai, e o seu<br />
nome para sempre eterniza<strong>do</strong>, já que o mar em que se despenha toma o seu nome.<br />
4 Cf. G. Genette, Palimpsestes, Seuil, 1982, pp. 435-6. Este autor não considera os<br />
sistemas de signos de outros meios como texto.<br />
5 Cf. J. Kristeva, La Révolution du Langage Poétique, Seuil, 1974, p. 60.<br />
6 Cf. J. Kristeva, (1969), Σημειοτιĸη, Seuil, 1969, pp. 137-147.<br />
7 Tradução: o que aqui escrevo, o devo a um quadro de Brueghel.<br />
8 Tradução: com grande afectação.<br />
9 Tradução: com a beleza divina <strong>do</strong> Azul <strong>do</strong> céu.<br />
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Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 79<br />
Metamorphoses<br />
[...]<br />
Daedalus interea Creten longumque perosus<br />
exilium, tactusque loci natalis amore,<br />
clausus erat pelago. “terras licet” inquit “et undas<br />
obstruat, at caelum certe patet; ibimus illac:<br />
omnia possideat, non possidet aera Minos.”<br />
Dixit, et ignotas animum dimittit in artes<br />
naturamque novat. nam ponit in ordine pennas<br />
ut clivo crevisse putes. sic rustica quondam<br />
fistula disparibus paulatim surgit avenis.<br />
tum lino medias et ceris alligat imas<br />
atque ita compositas parvo curvamine flectit<br />
ut veras imitetur aves. puer Icarus una<br />
stabat et, ignarus sua se tractare pericla,<br />
ore renidenti mo<strong>do</strong> quas vaga moverat aura<br />
captabat plumas, flavam mo<strong>do</strong> pollice ceram<br />
mollibat, lusuque suo mirabile patris<br />
impediebat opus. postquam manus ultima coepto<br />
imposita est, geminas opifex libravit in alas<br />
ipse suum corpus, motaque pependit in aura.<br />
Instruit et natum, “medio” que ut limite curras,<br />
Icare, “ait” moneo, ne, si demissior ibis,<br />
unda gravet pennas, si celsior, ignis adurat.<br />
inter utrumque vola! nec te spectare Booten<br />
aut Helicen iubeo strictumque Orionis ensem:<br />
me duce carpe viam! “Pariter praecepta volandi<br />
tradit et ignotas umeris accommodat alas.<br />
inter opus monitusque genae maduere seniles,<br />
et patriae tremuere manus. pennisque levatus<br />
ante volat comitique timet, velut ales, ab alto<br />
quae teneram prolem produxit in aera ni<strong>do</strong>,<br />
hortaturque sequi, damnosasque erudit artes,<br />
et movet ipse suas et nati respicit alas.<br />
hos aliquis tremula dum captat harundine pisces,<br />
aut pastor baculo stivave innixus arator<br />
vidit et obstipuit, quique aethera carpere possent<br />
credidit esse deos. et iam Iunonia laeva<br />
parte Samos (fuerant Delosque Parosque relictae),<br />
dextra Lebinthos erat fecundaque melle Calymne,<br />
cum puer audaci coepit gaudere volatu<br />
deseruitque ducem, caelique cupidine tactus
80<br />
Traduzir<br />
altius egit iter. rapidi vicinia solis<br />
mollit o<strong>do</strong>ratas, pennarum vincula, ceras:<br />
tabuerant cerae; nu<strong>do</strong>s quatit ille lacertos<br />
remigioque carens non ullas percipit auras,<br />
oraque cerulea patrium clamantia nomen<br />
excipiuntur acqua, quae nomen traxit ab illo.<br />
At pater infelix, nec iam pater, “Icare,” dixit,<br />
“Icare,” dixit “ubi es? qua te regione requiram?”<br />
“Icare” dicebat: pennas aspexit in undis,<br />
devovitque suas artes, corpusque sepulcro<br />
condidit, et tellus a nomine dicta sepulti.<br />
[...]<br />
Ovídio, Liber VIII 152-259<br />
Schimmernde Inselchen im Meer<br />
Schimmernde Inselchen im Meer<br />
Fregatten kommen von irgendwoher,<br />
auf den Inseln gibt‟s anscheinend viel Kultur,<br />
so gegen neunzehn bis zwnzig Uhr<br />
abends mag‟s sein,<br />
<strong>do</strong>ch nein,<br />
noch nicht so spät, denn ein Ackerer,<br />
so ein emsiger Batzenzusammenrackerer,<br />
arbeitet noch auf dem Feld<br />
als landwirtschaftlicher Held,<br />
der spielt sein Spiel, verdient sien bisschen Geld,<br />
die Erde ist schwärzlich braun.<br />
Einer mit Flügeln will sich anvertau‟n<br />
den Lüften, wir werden später<br />
sehen, wie er wedelt im Äther.<br />
Wunderbar verschmitzt<br />
schaut der Mond aus, einer sitzt<br />
staunend ob dem Tempel der Natur<br />
auf einem vorgeschichtlichen Stein,<br />
betrachtet weiter nur<br />
ein singendes, fliegendes, in‟s Zwitschern verliebtes Vögelein,<br />
indes seine Schafe, sich selbst überlassen,<br />
friedlich im blassen,<br />
rötlich geschmückten Abendland<br />
weiden. O weh, eine Hand<br />
gestikuliert in stürzendem, stummem Hilfeschrei‟n<br />
von oben herunter,
Uma Viagem ao Mun<strong>do</strong> da Tradução Intersemiótica 81<br />
und wie der Meeresbusen munter<br />
lächelt mit höchstem Gezier, denn der schwur,<br />
er wolle die Schwere<br />
nun überm Meere<br />
besiegen, sich mit der götlichen Schönheit im Azur<br />
selig vermählen und Wurzeln<br />
am Lande verlachen, nun wird er im Purzeln<br />
zum ausgezeichneten Meisterlein<br />
und wird sich jetzt verhältnismäβig klein<br />
vorzukommen haben.<br />
Anerkennenswert sind immerhin die Gaben<br />
der Unternehmungslust, was ich hier schrieb,<br />
verdanke ich einem Brueghelbild, das im Gedächtnis mir blieb<br />
und wenn ich die höchste Achtung zahlt‟,<br />
weil mir schien, es sei vortrefflich gemalt.<br />
Allem Streben,<br />
über das gemeine Leben<br />
uns emporzuheben,<br />
ist ein Ziel gesetzt im Leben.<br />
Robert Walser, Aus dem Bleistiftgebiet, Mikrogramme 1926/27, Vol. 4, p. 286-287.
OS VALORES SOCIAIS NO PLANO INTERCULTURAL DA TRADUÇÃO<br />
Maria José Almeida<br />
A actividade tradutiva inscreve-se sempre na fronteira entre uma língua de<br />
partida e uma língua de chegada. Trata-se, assim, de um plano intercultural que<br />
cruza universos valorativos diferencia<strong>do</strong>s. Ora, constitui-se como objectivo <strong>do</strong><br />
tradutor atingir a equivalência possível, numa perspectiva de compromisso, no<br />
âmbito semântico e ideológico. É o que sucede, com especial relevância, nos<br />
casos da tradução de textos literários, económicos e, até mesmo, científicos e<br />
técnicos.<br />
Por tal motivo, além de ter de dispor de competências relativas ao <strong>do</strong>mínio<br />
das duas línguas em questão, nos planos lexical e sintáctico, condição<br />
fundamental mas não suficiente, o tradutor deverá ainda determinar, com<br />
particular acuidade, o senti<strong>do</strong> que orienta o discurso, bem como o quadro<br />
ideológico subjacente.<br />
De facto, a obtenção de uma equivalência supõe uma clara identificação <strong>do</strong><br />
trajecto semântico que atravessa o discurso na língua de partida, de mo<strong>do</strong> a que,<br />
na língua de chegada, se possa manter essa mesma orientação. Mas, para além<br />
disso, não nos podemos esquecer de que qualquer texto nos remete sempre<br />
para um da<strong>do</strong> campo de valores a que a tradução não poderá ficar alheia. Deste<br />
mo<strong>do</strong>, a análise <strong>do</strong>s valores presentes no discurso, que permite identificar a<br />
orientação ideológica aí inscrita, revela-se particularmente útil no plano<br />
intercultural da tradução.<br />
A ser assim, importa ao tradutor/intérprete munir-se de um quadro de<br />
análise susceptível de o fazer aceder a essas duas componentes. Trata-se de um<br />
processo hermenêutico de descodificação de senti<strong>do</strong>(s), entendi<strong>do</strong>(s) como<br />
direcção, nos planos semântico e ideológico. Neste caso, há que recorrer a um<br />
modelo teórico que não se restrinja a uma linguística <strong>do</strong> signo, redutora de uma<br />
análise mais ampla <strong>do</strong> discurso, de mo<strong>do</strong> a abranger a problemática ideológica.<br />
Claro que isso não prejudica a complementaridade de outras vertentes de<br />
análise, e até das perspectivas lexicográfica e lexicológica, úteis mas<br />
insuficientes, a nosso ver, neste aspecto.<br />
Entendida a tradução no âmbito mais amplo da comunicação – e não<br />
poderá deixar de ser assim, desde logo porque se destina, em princípio, à<br />
divulgação <strong>do</strong> texto de partida e porque qualquer texto se inscreve num plano
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução 83<br />
comunicante e relacional – há que privilegiar um quadro de análise integra<strong>do</strong>r<br />
dessa dimensão fundamental. Ora, como refere M. de L. Martins, a<br />
comunicação não deverá reduzir-se a uma semiótica <strong>do</strong> signo: “Colocar a<br />
comunicação à ordem <strong>do</strong> signo (linguístico, filosófico, antropológico, teológico,<br />
ou outro), é constituí-la, de facto, como um objecto intelectual, independente<br />
<strong>do</strong> acto que a confirma como relação, como aliança, como compromisso; é<br />
isolá-la e fixá-la como mera representação, como um dizer que nada faz” 1 .<br />
Deverá, então, optar-se por uma concepção mais abrangente e com outra<br />
amplitude, fundada numa análise <strong>do</strong> discurso em ordem a integrar a dimensão<br />
comunicacional.<br />
É certo que a determinação das duas componentes, que atrás referimos<br />
(senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> discurso e da ideologia), poderá ser feita em função de vários<br />
enquadramentos 2 mas, na nossa opinião, é a perspectiva de Oswald Ducrot,<br />
constituinte de uma Pragmática integrada na Semântica, que melhor se ajusta à<br />
análise <strong>do</strong> discurso com estes objectivos 3 . Estamos perante um quadro teórico<br />
que permite abranger as duas vertentes: por um la<strong>do</strong>, determinar o senti<strong>do</strong>,<br />
vector fundamental, no caso da tradução, entendi<strong>do</strong> como orientação<br />
argumentativa inscrita nas estruturas linguísticas, por outro, através <strong>do</strong>s<br />
princípios de argumentação convoca<strong>do</strong>s, coincidentes com o recorte<br />
ideológico, aceder aos valores presentes no universo discursivo.<br />
De facto, inscrevemo-nos numa dimensão intersubjectiva da linguagem,<br />
adquirin<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong>, como veremos, um carácter interlocutivo, enquanto<br />
diálogo entre pontos de vista diferencia<strong>do</strong>s 4 . Trata-se pois de uma concepção<br />
que se opõe ao carácter meramente representacionista ou denotativo <strong>do</strong>s<br />
enuncia<strong>do</strong>s em que a linguagem se limitaria a descrever uma dada realidade.<br />
A título de exemplo, e no seguimento de uma perspectiva tradicional, no<br />
enuncia<strong>do</strong> Este livro é interessante, procura-se apenas descrever uma realidade<br />
exterior. Segun<strong>do</strong> uma concepção argumentativa <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, aponta-se para<br />
uma conclusão que poderá ser, implicitamente, convidar o interlocutor à sua<br />
leitura e, logo, a um da<strong>do</strong> comportamento ou atitude. Uma das sequências<br />
plausíveis seria Então vou lê-lo. Neste caso, o segmento inicial constitui-se como<br />
argumento para a conclusão, adquirin<strong>do</strong> o seu valor semântico nessa totalidade.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> a concepção argumentativa da linguagem, a<br />
perspectiva <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> é vertical, adquirin<strong>do</strong> um carácter polifónico enquanto<br />
sobreposição de várias “vozes”, opon<strong>do</strong>-se ao postula<strong>do</strong> tradicional da<br />
“unicidade <strong>do</strong> sujeito falante”. De acor<strong>do</strong> com Anne Reboul, “Si, selon Ducrot,<br />
il faut rejeter le postulat de l‟unicité du sujet parlant et si, pour ce faire, il<br />
introduit diverses entités, il faut noter que ces diverses entités correspondent à
84<br />
Traduzir<br />
des êtres théoriques et non à des individus dans le monde. Ducrot établit ainsi<br />
une frontière infranchissable entre le sujet parlant, c‟est-à-dire l‟individu dans le<br />
monde qui produit l‟énoncé, et le locuteur et les énonciateurs qui restent des êtres<br />
théoriques et qui ne s‟incarnent pas” 5 .<br />
Há, então, a considerar, como instâncias <strong>do</strong> discurso, diversas entidades:<br />
em primeiro lugar, o sujeito empírico, autor ou produtor <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>, a seguir<br />
o locutor (L), responsável <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> e <strong>do</strong> agenciamento de enuncia<strong>do</strong>res,<br />
marca<strong>do</strong> linguisticamente pela primeira pessoa e, finalmente, os enuncia<strong>do</strong>res<br />
(E), perspectivas ou pontos de vista presentes no enuncia<strong>do</strong>. Acresce ainda a<br />
posição <strong>do</strong> locutor, relativamente a estes últimos, que poderá ser de aprovação<br />
de identificação ou de rejeição. Será assim, a partir <strong>do</strong> agenciamento de<br />
enuncia<strong>do</strong>res, realiza<strong>do</strong> pelo locutor, e da posição deste face às várias<br />
perspectivas, que se vai desenhan<strong>do</strong> a direcção ou trajecto argumentativo.<br />
Desta forma, um tipo de negação caracterizada por Ducrot como<br />
polémica 6 , seja o caso <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> Não chove, remete-nos para um debate entre<br />
<strong>do</strong>is enuncia<strong>do</strong>res, E1 e E2. O primeiro sustenta um ponto de vista afirmativo,<br />
sen<strong>do</strong> contradita<strong>do</strong> por E2 e identifican<strong>do</strong>-se o locutor com o último.<br />
Constitui-se, deste mo<strong>do</strong>, o ponto de partida, argumento para a sequência<br />
ulterior ou conclusão <strong>do</strong> tipo: Então vamos sair.<br />
Este entendimento <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> como debate entre pontos de<br />
vista contrapostos é extensível à dimensão discursiva, onde adquire a sua<br />
máxima amplitude. A sua aplicação à totalidade <strong>do</strong> discurso permite aceder ao<br />
diálogo ou cruzamento de perspectivas mais ou menos dissonantes que o<br />
atravessam, bem como determinar a respectiva directriz argumentativa.<br />
A consciência deste corte vertical <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, como “vozes” sobrepostas,<br />
contribui, a nosso ver, para um entendimento mais claro e preciso <strong>do</strong>s vectores<br />
fundamentais de orientação semântica, com um enfoque nos conectores que<br />
articulam a sequência discursiva. Muni<strong>do</strong> deste quadro de análise, o<br />
tradutor/intérprete pode assim aceder às conclusões fundamentais a que se<br />
dirige o discurso, aten<strong>do</strong>-se à orientação argumentativa que o rege e atingin<strong>do</strong>,<br />
de mo<strong>do</strong> mais seguro, uma equivalência semântica na língua de chegada.<br />
Por seu turno, na ligação entre argumento e conclusão, inscrevem-se<br />
princípios gerais, comuns e escalares 7 , convoca<strong>do</strong>s pelos enuncia<strong>do</strong>res. Estes<br />
princípios, topoi, de acor<strong>do</strong> com a designação aristotélica, obedecem, então, a<br />
várias características. A característica da generalidade deve-se ao facto de não se<br />
aplicarem apenas a uma dada situação mas a qualquer uma que seja análoga. Por<br />
outro la<strong>do</strong>, o topos é também comum, isto é, constitui-se como objecto de<br />
partilha pela colectividade. Finalmente, é gradual, já que, por um la<strong>do</strong>,
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução 85<br />
estabelece uma relação entre duas escalas, figuran<strong>do</strong> a primeira como<br />
antecedente (P), e a segunda como consequente (Q). Por outro la<strong>do</strong>, a relação<br />
é, em si mesma, gradual, poden<strong>do</strong> qualquer uma das escalas ser percorrida num<br />
senti<strong>do</strong> ascendente ou descendente.<br />
Seja o caso <strong>do</strong> exemplo: Está bom tempo, vamos passear. Como se pode<br />
constatar, cumpre as três características apontadas, já que poderá ocorrer<br />
sempre que o bom tempo se faça sentir, é pacificamente aceite e, em princípio,<br />
quanto melhor estiver o tempo, mais facilmente se dará um passeio e viceversa.<br />
Há, assim, um trajecto entre argumento e conclusão que é assegura<strong>do</strong><br />
pelo topos. No discurso, o topos é convoca<strong>do</strong> no quadro de uma determinada<br />
apreensão argumentativa de uma situação, orientan<strong>do</strong> o trajecto discursivo para<br />
uma dada conclusão.<br />
Se no plano semântico se define, deste mo<strong>do</strong>, a direcção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>,<br />
cumpre agora determinar a articulação com o plano ideológico e, mais<br />
especificamente, com os valores, inserin<strong>do</strong>-nos no âmbito intercultural da<br />
tradução. A conjunção que se estabelece entre ambos (discurso e ideologia),<br />
realiza-se através da coincidência <strong>do</strong>s topoi com os valores. Como refere A.<br />
Alves, “(...) para reconhecer a sua proximidade e até coincidência, será bastante<br />
sublinhar que os traços específicos <strong>do</strong>s topoi se encontram também nos valores<br />
sociais. De mo<strong>do</strong> simplifica<strong>do</strong>, diríamos que o que constitui a<br />
argumentatividade ou a força imperativa <strong>do</strong> topos é o que constitui a força<br />
imperativa <strong>do</strong> valor social. Tal como o topos, o valor social é, por definição,<br />
comum a uma comunidade (mesmo que não seja total e unanimemente aceite) e<br />
é geral, ou seja, aplica-se a uma multiplicidade de situações; ao carácter gradual<br />
<strong>do</strong> topos pode, pelo menos, associar-se o carácter polar <strong>do</strong> valor/antivalor e a sua<br />
gradualidade nos aspectos da realização e da adesão que alcançam” 8 .<br />
No entanto, há ainda que definir o que se entende por ideologia,<br />
destacan<strong>do</strong>-se alguns elementos que convém sublinhar. Embora seja uma<br />
noção de contornos pouco precisos, e que poderá ser entendida em função de<br />
várias acepções, cremos que se articula em torno de <strong>do</strong>is pólos fundamentais,<br />
manifestan<strong>do</strong> uma dualidade que lhe é inerente 9 .<br />
De facto, a ideologia parece constituir-se sempre a partir da tensão entre<br />
<strong>do</strong>is eixos, valores vs. representações sociais, apreensão da realidade e projecto<br />
de futuro, interpretação <strong>do</strong> interesse geral como obra de um grupo particular,<br />
etc. Ora, se por um la<strong>do</strong>, em certos casos, a ideologia surge como uma<br />
representação falseada, devi<strong>do</strong> a uma interpretação errónea ou parcial <strong>do</strong>s<br />
factos, por outro, desde que revele um des<strong>do</strong>bramento crítico, poderá
86<br />
Traduzir<br />
desempenhar um papel de orientação da acção, no senti<strong>do</strong> de uma maior<br />
consciência social.<br />
A ideologia perspectiva-se, assim, de mo<strong>do</strong> dialéctico, como tensão<br />
permanente enquanto consciência progressiva direccionada à consciência social<br />
e, ao mesmo tempo, como risco de reificação dessa mesma consciência.<br />
Formula-se, pois, como síntese de um processo representativo e de orientação<br />
da acção. Além disso, e de um ponto de vista sociológico, segun<strong>do</strong> a concepção<br />
de Guy Rocher, a ideologia apresenta-se como um sistema, um conjunto<br />
organiza<strong>do</strong> de percepções e de representações, que permite explicar o<br />
funcionamento social e propor orientações para a acção histórica, distinguin<strong>do</strong>se<br />
da ciência, principalmente pelo facto de se referir a valores.<br />
De acor<strong>do</strong> com este autor, “[...] le Nous de l‟idéologie sert en règle générale<br />
à symboliser et à cristalliser les valeurs auxquelles l‟idéologie fait appel. Ces<br />
valeurs peuvent être celles d‟un passé plus ou moins lointain, elles peuvent être<br />
actuelles ou elles peuvent être nouvelles.<br />
Soulignons le fait que l‟idéologie est un des lieux principaux où se créent les<br />
valeurs nouvelles. Souvent diffuses ou latentes, ces nouvelles valeurs trouvent<br />
finalement leur formulation dans un schéma idéologique qui les explicite” 10 . A<br />
ideologia inscreve-se, pois, na dimensão cultural e define-se em função de<br />
vários elementos, designadamente <strong>do</strong>s valores, das situações históricas ou <strong>do</strong>s<br />
diferentes grupos. A cultura é, deste mo<strong>do</strong>, apreendida e partilhada por um<br />
conjunto de pessoas e constitui-as, de forma objectiva e simbólica, em<br />
colectividade distinta 11 .<br />
Ora, os valores participam também de uma dupla dimensão já que, numa<br />
perspectiva relacional, articulam, através <strong>do</strong> que é desejável, sujeito e objecto.<br />
Como refere L. Lavelle, “Nul ne peut mettre en <strong>do</strong>ute, semble-t-il, la liaison<br />
entre la valeur et le désir. […] Car on peut dire d‟une chose qu‟elle est tout ce<br />
sur quoi quelque désir aspire à se poser. […] De telle sorte que l‟on comprend<br />
sans peine comment on a pu identifier la valeur avec la désirabilité” 12 .<br />
Por outro la<strong>do</strong>, e também de mo<strong>do</strong> dual, apresentam uma dimensão ideal,<br />
virtual ou paradigmática, basta para tal pensar em valores como o Bem, a<br />
Justiça ou a Felicidade, e isso não invalida que se manifestem ou concretizem<br />
na relação que se estabelece com o sujeito (individual ou colectivo), de forma<br />
diferenciada, isto é, relativa 13 . O facto de nessa apreensão se abrangerem novos<br />
aspectos ou elementos não implica que eles deixem de ser subsumíveis a uma<br />
configuração ideal 14 . De mo<strong>do</strong> diferencial, quase diríamos de forma<br />
oposicional, enquanto tensão entre essa bipolaridade, a definição de cada uma<br />
das vertentes exige a presença da outra.
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução 87<br />
Pode, assim, afirmar-se que os valores se exprimem numa dupla dimensão<br />
– as duas perspectivas em que ela se des<strong>do</strong>bra são complementares e copresentes,<br />
uma vez que os valores se configuram nessa relação entre a sua<br />
projecção ideal e a sua manifestação, assumin<strong>do</strong> um carácter relativo segun<strong>do</strong> o<br />
mo<strong>do</strong> como essa relação se define.<br />
Então, ten<strong>do</strong> em conta os diversos elementos aponta<strong>do</strong>s, e seguin<strong>do</strong> a<br />
perspectiva de G. Rocher, os valores apresentam-se como uma determinada<br />
forma de ser ou de agir reconhecida como ideal por uma colectividade<br />
tornan<strong>do</strong>-se, por tal motivo, naquilo que é desejável. Trata-se, pois, de uma<br />
representação da realidade social e orientação <strong>do</strong> seu agir.<br />
A concepção relacional ou posicional <strong>do</strong> valor permite, deste mo<strong>do</strong>, a sua<br />
manifestação como actividade simultaneamente participante e cria<strong>do</strong>ra,<br />
concretizan<strong>do</strong>-se na acção. Ora, a presença de uma vontade de adesão, como<br />
desejo, por parte <strong>do</strong> sujeito equivale a um reconhecimento intersubjectivo,<br />
fundamento dessa adesão que, apesar de tu<strong>do</strong>, não deixa de ser construída e<br />
elaborada através das próprias relações entre os indivíduos, desenhan<strong>do</strong> uma<br />
identidade colectiva. Os valores constituem-se como objecto dessas relações,<br />
adquirem aí a sua configuração e representam o horizonte <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> em que se<br />
projecta a acção comum, inscreven<strong>do</strong>-se nos discursos da própria sociedade.<br />
É precisamente para se poder aceder aos valores presentes no discurso da<br />
língua de partida, reconstituin<strong>do</strong>-os na língua de chegada, que se recorre a um<br />
modelo teórico capaz de funcionar como ponto de articulação entre as duas<br />
vertentes.<br />
Através da determinação <strong>do</strong>s princípios argumentativos, topoi, convoca<strong>do</strong>s<br />
ao longo <strong>do</strong> texto e das configurações que se estabelecem entre os diferentes<br />
enuncia<strong>do</strong>res, será possível traçar o recorte ideológico <strong>do</strong> discurso.<br />
Entendemos que estas configurações poderão ser de vária ordem, surgin<strong>do</strong><br />
como fundamentais as relações de associação, de conexão e de oposição. Se<br />
considerarmos o contexto económico de âmbito empresarial, podemos referir a<br />
título de exemplo de relações de associação, desenvolvimento e crescimento económicos,<br />
globalização e competitividade, qualidade e reconhecimento. Como exemplos de relações<br />
de conexão, lucro mas protecção <strong>do</strong> ambiente, tradição mas inovação, dificuldades mas<br />
recuperação, asseguran<strong>do</strong> o conector “mas” a articulação entre os <strong>do</strong>is valores. E<br />
finalmente, como relações de oposição, podemos referir, fusão/não fusão,<br />
inércia/acção, tradição/inovação 15 . Consideramos que estes diferentes tipos de<br />
relação vão também precisan<strong>do</strong>, ao longo de to<strong>do</strong> o discurso, certas linhas de<br />
orientação ideológica, remeten<strong>do</strong>-nos para um quadro fundamental, desenha<strong>do</strong><br />
num recorte de identidades e diferenças.
88<br />
Traduzir<br />
Poderemos agora retomar a noção de valor de acor<strong>do</strong> com as noções que<br />
apresentámos e estabelecer um cruzamento com o plano semiótico. Os valores<br />
apresentam-se como virtuais, situa<strong>do</strong>s num eixo paradigmático, actualizan<strong>do</strong>-se<br />
na actividade discursiva. Ao seguirmos como méto<strong>do</strong> de análise a perspectiva<br />
de O. Ducrot, surge-nos como fundamental a relação argumentativa. É nos<br />
princípios argumentativos que esta se inscreve, enquanto apreensão<br />
argumentativa e, logo, preferencial, positiva ou negativa, de um da<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de<br />
coisas, ou seja, como eixo entre um sujeito e objecto.<br />
Estabelece-se, pois, uma afirmação enquanto desejo e adesão a um valor<br />
ou, pelo contrário, como atitude de recusa, face ao desvalor ou antivalor, de<br />
acor<strong>do</strong> com o princípio convoca<strong>do</strong> e com a atitude <strong>do</strong> locutor – atende-se,<br />
portanto, a uma relação accional entre sujeito e objecto.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, e como vimos, no quadro de uma teoria polifónica da<br />
enunciação, estamos na presença de uma pluralidade de vozes, contrarian<strong>do</strong>-se<br />
uma visão monolítica <strong>do</strong> sujeito falante. A presença de vários enuncia<strong>do</strong>res<br />
traduz-se numa visão multifacetada, constituída pela afirmação de vozes<br />
discordantes, mais ou menos distanciadas, e objecto de atitudes diversas por<br />
parte <strong>do</strong> locutor. Deste mo<strong>do</strong>, a convocação de topoi no discurso segue o<br />
agenciamento estabeleci<strong>do</strong> pelo locutor, configura<strong>do</strong> como ideólogo,<br />
constituin<strong>do</strong>-se, assim, uma decisão de convocação de valores a partir da<br />
própria decisão <strong>do</strong> locutor que define ou recorta o quadro ideológico.<br />
Vimos igualmente que a concepção argumentativa da língua, que considera<br />
a argumentação inscrita nas estruturas linguísticas, estabelece uma distância<br />
relativamente ao mun<strong>do</strong> referencial, que é apreendi<strong>do</strong> argumentativamente,<br />
assinalan<strong>do</strong>-se, nessas várias apreensões, relações de identidade e de diferença.<br />
Ora, para que a pluralidade de sujeitos se possa constituir como comunidade,<br />
torna-se fundamental a negociação dessa distância ou diferença através de uma<br />
vertente argumentativa que adquire uma projecção accional. O sujeito dialógico<br />
é, assim, produto de uma negociação constante 16 .<br />
A convocação de princípios argumentativos diversifica<strong>do</strong>s coincide, então,<br />
com quadros ideológicos diversos, por vezes diametralmente opostos, que<br />
afirmam a sua identidade nessa alteridade ou diferença e que se confrontam e<br />
modificam, ao longo da sequência discursiva, na própria evolução <strong>do</strong>s topoi<br />
convoca<strong>do</strong>s. Estes ora se aproximam, ora se distanciam de um ponto de<br />
equilíbrio 17 , que poderemos considerar como ponto de mediação ética entre os<br />
topoi presentes, num processo de negociação, contínuo e implícito, permitin<strong>do</strong> a<br />
re-actualização da geografia na linha <strong>do</strong> horizonte <strong>do</strong> universo valorativo. Deste<br />
mo<strong>do</strong>, na direcção argumentativa <strong>do</strong> discurso, traçada pela correlação <strong>do</strong>s
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução 89<br />
elementos atrás referi<strong>do</strong>s, encontramos a respectiva orientação ou direcção<br />
ideológica, assinalada pelos topoi.<br />
O tradutor/intérprete pode assim chegar a uma equivalência semântica e<br />
ideológica, no plano intercultural, que sempre se inscreve na prática tradutiva,<br />
constituin<strong>do</strong>-se a análise <strong>do</strong> discurso, segun<strong>do</strong> esta perspectiva, como um<br />
instrumento váli<strong>do</strong> e eficaz para o seu trabalho.<br />
________<br />
1 A Linguagem, a Verdade e o Poder, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para<br />
a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e da Tecnologia, 2002, p. 24.<br />
2 Veja-se a este propósito a concepção de T. van Dijk enquanto interface entre<br />
ideologia e discurso.<br />
3 Acerca da relação entre “os elementos e estruturas da comunicação com os<br />
elementos e estruturas sociais”, ver A. Alves, “Argumentação e análise <strong>do</strong> discurso na<br />
perspectiva de Oswald Ducrot”, Revista de Comunicação e Linguagens, Maio 2001, nº 29,<br />
Lisboa, Relógio D‟Água Editores, pp. 117-35.<br />
4 Cf. O. Ducrot, “Esquisse d‟une théorie polyphonique de l‟énonciation”, in Le<br />
Dire et le Dit, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984, pp. 171-233.<br />
5 A. Reboul, J. Moeschler, Dictionnaire Encyclopédique de Pragmatique, Paris, Editions<br />
du Seuil, 1994, p. 326. O negrito é da autora.<br />
6 Cf. O. Ducrot, “Esquisse d‟une théorie polyphonique de l‟énonciation”, pp. 215-<br />
17.<br />
7 Cf. O. Ducrot, “Topoї et formes topiques”, in J. C. Anscombre [et al.], Théorie des<br />
Topoї, Paris, Éditions Kimé, 1995, pp. 86-7.<br />
8 Argumentação e análise <strong>do</strong> discurso na perspectiva de Oswald Ducrot, p. 132. O<br />
itálico é <strong>do</strong> autor.<br />
9 A propósito das diferentes acepções acerca da ideologia e <strong>do</strong> seu carácter dual,<br />
ver A. Alves, Presse Régionale et Émigration, Louvain-La-Neuve, Cabay, Libraire Éditeur,<br />
1984, pp. 53-62.<br />
10 Introduction à la Sociologie, Vol. 3, Paris, Éditions HMH, 1968b, p. 90.<br />
11 Cf. G. Rocher, Introduction à la sociologie, Vol. 1, Paris, Éditions HMH, 1968a, p.<br />
111. O itálico é <strong>do</strong> autor.<br />
12 Traité des Valeurs, Tome premier, Paris, P.U.F., 1951, p. 197. O itálico é <strong>do</strong><br />
autor.<br />
13 A propósito da dimensão ideal <strong>do</strong> valor e da sua manifestação tangível, ver A.<br />
Alves, Presse régionale..., 1984, p. 66.<br />
14 De facto, a concepção que possuímos hoje da Justiça é distinta da que<br />
imperava, por exemplo, no séc. XVIII. Podemos até admitir a coexistência, numa única<br />
sociedade, ou em sociedades diferentes, de actualizações ou concretizações opostas,
90<br />
Traduzir<br />
inscritas em universos ideológicos diferencia<strong>do</strong>s e, no entanto, subsumíveis a um único<br />
valor virtual ou paradigmático.<br />
15 Escolhemos propositadamente os mesmos valores de inovação e de tradição<br />
apenas para sublinhar que o diferente agenciamento de enuncia<strong>do</strong>res e a respectiva<br />
posição <strong>do</strong> locutor podem constituí-los em relações diversas; isto é, podem ser<br />
equaciona<strong>do</strong>s de mo<strong>do</strong> antagónico, no quadro de uma relação de oposição, de acor<strong>do</strong><br />
com este último exemplo, ou de mo<strong>do</strong> complementar, sen<strong>do</strong> inseri<strong>do</strong>s, neste caso,<br />
numa relação de conexão definida pelo conector.<br />
16 Cf. J. M. O. Mendes, “O desafio das identidades”, in Globalização – Fatalidade ou<br />
utopia?, B. de S. Santos (Org.), <strong>Porto</strong>, Ed. Afrontamento, 2001, pp. 489-523.<br />
17 A propósito da noção de fronteira como figura de mediação, ver A. S. Ribeiro,<br />
“A retórica <strong>do</strong>s limites. Notas sobre o conceito de fronteira”, in Globalização – Fatalidade<br />
ou utopia?, B. de S. Santos (Org.), <strong>Porto</strong>, Ed. Afrontamento, 2001, pp. 463-88.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
ALVES, A., Presse régionale et émigration, Louvain-La-Neuve, Cabay, Libraire Éditeur,<br />
1984.<br />
––––– , A., “Argumentação e análise <strong>do</strong> discurso na perspectiva de Oswald<br />
Ducrot”, Revista de Comunicação e Linguagens, Maio 2001, nº 29, Lisboa, Relógio D‟Água<br />
Editores, pp. 117-135.<br />
DUCROT, O., “Esquisse d‟une théorie polyphonique de l‟énonciation”, in Le dire et<br />
le dit, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984, pp. 171-233.<br />
–––––, “Topoї et formes topiques”, in J. C. Anscombre [et al.], Théorie des Topoї,<br />
Paris, Éditions Kimé, 1995, pp. 85-99.<br />
LAVELLE, L., Traité des valeurs, Tome premier, Paris, P.U.F., 1951.<br />
MARTINS, M. de L., A linguagem, a verdade e o poder, Fundação Calouste Gulbenkian,<br />
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e da Tecnologia, 2002.<br />
MENDES, J. M. O., “O desafio das identidades”, in Globalização – Fatalidade ou<br />
utopia?, B. de S. Santos (Org.), <strong>Porto</strong>, Ed. Afrontamento, 2001, pp. 489-523.<br />
MOESCHLER, J.; A. Reboul, Dictionnaire Encyclopédique de Pragmatique, Paris, Editions<br />
du Seuil, 1994.<br />
RIBEIRO, A. S., “A retórica <strong>do</strong>s limites. Notas sobre o conceito de fronteira”, in<br />
Globalização – Fatalidade ou utopia?, B. de S. Santos (Org.), <strong>Porto</strong>, Ed. Afrontamento,<br />
2001, pp. 463-488.<br />
ROCHER, G., Introduction à la sociologie, Vol. 1, Paris, Éditions HMH, 1968a.<br />
––––– , Introduction à la sociologie, Vol. 3, Paris, Éditions HMH, 1968b.
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução 91
traduções
94<br />
Traduções<br />
CONSOLAÇÃO TÉCNICA<br />
Michel Houellebecq<br />
CONSOLATION TECHNIQUE, 2002<br />
Não gosto de mim. Sinto pouca simpatia e ainda menos estima por mim<br />
mesmo; aliás, não me interesso muito por mim próprio. Há já muito tempo que<br />
conheço as minhas principais características, e acabei por me cansar delas.<br />
Quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente, jovem ainda, falava de mim, pensava em mim, estava<br />
como que cheio de mim próprio; tal já não acontece. Abstraí-me <strong>do</strong>s meus<br />
pensamentos, e a simples perspectiva de ter que contar uma história pessoal<br />
mergulha-me num tédio próximo da catalepsia. Quan<strong>do</strong> a isso sou<br />
absolutamente obriga<strong>do</strong>, minto.<br />
No entanto, para<strong>do</strong>xalmente, nunca me arrependi de me ter reproduzi<strong>do</strong>.<br />
Pode mesmo dizer-se que amo o meu filho, e que o amo ainda mais, sempre<br />
que nele reconheço a marca <strong>do</strong>s meus próprios defeitos. Vejo como eles se<br />
manifestam, ao longo <strong>do</strong> tempo, com um determinismo implacável, e rejubilo.<br />
Alegro-me, sem pu<strong>do</strong>r, ao ver repetirem-se e, por isso mesmo, eternizarem-se,<br />
características pessoais que nada têm de especialmente interessante; que são até,<br />
não raras vezes, desprezíveis; que, na realidade, não têm qualquer outro mérito<br />
senão o facto de serem as minhas; aliás, nem sequer são realmente minhas.<br />
Estou perfeitamente consciente de que algumas foram copiadas, tal e qual, da<br />
personalidade <strong>do</strong> meu pai, esse estúpi<strong>do</strong> ignóbil. Mas, estranhamente, isso não<br />
afecta em nada a minha alegria. Esta alegria é mais <strong>do</strong> que egoísmo; é mais<br />
profunda, mais indiscutível. Tal como um volume é mais <strong>do</strong> que a sua<br />
projecção sobre uma superfície plana e um corpo vivo é mais <strong>do</strong> que a sua<br />
sombra.<br />
Pelo contrário, o que me entristece no meu filho é vê-lo manifestar<br />
(Influência da mãe? Diferença de gerações? Pura individualidade?) os traços de<br />
uma personalidade autónoma, na qual não me revejo de forma alguma, que me<br />
é estranha. Longe de me sentir fascina<strong>do</strong>, apercebo-me de que não deixarei<br />
senão uma imagem incompleta e enfraquecida de mim próprio; por breves<br />
segun<strong>do</strong>s, sinto mais claramente o cheiro a morte. E, posso confirmá-lo: a<br />
morte tresanda.<br />
A Filosofia Ocidental favorece pouco a expressão de tais sentimentos; eles<br />
não deixam espaço ao progresso, à liberdade, ao individualismo, ao devir; eles
Michel Houellebecq 95<br />
não visam senão a eterna e imbecil repetição <strong>do</strong> mesmo. De mais a mais, estes<br />
sentimentos nada têm de original; eles são partilha<strong>do</strong>s por quase toda a<br />
Humanidade, e mesmo pela maior parte <strong>do</strong> reino animal; não são mais <strong>do</strong> que a<br />
memória sempre activa de um instinto biológico esmaga<strong>do</strong>r. A Filosofia<br />
Ocidental é um mecanismo de adestramento, longo, paciente e cruel, que tem<br />
por objectivo persuadir-nos de algumas ideias falsas. A primeira, a de que<br />
devemos respeitar os outros, pelo facto de serem diferentes de nós; a segunda, a<br />
de que ganhamos alguma coisa com a morte.<br />
Actualmente, graças à tecnologia ocidental, este verniz de conveniências<br />
está rapidamente a estalar. Como é óbvio, far-me-ei clonar, desde que possível;<br />
como é óbvio, to<strong>do</strong>s se farão clonar, desde que possível. Irei às Bahamas, à<br />
Nova Zelândia ou às ilhas Caimão; pagarei o preço que for preciso (nunca os<br />
imperativos morais nem financeiros tiveram um peso significativo, se<br />
compara<strong>do</strong>s com os da reprodução). Terei provavelmente <strong>do</strong>is ou três clones,<br />
da mesma forma que se tem <strong>do</strong>is ou três filhos; entre os seus nascimentos,<br />
respeitarei um intervalo adequa<strong>do</strong> (nem demasia<strong>do</strong> próximos, nem demasia<strong>do</strong><br />
espaça<strong>do</strong>s); homem já maduro, comportar-me-ei como um pai responsável.<br />
Assegurarei aos meus clones uma boa educação; depois, morrerei. Morrerei sem<br />
prazer, porque não desejo morrer; no entanto, até prova em contrário, a isso<br />
sou obriga<strong>do</strong>. Através <strong>do</strong>s meus clones, terei atingi<strong>do</strong> uma certa forma de<br />
sobrevivência – de mo<strong>do</strong> algum suficiente, mas superior àquela que me teriam<br />
trazi<strong>do</strong> os filhos. Até à data, é o máximo que a tecnologia ocidental me pode<br />
oferecer.<br />
No preciso momento em que escrevo estas linhas, é-me impossível prever<br />
se os meus clones nascerão fora <strong>do</strong> ventre de uma mulher. O que ao profano<br />
parecia tecnicamente simples (as trocas nutritivas pelo intermediário da placenta<br />
encerram à partida um mistério menor <strong>do</strong> que o que rodeia o acto da<br />
fecundação) revela-se o mais difícil de reproduzir. Se houver um progresso<br />
significativo da técnica, os meus futuros filhos, os meus clones, viverão o início<br />
da sua existência num frasco; isso entristece-me um pouco. Eu a<strong>do</strong>ro a rata das<br />
mulheres, sinto-me feliz dentro <strong>do</strong> seu ventre, na suavidade elástica da sua<br />
vagina. Compreen<strong>do</strong> os motivos de segurança, os imperativos técnicos;<br />
compreen<strong>do</strong> as razões que levarão progressivamente a uma gestação in vitro;<br />
apenas tomo a liberdade, a este propósito, de manifestar uma leve nostalgia.<br />
Terão eles, os meus queridinhos nasci<strong>do</strong>s tão longe dela, terão ainda o gosto da<br />
rata? Espero que sim, por eles, espero-o de to<strong>do</strong> o meu coração. Há imensas<br />
alegrias neste mun<strong>do</strong>, mas há poucos prazeres – e tão poucos os que nenhum<br />
mal fazem. Fim <strong>do</strong> parêntesis humanista.
96<br />
Traduções<br />
Se eles se desenvolverem dentro de um frasco, os meus clones nascerão,<br />
evidentemente, sem umbigo. Desconheço quem terá utiliza<strong>do</strong> pela primeira<br />
vez, com senti<strong>do</strong> depreciativo, este conceito de “literatura umbilicalista”; o que<br />
sei é que este chavão fácil sempre me desagra<strong>do</strong>u. Qual seria o interesse de uma<br />
literatura que pretendesse falar da humanidade excluin<strong>do</strong> qualquer consideração<br />
pessoal? Hã? Os seres humanos são mais pareci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que julgam, na sua<br />
pretensão cómica; é muito mais fácil <strong>do</strong> que imaginamos atingir o universal,<br />
falan<strong>do</strong> de si. Aqui reside um segun<strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo: falar de si é uma actividade<br />
fastidiosa, e mesmo repugnante; escrever sobre si é, na literatura, a única coisa<br />
que tem valor, a tal ponto que avaliamos – habitualmente e com precisão – o<br />
valor <strong>do</strong>s livros pelo nível de envolvimento pessoal <strong>do</strong> seu autor. É grotesco, é<br />
mesmo de uma indiscrição demencial, mas é assim.<br />
Ao escrever estas linhas, observo, efectivamente, e na prática, o meu<br />
umbigo. Normalmente, é raro pensar nele, e ainda bem que assim é. Esta prega<br />
de carne traz consigo a marca evidente <strong>do</strong> corte de um laço prematuro; é a<br />
lembrança <strong>do</strong> corte da tesoura que, na falta de qualquer outro processo, me<br />
projectou para o mun<strong>do</strong>; intima<strong>do</strong> a desenrascar-me sozinho. Tal como eu,<br />
você não escapará a esta lembrança; velho, muito velho mesmo, conservará<br />
sempre intacto, no centro <strong>do</strong> ventre, o vestígio desse corte. Através deste<br />
orifício mal fecha<strong>do</strong>, os seus órgãos podem, a qualquer instante, evadir-se e<br />
apodrecer na atmosfera. Poderá, a qualquer momento, esvaziar-se das suas<br />
entranhas, em plena luz <strong>do</strong> dia; e agonizar como um peixe, abati<strong>do</strong> com um<br />
pontapé em plena espinha <strong>do</strong>rsal. Não será nem o primeiro, nem sequer o mais<br />
ilustre. Lembre-se das palavras <strong>do</strong> poeta:<br />
O cadáver de Deus<br />
Retorce-se aos olhos meus<br />
Qual peixe trazi<strong>do</strong> pela maré<br />
Que desfazemos ao pontapé<br />
Chegareis brevemente, crianças sem consequência. Sereis como deuses – e<br />
isso não será suficiente. Os vossos clones não terão umbigo, mas terão uma<br />
“literatura umbilicalista”. Também vós sereis “umbilicalistas”; sereis mortais. O<br />
vosso umbigo encher-se-á de porcaria, e tu<strong>do</strong> será dito. Lançaremos terra sobre<br />
a vossa cara.<br />
Trad. de Elisabete Teixeira da Cunha
A BALANÇA DOS BALEK<br />
Heinrich Böll<br />
DIE WAAGE DER BALEKS, 1958<br />
Na terra <strong>do</strong> meu avô, a maioria das pessoas vivia <strong>do</strong> trabalho nas fiações<br />
de linho. Há cinco gerações que respiravam o pó que saía <strong>do</strong>s caules parti<strong>do</strong>s e<br />
se deixavam matar lentamente; gerações pacientes e alegres que comiam queijo<br />
de cabra e batatas e que, por vezes, matavam um coelho. À noite, fiavam e<br />
tricotavam nas suas casas, cantavam, bebiam chá de hortelã e eram felizes.<br />
Durante o dia amaciavam o linho em máquinas antigas, à mercê <strong>do</strong> pó e <strong>do</strong><br />
calor que saíam <strong>do</strong>s fornos. Nas suas casas existia uma única cama em forma de<br />
armário, reservada aos pais e os filhos <strong>do</strong>rmiam em bancos à sua volta. Pela<br />
manhã, as casas cheiravam muito a sopa. Aos <strong>do</strong>mingos, comia-se puré e as<br />
caras <strong>do</strong>s filhos ficavam rosadas de alegria quan<strong>do</strong>, nos dias de festa, o café de<br />
bolota preto ia-se tingin<strong>do</strong>, cada vez mais claro, com o leite que as mães<br />
despejavam, com um sorriso, nas suas canecas de café.<br />
Os pais iam ce<strong>do</strong> para o trabalho e a lida da casa ficava entregue às<br />
crianças: eram elas que varriam, arrumavam, lavavam a louça e descascavam<br />
batatas, fruto amarelo e precioso, cujas cascas finas tinham que apresentar aos<br />
pais para dissipar qualquer dúvida de desperdício ou leviandade.<br />
Quan<strong>do</strong> as crianças chegavam da escola, tinham que ir para os bosques e,<br />
conforme a estação <strong>do</strong> ano, apanhavam cogumelos e ervas: aspérula e tomilho,<br />
cominhos e hortelã, também dedaleira e, no Verão, quan<strong>do</strong> tinham ceifa<strong>do</strong> o<br />
feno <strong>do</strong>s campos, apanhavam as flores. Recebiam um pfennig por cada quilo de<br />
flores campestres, que eram vendidas nas farmácias da cidade, a senhoras<br />
nervosas, a vinte pfennig o quilo. Os preciosos cogumelos rendiam vinte pfennig o<br />
quilo e eram vendi<strong>do</strong>s nas lojas da cidade a um marco e vinte. No Outono,<br />
quan<strong>do</strong> a humidade fazia sair os cogumelos da terra, as crianças embrenhavamse<br />
mais na escuridão verde <strong>do</strong>s bosques e quase todas as famílias tinham os seus<br />
lugares para apanhar cogumelos, lugares esses que eram segreda<strong>do</strong>s de geração<br />
em geração.<br />
Os bosques, bem como as fiações de algodão, pertenciam aos Balek que<br />
tinham um castelo na terra <strong>do</strong> meu avô. A <strong>do</strong>na da casa tinha, ao la<strong>do</strong> da<br />
cozinha, uma pequena loja onde eram pesa<strong>do</strong>s e pagos os cogumelos, as ervas e<br />
as flores <strong>do</strong> campo. Era aí que estava, em cima de uma mesa, a grande balança
98<br />
Traduções<br />
<strong>do</strong>s Balek, um objecto antiquíssimo, cheia de arabescos e pintada a bronze<br />
<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>, em frente à qual já os avós <strong>do</strong>s meus avós tinham esta<strong>do</strong>, com os<br />
cestos de cogumelos e os sacos de papel das flores campestres nas mãos sujas,<br />
ansiosos por verem quantos pesos a senhora Balek tinha que pôr na balança até<br />
que o ponteiro oscilante parasse mesmo em cima <strong>do</strong> traço preto, aquela linha<br />
fina da justiça que tinha de ser repintada to<strong>do</strong>s os anos. A senhora Balek, então,<br />
pegava no grande livro encaderna<strong>do</strong> a couro, registava o peso e pagava pfennig<br />
ou groschen e, muito raramente, um marco. Quan<strong>do</strong> o meu avô era criança existia<br />
lá um frasco grande com rebuça<strong>do</strong>s amargos, que custavam um marco o quilo,<br />
e a Senhora Balek daquela altura, quan<strong>do</strong> estava bem disposta, metia lá a mão e<br />
dava um rebuça<strong>do</strong> a cada uma das crianças. As caras das crianças ficavam<br />
rosadas de alegria, tal como quan<strong>do</strong> a mãe lhes punha, em dias de festa, leite no<br />
café, leite que tingia o café de claro, cada vez de mais claro, até ficar tão claro<br />
como as tranças das raparigas.<br />
Uma das leis ditada à aldeia pelos Balek dizia: ninguém pode ter uma<br />
balança em casa. Esta lei já era tão antiga que ninguém questionava como e<br />
quan<strong>do</strong> tinha surgi<strong>do</strong>. Tinha que ser cumprida, pois quem a desrespeitasse era<br />
despedi<strong>do</strong> da fiação e nunca mais lhe compravam um cogumelo, um ramo de<br />
tomilho ou umas flores <strong>do</strong> campo. O poder <strong>do</strong>s Balek era tão grande que<br />
mesmo nas aldeias vizinhas ninguém daria trabalho ao infractor, nem lhe<br />
compraria as ervas <strong>do</strong> bosque. Mas desde a época em que os avós <strong>do</strong> meu avô,<br />
quan<strong>do</strong> crianças pequenas, colhiam e vendiam cogumelos, quer para temperar<br />
os assa<strong>do</strong>s das pessoas ricas de Praga, quer para cozê-los nas empadas, ninguém<br />
pensava em quebrar esta lei. Para medir a farinha existia a rasa, os ovos podiam<br />
ser conta<strong>do</strong>s, o linho fia<strong>do</strong> era medi<strong>do</strong> em varas e, assim como assim, a balança<br />
<strong>do</strong>s Balek, antiga e decorada a bronze <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>, não aparentava poder não estar<br />
certa. Já cinco gerações tinham confia<strong>do</strong> ao oscilante ponteiro preto o que, na<br />
sua azáfama infantil, colhiam nos bosques.<br />
Embora houvesse, entre essas pessoas tranquilas, algumas que<br />
desprezavam a lei – caça<strong>do</strong>res furtivos que cobiçavam ganhar numa noite mais<br />
<strong>do</strong> que num mês inteiro a trabalhar na fiação – parecia que mesmo nenhum<br />
deles alguma vez se lembrara de comprar ou construir uma balança. O meu avô<br />
foi o primeiro temerário a testar a justiça <strong>do</strong>s Balek, que moravam no castelo,<br />
que tinham <strong>do</strong>is coches e que costumavam pagar a um <strong>do</strong>s rapazes da aldeia os<br />
estu<strong>do</strong>s de Teologia, no seminário de Praga. O padre ia a casa <strong>do</strong>s Balek, todas<br />
as quartas-feiras, para jogar tarock. Pelo ano novo, eram visita<strong>do</strong>s pelo juíz da
Heinrich Böll 99<br />
comarca, com o brasão real grava<strong>do</strong> no coche. O Impera<strong>do</strong>r, pelo ano novo de<br />
1900, atribuiu-lhes o título de nobreza.<br />
O meu avô era diligente e esperto. Penetrava mais fun<strong>do</strong> no bosque <strong>do</strong><br />
que as crianças anteriores da sua família. Embrenhava-se na densidão <strong>do</strong><br />
bosque onde, de acor<strong>do</strong> com a lenda, vivia Bilgan, o gigante que vigiava o<br />
refúgio <strong>do</strong>s Balderer. Mas o meu avô não tinha me<strong>do</strong> <strong>do</strong> Bilgan. Já em rapaz se<br />
entranhava profundamente no mato espesso e trazia muitos cogumelos e até<br />
trufas, as quais a senhora Balek pagava a 30 pfennig por meio quilo. O meu avô<br />
anotava nas costas de um calendário tu<strong>do</strong> o que vendia aos Balek, cada meio<br />
quilo de cogumelos, cada grama de tomilho e, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> direito, escrevia, na sua<br />
letra de criança, quanto tinha recebi<strong>do</strong>. Dos sete aos <strong>do</strong>ze anos, ele apontava<br />
cada pfennig que recebia. Quan<strong>do</strong> tinha <strong>do</strong>ze anos, no ano de 1900, os Balek<br />
ofereceram a cada família da aldeia 125 gramas de café verdadeiro, daquele que<br />
vem <strong>do</strong> Brasil, porque o Impera<strong>do</strong>r lhes tinha conferi<strong>do</strong> um título de nobreza.<br />
Também ofereceram cerveja e tabaco aos homens e no castelo foi dada uma<br />
grande festa. Muitos coches estavam na alameda <strong>do</strong>s choupos, que ia <strong>do</strong> portão<br />
até ao castelo.<br />
Mas já no dia anterior à grande festa fora distribuí<strong>do</strong> o café na loja em que<br />
se encontrava, há quase cem anos, a balança <strong>do</strong>s Balek, que agora se chamavam<br />
Balek de Bilgan, porque, de acor<strong>do</strong> com a lenda Bilgan, o Gigante tinha um<br />
castelo onde agora estavam os edifícios <strong>do</strong>s Balek.<br />
O meu avô contou-me várias vezes que foi lá no fim da escola para ir<br />
buscar o café para quatro famílias: para os Cech, os Weidler, os Vohla e para a<br />
sua própria família, os Brücher. Era a véspera da passagem de ano. As casas<br />
tinham que ser decoradas, os bolos tinham que ser feitos e, por isso, não<br />
queriam dispensar quatro rapazes para irem to<strong>do</strong>s ao castelo buscar 125 gramas<br />
de café cada um.<br />
E assim, o meu avô estava senta<strong>do</strong> no pequeno e estreito banco de<br />
madeira na lojinha enquanto Gertrud, a empregada, contava os quatro pacotes<br />
de 125 gramas de café e olhava para a balança, em cujo prato esquer<strong>do</strong> tinha<br />
fica<strong>do</strong> o peso de meio quilo. A Sra. Balek de Bilgan estava ocupada com os<br />
preparativos da festa. Quan<strong>do</strong> a Gertrud quis ir ao frasco <strong>do</strong>s rebuça<strong>do</strong>s<br />
amargos, para dar um ao meu avô, verificou que este estava vazio; o frasco era<br />
cheio to<strong>do</strong>s os anos e levava um quilo, que equivalia a um marco.<br />
A Gertrud sorriu e disse:<br />
– Espera que eu vou buscar os novos.<br />
O meu avô ficou com os quatro pacotes de 125 gramas de café, que<br />
tinham si<strong>do</strong> embala<strong>do</strong>s e sela<strong>do</strong>s na fábrica, em frente à balança na qual alguém
100<br />
Traduções<br />
tinha deixa<strong>do</strong> ficar o peso de meio quilo. O meu avô pegou nos quatro pacotes<br />
de café, pousou-os no prato vazio da balança e o seu coração bateu com muita<br />
força quan<strong>do</strong> viu que o ponteiro preto da justiça ficou para<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> traço, ou seja, o prato com o peso de meio quilo ficou em baixo e o meio<br />
quilo de café bem levanta<strong>do</strong> no ar a baloiçar. O seu coração batia mais forte <strong>do</strong><br />
que se estivesse no bosque deita<strong>do</strong> por trás de uma moita à espera de Bilgan, o<br />
Gigante. Tirou <strong>do</strong> bolso pedrinhas, que sempre trazia consigo para atirar com a<br />
fisga aos pardais que picavam as couves da mãe. Teve que colocar três, quatro,<br />
cinco pedrinhas ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pacotes de café até o prato com o peso de meio<br />
quilo se elevar e o ponteiro ficar finalmente mesmo em cima <strong>do</strong> traço. O meu<br />
avô tirou os pacotes de café da balança e embrulhou as cinco pedrinhas num<br />
pano. A Gertrud regressou com o saco de quilo cheio <strong>do</strong>s rebuça<strong>do</strong>s amargos,<br />
que tinham que chegar para mais um ano, para levar o rosa<strong>do</strong> da alegria à cara<br />
das crianças. Enquanto despejava os rebuça<strong>do</strong>s para dentro <strong>do</strong> frasco, o<br />
rapazote pequeno e páli<strong>do</strong> estava ali como se nada tivesse aconteci<strong>do</strong>. O meu<br />
avô só pegou em três <strong>do</strong>s pacotes e a Gertrud ficou a olhar admirada e<br />
assustada para o rapaz páli<strong>do</strong> que atirou o rebuça<strong>do</strong> para o chão, o calcou e<br />
disse:<br />
– Eu quero falar com a senhora Balek.<br />
– Balek de Bilgan, se faz favor, – disse a Gertrud.<br />
– Muito bem, Senhora Balek de Bilgan.<br />
Mas a Gertrud riu-se dele e ele, na escuridão, regressou à aldeia, levou o<br />
café aos Cech, aos Weidler e aos Vohla e depois disse que ainda tinha que ir ao<br />
padre.<br />
Mas embrenhou-se na noite, com as suas cinco pedrinhas dentro <strong>do</strong> lenço.<br />
Tinha que andar muito até encontrar alguém que tivesse uma balança, que<br />
estivesse autoriza<strong>do</strong> a ter uma. Sabia que nas aldeias Blaugrau e Bernau<br />
ninguém tinha uma balança e atravessou-as até que ao fim de uma caminhada<br />
de duas horas chegou à pequena cidade de Dielheim onde vivia o farmacêutico<br />
Honig. Da casa <strong>do</strong> Honig saía o cheiro a panquecas acabadas de fazer e o hálito<br />
<strong>do</strong> Honig, quan<strong>do</strong> abriu a porta ao rapaz enregela<strong>do</strong>, cheirava a ponche e ele<br />
segurava o charuto húmi<strong>do</strong> entre os lábios finos. Por instantes, segurou as<br />
mãos frias <strong>do</strong> rapaz nas suas e disse:<br />
– E então, os pulmões <strong>do</strong> teu pai pioraram?<br />
– Não, eu não venho buscar medicamentos, eu queria...<br />
O meu avô abriu o lenço, tirou as cinco pedrinhas, estendeu-as ao Sr.<br />
Honig e disse:<br />
– Queria que me pesasse isto.
Heinrich Böll 101<br />
Olhou amedronta<strong>do</strong> para a cara <strong>do</strong> Honig, mas como este não disse nada,<br />
não se zangou e também não perguntou nada, o meu avô disse:<br />
– É o que falta à justiça.<br />
Só agora, ao entrar na casa quente, é que o meu avô se apercebia quão<br />
molha<strong>do</strong>s estavam os seus pés. A neve tinha trespassa<strong>do</strong> os sapatos de fraca<br />
qualidade e, no bosque, os ramos tinham despeja<strong>do</strong> neve, que agora começava a<br />
derreter em cima dele. Estava cansa<strong>do</strong> e esfomea<strong>do</strong> e, de repente, ao lembrar-se<br />
de to<strong>do</strong>s os cogumelos, ervas e plantas que tinham si<strong>do</strong> pesadas na balança à<br />
qual faltavam cinco pedrinhas para a justiça, começou a chorar. Quan<strong>do</strong> o<br />
Honig, a abanar a cabeça, chamou a mulher, o meu avô lembrou-se <strong>do</strong>s<br />
antepassa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s seus pais, os seus avós, que tinham ti<strong>do</strong> de pesar to<strong>do</strong>s os<br />
seus cogumelos e plantas na balança. Sentiu-se invadi<strong>do</strong> por uma enorme onda<br />
de injustiça e começou a chorar ainda mais. Sentou-se, sem ser convida<strong>do</strong> para<br />
tal, num <strong>do</strong>s bancos da casa <strong>do</strong> Honig, e nem reparou na panqueca e na<br />
chávena de café quente que a bon<strong>do</strong>sa e gorda senhora Honig lhe tinha posto à<br />
frente. Só parou de chorar quan<strong>do</strong> o próprio Honig regressou da loja e,<br />
seguran<strong>do</strong> as pedrinhas na mão e abanan<strong>do</strong> a cabeça, disse para a mulher:<br />
– Exactamente 5 decagramas e meio.<br />
O meu avô fez a caminhada de duas horas de volta a casa, levou uma<br />
tareia, fican<strong>do</strong> em silêncio, quan<strong>do</strong> lhe perguntaram pelo café. Não disse uma<br />
única palavra. Durante toda a noite fez contas no papel onde tinha anota<strong>do</strong><br />
tu<strong>do</strong> o que tinha vendi<strong>do</strong> à actual senhora Balek de Bilgan. Quan<strong>do</strong> bateu a<br />
meia-noite, ouviram-se os petar<strong>do</strong>s <strong>do</strong> palácio, a gritaria em toda a aldeia e o<br />
barulho das relas. Toda a família se beijou e abraçou e ele disse no meio <strong>do</strong><br />
silêncio <strong>do</strong> novo ano:<br />
– Os Balek devem-me 18 marcos e 32 pfennig.<br />
Mais uma vez, pensou nas muitas crianças que viviam na aldeia, no seu<br />
irmão Fritz, que tinha apanha<strong>do</strong> muitos cogumelos, na sua irmã Ludmila.<br />
Pensou nas centenas de crianças que tinham apanha<strong>do</strong> cogumelos, ervas e<br />
plantas para os Balek, mas desta vez não chorou e contou tu<strong>do</strong> sobre a sua<br />
descoberta aos pais e irmãos.<br />
Quan<strong>do</strong>, no dia de Ano Novo, os Balek de Bilgan chegaram à igreja para a<br />
missa, já com o novo brasão, onde figurava um gigante aninha<strong>do</strong> por baixo de<br />
um pinheiro, grava<strong>do</strong> a azul e <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> no coche, viram as caras pálidas e duras<br />
das pessoas que olhavam fixamente para eles. Estavam à espera de enfeites na<br />
aldeia, de uma musiquinha pela manhã, de vivas e gritos de alegria, mas quan<strong>do</strong><br />
passaram pela aldeia, esta estava como que aban<strong>do</strong>nada. Na igreja, os<br />
semblantes páli<strong>do</strong>s das pessoas olhavam para eles, caladas e com ódio. Quan<strong>do</strong>
102<br />
Traduções<br />
o padre subiu ao púlpito para fazer a homilía, sentiu o frio das caras<br />
normalmente tão caladas e serenas, pelo que a fez a custo e regressou ao altar, a<br />
pingar suor. Quan<strong>do</strong> os Balek de Bilgan iam a sair da igreja, no fim da missa,<br />
passaram por um corre<strong>do</strong>r de semblantes cala<strong>do</strong>s e páli<strong>do</strong>s. No entanto, a<br />
jovem Senhora Balek de Bilgan parou à frente, junto ao banco das crianças,<br />
procurou a cara <strong>do</strong> meu avô, o pequeno e páli<strong>do</strong> Franz Brücher, e perguntoulhe:<br />
– Porque é que não levaste o café da tua mãe?<br />
O meu avô levantou-se e disse:<br />
– Porque a senhora me deve tanto dinheiro que dava para comprar cinco<br />
quilos de café.<br />
E tirou as cinco pedrinhas <strong>do</strong> bolso, estendeu-as à jovem senhora e disse:<br />
– Tanto quanto isto, 5 decagramas e meio, é o que falta em meio quilo da<br />
sua justiça.<br />
Ainda antes da mulher poder dizer alguma coisa, os homens e mulheres<br />
que estavam na igreja entoaram a canção: “Justiça da Terra, ó Senhor, matoute...”<br />
Enquanto os Balek estavam na igreja, Wilhelm Vohla, o caça<strong>do</strong>r furtivo,<br />
tinha entra<strong>do</strong> na pequena loja, rouba<strong>do</strong> a balança e o livro grande, grosso e<br />
encaderna<strong>do</strong> a couro, no qual estava regista<strong>do</strong> cada quilo de cogumelos, cada<br />
quilo de flores campestres, tu<strong>do</strong> o que os Balek tinham compra<strong>do</strong> na aldeia.<br />
Durante toda a tarde <strong>do</strong> dia de Ano Novo, os homens da aldeia estiveram na<br />
casa <strong>do</strong>s meus bisavôs a fazer contas. Fizeram as contas de um décimo de tu<strong>do</strong><br />
o que tinha si<strong>do</strong> compra<strong>do</strong>, mas quan<strong>do</strong> já tinham feito as contas a muitos<br />
milhares de taler, e ainda não tinham chega<strong>do</strong> ao fim, chegaram os guardas.<br />
Entraram aos tiros e a golpes de baioneta na casa <strong>do</strong> meu bisavô e foram<br />
buscar, à força, a balança e o livro. A irmã <strong>do</strong> meu avô, a pequena Ludmila, foi<br />
morta, alguns homens foram feri<strong>do</strong>s e um <strong>do</strong>s guardas foi apunhala<strong>do</strong> pelo<br />
Wilhelm Vohla, o caça<strong>do</strong>r furtivo.<br />
Não foi só na nossa aldeia que houve desacatos, também em Blaugau e<br />
Bernau, o trabalho nas fiações de linho esteve para<strong>do</strong> durante quase uma<br />
semana. Mas chegaram muitos guardas e os homens e mulheres foram<br />
ameaça<strong>do</strong>s com a prisão. Os Balek obrigaram o padre a mostrar na escola,<br />
publicamente, a balança e a provar que o ponteiro da justiça não estava erra<strong>do</strong>.<br />
Os homens e as mulheres voltaram ao trabalho na fiação de linho. Mas<br />
ninguém foi à escola para ver o padre. Este estava lá completamente só,<br />
impotente e triste, com os seus pesos, a balança e os pacotes de café.
Heinrich Böll 103<br />
As crianças voltaram a apanhar cogumelos, voltaram a apanhar tomilho,<br />
flores e dedaleira, mas to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mingos na igreja, assim que os Balek<br />
entravam, era entoada a canção: “Justiça da Terra, ó Senhor, matou-te...”, até<br />
que o juiz da comarca man<strong>do</strong>u anunciar em todas as aldeias que era proibi<strong>do</strong><br />
cantar essa canção.<br />
Os pais <strong>do</strong> meu avô tiveram de deixar a aldeia, ainda a campa da sua<br />
pequena filha estava fresca. Tornaram-se cesteiros, não paran<strong>do</strong> muito tempo<br />
em lugar nenhum, pois <strong>do</strong>ía-lhes ver como, em la<strong>do</strong> algum, o ponteiro da<br />
justiça batia certo. Atrás da carroça, que rolava lentamente pelas estradas rurais,<br />
puxavam a magra cabra, e quem passasse pela carroça por vezes ouvia como lá<br />
dentro se cantava: “Justiça da Terra, ó Senhor, matou-te...”. E quem os quisesse<br />
escutar podia ouvir a história <strong>do</strong>s Balek de Bilgan a cuja justiça faltava um<br />
décimo. Mas quase ninguém os escutava.<br />
Trad. de Álvaro Ferreira e Paula Cruz 1<br />
1 Alunos da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />
Tradução Especializada.
PONTO POR PONTO<br />
Ingrid Noll<br />
STICH FÜR STICH,1997<br />
Deve ser de família: a minha avó e a minha mãe bordaram até à exaustão.<br />
Naquele tempo, trabalhos deste género eram leva<strong>do</strong>s a sério e não eram<br />
apelida<strong>do</strong>s, com desprezo, passatempo ou terapia ocupacional. A minha avó<br />
bor<strong>do</strong>u o seu monograma em to<strong>do</strong> o seu enxoval, jogos de cama e atoalha<strong>do</strong>s,<br />
camisas de noite e roupa interior; a minha mãe era mestre em borda<strong>do</strong> inglês,<br />
tu<strong>do</strong> a branco. Talvez por essa razão tenham ambas perdi<strong>do</strong> progressivamente<br />
a visão, apesar <strong>do</strong> meu oftalmologista afirmar que isso não está comprova<strong>do</strong>.<br />
Resta saber se faz algum senti<strong>do</strong> abrir orifícios em toalhas brancas para depois<br />
os bordar ou se é necessário ter um monograma em to<strong>do</strong>s os panos de cozinha.<br />
No que me diz respeito, admito que bor<strong>do</strong> por prazer. E nunca me<br />
contentaria com orifícios brancos ou com monogramas vermelhos –<br />
simplesmente enfa<strong>do</strong>nho. Os borda<strong>do</strong>s têm de ser colori<strong>do</strong>s, cheios de fantasia<br />
e expressivos. Os meus começos foram modestos; com um motivo bordava<br />
ponto de cruz em estamenha: florzinhas em aventais, florzinhas em toalhas,<br />
florzinhas em almofadas. Devo, aliás, admitir que os borda<strong>do</strong>s ficavam um<br />
pouco simples, mas também queri<strong>do</strong>s e alegres e eu, afinal, ainda era muito<br />
jovem.<br />
Depois destes sucessos iniciais, ganhei coragem e aprendi o ponto pé de<br />
flor e o ponto cheio. Cheguei a estar horas a fio em retrosarias a colocar la<strong>do</strong> a<br />
la<strong>do</strong> linhas de retrós coloridas ou de bordar e a fazer combinações. Azul e rosapêssego,<br />
turquesa e amarelo-mel, vermelho-salmão e castanho-chocolate,<br />
pratea<strong>do</strong> e azul escuro, marfim e verde-jade. As minhas fronhas já não eram<br />
lisas nem embelezadas com rosinhas dispersas, mas sim um único mar de<br />
flores.<br />
Mas o expoente máximo é o ponto gobelim. Uma colega jugoslava<br />
mostrou-me um catálogo por onde se poderiam encomendar os motivos de<br />
quadros famosos para depois os transformar – com o trabalho de um ano –<br />
num borda<strong>do</strong> impressionante. Entusiasmei-me. O catálogo também continha<br />
motivos para trabalhos mais pequenos, tais como cobertas para banquinhos e<br />
cruzetas, que se transformavam em presentes encanta<strong>do</strong>res. Desde então,
Ingrid Noll 105<br />
nunca mais tive serões a ver televisão, passeios aos <strong>do</strong>mingos, palavras cruzadas<br />
ou idas ao cinema.<br />
Quan<strong>do</strong> chego a casa <strong>do</strong> emprego, despacho rapidamente as minhas<br />
tarefas <strong>do</strong>mésticas, coloco o meu jantar pré-prepara<strong>do</strong> no micro-ondas e, nos<br />
cinco minutos até o jantar estar aqueci<strong>do</strong>, dispo a roupa <strong>do</strong> trabalho, enfio um<br />
fato de treino e ligo o rádio. Não desperdiço tempo a fazer telefonemas,<br />
compras, leituras de jornais ou visitas à família. Deveres sociais para com<br />
colegas ou familiares, resolvo com um presente no Natal. Quan<strong>do</strong> recebem<br />
capas para livros, pequenos quadros, marca<strong>do</strong>res de livros, almofadas<br />
aromáticas ou abafa<strong>do</strong>res de bule borda<strong>do</strong>s, têm dificuldade em acreditar que<br />
investi tanto tempo na amizade. “Quanto tempo demorou a fazer isto?” é a<br />
pergunta da praxe. Eu registo tu<strong>do</strong>. Conforme o grau de parentesco ou o tipo<br />
de relação com os colegas, conto entre 20 a 400 horas de trabalho. Isto<br />
impressiona. Afirmam que não podem aceitar o meu presente nem retribuí-lo.<br />
No ano seguinte, não devo repetir, tenho de prometer. Eu sorrio<br />
enigmaticamente e digo: “Vamos ver!”.<br />
Provavelmente, nunca teria desenvolvi<strong>do</strong> uma paixão tão grande por<br />
trabalhos manuais, se, aos 17 anos, quan<strong>do</strong> os amigos da minha idade iam nadar<br />
no Verão e dançar no Inverno, não tivesse a<strong>do</strong>eci<strong>do</strong> com hepatite. Tinha de me<br />
curar, ficar em casa e descansar muito. Teria si<strong>do</strong> enfa<strong>do</strong>nho se não tivesse, por<br />
acaso, encontra<strong>do</strong> no cesto de costura da minha mãe um borda<strong>do</strong> que ela tinha<br />
inicia<strong>do</strong>. A minha mãe ficou um pouco admirada por eu mostrar interesse por<br />
jogos de paciência como este; no entanto, aju<strong>do</strong>u-me o suficiente para que esta<br />
primeira peça saísse bastante bem.<br />
De resto, mesmo depois da minha convalescença, ainda fiquei com a saúde<br />
debilitada, por assim dizer um meio quilo de gente, com pouca força e com<br />
dificuldades de relacionamento com os outros. Estudei Contabilidade com<br />
pouco entusiasmo, mas consciente <strong>do</strong>s meus deveres. Pode-se confiar em mim<br />
a cem por cento, algo que é valoriza<strong>do</strong> pelo meu chefe. Para além disso, os<br />
meus colegas sabem que devem respeitar a minha necessidade de sossego e<br />
solidão. No meu gabinete não se entra sem uma razão convincente e muito<br />
menos sem bater à porta. No fun<strong>do</strong>, têm pena de mim porque não tenho<br />
família – mas eu não sinto falta de nada, acreditem ou não. Antes pelo<br />
contrário, seria muito perturba<strong>do</strong>r para os meus serões se não me pudesse<br />
concentrar na minha verdadeira vocação.<br />
Há muito tempo que arrumei os meus primeiros quadros – motivos com<br />
cavalos, gatos e flores <strong>do</strong>s Alpes; quan<strong>do</strong> não estou a bordar um presente<br />
decorativo, mas útil, ocupo-me essencialmente com a arte clássica. Na sala de
106<br />
Traduções<br />
estar, tenho pendura<strong>do</strong>s quadros borda<strong>do</strong>s de Rembrandt, Lukas Cranach,<br />
Miguel Ângelo; no quarto de <strong>do</strong>rmir, Ma<strong>do</strong>nas de quatro séculos; na cozinha,<br />
impressionistas franceses, só para referir alguns. Infelizmente, não tenho espaço<br />
suficiente para tornar to<strong>do</strong>s os meus sonhos realidade. Seria bonito, por<br />
exemplo, pendurar o quadro “Criança com pomba” de Picasso sobre a minha<br />
mesa de jantar, mas aí já se encontram os meninos a comer uvas de Murillo e os<br />
girassóis de Van Gogh.<br />
Aliás, foi com este holandês genial que apliquei, pela primeira vez, a minha<br />
invenção favorita – melhorei as cores originais. To<strong>do</strong>s conhecem girassóis<br />
amarelo-<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, assim como castanho-murchos. Mas azuis são<br />
absolutamente invulgares, e este quadro ganhou muito com a minha ideia.<br />
Entretanto, já utilizei o meu truque mais vezes e consegui, deste mo<strong>do</strong>, efeitos<br />
novos e admiráveis. No entanto, senti algum aborrecimento durante muitos<br />
dias quan<strong>do</strong> soube <strong>do</strong>s cavalos vermelhos de Franz Marc. Não é que este<br />
sujeito teve a mesma ideia que eu, só que mais ce<strong>do</strong>!<br />
Necessitava de um apartamento maior, mas, infelizmente, isso é também<br />
um problema financeiro. Estou a pensar alugar uma garagem, apesar de não<br />
possuir nem carta de condução, nem carro. Mas há qualquer coisa de<br />
espectacular em transformar, com quadros clássicos, quatro paredes brancas<br />
num pequeno museu. Até agora, ainda não encontrei nenhuma garagem que<br />
pudesse satisfazer as minhas necessidades especiais.<br />
Mas um dia aconteceu uma alteração desagradável no meu ritmo de vida<br />
tão regular. Numa manhã de sába<strong>do</strong>, caí no supermerca<strong>do</strong>. Estava calor e eu<br />
estava com pressa, quan<strong>do</strong> subitamente vi tu<strong>do</strong> preto. Só na ambulância<br />
recuperei de novo os senti<strong>do</strong>s. O meu médico, que não consultava há muito<br />
tempo, não diagnosticou nada para além de tensões baixas, mas quis saber<br />
minuciosamente sobre o meu dia-a-dia. Foi aí que, pela primeira vez, tomei<br />
consciência de que não fazia exercício físico. São só alguns passos <strong>do</strong> meu<br />
apartamento até à paragem de autocarro e daí outros tantos até ao meu<br />
escritório. O médico aconselhou-me umas termas.<br />
Em Bad Wörishofen vivi exclusivamente para a minha saúde e não levei –<br />
isto até parece quase masoquista – nem basti<strong>do</strong>r, nem linhas e agulhas. O dia<br />
começava ainda na cama com um saco de palha coloca<strong>do</strong> na nuca tensa. Antes<br />
<strong>do</strong> pequeno-almoço, tinha de andar em água; de me submeter, de seguida, a<br />
uma massagem e de passear duas vezes por dia. Pela primeira vez na minha<br />
vida, desenvolvi um apetite saudável, de mo<strong>do</strong> que ia, às vezes, da parte da<br />
tarde, ao café. Não prestei atenção aos programas culturais porque não estava lá
Ingrid Noll 107<br />
para ouvir concertos e palestras. Além disso, levei o meu rádio e os<br />
ausculta<strong>do</strong>res porque para o meu equilíbrio psíquico é indispensável ouvir as<br />
notícias de hora a hora.<br />
Depois de três dias consciente <strong>do</strong>s meus deveres, sentou-se à minha mesa,<br />
no café sobrelota<strong>do</strong>, uma estranha. Até aí tinha evita<strong>do</strong> ao máximo o contacto<br />
com os <strong>do</strong>entes queixosos da Segurança Social e limitei-me a responder com<br />
monossílabos. Mas a senhora não desistiu da sua tagarelice animada e<br />
combinou para o dia seguinte um passeio comigo. Fomos visitar uma falcoaria.<br />
Com admiração, verifiquei que era diverti<strong>do</strong> fazer algo a <strong>do</strong>is. A partir daí,<br />
nunca mais se repetiram os meus passeios solitários pela natureza.<br />
Como já foi dito, nunca tive necessidade de ter a minha própria família.<br />
No entanto, às vezes gostaria ter ti<strong>do</strong> uma amiga. Nesse aspecto, aliás, eu tinha<br />
um cuida<strong>do</strong> excessivo e observava Gunda Mortensen com atenção reservada.<br />
O tratamento por tu dificilmente se pode anular – histórias e confissões da<br />
nossa infância ou da nossa vida particular deixam de ser propriedade nossa<br />
quan<strong>do</strong> as revelamos abertamente. Mas a Sr.ª Mortensen tinha muito para<br />
contar; nem notava que eu apenas fazia comentários simpáticos e<br />
compreensivos, excluin<strong>do</strong> a minha pessoa e o meu mun<strong>do</strong>. Também nunca fiz<br />
nenhum comentário em relação ao meu grande amor pela arte.<br />
Três semanas passaram rapidamente. A despedida não foi fácil para mim,<br />
apesar de, por outro la<strong>do</strong>, ansiar pela minha casa e pelo meu passatempo.<br />
Sentia-me com saúde e força criativa. A Gunda ficou de me escrever; não vivia<br />
muito longe e talvez um dia pudesse visitar-me. Eu gostaria muito, mas não<br />
queria ser impertinente com um convite directo.<br />
Já o dia-a-dia tinha volta<strong>do</strong> ao seu ritmo, quan<strong>do</strong> um dia recebi uma carta<br />
encanta<strong>do</strong>ra da minha conhecida de Wörishof. Escrevia essencialmente sobre si<br />
própria, a sua vida de viúva, os filhos e o primeiro neto. Era um mun<strong>do</strong> que eu<br />
desconhecia, apesar das minhas colegas me contarem coisas semelhantes.<br />
Depois de um prazo adequa<strong>do</strong>, respondi-lhe e fiquei à espera de resposta. Logo<br />
na carta seguinte ela anunciou uma visita, o que me alegrou bastante.<br />
Pode parecer estranho, mas ninguém, excepto a minha falecida mãe, tinha<br />
visita<strong>do</strong> até então o meu apartamento. Aliás, também nunca convidei vivalma<br />
para o fazer.<br />
Como ainda tinha três semanas, pude calmamente pensar como receber<br />
uma visita, o que tinha de comprar e se teria de reservar um quarto de hotel.<br />
Além disso, decidi oferecer um presente à Gunda. Claro que não poderia ser<br />
um quadro borda<strong>do</strong>, pois teria de trabalhar nele no mínimo 200 horas. Sabia<br />
demasia<strong>do</strong> bem que embaraçava os mais sensíveis, quan<strong>do</strong> gastava demasia<strong>do</strong>
108<br />
Traduções<br />
tempo na realização de uma pequena surpresa. Decidi-me por uma elegante<br />
bolsa de seda preta com uma coroa de amores-perfeitos estilo Biedermeier. O<br />
motivo foi cria<strong>do</strong> por mim, e consegui fazer uma pequena obra de arte.<br />
Nunca aprendi a cozinhar, muito menos a fazer bolos. Mas não me poupei<br />
a esforços. Fui de táxi até à melhor pastelaria para comprar seis fatias de<br />
diferentes tipos de bolos e tartes, para to<strong>do</strong>s os gostos: creme de iogurte com<br />
fruta, coroa tipo Frankfurt, torta Sacher ou de maçã. Coloquei na mesa uma<br />
tolha bordada por mim (nem possuía outras), que até então nunca tinha usa<strong>do</strong>.<br />
Pertencia ainda à minha fase inicial de flores. Flores de macieira cor-de-rosa em<br />
fun<strong>do</strong> verde-pinho, folhas verde-claras e pequenas abelhas fazem parecer a<br />
mesa de café primaveril e graciosa.<br />
A Gunda chegou pontualmente. À porta, cumprimentou-me radiosa,<br />
quase ansiosamente. O corre<strong>do</strong>r é um pouco escuro, as minhas obras aí<br />
penduradas sobressaíam pouco, não poderia esperar nenhuma reacção<br />
entusiasmada. Depois de ela ter despi<strong>do</strong> o sobretu<strong>do</strong>, indiquei-lhe a sala de<br />
estar, onde me detive ao centro, para que os quadros pudessem calmamente ter<br />
efeito sobre ela.<br />
Apesar de percorrer a sala com o olhar, não disse nada. Só quan<strong>do</strong> lhe<br />
servi café, surgiu a pergunta espantada: “Estes borda<strong>do</strong>s são to<strong>do</strong>s da sua<br />
falecida mãe?”<br />
Não respondi e coloquei-lhe no prato o meu presente, muito bem<br />
embrulha<strong>do</strong>. Ela desembrulhou-o de imediato, graças a Deus com uma<br />
curiosidade simpático-infantil. Como já disse, a bolsinha bordada por mim era<br />
uma peça de arte. E se se observasse a coroazinha de flores com atenção, era<br />
possível descobrir no centro o monograma <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> de Gunda. Ela fitou-o<br />
fixamente, tirou os óculos da carteira e certificou-se de que realmente estava a<br />
ler as iniciais G.M..<br />
Olhou para mim com um ar incrédulo: “Foi o senhor que bor<strong>do</strong>u isto, Sr.<br />
Meyer?”, perguntou quase sem voz. Eu acenei feliz e não compreen<strong>do</strong>, até hoje,<br />
porque é que ela saiu logo ao fim de dez minutos e nunca mais deu notícias.<br />
Trad. de Micaela Marques Moura e Rosa Duarte e Silva
A SOMBRA (EXCERTOS)<br />
Connie Zweig e Jeremiah Abrams<br />
THE SHADOW, 1991<br />
Como é possível haver tanta maldade no mun<strong>do</strong>?<br />
Conhecen<strong>do</strong> a humanidade, interrogo-me<br />
por que não existirá ainda mais.<br />
Woody Allen, Hannah e as suas Irmãs<br />
Em 1886, mais de uma década antes de Freud sondar as profundezas da<br />
escuridão humana, Robert Louis Stevenson teve um sonho profundamente<br />
revela<strong>do</strong>r: um homem, persegui<strong>do</strong> por um crime, engolia um certo pó e<br />
experimentava uma mudança drástica de carácter, tão drástica que ele se<br />
tornava irreconhecível. O amável e laborioso cientista Dr. Jekyll transformavase<br />
no violento e implacável Mr. Hyde, cuja maldade ia assumin<strong>do</strong> proporções<br />
cada vez maiores à medida que a história onírica se desenrolava.<br />
Stevenson desenvolveu o sonho no seu hoje famoso romance O Estranho<br />
Caso de Dr. Jekyll e de Mr. Hyde. O tema integrou-se de tal mo<strong>do</strong> na cultura<br />
popular que pensamos nele quan<strong>do</strong> ouvimos alguém dizer “Eu não estava em<br />
mim”, “Ele parecia possuí<strong>do</strong> por um demónio”, ou ainda, “Ela transformou-se<br />
numa megera”. Como refere o psicanalista junguiano John Sanford, quan<strong>do</strong><br />
uma história como esta nos toca tão fun<strong>do</strong> e nos soa tão verdadeira, é porque<br />
contém uma qualidade arquetípica – apela a uma dimensão da nossa<br />
humanidade que é universal.<br />
Cada um de nós contém um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde: uma persona<br />
agradável para uso quotidiano e um “eu” oculto e nocturno que permanece<br />
silencia<strong>do</strong> a maior parte <strong>do</strong> tempo. Emoções e comportamentos negativos tais<br />
como a raiva, a inveja, a vergonha, a falsidade, o ressentimento, a luxúria, a<br />
cobiça, as tendências suicidas e homicidas, permanecem ocultos, quase à<br />
superfície, mascara<strong>do</strong>s pelo nosso “eu” que melhor se adapta às situações. No<br />
seu conjunto, são conheci<strong>do</strong>s, na psicologia, como a sombra pessoal, que continua<br />
a ser, para a maioria das pessoas, um território in<strong>do</strong>ma<strong>do</strong> e inexplora<strong>do</strong>.<br />
A NEGAÇÃO DA SOMBRA
110<br />
Traduções<br />
Não podemos observar directamente este <strong>do</strong>mínio oculto. A sombra é,<br />
por natureza, difícil de apreender, perigosa, turbulenta e sempre escondida,<br />
como se a luz da consciência lhe roubasse a própria vida.<br />
O psicanalista junguiano James Hillman, autor de diversas obras, afirma:<br />
“O inconsciente não pode ser consciente; a Lua tem o seu la<strong>do</strong> escuro, o Sol<br />
põe-se e não pode brilhar em to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> ao mesmo tempo, e até mesmo Deus<br />
tem duas mãos. A atenção e a concentração exigem que algumas coisas<br />
permaneçam fora <strong>do</strong> campo de visão, na sombra. Não se pode olhar para<br />
ambos os la<strong>do</strong>s ao mesmo tempo.”<br />
Por esta razão, e na maior parte <strong>do</strong>s casos, vemos a sombra de forma<br />
indirecta, nas características e atitudes desagradáveis <strong>do</strong>s outros, no exterior,<br />
onde é mais seguro observá-la. Quan<strong>do</strong> reagimos intensamente a uma qualidade<br />
de um indivíduo ou grupo – tal como a preguiça, a estupidez ou a sensualidade<br />
– e nos surpreendemos pela nossa reacção de grande aversão, poderá ser a<br />
nossa sombra a manifestar-se. Nós projectamo-la, atribuin<strong>do</strong> aquela qualidade à<br />
outra pessoa, como forma inconsciente de a expulsarmos de nós, de deixarmos<br />
de a ver dentro de nós.<br />
Assim sen<strong>do</strong>, a sombra pessoal [...] é essa parte <strong>do</strong> inconsciente que<br />
complementa o ego e que representa as características que a personalidade<br />
consciente não deseja reconhecer. Por isso mesmo, rejeita-as, esquece-as e<br />
oculta-as, descobrin<strong>do</strong>-as apenas em confrontos desagradáveis com terceiros.<br />
AO ENCONTRO DA SOMBRA<br />
Apesar de não podermos contemplá-la directamente, a sombra manifestase<br />
no quotidiano. Por exemplo, encontramo-la no humor, ou seja, nas ane<strong>do</strong>tas<br />
indecentes ou na comédia grosseira, que expressam as nossas emoções<br />
escondidas, inferiores ou temidas. Quan<strong>do</strong> observamos atentamente aquilo que<br />
para nós é engraça<strong>do</strong> – como, por exemplo, alguém a escorregar numa casca de<br />
banana, ou a referência a partes <strong>do</strong> corpo tabu, descobrimos que a sombra está<br />
activa.<br />
A psicanalista inglesa Molly Tuby sugere seis outras formas segun<strong>do</strong> as<br />
quais, sem nos darmos conta, nos deparamos com a sombra to<strong>do</strong>s os dias:<br />
nos nossos sentimentos exagera<strong>do</strong>s em relação aos outros (“Nunca<br />
imaginei que ele pudesse fazer tal coisa!”, “Não sei como ela é capaz de andar<br />
com aquela roupa!”);
Connie Zweig e Jeremiah Abrams 111<br />
nas reacções negativas daqueles que nos servem de espelho (“É a<br />
terceira vez que chegas atrasa<strong>do</strong> sem me avisar.”);<br />
naquelas interacções em que exercemos continuamente o mesmo<br />
efeito perturba<strong>do</strong>r em diferentes pessoas (“O Sam e eu achamos que não foi<br />
honesto connosco.”);<br />
nos nossos actos impulsivos e inadverti<strong>do</strong>s (“Bem… não era isto<br />
que queria dizer.”);<br />
em situações nas quais nos sentimos humilha<strong>do</strong>s (“Sinto-me tão<br />
mal com a forma como ele me trata.!”);<br />
na nossa raiva exagerada relativamente aos erros <strong>do</strong>s outros<br />
(“Parece que ela nunca consegue fazer o trabalho a horas”, “Francamente, ele<br />
deixou que o seu peso se descontrolasse completamente.”).<br />
É nos momentos em que somos invadi<strong>do</strong>s por fortes sentimentos de<br />
vergonha ou raiva, ou em que achamos estar o nosso comportamento a<br />
ultrapassar os limites, que a sombra irrompe de forma inesperada.<br />
Normalmente, regride com a mesma rapidez, porque o encontro com a sombra<br />
pode ser uma experiência assusta<strong>do</strong>ra e chocante para a nossa auto-imagem.<br />
Por este motivo, podemos rapidamente enveredar pela negação, ten<strong>do</strong><br />
dificuldade de nos apercebermos das fantasias criminosas, <strong>do</strong>s pensamentos<br />
suicidas ou das invejas embaraçosas que poderão revelar um pouco <strong>do</strong> nosso<br />
la<strong>do</strong> oculto. O já faleci<strong>do</strong> psiquiatra R. D. Laing descreveu poeticamente a<br />
atitude de negação da mente:<br />
O alcance daquilo que pensamos e fazemos<br />
está limita<strong>do</strong> por aquilo em que deixamos de reparar.<br />
E porque não reparamos<br />
que não reparamos<br />
é pouco o que podemos fazer para mudar<br />
até que reparamos<br />
como o deixar de reparar<br />
molda os nossos pensamentos e actos.<br />
Se a negação persistir, podemos não reparar que deixamos de reparar,<br />
como refere Laing.<br />
A depressão pode também ser um confronto paralisante com o la<strong>do</strong><br />
oculto. A exigência interna no senti<strong>do</strong> de uma descida ao mun<strong>do</strong> subterrâneo<br />
pode ser anulada por preocupações externas, tais como a necessidade de<br />
trabalhar horas extra, as distracções ou os medicamentos antidepressivos, que
112<br />
Traduções<br />
abafam os nossos sentimentos de desespero. Neste caso, não chegamos a<br />
compreender o propósito da nossa melancolia.<br />
Encontrarmos a sombra requer que abrandemos o ritmo de vida, que<br />
prestemos atenção aos indícios que o corpo nos fornece, e nos permitamos<br />
estar sozinhos, de forma a assimilarmos as mensagens enigmáticas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
interior.<br />
A SOMBRA COLECTIVA<br />
Hoje em dia, defrontamo-nos com o la<strong>do</strong> escuro da natureza humana<br />
todas as vezes que abrimos um jornal ou ouvimos um noticiário. Os efeitos<br />
mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na espantosa mensagem diária<br />
<strong>do</strong>s meios de comunicação, transmitida para toda a nossa moderna aldeia global<br />
electrónica. O mun<strong>do</strong> tornou-se palco da sombra colectiva.<br />
A sombra colectiva – a maldade humana – olha-nos fixamente de quase<br />
to<strong>do</strong>s os quadrantes: salta <strong>do</strong>s títulos <strong>do</strong>s jornais; vagueia pelas nossas ruas e<br />
<strong>do</strong>rme sem abrigo no vão das portas; esconde-se nas lojas pornográficas;<br />
desfalca as nossas contas bancárias; corrompe políticos ávi<strong>do</strong>s de poder e<br />
perverte o sistema judiciário; conduz exércitos invasores através de densas<br />
florestas e ári<strong>do</strong>s desertos; vende armas a líderes enlouqueci<strong>do</strong>s e entrega os<br />
lucros obti<strong>do</strong>s a rebeldes reaccionários; despeja, por canos ocultos, a poluição<br />
nos nossos rios e oceanos e envenena, com pesticidas invisíveis, os nossos<br />
alimentos.<br />
Enquanto a maior parte <strong>do</strong>s indivíduos e <strong>do</strong>s grupos vive de forma<br />
socialmente aceitável, outros parecem querer viver uma forma de vida que a<br />
sociedade repudia. Quan<strong>do</strong> eles se tornam objecto de projecções negativas por<br />
parte <strong>do</strong>s grupos, a sombra colectiva exprime-se na busca de bodes expiatórios,<br />
no racismo ou na criação de inimigos. Para os americanos anticomunistas, o<br />
império <strong>do</strong> mal é a U.R.S.S.. Para os muçulmanos, os E.U.A. são o grande Satã.<br />
Para os nazis, os judeus são vermes bolcheviques. Para os ascéticos monges<br />
cristãos, as bruxas têm um pacto com o Diabo. Para os defensores sul-africanos<br />
<strong>do</strong> apartheid, ou para os membros americanos <strong>do</strong> Ku Klux Klan, os negros são<br />
sub-humanos, indignos <strong>do</strong>s direitos e <strong>do</strong>s privilégios <strong>do</strong>s brancos.<br />
O poder hipnótico e a natureza contagiante destas emoções fortes são<br />
evidentes na disseminação universal da perseguição racial, <strong>do</strong>s conflitos<br />
religiosos e das tácticas de busca de bodes expiatórios. Deste mo<strong>do</strong>, os seres<br />
humanos tendem a desumanizar os outros como forma de assegurar que são
Connie Zweig e Jeremiah Abrams 113<br />
eles os únicos detentores da verdade – e que matar o inimigo não significa que<br />
estejam a matar seres humanos como eles próprios.<br />
Ao longo da história, a sombra foi surgin<strong>do</strong> através da imaginação<br />
humana, sob a forma de monstro, dragão, de Frankenstein, de baleia branca,<br />
extraterrestre ou homem tão vil que não nos poderíamos identificar com ele.<br />
Revelar o la<strong>do</strong> oculto da natureza humana é um <strong>do</strong>s propósitos principais da<br />
arte e da literatura.<br />
Ao utilizar a arte e os media, incluin<strong>do</strong> a propaganda política, para<br />
imaginarmos algo diabólico ou demoníaco, tentamos ganhar poder sobre esse<br />
algo, para assim quebrarmos o seu feitiço. Este facto pode ajudar-nos a explicar<br />
como nos deixamos fascinar com as histórias violentas que nos são contadas<br />
pelos media, sobre fanáticos religiosos ou agita<strong>do</strong>res que incitam à guerra.<br />
Repeli<strong>do</strong>s e atraí<strong>do</strong>s pela violência e pelo caos <strong>do</strong> nosso mun<strong>do</strong>,<br />
transformamos, nas nossas mentes, determinadas pessoas ou grupos em<br />
detentores <strong>do</strong> mal e inimigos da civilização.<br />
O la<strong>do</strong> oculto não é uma aparição evolutiva recente, nem resulta<strong>do</strong> da<br />
civilização e da educação. Ele tem as suas raízes numa sombra biológica que se<br />
encontra nas nossas próprias células. Os nossos antepassa<strong>do</strong>s animais, apesar<br />
de tu<strong>do</strong>, sobreviveram lutan<strong>do</strong> encarniçadamente. O monstro em cada um de<br />
nós está bem vivo – só que aprisiona<strong>do</strong> a maior parte das vezes.<br />
CONHECE-TE A TI MESMO<br />
No templo de Apolo, em Delfos, construí<strong>do</strong> na encosta <strong>do</strong> monte Parnaso<br />
pelos Gregos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> clássico e <strong>do</strong> qual já nada resta, os sacer<strong>do</strong>tes<br />
gravaram na pedra duas famosas inscrições, <strong>do</strong>is preceitos que ainda hoje<br />
mantêm, para nós, um significa<strong>do</strong> profun<strong>do</strong>. O primeiro, “Conhece-te a ti<br />
mesmo”, tem ampla aplicação neste trabalho. Conhece tu<strong>do</strong> sobre ti mesmo,<br />
aconselhava o sacer<strong>do</strong>te <strong>do</strong> deus da luz, o que se poderá traduzir como:<br />
conhece especialmente o la<strong>do</strong> oculto de ti mesmo.<br />
Trad. de Liliana Cruz 1<br />
1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />
Tradução Especializada.
AS FLORES<br />
Alice Walker<br />
THE FLOWERS, 1981<br />
Nunca houve dias tão bonitos como estes, pensava Myop, enquanto<br />
saltitava alegremente <strong>do</strong> galinheiro para a pocilga e daí para o fumeiro. O ar<br />
tinha uma densidade que lhe contraía o nariz. A colheita <strong>do</strong> milho e <strong>do</strong> algodão,<br />
<strong>do</strong> amen<strong>do</strong>im e da abóbora, faziam de cada dia uma surpresa <strong>do</strong>urada que lhe<br />
percorria os maxilares com leves arrepios de excitação.<br />
Myop levava consigo um pequeno pau no<strong>do</strong>so, com que batia à toa nas<br />
galinhas de que tanto gostava, e criou o ritmo de uma música na vedação que<br />
cercava a pocilga. Sentia-se leve e alegre sob o sol quente. Tinha dez anos e,<br />
para ela, nada mais existia a não ser a sua canção, o pau aperta<strong>do</strong> na mão<br />
morena e o tat-de-ta-ta-ta <strong>do</strong> acompanhamento.<br />
Viran<strong>do</strong> as costas às tábuas velhas da cabana de rendeiro da família, Myop<br />
caminhou ao longo da vedação que ia até ao regato forma<strong>do</strong> pela nascente. Em<br />
re<strong>do</strong>r da nascente, onde a família ia buscar água para beber, cresciam fetos<br />
pratea<strong>do</strong>s e flores silvestres. Os porcos foçavam ao longo das margens pouco<br />
profundas. Myop observava as minúsculas bolhas brancas que rompiam a fina<br />
camada de terra preta e a água que silenciosamente brotava e corria ao longo <strong>do</strong><br />
regato.<br />
Já tinha explora<strong>do</strong> a mata atrás da casa em diversas ocasiões. Muitas vezes,<br />
no final <strong>do</strong> Outono, a mãe levava-a a apanhar frutos secos entre as folhas<br />
caídas. Hoje, seguia o seu próprio caminho, saltitan<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> para o outro,<br />
manten<strong>do</strong>-se vagamente atenta às cobras. Encontrou, para além de diversos<br />
tipos de folhas e de fetos comuns, ainda que bonitos, um braça<strong>do</strong> de curiosas<br />
flores azuis com saliências aveludadas e um arbusto de sweetsuds, coberto de<br />
rebentos castanhos aromáticos.<br />
Pelo meio-dia, com os braços carrega<strong>do</strong>s de raminhos <strong>do</strong>s seus acha<strong>do</strong>s,<br />
havia-se afasta<strong>do</strong> quilómetro e meio ou mais de casa. Já noutras ocasiões<br />
estivera assim tão longe, no entanto, a estranha singularidade da terra não a<br />
tornava tão agradável como nas suas habituais deambulações. O pequeno<br />
abrigo onde se encontrava parecia sombrio. O ar era húmi<strong>do</strong>, o silêncio denso e<br />
profun<strong>do</strong>.
Edgar Allan Poe 115<br />
Myop começou a voltar para trás; a regressar à tranquilidade da manhã.<br />
Foi então que o pisou em cheio nos olhos. O calcanhar ficou preso na ponte<br />
esmigalhada entre a testa e o nariz e, sem me<strong>do</strong>, baixou-se rapidamente para se<br />
libertar. Foi só quan<strong>do</strong> viu o seu esgar nu que soltou um pequeno grito de<br />
surpresa.<br />
Fora um homem alto. Ocupava um grande espaço <strong>do</strong>s pés ao pescoço. A<br />
cabeça jazia ao la<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> afastou as folhas e as camadas de terra e entulho,<br />
Myop reparou que ele tivera dentes alvos e grandes, to<strong>do</strong>s racha<strong>do</strong>s ou<br />
parti<strong>do</strong>s, de<strong>do</strong>s longos e ossos muito compri<strong>do</strong>s. Todas as roupas haviam<br />
apodreci<strong>do</strong>, à excepção de alguns fios de ganga azul das calças de peitilho, cujas<br />
fivelas se tinham torna<strong>do</strong> verdes.<br />
Myop observou o local com interesse. Muito perto <strong>do</strong> sítio onde pisara a<br />
cabeça, havia uma rosa brava. Enquanto a colhia para juntá-la ao ramo, reparou<br />
num pequeno montículo, um círculo, à volta da raiz da rosa. Eram os restos de<br />
um nó, um pequeno fragmento de corda de ara<strong>do</strong>, que agora se misturava<br />
inofensivamente na terra. Em torno <strong>do</strong> ramo saliente de um imenso carvalho<br />
estava agarra<strong>do</strong> outro pedaço. Gasto, apodreci<strong>do</strong>, desbota<strong>do</strong> e esfarrapa<strong>do</strong> –<br />
quase ausente – mas ro<strong>do</strong>pian<strong>do</strong> sem descanso ao sabor da brisa. Myop depôs<br />
as flores.<br />
E o Verão terminou.<br />
Trad. de Sofia Morais d‟Almeida 1<br />
1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />
Tradução Especializada.
AQUILO QUE OS RODEAVA (EXCERTO)<br />
Marilyn Krysl<br />
THE THING AROUND THEM, 1998<br />
Foi por causa <strong>do</strong> rapaz arrasta<strong>do</strong> pelo jipe que Vasuki deu a Nadesan o<br />
dinheiro para comprar o bilhete. Quan<strong>do</strong> foi ter com o seu irmão, com as notas<br />
enfiadas no sari, não sabia falar a língua <strong>do</strong>s países coloniza<strong>do</strong>res nem conhecia<br />
ninguém que já lá tivesse i<strong>do</strong>. Sabia que a determinada altura a ilha fora ocupada<br />
por poderes estrangeiros, mas não tinha a certeza por que forças ou quan<strong>do</strong>.<br />
Que os portugueses tinham fica<strong>do</strong> lá até serem expulsos pelos holandeses; que<br />
os holandeses tinham si<strong>do</strong> expulsos pelos britânicos e que os britânicos tinham<br />
concedi<strong>do</strong> a independência à ilha quan<strong>do</strong> o poder da Coroa a isso foi força<strong>do</strong><br />
pelas suas outras colónias – estes eram factos que nunca ninguém lhe contara.<br />
E mesmo que estas coisas lhe tivessem si<strong>do</strong> narradas por um professor ou<br />
referidas por algum político na sua campanha para o Parlamento, não seriam<br />
factos que lhe parecessem importantes. O que ela sabia sobre os países<br />
coloniza<strong>do</strong>res era que neles havia abundância, de tal forma que até os mais<br />
pobres viviam bem. As pessoas viviam em paz umas com as outras e passeavam<br />
sem me<strong>do</strong> nas ruas das cidades e nas estradas que as ligavam.<br />
Ela vira nessa mesma tarde como a cara <strong>do</strong> seu filho ficara alegre quan<strong>do</strong><br />
ela lhe deu grãos para alimentar as galinhas. Tivera prazer em ver a satisfação de<br />
Poniah e pensou então no rapaz arrasta<strong>do</strong> pelo jipe.<br />
Vasuki vira o rapaz no recreio da escola com uma pá de críquete na mão.<br />
Depois, no funeral, Vasuki aproximou-se da mãe <strong>do</strong> rapaz e tocou a sua mão de<br />
pele fina e seca como papel. Tornou-se assim claro para Vasuki quem ela<br />
própria era: era a mãe de Mannika, era a mãe de Poniah. Tinha uma menina,<br />
tinha um menino e o seu menino iria crescer e ter a mesma idade que o rapaz<br />
arrasta<strong>do</strong> pelo jipe.<br />
Ele tinha olhos tími<strong>do</strong>s e um sorriso como a visão de um papagaio a<br />
irromper subitamente por entre as folhas de uma bananeira. Mas os solda<strong>do</strong>s<br />
insistiam que o rapaz espiava ao serviço <strong>do</strong>s rebeldes. Ela imaginava o cenário<br />
como uma neblina, cujos contornos oscilavam da mesma forma que as<br />
memórias da infância brilham com uma luz trémula sem limite. A mãe <strong>do</strong> rapaz<br />
fora obrigada a ver os solda<strong>do</strong>s atirar o filho para o chão. Prenderam-lhe um pé<br />
ao pára-choques traseiro <strong>do</strong> jipe. Um pé, preso pelo tornozelo. Depois,
Marilyn Krysl 117<br />
entraram para o jipe e arrancaram, gritan<strong>do</strong> naquela língua que ninguém<br />
compreendia.<br />
Quan<strong>do</strong> Vasuki pensava na sua infância, imaginava-se dentro de uma<br />
esfera tremeluzente, um globo de ar verde. O seu corpo era, ele próprio, um<br />
pequeno globo ténue, amplo e aberto, fundin<strong>do</strong>-se com o ar, com a folhagem,<br />
com as águas da lagoa e com os outros corpos moven<strong>do</strong>-se com ela através<br />
daquela luz verde. Os seus pais tinham-na embala<strong>do</strong> da mesma forma que um<br />
barco é embala<strong>do</strong> pela água e foi como se os três, e tu<strong>do</strong> aquilo que os rodeava,<br />
fossem o corpo de um só animal deslizan<strong>do</strong> da margem até à água,<br />
deslocan<strong>do</strong>-se ao sabor das ondas da lagoa, que se moviam com o mar e com as<br />
correntes <strong>do</strong> ar.<br />
Vasuki e Sri haviam corri<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> para o outro com os irmãos,<br />
imbuí<strong>do</strong>s daquela luz verde. Nadesan era o segun<strong>do</strong> filho. Era o palhaço,<br />
imitan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> aquilo que era ridículo nos adultos. Por vezes, imitava o me<strong>do</strong> e<br />
o devaneio de Vasuki. Então, ela atirava-lhe mãos cheias de areia. Ele corria,<br />
baixan<strong>do</strong>-se e protestan<strong>do</strong>. Cobria a cabeça com as mãos num desespero<br />
simula<strong>do</strong> até que ela também acabasse por rir.<br />
Ela a<strong>do</strong>rava Nadesan pela sua alegria. Com o mais velho, Sinniah, sentia-se<br />
como se fosse a sua filha querida. Ouvia-o dizer o seu nome em voz alta:<br />
Vasuki! O timbre da voz dele fazia com que o som <strong>do</strong> seu nome parecesse<br />
ouro. Sinniah encarregava-se de tu<strong>do</strong>, planeava passeios até à sombra das<br />
árvores <strong>do</strong> fogo, ensinava-as a embalar a comida em folhas de bananeira e a<br />
trazer as suas garrafas-termo. Quan<strong>do</strong> Vasuki e Sri discutiam, ele acalmava-as<br />
dizen<strong>do</strong>: – Não puxes o cabelo da tua irmã. Sejam boas uma para a outra.<br />
Ensinava-lhes os nomes <strong>do</strong>s pássaros e as propriedades <strong>do</strong> alari. Podiam colher<br />
as flores amarelas, mas jamais deveriam tocar nas sementes venenosas.<br />
Vasuki observava Sinniah enquanto ele se debruçava com entusiasmo e<br />
concentração sobre os seus livros. Dizia que iria tomar conta de to<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong><br />
os pais fossem velhos. – Arranjar-vos-ei mari<strong>do</strong>s formosos – dizia às irmãs. –<br />
Trabalharei para que os vossos <strong>do</strong>tes sejam abundantes.<br />
Na escola, as regras eram claras: uma língua única. Vasuki imaginava-a<br />
como a língua universal, falada pelos povos de to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Imaginou isto<br />
até ao dia em que o exército se instalou na cidade. O exército viera para<br />
proteger o povo <strong>do</strong>s rebeldes. O Presidente da Câmara dizia que os solda<strong>do</strong>s,<br />
embora falassem uma língua que ninguém compreendia, eram amistosos. Nem<br />
o pai nem a mãe de Vasuki tinham de facto visto os solda<strong>do</strong>s, embora Sinniah<br />
tivesse espreita<strong>do</strong> para dentro de um camião quan<strong>do</strong> este <strong>do</strong>brava uma esquina.<br />
Nele iam muitos homens em pé, junto uns aos outros, vesti<strong>do</strong>s com uniformes
118<br />
Traduções<br />
verde-escuro e cada um com uma espingarda. Nadesan fora com os amigos<br />
para o campo de criquete ver os solda<strong>do</strong>s marchar em formatura. Ou teria si<strong>do</strong><br />
um exercício que ele viu na televisão, na loja de electro<strong>do</strong>mésticos? Eles nem<br />
sempre acreditavam nas histórias de Nadesan, embora até a mãe e o pai se<br />
rissem quan<strong>do</strong> ele imitava os exercícios e os movimentos abruptos e mecânicos<br />
<strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s.<br />
Naquela altura, as noites eram como uma ponte de luz onde o ar se<br />
suavizava e o azul mergulhava no negro. O pai pegava em Sri, sentava-a no seu<br />
colo e dava-lhe um beijo na face. Sri ria-se pelo prazer de estar no centro da sua<br />
ternura atenciosa. O cheiro a lima flutuava na humidade quente. E, então, lá<br />
apareceram os solda<strong>do</strong>s – quantos? – amontoa<strong>do</strong>s à entrada.<br />
Um <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s falou com o pai naquela outra língua. Fez um gesto<br />
para o pai os acompanhar. O pai tirou Sri <strong>do</strong> colo e levantou-se. Vasuki<br />
percebeu que o pai tinha de alguma forma irrita<strong>do</strong> aqueles homens. Sentiu-se<br />
envergonhada. O seu pai devia ter feito algo de indigno. Mas ela também<br />
receava por ele. Foi como se algo de estranho tivesse entra<strong>do</strong> em casa, algo<br />
escuro e inconstante que nem os solda<strong>do</strong>s conseguiam ver. Ela tentava<br />
encontrar a sua forma no ar, mas os solda<strong>do</strong>s irromperam através <strong>do</strong> verde<br />
tremeluzente, arrancan<strong>do</strong>-o. O solda<strong>do</strong> que falara gritou uma ordem. Outros<br />
<strong>do</strong>is avançaram, agarraram o pai e arrastaram-no pela porta e pelo caminho fora<br />
até ao jipe.<br />
Quan<strong>do</strong> alguém nos é arranca<strong>do</strong> daquela forma, é como se rasgassem o<br />
globo de ar verde para o levar! Nessa mesma noite, outros <strong>do</strong>is homens que<br />
cortavam lenha com o pai de Vasuki foram também eles presos. Não tinham<br />
apareci<strong>do</strong> quaisquer rebeldes no local onde cortavam lenha, e nenhum deles<br />
jamais imaginaria que o facto de estarem a trabalhar na floresta, onde se dizia<br />
que os rebeldes andavam, poderia levantar suspeitas sobre si próprios. Era<br />
verdade que os rebeldes tinham primeiro ergui<strong>do</strong> um acampamento no norte e,<br />
mais tarde, haviam-se muda<strong>do</strong> para cá, mas estes acampamentos ficavam no<br />
interior, longe da cidade. Eles cobravam impostos porque, afinal, era mesmo<br />
necessário. Lutavam pelo Eelam, que era o paraíso na terra. Os guerrilheiros<br />
visitavam as escolas das cidades e aldeias circundantes para recrutar jovens<br />
rapazes. Às vezes, eles queriam lenha ou então um saco de arroz, mas<br />
normalmente pagavam. Uma vez vieram três jovens de farda às manchas pedir<br />
gasolina. Quan<strong>do</strong> a mãe de Vasuki disse que não tinha, os três jovens foram-se<br />
embora.<br />
– Quem são eles vesti<strong>do</strong>s com aquela roupa esquisita? – perguntou Vasuki.
Marilyn Krysl 119<br />
– Eram só uns homens que precisavam de gasolina – respondeu a mãe. –<br />
Traz-me um balde de água <strong>do</strong> poço.<br />
O sargento que estava no acampamento era cortês, sempre que a mãe de<br />
Vasuki e as outras mulheres lá iam informar-se. Ele falava a língua delas,<br />
convidava-as a sentar-se e ouvia-as enquanto elas faziam os seus apelos. Depois<br />
dizia-lhes que tinha muita pena, mas que o exército não sabia <strong>do</strong> paradeiro <strong>do</strong>s<br />
mari<strong>do</strong>s. Assegurava-lhes, todavia, que se preocupava com o bem-estar deles,<br />
pois iriam ser feitos inquéritos.<br />
A mãe de Vasuki ouvira dizer que homens <strong>do</strong> norte haviam si<strong>do</strong> leva<strong>do</strong>s,<br />
tal como o seu mari<strong>do</strong>. Alguns regressaram, outros não. Mas ela não acreditava<br />
nestes boatos. Mesmo no momento em que levaram o seu mari<strong>do</strong>, ela<br />
continuou a crer que ele não era um daqueles que não iria ser liberta<strong>do</strong>.<br />
Houvera algum engano e ela acreditava que o sargento o iria resolver.<br />
Enquanto esperava, o exército erguia mais acampamentos no sul da cidade.<br />
Foi então que a polícia prendeu seis pesca<strong>do</strong>res. Quatro deles foram<br />
liberta<strong>do</strong>s no dia seguinte. Os outros <strong>do</strong>is foram leva<strong>do</strong>s ao exército para serem<br />
interroga<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> o primo <strong>do</strong> seu mari<strong>do</strong> foi preso numa cidade mais a<br />
norte, a mãe de Vasuki não contou nada aos filhos. Disse-lhes que o primo<br />
tinha arranja<strong>do</strong> trabalho no Médio Oriente e fora, por esse motivo, apanhar um<br />
avião à capital. Vasuki escutava. A mãe não lhe pareceu muito satisfeita com<br />
esta notícia, pois desde que o pai fora preso, uma certa ansiedade pairava sobre<br />
a sua existência.<br />
Numa tarde em que a mãe fora ao escritório <strong>do</strong> sargento, Vasuki chegou a<br />
casa da escola e começou a comer uma tigela de pittu. A mãe passou pelo<br />
portão, pegou numa flor alari, entrou e colocou-a em cima da mesa. A luz <strong>do</strong><br />
sol caía oblíqua sobre a flor. A cara da mãe parecia encovada.<br />
– O que tem? – perguntou Vasuki. – Alguém lhe bateu?<br />
– Não – respondeu a mãe. Vasuki lembrou-se <strong>do</strong> padre católico que se<br />
oferecera para interceder por eles junto <strong>do</strong> sargento, apesar de a família dela<br />
não ser católica. Ele usou uma expressão que Vasuki nunca ouvira antes: os<br />
desapareci<strong>do</strong>s.<br />
Vasuki conseguia ver a lagoa da entrada, com um único barco a balouçar.<br />
Embora não visse nada fora <strong>do</strong> normal, parecia que este barco, que permanecia<br />
inocentemente na água, corria perigo. Algo poderia arrancar o barco da água e,<br />
num segun<strong>do</strong>, despedaçá-lo. Quan<strong>do</strong> Vasuki se voltou, a luz havia-se movi<strong>do</strong>, a<br />
flor estava agora na sombra. O rosto da sua mãe abria caminho para um lugar<br />
longínquo, onde alguém poderia facilmente perder-se.
120<br />
Traduções<br />
Trad. de Ana Maria Salgueiro Barbosa 1<br />
1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />
Tradução Especializada.
O GATO PRETO<br />
Edgar Allan Poe<br />
THE BLACK CAT, 1843<br />
Por mais extravagante, embora comezinha, que possa ser a história que<br />
estou prestes a rabiscar, não espero nem peço que acreditem. De facto, eu seria<br />
louco se esperasse que o fizessem num caso em que os meus senti<strong>do</strong>s rejeitam a<br />
própria evidência. Porém, louco não sou – e de certeza que não sonho. Mas<br />
amanhã morro, e hoje alivio a minha alma. O meu propósito é esclarecer<br />
sucintamente e sem comentários perante o mun<strong>do</strong> uma série de simples<br />
acontecimentos caseiros. Nas suas consequências, estes acontecimentos<br />
aterrorizaram – torturaram – destruíram-me. Contu<strong>do</strong>, não tentarei dissecá-los.<br />
Para mim, representaram nada menos <strong>do</strong> que o Horror – para muitos parecerão<br />
menos terríveis <strong>do</strong> que grotescos. Futuramente, talvez surja alguma inteligência<br />
que reduzirá o meu fantasma a algo comum – alguma inteligência mais calma,<br />
mais lógica e, de longe, menos excitável <strong>do</strong> que a minha, que perceba que as<br />
circunstâncias que eu relato com terror, nada mais foram <strong>do</strong> que uma sucessão<br />
vulgar de causas e efeitos naturais.<br />
Desde a minha infância, era conheci<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>cilidade e humanidade <strong>do</strong><br />
meu carácter. A ternura <strong>do</strong> meu coração era tão evidente que acabava por ser<br />
alvo de brincadeira <strong>do</strong>s meus companheiros. Gostava especialmente de animais<br />
e os meus pais permitiam-me ter uma grande variedade de animais de<br />
estimação. Passava com eles grande parte <strong>do</strong> tempo, e nunca fui tão feliz como<br />
quan<strong>do</strong> os alimentava ou acariciava. Este carácter peculiar cresceu comigo e,<br />
quan<strong>do</strong> adulto, tornei-o numa das minhas fontes de prazer. Aos que já nutriram<br />
afecto por um cão fiel e sagaz não preciso de me dar ao trabalho de explicar a<br />
natureza ou a intensidade da satisfação que se tem. Há algo no amor<br />
desinteressa<strong>do</strong> e no auto-sacrifício de um animal, que toca directamente o<br />
coração <strong>do</strong>s que tiveram ocasiões para testar a amizade miserável e a frágil<br />
fidelidade <strong>do</strong> mero Homem.<br />
Casei-me ce<strong>do</strong>, e fiquei contente por encontrar na minha esposa um<br />
temperamento semelhante ao meu. Reparan<strong>do</strong> na minha inclinação por animais<br />
<strong>do</strong>mésticos, ela não perdia uma oportunidade de conseguir os de espécie mais<br />
agradável. Tínhamos pássaros, peixes <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, um cão inteligente, coelhos,<br />
um pequeno macaco e um gato.
122<br />
Traduções<br />
Este último era um animal extraordinariamente grande e bonito, to<strong>do</strong><br />
preto e de uma sagacidade espantosa. Referin<strong>do</strong>-se à sua inteligência, a minha<br />
mulher, que não possuía qualquer réstia de superstição no coração, fazia<br />
frequentes alusões à antiga crença popular de que to<strong>do</strong>s os gatos pretos eram<br />
bruxas disfarçadas. Ela não se referia com muita seriedade a isso – e, aliás, só<br />
menciono este facto porque me ocorreu agora mencioná-lo.<br />
Pluto – era este o nome <strong>do</strong> gato – era o meu animal de estimação<br />
predilecto e companheiro de brincadeiras. Só eu o alimentava e ele seguia-me<br />
para to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> em casa. Era mesmo com dificuldade que o impedia de me<br />
seguir pelas ruas.<br />
A nossa amizade durou assim alguns anos, durante os quais o meu<br />
temperamento e carácter sofreram uma alteração radical para pior, provocada<br />
por aquele Demónio Incontrola<strong>do</strong> que me usou (fico embaraça<strong>do</strong> só de o<br />
confessar). Tornava-me dia a dia mais taciturno, mais irritável, mais indiferente<br />
aos sentimentos <strong>do</strong>s outros. Sofria ao usar uma linguagem mais intempestiva<br />
com a minha esposa, com quem cheguei mesmo a ser violento.<br />
Os meus bichos, é claro, também não deixaram de sentir a alteração <strong>do</strong><br />
meu carácter. Para além de os negligenciar, também os maltratava. Quanto a<br />
Pluto, ainda tinha consideração suficiente por ele, o que me impedia de o<br />
maltratar, porém não tinha quaisquer remorsos em maltratar os coelhos, o<br />
macaco, ou até mesmo o cão quan<strong>do</strong>, por acidente ou por afecto, se<br />
atravessavam no meu caminho. Mas a <strong>do</strong>ença crescia cá dentro – que outra<br />
<strong>do</strong>ença se compara ao Álcool! – e, aos poucos, até mesmo o Pluto, que estava a<br />
ficar velho e, consequentemente, se tornara rabugento – começou a sentir os<br />
efeitos <strong>do</strong> meu vil temperamento.<br />
Uma noite, quan<strong>do</strong> regressava a casa, muito intoxica<strong>do</strong> de um <strong>do</strong>s meus<br />
passeios assombra<strong>do</strong>s pela cidade, tive a impressão que o gato evitava a minha<br />
presença. Apanhei-o, e ele, assusta<strong>do</strong> com a minha violência, ferrou ao de leve a<br />
minha mão. A fúria <strong>do</strong> demónio possuiu-me instantaneamente. Já não me<br />
reconhecia. A minha alma original parecia ter voa<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu corpo e uma<br />
perversidade mais <strong>do</strong> que diabólica, ateada pelo álcool, fez vibrar todas as fibras<br />
<strong>do</strong> meu corpo. Tirei <strong>do</strong> bolso <strong>do</strong> casaco um canivete, abri-o, agarrei o pobre<br />
animal pela garganta e, deliberadamente, arranquei da sua órbita um <strong>do</strong>s olhos!<br />
Eu coro, eu ar<strong>do</strong>, eu estremeço, só de escrever tamanha atrocidade.<br />
Quan<strong>do</strong> a razão regressou pela manhã – depois de se terem dissipa<strong>do</strong> os<br />
fumos de uma noite de deboche – tive uma sensação misto de terror e de<br />
remorsos pelo crime <strong>do</strong> qual era culpa<strong>do</strong>, mas que não passou de um<br />
sentimento frouxo e equívoco e a alma permaneceu inalterável. Mergulhei
Edgar Allan Poe 123<br />
novamente nos excessos e, rapidamente, afoguei no vinho toda a memória <strong>do</strong><br />
que acontecera.<br />
Entretanto, o gato recuperara lentamente. A órbita <strong>do</strong> olho perdi<strong>do</strong> tinha<br />
um aspecto horroroso, é verdade, mas ele parecia não ter mais <strong>do</strong>res. Começou<br />
a andar pela casa normalmente, mas, como seria de esperar, fugia cheio de<br />
terror à minha aproximação. Ainda me restava um pouco <strong>do</strong> meu antigo<br />
coração para que sofresse com a aversão evidente que o animal me tinha,<br />
quan<strong>do</strong> outrora me havia ama<strong>do</strong>. Porém, este sentimento depressa deu lugar à<br />
irritação. Depois, para me perder por completo, veio o espírito da<br />
PERVERSIDADE. A este espírito, a filosofia não presta a devida atenção.<br />
Contu<strong>do</strong>, duvi<strong>do</strong> mais que a minha alma vive <strong>do</strong> que acredito que a<br />
perversidade seja um <strong>do</strong>s impulsos primitivos <strong>do</strong> coração humano – uma das<br />
faculdades ou sentimentos primários indivisíveis que guiam o carácter <strong>do</strong><br />
Homem. Quem não deu por si, vezes sem conta, a cometer acções más ou<br />
estúpidas, por nenhuma outra razão a não ser a de saber que não o deveria<br />
fazer? Não temos nós uma inclinação perpétua, mesmo quan<strong>do</strong> estamos no<br />
nosso perfeito juízo, para violar o que é Lei, simplesmente porque a<br />
compreendemos como tal? Este espírito de perversidade, digo eu, foi a minha<br />
queda final. Foi este insondável anseio da própria alma em se vexar, em<br />
violentar a sua própria natureza, em fazer o mal pelo mal, foi este espírito que<br />
me levou a prosseguir acaban<strong>do</strong> por provocar uma ferida maior no inofensivo<br />
animal. Uma manhã, a sangue frio, pus-lhe um nó em torno <strong>do</strong> pescoço e<br />
enforquei-o no ramo de uma árvore: enforquei-o com as lágrimas a correremme<br />
<strong>do</strong>s olhos e com o mais amargo remorso no meu coração, enforquei-o<br />
porque sabia que ele me havia ama<strong>do</strong>, e porque sabia que ele não me dera<br />
motivo algum para o ofender, enforquei-o porque sabia que ao fazê-lo estava a<br />
cometer um peca<strong>do</strong> – um peca<strong>do</strong> mortal que prejudicava a minha alma imortal<br />
colocan<strong>do</strong>-a, se é que isso é possível, para além <strong>do</strong> alcance da misericórdia<br />
infinita <strong>do</strong> Deus Mais Misericordioso e Mais Terrível.<br />
Na noite <strong>do</strong> dia em que este acto cruel foi cometi<strong>do</strong>, fui acorda<strong>do</strong> pelo<br />
grito de “fogo”. As cortinas <strong>do</strong> meu quarto estavam em chamas. Toda a casa<br />
estava a arder. Foi com grande dificuldade que a minha esposa, uma criada e eu<br />
conseguimos escapar ao incêndio. A destruição foi completa. To<strong>do</strong>s os meus<br />
bens terrenos foram engoli<strong>do</strong>s pelo fogo e, desde então, resignei-me ao<br />
desespero.<br />
Estou acima da fraqueza de tentar estabelecer uma relação de causa e<br />
efeito entre o desastre e a atrocidade. Mas estou a relatar uma sequência de<br />
acontecimentos e espero não deixar nem um pequeno elo descuida<strong>do</strong>. No dia
124<br />
Traduções<br />
seguinte ao incêndio, visitei as ruínas. As paredes, excepto uma tinham<br />
desmorona<strong>do</strong>. Esta excepção era uma parede não muito grossa, de um<br />
compartimento que se situava mais ou menos no meio da casa, e junto da qual<br />
ficara a cabeceira da minha cama. Aqui, o gesso em grande parte resistira à<br />
acção <strong>do</strong> fogo – atribuí esse facto ao seu recente restauro. Em volta dessa<br />
parede, uma imensidão de pessoas se juntara e muitas pareciam examinar com<br />
bastante atenção e minúcia uma porção em particular dessa parede. As palavras<br />
“Estranho!”, “Singular!” e outras expressões similares despertaram-me a<br />
curiosidade. Aproximei-me e vi, como que grava<strong>do</strong> em baixo relevo na<br />
superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A impressão era de uma<br />
exactidão estupenda. Havia uma corda em volta <strong>do</strong> pescoço <strong>do</strong> animal.<br />
Quan<strong>do</strong> contemplei pela primeira vez esta aparição – porque dificilmente<br />
poderia considerá-la menos <strong>do</strong> que isso – a minha admiração e terror eram<br />
extremos. Mas finalmente a reflexão veio em meu auxílio. Lembrei-me que o<br />
gato fora enforca<strong>do</strong> num jardim junto a casa. Com o alarme de incêndio, este<br />
jardim enchera-se imediatamente com uma multidão e alguém devia ter tira<strong>do</strong> o<br />
animal da árvore atiran<strong>do</strong>-o, através da janela, para o meu quarto. Isto<br />
provavelmente fora feito com a intenção de me acordar. As outras paredes, ao<br />
caírem, prensaram a vítima da minha crueldade no gesso da parede que<br />
recentemente tinha si<strong>do</strong> coloca<strong>do</strong>. O gesso juntamente com as chamas e o<br />
amoníaco provocaram a imagem <strong>do</strong> esqueleto como se via.<br />
Apesar de assim prontamente me justificar perante a minha razão, não<br />
fazia o mesmo perante a minha consciência, pois o surpreendente<br />
acontecimento que acabo de relatar não deixou de me provocar uma profunda<br />
impressão. Durante meses, não me consegui livrar <strong>do</strong> fantasma <strong>do</strong> gato e,<br />
durante esse perío<strong>do</strong>, regressou ao meu espírito o sentimento que parecia, mas<br />
não era, de remorso. Cheguei ao ponto de lamentar a morte <strong>do</strong> animal e de<br />
procurar, nos vis antros que normalmente frequentava, um outro animal de<br />
estimação, da mesma espécie e com algumas semelhanças, que o pudesse<br />
substituir.<br />
Uma noite em que estava senta<strong>do</strong>, meio estupefacto, num antro mais <strong>do</strong><br />
que infame, a minha atenção foi despertada por um objecto preto que<br />
repousava num <strong>do</strong>s imensos barris de gin ou de rum, que constituíam a mobília<br />
<strong>do</strong> estabelecimento. Estava a olhar fixamente para o topo deste barril há já<br />
alguns minutos, e o que agora me surpreendia era o facto de não me ter<br />
apercebi<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> objecto, lá em cima. Aproximei-me e toquei-lhe com a<br />
mão. Era um gato preto – muito grande – tão grande como o Pluto e muito<br />
pareci<strong>do</strong> com ele em to<strong>do</strong>s os aspectos, excepto num: Pluto não tinha um só
Edgar Allan Poe 125<br />
pêlo branco em qualquer parte <strong>do</strong> corpo, mas este gato tinha uma grande<br />
mancha branca, apesar de indefinida, cobrin<strong>do</strong> toda a região <strong>do</strong> peito.<br />
Ao acariciá-lo, imediatamente se levantou, ronronan<strong>do</strong> alto, esfregan<strong>do</strong>-se<br />
contra a minha mão, parecen<strong>do</strong> que a minha atenção lhe causava prazer. Este<br />
era, então, o animal que procurava. Imediatamente, propus-me a comprá-lo ao<br />
<strong>do</strong>no <strong>do</strong> estabelecimento, mas ele não manifestou interesse no bicho, não o<br />
conhecia e nunca o tinha visto.<br />
Continuei a acariciá-lo e, quan<strong>do</strong> me preparava para regressar a casa, o<br />
animal demonstrou querer acompanhar-me. Permiti que o fizesse, curvan<strong>do</strong>-me<br />
ocasionalmente para o acariciar. Quan<strong>do</strong> chegou a casa, <strong>do</strong>mesticou-se<br />
rapidamente e tornou-se um <strong>do</strong>s predilectos da minha esposa.<br />
Da minha parte, rapidamente deixei de gostar que ele se enroscasse em<br />
mim. Isto era simplesmente o inverso daquilo que eu esperava. Não sabia nem<br />
como nem porquê, a sua ternura por mim repelia-me e aborrecia-me. Aos<br />
poucos, estes sentimentos de repulsa e de aborrecimento transformaram-se no<br />
mais amargo ódio. Evitava a criatura, um vago sentimento de vergonha e de<br />
recordação <strong>do</strong> acto cruel cometi<strong>do</strong> impediam-me de o maltratar fisicamente.<br />
Durante semanas, não lhe bati, nem pratiquei qualquer acto violento, mas<br />
gradualmente – muito gradualmente – comecei a sentir por ele uma inexplicável<br />
repugnância e fugia silenciosamente da sua odiosa presença, como se fosse o<br />
bafo da peste.<br />
Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta,<br />
na manhã seguinte a trazê-lo para casa, que, tal como Pluto, também ele fora<br />
priva<strong>do</strong> de um <strong>do</strong>s seus olhos. Porém, esta situação só fez com que a minha<br />
esposa sentisse um enorme carinho por ele, ela que, como já disse, ela tinha<br />
uma enorme ternura, traço que outrora tinha si<strong>do</strong> uma das minhas<br />
características e a fonte de muitos <strong>do</strong>s meus prazeres mais simples e puros.<br />
Todavia, apesar da minha aversão por este gato, a sua preferência por mim<br />
parecia aumentar. Ele seguia as minhas pegadas com uma pertinência que<br />
dificilmente o leitor compreenderia. Sempre que me sentava, ele agachava-se<br />
debaixo da minha cadeira, ou saltava para as minhas pernas, cobrin<strong>do</strong>-me com<br />
as suas carícias repugnantes. Se me levantava para caminhar, ele metia-se entre<br />
as minhas pernas e quase me derrubava, ou cravava as suas garras grandes e<br />
afiadas na minha roupa, subin<strong>do</strong> assim até ao meu peito. Nessas ocasiões,<br />
apesar de me apetecer matá-lo com um só golpe, conseguia conter-me, em<br />
parte devi<strong>do</strong> à lembrança <strong>do</strong> crime que anteriormente cometera, mas<br />
principalmente – confesso –, pelo pavor que tinha <strong>do</strong> animal.
126<br />
Traduções<br />
Este me<strong>do</strong> não era um me<strong>do</strong> físico e, contu<strong>do</strong>, não saberia defini-lo de<br />
outra forma. Quase me envergonho de o confessar – sim, mesmo nesta cela de<br />
criminoso, quase me envergonho de o confessar – que o terror e o horror que o<br />
animal me inspirava aumentavam pela mais irrisória quimera que se possa<br />
imaginar. A minha esposa chamara a atenção, mais <strong>do</strong> que uma vez, para o<br />
aspecto da mancha branca, à qual já me referi, e que era a única diferença entre<br />
o estranho animal e aquele que eu matei. O leitor lembrar-se-á que esta marca,<br />
apesar de grande, era originalmente muito indefinida, mas aos poucos – de uma<br />
maneira quase imperceptível e que durante muito tempo a minha Razão lutou<br />
por rejeitar como fantasia – tomou uma forma de contornos distintos. Era,<br />
agora, a representação de um objecto que estremeço ao nomear – e, por isso,<br />
acima de tu<strong>do</strong>, encarava-o como um monstro de horror e repugnância e livrarme-ia<br />
dele se me atrevesse – era agora, digo eu, a imagem de uma FORCA<br />
horrível e hedionda! – Oh, sinistro e terrível engenho de Horror e Crime – de<br />
Agonia e de Morte!<br />
Agora, eu era com certeza um desgraça<strong>do</strong> mais miserável <strong>do</strong> que a<br />
miserável Humanidade. E a besta bruta – cujo semelhante destruí de uma<br />
forma desprezível – uma besta bruta que se apoderara de mim – um homem<br />
feito à imagem <strong>do</strong> Deus Altíssimo – que grande e insuportável infortúnio! Ai de<br />
mim! Nem de dia nem de noite conheci jamais a bênção <strong>do</strong> Descanso! Durante<br />
o dia, a criatura não me deixava em paz e, de noite, de hora em hora, acordava<br />
de sonhos de indescritível me<strong>do</strong>, encontran<strong>do</strong> o hálito quente da coisa no meu<br />
rosto, e o seu peso desmedi<strong>do</strong> – um Pesadelo incarna<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual não tinha<br />
forças para sair – incuba<strong>do</strong> eternamente no meu coração! Devi<strong>do</strong> à pressão de<br />
tormentas como esta, o pouco de bom que em mim restava sucumbiu. Maus<br />
pensamentos tornaram-se os meus únicos amigos – os mais sombrios e<br />
sórdi<strong>do</strong>s pensamentos. A minha rabugice usual transformou-se em ódio por<br />
todas as coisas e por toda a humanidade, enquanto vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> nada,<br />
frequentemente e de uma forma desmesurada, era possuí<strong>do</strong> por ataques de<br />
raiva, aos quais passei a aban<strong>do</strong>nar-me cegamente e a minha esposa, que não se<br />
queixava – pobre dela – era quem mais vezes e mais pacientemente sofria.<br />
Um dia, ela acompanhou-me, para me ajudar em algumas tarefas<br />
<strong>do</strong>mésticas na cave <strong>do</strong> velho edifício que a nossa pobreza nos obrigava a<br />
habitar. O gato seguiu-me pelas escadas abaixo e quase me fez cair de cabeça,<br />
exasperan<strong>do</strong>-me ao ponto de perder o juízo. Peguei num macha<strong>do</strong> que até<br />
então tinha na mão e, esquecen<strong>do</strong> o me<strong>do</strong> ingénuo, arremessei-o ao animal;<br />
este gesto teria si<strong>do</strong> mortal se o gato tivesse desci<strong>do</strong> como desejei. Mas o golpe<br />
foi trava<strong>do</strong> pela mão da minha esposa. Enlouqueci<strong>do</strong> com este reflexo dela,
Edgar Allan Poe 127<br />
<strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por uma raiva mais <strong>do</strong> que demoníaca, libertei-me <strong>do</strong>s braços dela e<br />
cravei-lhe o macha<strong>do</strong> no cérebro. Ela caiu morta instantaneamente, sem um<br />
único gemi<strong>do</strong>.<br />
Cometi<strong>do</strong> este hedion<strong>do</strong> assassinato, dispus-me de imediato, e com total<br />
deliberação, a esconder o corpo. Sabia que não o podia tirar de casa, fosse de<br />
dia ou de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Muitas ideias me<br />
passaram pela cabeça. Por um instante, pensei em cortar o corpo em pequenos<br />
pedaços e destruí-los através <strong>do</strong> fogo. Lembrei-me de cavar uma fossa no chão<br />
da cave para o enterrar. Em seguida, lembrei-me de o atirar ao poço <strong>do</strong> quintal<br />
– metê-lo num caixote como se fosse merca<strong>do</strong>ria e arranjar maneira de fazer<br />
com que um carrega<strong>do</strong>r o tirasse de casa.<br />
Finalmente, surgiu-me uma ideia que considerei de longe mais<br />
concretizável <strong>do</strong> que qualquer uma destas. Decidi emparedá-la na cave – como<br />
os monges da Idade Média faziam com as suas vítimas.<br />
Para um propósito como este, a cave era o indica<strong>do</strong>. As paredes não<br />
haviam si<strong>do</strong> muito bem construídas e recentemente haviam si<strong>do</strong> rebocadas com<br />
gesso, que a atmosfera húmida não deixou endurecer. Ainda por cima, numa<br />
das paredes existia uma saliência, devi<strong>do</strong> a uma chaminé ou lareira que fora<br />
tapada para se assemelhar ao resto da cave. Achei que facilmente conseguiria<br />
retirar os tijolos naquele lugar, colocar lá o corpo e levantar de novo a parede<br />
de maneira a que ninguém pudesse detectar algo suspeito.<br />
E os meus cálculos não estavam erra<strong>do</strong>s. Com a ajuda de um pé de cabra,<br />
facilmente desloquei os tijolos e cuida<strong>do</strong>samente coloquei o corpo contra a<br />
parede interior. Segurei-o nessa posição, enquanto, sem muito esforço, coloquei<br />
de novo a estrutura como era originalmente. Consegui arranjar cimento, areia e<br />
cal e, com to<strong>do</strong>s os cuida<strong>do</strong>s possíveis, preparei uma argamassa que não se<br />
conseguia distinguir da anterior, com a qual cobri escrupulosamente a parede<br />
nova. Quan<strong>do</strong> terminei, senti-me satisfeito pois tu<strong>do</strong> correu bem. A parede não<br />
apresentava o menor sinal de ter si<strong>do</strong> alterada. Limpei o chão minuciosamente<br />
– olhei em re<strong>do</strong>r, triunfante, e disse para mim mesmo: “Ao menos aqui o meu<br />
trabalho não foi em vão”.<br />
O passo seguinte foi procurar o animal que causara tanta infelicidade, pois<br />
finalmente tinha resolvi<strong>do</strong> matá-lo. Se eu o tivesse encontra<strong>do</strong> naquele<br />
momento não haveria dúvida <strong>do</strong> seu destino, mas parecia que o esperto animal<br />
se tinha alarma<strong>do</strong> com a violência da minha raiva e procurava não aparecer<br />
diante de mim enquanto eu estivesse naquele esta<strong>do</strong> de espírito. É impossível<br />
descrever, ou imaginar, o enorme alívio que a ausência de tão detestável criatura<br />
provocava no meu peito. Não apareceu durante a noite – e assim, pelo menos
128<br />
Traduções<br />
por uma noite, desde que ele entrara em casa consegui <strong>do</strong>rmir tranquila e<br />
profundamente; sim, <strong>do</strong>rmi mesmo com o peso na consciência daquele<br />
assassínio!<br />
O segun<strong>do</strong> e terceiro dias passaram e o meu algoz não aparecia. Voltava a<br />
respirar como um homem livre. O monstro aterroriza<strong>do</strong> fugira para sempre.<br />
Não tornaria a vê-lo! A minha felicidade era suprema. A culpa da minha terrível<br />
acção perturbava-me, mas pouco. Algumas investigações foram feitas, às quais<br />
respondi prontamente. Avançou-se mesmo com uma busca – mas claro que<br />
nada poderia ser descoberto. Considerava já como certa a minha felicidade<br />
futura.<br />
Ao quarto dia após o assassinato, um destacamento policial chegou<br />
inesperadamente a casa para levar a cabo uma nova investigação rigorosa. No<br />
entanto, estava tão seguro que ninguém encontraria o meu esconderijo<br />
inescrutável, que não senti qualquer perturbação. Os polícias pediram-me que<br />
os acompanhasse na sua busca. Não deixaram esquina ou recanto por explorar.<br />
Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram à cave. Não retesei um músculo.<br />
O meu coração batia calmamente como o de um inocente. Percorri a cave de<br />
lés a lés, cruzei os braços sobre o peito e vagueei de um la<strong>do</strong> para o outro.<br />
A polícia estava completamente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo<br />
que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia<br />
por dizer nem que fosse uma palavra, a comemoração <strong>do</strong> triunfo, e também<br />
por tornar duplamente evidente a minha inocência.<br />
– Senhores – disse, por fim, enquanto os polícias subiam as escadas, – fico<br />
contente por ter desfeito qualquer suspeita. Desejo a to<strong>do</strong>s saúde e um pouco<br />
mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito<br />
bem construída – (na minha vontade louca de dizer algo com naturalidade,<br />
dificilmente sabia o que estava a dizer).<br />
– Poderia dizer que é uma casa muito bem construída. Estas paredes – os<br />
senhores já se vão? – Estas paredes são de grande solidez. – Nessa altura,<br />
movi<strong>do</strong> por pura e frenética fanfarronice, bati com força, com a bengala que<br />
tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da<br />
esposa <strong>do</strong> meu coração.<br />
Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas<br />
mergulhou no silêncio, uma voz respondeu-me <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da tumba! – Primeiro<br />
como um choro entrecorta<strong>do</strong> e abafa<strong>do</strong> como os soluços de uma criança,<br />
aumentan<strong>do</strong> para um grito prolonga<strong>do</strong> completamente anormal e inumano –<br />
um uivo – um grito agu<strong>do</strong>, meio horror e meio triunfo, como que saí<strong>do</strong> <strong>do</strong>
Edgar Allan Poe 129<br />
inferno, da garganta <strong>do</strong>s condena<strong>do</strong>s em agonia e <strong>do</strong>s demónios exultantes com<br />
a sua condenação.<br />
Dos meus pensamentos será loucura falar. Quase desfalecen<strong>do</strong>, cambaleei<br />
até à parede em frente. Por um instante, os polícias ao cimo da escada<br />
detiveram-se, imobiliza<strong>do</strong>s pelo terror. No instante seguinte, uma dúzia de<br />
braços vigorosos fizeram a parede cair por terra. O cadáver, já em adianta<strong>do</strong><br />
esta<strong>do</strong> de decomposição e coberto de sangue coagula<strong>do</strong>, apareceu erecto em<br />
frente <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res. Sobre a sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o<br />
seu solitário olho chamejante, estava o odioso animal, cuja astúcia me levou ao<br />
assassínio e cuja voz revela<strong>do</strong>ra me entregou ao carrasco.<br />
Tinha empareda<strong>do</strong> o monstro dentro da tumba!<br />
Trad. de Maria da Assunção Norinho e Sérgio Alves 1<br />
1 Alunos da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />
Tradução Especializada.
THE DANGERS OF LAUGHING<br />
José Eduar<strong>do</strong> Agualusa<br />
DOS PERIGOS DO RISO, 1999<br />
It was only when we stopped the jeep that I saw them. There they were, by<br />
the side of the road, half hidden in the din of the sunset – the old man and his<br />
lizards. They were huge lizards and they had a wrinkled neck like the old man‟s,<br />
and the same small mysterious eyes. He noticed my interest and told me how<br />
much they cost:<br />
“Five million, mate. Each”.<br />
It seemed to be a fair price. It was worth arguing over:<br />
“Five million?! For five million, only if they spoke…”<br />
The old man looked at me very seriously:<br />
“Well, as for speaking, they speak very little, mate. But they laugh a lot”.<br />
The lizards, laugh?! What did they laugh at? The old man shrugged. He<br />
didn‟t know. They laughed for no reason at all like only the mad <strong>do</strong>, they<br />
laughed at one another while sunbathing. I thought the old man deserved the<br />
money, were it only for his answer. I gave him the five bills, which he carefully<br />
smoothed out before minding in his pocket. Then he gave me the largest lizard<br />
of them all:<br />
“This one‟s called Leopoldino, and it‟s the most smartest”.<br />
I wanted to know what he ate. The old man explained that the animal<br />
knew how to take care of itself. It fed off flies, cockroaches, mosquitoes, it kept<br />
the house free of insects. I tried to play around a little:<br />
“And we can even tell it jokes, can‟t we?”<br />
The old man didn‟t answer me. He leaned over the lizards and told them<br />
something. He seemed to speak another language. He spoke a breeze, a whistle,<br />
a humid little vegetable whisper. I got into the jeep and sat and waited as I saw<br />
him disappear, a sha<strong>do</strong>w in the darkness of night, with the feeling that it was<br />
he, that it was he who had made fun of me.<br />
But, when we were almost reaching Sumbe, the lizard started laughing. I<br />
know it seems weird, but it‟s the pure truth: Leopoldino laughed. It didn‟t laugh<br />
exactly like a person, of course, it laughed like a person resembling a lizard, but<br />
it was laughing nevertheless. They were dry, cynical laughs, which echoed
José Eduar<strong>do</strong> Agualusa 131<br />
through the jeep in a vaguely frightening way. I heard it and didn‟t feel like<br />
laughing. My friend, who was driving the jeep, was even more restless:<br />
“What is that animal laughing at?”<br />
I shrugged (like the old man had <strong>do</strong>ne). And how was I supposed to<br />
know? Maybe it was one of those that laughed for no reason at all, like only the<br />
mad <strong>do</strong>. I told him that this species of lizards communicate with one another,<br />
laughing out loud while sunbathing. However, my friend had another opinion:<br />
“No!” he said. “It‟s obviously laughing at us!…”<br />
That supposition built up distrust in the jeep. I opened the shoebox where<br />
I had placed Leopoldino and placed it on the control panel in front of us. Its<br />
eyes were very old. The whole of it was very old.<br />
We watched each other, the three of us, in silence. Leopoldino gave us a<br />
defying look, maybe a little arrogant, but I didn‟t discover in those eyes the<br />
slightest flare of irony.<br />
I tried to calm my friend <strong>do</strong>wn:<br />
“Parrots laugh, they even speak, but their laughter, or the things they say,<br />
<strong>do</strong>n‟t have any meaning. Well, reptiles are related to birds, so why wouldn‟t<br />
lizards be capable of imitating man‟s laughter?”<br />
My friend was beginning to get nervous:<br />
“Don‟t bullshit me! I know very well when a lizard is laughing at me…”<br />
If you put it that way, it was already a personal matter. A laugh out loud<br />
can be much worse than the worst insult. On top of that, Leopoldino‟s laughter<br />
opened the <strong>do</strong>or to different speculations: it could be laughing at our human<br />
repulsiveness (reptiles must find us very ugly); it could be laughing at the<br />
stupidity of two individuals who buy a lizard, on the road from Luanda to<br />
Sumbe, for 5 million kwanzas; or maybe it might know something (about us)<br />
that would be best no one knew (not even our conscience). I only said this to<br />
make conversation, but my poor friend took me seriously:<br />
“It must be because of what happened with Ana”, he whispered gloomily,<br />
“that damned animal knows too much.”<br />
I didn‟t know what had happened between him and Ana; I didn‟t even<br />
know who Ana was, but I thought it would be best to keep quiet. It must have<br />
been something incredibly ridiculous. If he had told me, maybe I wouldn‟t have<br />
been able to restrain myself from laughing. And if I had laughed there and then,<br />
that would have been the end of our friendship.<br />
“I haven‟t told you the worst part yet”, I confessed; “If we‟re to believe<br />
the old man, then it can also speak.”<br />
“It speaks, the animal speaks?! No, that‟s too much...”
132<br />
Traduções<br />
He pulled over at the side of the road and, keeping the headlights on, he<br />
jumped out of the jeep onto the road. In his right hand, he held a gun.<br />
“I‟m going to kill that damned animal!”<br />
It was the first time I saw him with a gun. I got out of the jeep in shock.<br />
“Of course you‟re not. The lizard‟s mine”.<br />
He looked at me and I realized that he wasn‟t joking. My friend had been<br />
through the war. Two years in Cuito Cuanavale.<br />
“The lizard‟s mine”, I told him, “let me be the one to handle it.”<br />
I took the gun out of his hand, grabbed the shoebox Leopoldino was in<br />
and moved a few meters away into the bushes. The jeep‟s headlights lit up the<br />
dry grass, the huge cactuses, the large outline of a baobab tree. In the immense<br />
clear and starry night, all you could hear was the hoarse singing of a cricket. I<br />
put the box <strong>do</strong>wn on the floor, I pointed at it and fired three shots. As the echo<br />
of the last gunshot dispersed, there was an unearthly silence.<br />
And then, suddenly, a burst of gunfire from a machine-gun, to my left,<br />
stirred up the night. I stood there, for a moment numb with fear, then turned<br />
towards the jeep and started to run. Behind me, drowning out the roar of<br />
gunfire, I distinctly heard Leopoldino‟s dry laugh.<br />
My friend was already sitting at the wheel.<br />
“Hurry up, muadiê, you‟ve got some bad luck, looks like you started a war.”<br />
As we dived swiftly into the night, with the lights off, he turned to me and<br />
asked,<br />
“Did you kill the animal?”<br />
I answered with a grumble. All I wanted was to get out of there.<br />
“It had to be that way”, said my friend, and his smile glowed in the dark.<br />
“The guy knew too much!...”<br />
Trad. de Marilene Ribeiro 1<br />
1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />
Tradução Especializada.
Saúl Dias<br />
RETRATO, in Essência, 1973<br />
I<br />
Inventei rosas para o teu cabelo<br />
rosas de um azulino tom<br />
e estranho gineceu.<br />
Ornei teu colo<br />
com flores <strong>do</strong> campo<br />
que o campo nunca deu.<br />
Fiz brilhar teu vesti<strong>do</strong><br />
com pedras de irreais cores.<br />
Circundei-te de pequeninos amores.<br />
Dos fun<strong>do</strong>s arvore<strong>do</strong>s<br />
escutei os segre<strong>do</strong>s.<br />
E fui buscar às águas <strong>do</strong>s ribeiros<br />
a transparência, os cheiros,<br />
a fluida cor.<br />
Com um pincel grato<br />
pintei o teu retrato<br />
só pelo interior.<br />
II<br />
Desenhei flores<br />
prolongan<strong>do</strong>-te os de<strong>do</strong>s.<br />
Na tua boca<br />
tentei por os segre<strong>do</strong>s<br />
da Gioconda.<br />
Nos teus seios<br />
fiz espraiar a onda<br />
de inconti<strong>do</strong>s desejos.<br />
E, em re<strong>do</strong>r de ti,<br />
um halo, um halali...
PORTRAIT<br />
I<br />
I invented roses for your hair,<br />
roses of a bluish hue<br />
and strange gynaeceum.<br />
I a<strong>do</strong>rned your neck<br />
with wild flowers<br />
that the wild never knew.<br />
I made your dress aglow<br />
with stones of unreal gloss.<br />
I inclosed you in tiny love-me-nots.<br />
From deep in the trees<br />
I harkened the secrets.<br />
And took from the waters of springs<br />
the transparency, the scents,<br />
the color liquefied.<br />
With grateful brush<br />
did I paint your portrait<br />
only from the inside.<br />
II<br />
I drew flowers<br />
to prolong your fingers.<br />
In your mouth<br />
I tried to fit<br />
the secrets of Mona Lisa.<br />
On your breasts<br />
I broke the wave<br />
of unrestrained desire.<br />
And, all about you,<br />
a halo, a halloo...<br />
Trad. de Paula Ramalho Almeida
135
tradução e multimédia
A TRADUÇÃO NUM MUNDO GLOBALIZADO<br />
– DA ARTE À LINHA DE MONTAGEM<br />
Alexandra Albuquerque e Maria de Lurdes Guimarães<br />
INTRODUÇÃO<br />
Na última década, essencialmente devi<strong>do</strong> ao uso crescente de tecnologias –<br />
das quais se destaca a Internet – e às globalização da economia, virtualização <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> e “industrialização da comunicação” (Sager, 1993:1) daí resultantes,<br />
todas as profissões sofreram alterações ao nível <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s, processos e<br />
ferramentas de trabalho. A profissão de tradutor – como actividade de<br />
comunicação que é – não foi excepção, principalmente a <strong>do</strong>s tradutores de<br />
textos técnicos e científicos. Assim, até os tradutores mais conserva<strong>do</strong>res e<br />
tradicionais – fecha<strong>do</strong>s nas suas torres de marfim, dedica<strong>do</strong>s à arte da tradução,<br />
rodea<strong>do</strong>s de páginas e páginas de papel de in-fólios utiliza<strong>do</strong>s e reutiliza<strong>do</strong>s em<br />
quase to<strong>do</strong>s os textos a traduzir – já se aperceberam de que o papel impresso<br />
não acompanha o ritmo de desenvolvimento da ciência e da tecnologia e de que<br />
é preciso recorrer a outras ferramentas para não ficar para trás. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
os sucessivos avanços ao nível da Tradução Automática (TA), que, em algumas<br />
situações, oferece resulta<strong>do</strong>s bastante satisfatórios, com a vantagem de ser mais<br />
rápida e económica 1 , criaram o espectro da extinção da Tradução Humana e, a<br />
mais curto prazo, <strong>do</strong> desemprego, obrigan<strong>do</strong> o tradutor a estar atento e a<br />
desenvolver novas competências. No entanto, sobre a TA falaremos mais<br />
adiante.<br />
Num mun<strong>do</strong> onde até a comunicação e a(s) linguagem(s) já foram<br />
industrializadas – basta lembrarmos quantas cartas já não se escrevem porque<br />
há o telefone, o e-mail ou o SMS... –, o tradutor é, cada vez mais, um<br />
aprendente, investiga<strong>do</strong>r e “camaleão”, que não pode pensar que com um curso<br />
de Línguas e/ou uma especialização e com conhecimentos de Word tem<br />
trabalho garanti<strong>do</strong> para o resto da vida, mas terá de saber quan<strong>do</strong> deve adquirir,<br />
manter ou largar uma área de especialização, onde fazer a aprendizagem<br />
necessária de uma forma rápida e económica, e quais as tecnologias que deve<br />
<strong>do</strong>minar.<br />
O tradutor, hoje em dia, tem de manter-se, acima de tu<strong>do</strong>, actualiza<strong>do</strong>,<br />
uma vez que a tradução é um negócio, e cada vez mais um negócio de<br />
segun<strong>do</strong>s, que vive da lei da oferta e da procura e cujo sucesso ou fracasso
A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 139<br />
depende, em primeiro lugar, de “estar no local certo à hora certa” e, em<br />
segun<strong>do</strong> lugar, de conseguir realizar um bom trabalho que satisfaça o cliente de<br />
forma a fidelizá-lo e a rendibilizar o eventual investimento realiza<strong>do</strong>. Ora, isto<br />
só é possível se (i) o tradutor dispuser de um bom sistema de comunicação –<br />
com o mun<strong>do</strong> e com o cliente – (ii) conseguir aceder rápida e eficazmente à<br />
informação de que necessita e (iii) criar e actualizar bases de da<strong>do</strong>s e memórias<br />
de tradução, de mo<strong>do</strong> a facilitar, acelerar e melhorar trabalhos futuros.<br />
Finalmente, no mun<strong>do</strong> globaliza<strong>do</strong> em que vivemos, o tradutor enfrenta,<br />
ainda, outros desafios: o da solidão no meio de muita gente e o da existência<br />
virtual. Se, desde sempre, a tradução exigiu alguma solidão, até há algum tempo,<br />
essa solidão poderia ser atenuada pelo facto de o tradutor se sentir uma peça<br />
fundamental e decisiva no processo tradutivo: era ele e o cliente ou, na pior das<br />
hipóteses, ele, a agência e o cliente e, sempre que necessário, poderia<br />
estabelecer-se contacto pessoal ou telefónico. Assim, os nomes, de uns e de<br />
outros, tinham rosto, corpo e existência palpável. Por outro la<strong>do</strong>, a tradução<br />
estava praticamente dependente <strong>do</strong> tradutor, poden<strong>do</strong>, para além dele, haver<br />
eventualmente um revisor. Actualmente, este cenário alterou-se por completo e<br />
o tradutor mais não é que um “operário” na linha-de-montagem em que o<br />
processo tradutivo se tornou. Hoje em dia, os trabalhos de tradução são<br />
projectos, em que hierarquicamente acima <strong>do</strong> tradutor, ou melhor, <strong>do</strong>s<br />
tradutores – porque em grandes trabalhos de tradução há sempre uma equipa<br />
de tradutores, onde cada um monta uma parte <strong>do</strong> texto – há outros elementos,<br />
<strong>do</strong> revisor ao gestor de projectos. A gestão desses projectos é, muitas vezes,<br />
feita virtualmente e o tradutor não passa de um nome ou de uma referência<br />
numa bolsa de mão-de-obra, não ten<strong>do</strong> contacto palpável com o cliente ou com<br />
a agência. A tradução é, cada vez mais, uma tele-profissão: um projecto<br />
americano, por exemplo, pode ser realiza<strong>do</strong> por tradutores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inteiro.<br />
1. Algumas estratégias de sobrevivência<br />
1.1 Não basta ser bom, há que ser o melhor!<br />
Numa actividade dependente das leis <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, o tradutor está ainda<br />
sujeito à exigência de qualidade das empresas que solicitam trabalhos de<br />
tradução. Como diz Wright (1993: 85):<br />
[...] A company‟s commitment to high quality is reflected in its literature and<br />
product <strong>do</strong>cumentation. Quality-minded industries increasingly emphasize the<br />
theory that company quality is only as high as the standard maintained by its leastquality-conscious<br />
employees. Translators cannot afford to be an exception to this<br />
concern.
140<br />
Tradução e Multimédia<br />
Embora saben<strong>do</strong> que, infelizmente, esta nem sempre é a orientação das<br />
empresas de tradução e que muitas ainda se pautam pelo critério <strong>do</strong> preço e não<br />
pelo da qualidade, estamos igualmente conscientes de que a imagem,<br />
nomeadamente a que panfletos, páginas Web, etc. transmitem é, cada vez mais,<br />
um cartão de visita que pode abrir (ou não) muitas portas num mun<strong>do</strong> global<br />
multilingue. Como tal, o tradutor tem que ter como lema a qualidade, pelo que:<br />
– deve <strong>do</strong>minar a(s) língua(s) de partida e de chegada como um nativo<br />
(muito especialmente a de chegada, de mo<strong>do</strong> a não limitar a sua tradução<br />
ao “meramente correcto” (ibidem: 69) e poder transferir o conteú<strong>do</strong> com<br />
correcção estilística, respeitan<strong>do</strong> os valores culturais envolvi<strong>do</strong>s);<br />
– deve especializar-se, mas em mais <strong>do</strong> que uma área.<br />
De facto, um bom tradutor não tem que saber traduzir tu<strong>do</strong>, mas também<br />
não se pode limitar a traduzir apenas uma área: há que ser especialista em várias<br />
matérias e, acima de tu<strong>do</strong>, ir mudan<strong>do</strong> de área conforme as necessidades <strong>do</strong><br />
merca<strong>do</strong>.<br />
– deve ter uma boa capacidade de adaptação e de aprendizagem: deixar<br />
uma área que já não tenha procura e trabalhar numa nova, de forma a<br />
procurar novos clientes que substituam os perdi<strong>do</strong>s; estar sempre<br />
actualiza<strong>do</strong>; procurar <strong>do</strong>minar novas ferramentas de trabalho (software,<br />
hardware, recursos, fontes de informação, etc.); saber viver na constante<br />
incerteza;<br />
– ser tecnocrata. No contexto actual, é impensável ser tradutor sem<br />
recorrer às Tecnologias de Informação e de Comunicação (TIC).<br />
Começan<strong>do</strong> pelo indispensável PC, passan<strong>do</strong> pelo software para tradução<br />
(quer ao nível da tradução automática, quer ao nível da tradução assistida),<br />
pelo correio electrónico e, claro, pela Internet, só para dar alguns<br />
exemplos, o tradutor tem de, forçosamente, <strong>do</strong>minar estas ferramentas se<br />
quiser “existir” e trabalhar. De facto, muitos clientes praticamente já só<br />
comunicam com o tradutor através de correio electrónico – o que,<br />
seguramente, será prática generalizada nos próximos anos – e a grande<br />
maioria <strong>do</strong>s Textos de Partida (TP) são ficheiros electrónicos, geralmente<br />
anexos à mensagem de correio electrónico. Por outro la<strong>do</strong>, e como<br />
veremos mais pormenorizadamente à frente, a Internet, e muito<br />
especialmente a World Wide Web (WWW), já fazem parte <strong>do</strong> quotidiano de<br />
qualquer tradutor, quer como ferramenta de trabalho, quer como anúncios<br />
classifica<strong>do</strong>s;<br />
– deve construir, à medida que vai traduzin<strong>do</strong>, memórias de tradução e<br />
bases terminológicas. Este trabalho extra revelar-se-á muito útil em<br />
projectos futuros, no que se refere (i) à poupança de tempo de pesquisa 2 e<br />
de tradução e (ii) à qualidade <strong>do</strong> serviço presta<strong>do</strong>.
A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 141<br />
Na tradução técnico-científica, o <strong>do</strong>mínio da terminologia é, sem dúvida,<br />
essencial: um bom tradutor técnico tem que ser também um bom terminólogo.<br />
Como tal, é necessário que saiba fazer glossários – pois, muitas vezes, os<br />
faculta<strong>do</strong>s pelo cliente não são de grande utilidade, mais não sen<strong>do</strong> que meras<br />
listas de termos sem fonte ou contexto, o que pouco ou nada ajuda um tradutor<br />
consciente da polissemia que também perpassa os termos técnicos – e que os<br />
actualize à medida que vai realizan<strong>do</strong> outros trabalhos na mesma área. Por<br />
outro la<strong>do</strong>, as memórias de tradução – recurso de que um bom tradutor já não<br />
pode prescindir – rendibilizam ao máximo o trabalho anterior <strong>do</strong> tradutor,<br />
evitan<strong>do</strong> que este tenha de traduzir o que já traduziu num outro texto,<br />
aumentan<strong>do</strong> assim a sua produtividade.<br />
Concluin<strong>do</strong>, a união entre (i) a “cross-lingual and cross-cultural transfer of<br />
information” (Austermühl, 2001: 12) – alian<strong>do</strong>, neste processo de transferência<br />
<strong>do</strong>s TP para o Texto de Chegada (TC), “clareza, concisão e correcção”<br />
(Herman, 1993: 11) a “soluções estilisticamente apropriadas” (Wright, 1993: 70) –<br />
reforçada pelo (ii) bom conhecimento da área de trabalho e (iii) pelo uso da(s)<br />
tecnologia(s) adequada(s) fará de qualquer tradutor um excelente profissional.<br />
1.2 Do linguista ao especialista e vice-versa<br />
Já é velha a questão: “quem traduz melhor? O linguista ou o especialista?”<br />
mas, até agora, ainda não se conhece nenhum estu<strong>do</strong> que comprove claramente<br />
a maior vocação de um ou de outro. De facto, e porque estamos a lidar com (i)<br />
um acto de comunicação, (ii) pessoas e (iii) com tu<strong>do</strong> o que (ii) implica (<strong>do</strong>m,<br />
formação, capacidade de trabalho, personalidade, etc.), esta pergunta não tem<br />
resposta fácil. Em alguns casos será o linguista e noutros o especialista. Estu<strong>do</strong>s<br />
realiza<strong>do</strong>s em Honolulu e Poznan (Niedzielski e Chernovaty, 1993), com<br />
<strong>do</strong>utoran<strong>do</strong>s e alunos <strong>do</strong> ensino secundário, provaram que, mais <strong>do</strong> que ser<br />
uma coisa ou outra, há que ter talento e já alguma tendência inata. Depois, quer<br />
o linguista-especialista, quer o especialista-linguista traduz bem conteú<strong>do</strong>s se<br />
tiver “maturidade e experiência nalguma área” (ibidem: 139). Ora, essa<br />
experiência tanto pode ser adquirida em formação de base – no caso <strong>do</strong>s<br />
especialistas – ou numa formação ao longo da vida – no caso <strong>do</strong>s linguistas. A<br />
formação então adquirida terá de ser, num caso e noutro, suficiente mas não<br />
necessariamente igual, uma vez que, segun<strong>do</strong> os mesmos autores, “the techical<br />
knowledge required of a translator depends on the degree of technicality of the<br />
text.” (ibidem).<br />
Mas não terão também os especialistas que se tornar linguistas? Da mesma<br />
forma que não basta ter conhecimentos linguísticos para traduzir, também não
142<br />
Tradução e Multimédia<br />
basta ser especialista numa área. O tradutor tem de ter capacidades de escrita<br />
bem desenvolvidas na língua alvo. É por isso que muitos bilingues não estão<br />
necessariamente talha<strong>do</strong>s para a tradução. O tradutor deve ainda possuir um<br />
conhecimento bastante completo em terminologia, estilo e das línguas de e para<br />
que traduz, ou seja, o tradutor deverá ser tanto especialista da língua como das<br />
áreas com que trabalha. Porém, o tradutor é sobretu<strong>do</strong> um especialista da língua<br />
e a sua especificidade reside na capacidade de transferência de informação e de<br />
ideias de uma língua para outra, ou seja, em ser mestre na comunicação<br />
intercultural:<br />
Documents must speak “the language” of the target audience and should<br />
resemble other texts produced within that particular language community and<br />
subject <strong>do</strong>main. Furthermore, target language texts should in no way offend<br />
ethnic, sexual or other culture-related sensibilities. In some cases, differences in<br />
text type applications from language/society1 to language/society2 require drastic<br />
revision of even apparently straightforward, factual <strong>do</strong>cuments. (Wright, 1993: 70)<br />
1.3 Domínio de novas ferramentas de trabalho<br />
As “novas” ferramentas são sobretu<strong>do</strong> electrónicas (em formato digital ou<br />
em linha) e, ao contrário das ferramentas “clássicas”, em papel, conseguem<br />
acompanhar muito melhor o desenvolvimento terminológico da ciência e da<br />
técnica, pelo que, quan<strong>do</strong> bem utilizadas, podem optimizar o desempenho <strong>do</strong><br />
tradutor. A eficiente utilização das mesmas passa, essencialmente, por as saber<br />
compatibilizar com os diversos estádios <strong>do</strong> processo tradutivo (Austermühl,<br />
2001: 11) que, segun<strong>do</strong> o modelo de Holmes (apud Austermühl), são três:<br />
– Recepção (<strong>do</strong> TP);<br />
– Transferência (adaptação linguística e cultural <strong>do</strong> TC);<br />
– Formulação (<strong>do</strong> TC).<br />
Cada um destes estádios, embora interdependentes, exige ferramentas<br />
diferentes, devi<strong>do</strong> à sua especificidade. O primeiro – Recepção – baseia-se na<br />
descodificação da informação linguística <strong>do</strong> TP, pelo que as ferramentas mais<br />
úteis nesta tarefa serão dicionários (o mais actualiza<strong>do</strong>s possível) e bases<br />
terminológicas, de forma a melhor contextualizar os termos; o segun<strong>do</strong> –<br />
Transferência – é já bem mais complexo. Nesta fase, o tradutor não se limita a<br />
descodificar e a contextualizar termos, ou seja, a uma operação linguística, mas<br />
terá de ter competências comunicativas interculturais suficientes, de mo<strong>do</strong> a<br />
proceder a uma análise contrastiva das duas culturas. Assim, deverá recorrer<br />
agora não só aos dicionários e bases terminológicas, mas também a algumas<br />
enciclopédias, revistas especializadas, literatura especializada, etc.; por fim, há
A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 143<br />
que “produzir” o TC – Formulação – o que exige bons conhecimentos de<br />
gramática, sobretu<strong>do</strong> relativamente às relações sintagmáticas e colocação <strong>do</strong>s<br />
termos. Para isso, o tradutor pode ainda socorrer-se <strong>do</strong>s dicionários e bases<br />
terminológicas (se estes tiverem estas informações) mas deverá utilizar corpora, a<br />
fim de poder verificar a correcta utilização de certas expressões na LC. Para tal,<br />
poderá consultar bases de corpora, o que, para as línguas de especialidade, não é<br />
fácil (muito menos em português). No entanto, não encontran<strong>do</strong> essas bases,<br />
poderá recorrer a artigos de jornal, revistas, ou seja, a literatura e <strong>do</strong>cumentos<br />
da área. Esta validação, por assim dizer, da tradução através de corpora é<br />
especialmente útil quan<strong>do</strong> não se traduz para a língua materna, pois permite<br />
comprovar se as hipóteses de equivalência propostas soam ou não naturalmente<br />
na LC.<br />
2. A Internet<br />
Conscientes de que a Internet é apenas uma das muitas ferramentas que o<br />
tradutor moderno deve conhecer, esta será, para além <strong>do</strong>s tradutores<br />
automáticos, a única que abordaremos com maior pormenor. Outras<br />
ferramentas, como software para tradução e ferramentas electrónicas que não<br />
estejam em linha, poderão ser objecto de outro estu<strong>do</strong>. A razão de limitarmos<br />
as nossas considerações à Internet prende-se com o facto de esta ser, em si<br />
mesma, um manancial de ferramentas e de recursos a que o tradutor pode<br />
aceder de uma forma rápida, cómoda e relativamente acessível. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
pareceu-nos de to<strong>do</strong> o interesse deixar alguns conselhos relativos à sua<br />
utilização, uma vez que, mesmo os tradutores mais jovens, sentem dificuldades<br />
em orientar-se profissionalmente no caos cibernético.<br />
Para uns, uma maravilha <strong>do</strong> progresso e, para outros, um enervante mal<br />
necessário, a Internet (e muito especialmente a World Wide Web) pode ser um<br />
precioso auxiliar, disponível vinte e quatro horas por dia, com milhares de<br />
informações e recursos (actualiza<strong>do</strong>s e de fácil acesso), ou, por outro la<strong>do</strong>, uma<br />
perda de tempo, pouco fiável (afinal qualquer pessoa pode colocar informações<br />
em linha) e desesperante: a informação está desorganizada, não está classificada<br />
e a técnica nem sempre ajuda... O desafio principal para qualquer utiliza<strong>do</strong>r é,<br />
acima de tu<strong>do</strong>, saber “separar o trigo <strong>do</strong> joio”, conhecer algumas técnicas de<br />
pesquisa e de consulta e limitar o acesso às áreas/ páginas e recursos que lhe<br />
interessam mais.<br />
2.1 Recursos para tradutores
144<br />
Tradução e Multimédia<br />
Já vários autores indicaram e explicaram os recursos que a Internet pode<br />
oferecer a um tradutor, tais como o correio electrónico, o Ftp (File Transfer<br />
Protocol), a World Wide Web e os fóruns de discussão (vide Austermühl, 2001 e<br />
Alanen, 1996), por isso não é nossa intenção explorar exaustivamente cada um<br />
deles. Falaremos mais pormenorizadamente apenas sobre a World Wide Web e<br />
nos Fóruns de Discussão – onde englobamos, talvez não muito correctamente,<br />
mailing lists, newsgroups e chats – por forma a tentar optimizar a utilização da<br />
WWW, uma vez que esta parece ser a maior dificuldade <strong>do</strong>s tradutores (Alanen,<br />
1996: 9).<br />
2.1.1 A World Wide Web<br />
Todas as ferramentas de que o tradutor necessita nas várias fases <strong>do</strong><br />
processo tradutivo podem ser (ou não) encontradas aqui: dicionários,<br />
gramáticas, enciclopédias, bibliotecas, bases terminológicas, corpora, guias de<br />
estilo, etc. Tu<strong>do</strong> depende <strong>do</strong> que se necessita, quais as línguas de trabalho e de<br />
como se pesquisa. De facto, e antes de nos debruçarmos sobre algumas<br />
sugestões de pesquisa e de consulta, convém lembrar que um tradutor que<br />
tenha como língua de trabalho o português (especialmente o europeu) terá mais<br />
dificuldade em encontrar aquelas ferramentas, o que implica um esforço<br />
re<strong>do</strong>bra<strong>do</strong> na selecção <strong>do</strong>s termos, pois a tradução da LP para a LC quase<br />
nunca é directa. O parco investimento em investigação linguística e<br />
terminológica que se faz em Portugal, reflecte-se, naturalmente, também online.<br />
“Quem procura sempre encontra”? Nem sempre...<br />
Referiremos agora algumas técnicas que poderão facilitar a pesquisa na<br />
WWW, tornan<strong>do</strong>-a mais rápida e produtiva. Necessitan<strong>do</strong> o tradutor que ser<br />
um especialista em algumas áreas, não tem de o ser em informática, mas deverá<br />
ter, pelo menos, formação em “Primeiros Socorros”.<br />
Como em qualquer pesquisa, antes de se começar, há que saber o que se<br />
procura. Da mesma forma que não adianta ir a uma Biblioteca Municipal à<br />
procura de jornais/revistas estrangeiros, também não adianta utilizar um motor<br />
de busca e pensar que “está tu<strong>do</strong> na Internet”. Por outro la<strong>do</strong>, até na pesquisa<br />
mais elementar, há que ter/dar algumas orientações específicas sobre o que se<br />
procura. Na WWW o procedimento não é diferente: entre milhões de<br />
<strong>do</strong>cumentos, uma má pesquisa pode resumir-se a tentar “encontrar uma agulha<br />
no palheiro”.
A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 145<br />
Tipos de Pesquisa<br />
Austermühl 3 indica-nos uma tipologia que contempla o grau de<br />
conhecimento que um utiliza<strong>do</strong>r pode ter antes de iniciar uma pesquisa, in<strong>do</strong>,<br />
respectivamente, de uma situação de pesquisa de grau maior para outra de grau<br />
menor de conhecimento sobre o assunto/sítio:<br />
– Institucional (por URL 4 ): Quan<strong>do</strong> já se conhece o sítio, ou se sabe que<br />
existe, podemos tentar aceder directamente a ele, indican<strong>do</strong> o endereço da<br />
página;<br />
– Temática: Quan<strong>do</strong> não se sabe exactamente onde procurar e se tem<br />
apenas uma ideia da área onde o tema se insere 5 ;<br />
– Por Palavra-Chave/ Frase: Quan<strong>do</strong> se dispõe de poucos da<strong>do</strong>s sobre o<br />
tema a pesquisar.<br />
No entanto, para além <strong>do</strong> tipo de pesquisa leva<strong>do</strong> a cabo, principalmente<br />
na pesquisa por palavra-passe, há que saber indicar, no motor de busca<br />
utiliza<strong>do</strong>, as directrizes necessárias para que os resulta<strong>do</strong>s sejam rápi<strong>do</strong>s,<br />
limita<strong>do</strong>s e eficientes. É o que se designa por pesquisa avançada, quer seja<br />
seleccionan<strong>do</strong> essa opção no próprio motor, quer utilizan<strong>do</strong> opera<strong>do</strong>res<br />
boleanos.<br />
Pesquisa Avançada<br />
Quase to<strong>do</strong>s os motores de busca têm esta opção, poden<strong>do</strong> utilizar-se<br />
certos filtros, de mo<strong>do</strong> a restringir ao máximo os resulta<strong>do</strong>s e a evitar o que não<br />
interessa. Assim, convém indicar sempre to<strong>do</strong>s os elementos específicos de<br />
cada ítem a pesquisar: todas as palavras importantes, <strong>do</strong>mínio (ex.:.pt,.com), etc.<br />
Esta pesquisa avançada pode ainda ser levada a cabo no campo de<br />
pesquisa geral, com a ajuda de opera<strong>do</strong>res boleanos, utiliza<strong>do</strong>s individualmente<br />
ou em conjunto:<br />
– AND ou + (para encontrar <strong>do</strong>cumentos com todas as palavras<br />
indicadas) 6 . Ex.: economia AND globalização<br />
– NOT ou – (coman<strong>do</strong> de exclusão – para indicar o que não interessa).<br />
Ex.: Glossário NOT dicionário<br />
– “ ” (para expressões ou frases, de forma a que as palavras apareçam<br />
exactamente na ordem indicada). Ex.: “Tradução Automática”<br />
– OR (procura cada uma das palavras indicadas, aumentan<strong>do</strong>, assim, as<br />
hipóteses de encontrar a informação que se procura) 7 . Ex.: Tradução OR<br />
interpretação
146<br />
Tradução e Multimédia<br />
Meta-Pesquisa<br />
Em vez de se procurar informação, consecutivamente, em vários motores,<br />
pode-se fazê-lo, simultaneamente, num só motor, por exemplo o Foreignword ou<br />
através de alguns programas como seja o Copernic Agent Basic.<br />
Depois de encontrar, há que analisar!<br />
Tão ou mais importante <strong>do</strong> que saber pesquisar e encontrar o que se<br />
pretende sem perder muito tempo, é encontrar informação credível e fiável,<br />
numa amálgama de <strong>do</strong>cumentos cuja proveniência, valor e autoria se<br />
desconhece a priori. Antes de utilizar qualquer informação online, há que validála,<br />
nomeadamente ao nível <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, através de alguns critérios, como por<br />
exemplo:<br />
– Tipo de Abordagem (é imparcial ou tendenciosa?)<br />
– Profundidade (a informação está bem estruturada ou é uma mera<br />
opinião?)<br />
– Rigor (a informação é fundamentada e está correcta, comparan<strong>do</strong>-a com<br />
outras fontes?)<br />
– Originalidade (trata-se de informação nova ou é apenas um plágio de<br />
outras fontes?)<br />
– Objectivos (qual o objectivo <strong>do</strong> sítio/ página? Informar? Vender?<br />
Publicitar?...)<br />
– Validade/actualização (a informação tem data e está actualizada?)<br />
– Autor (quem escreveu? É credível?)<br />
Sítios para tradutores<br />
Embora reconhecen<strong>do</strong> que esta temática é, quiçá, a mais atraente para o<br />
leitor deste texto, não iremos aqui alargarmo-nos demasia<strong>do</strong> em listagens de<br />
sítios úteis para o tradutor, uma vez que foi cria<strong>do</strong> um sítio – Ferramentas<br />
Electrónicas para Tradução e não só... –, como apoio à Oficina 1 da Oficina de<br />
Tradução 2003, que continua em linha e é de consulta livre em<br />
http://oficinatrad.iscap.ipp.pt/OT1index.html. Aqui, foram reuni<strong>do</strong>s alguns<br />
endereços de dicionários, glossários, bases terminológicas, enciclopédias,<br />
bibliotecas, motores de busca e de sítios para tradutores (agências de tradução,<br />
bolsas de emprego, etc.), em português, inglês, francês e alemão, <strong>do</strong>s quais<br />
gostaríamos de destacar apenas alguns, por nos parecerem de facto<br />
indispensáveis à tradução, independentemente das línguas e linguagens de<br />
trabalho ou gostos pessoais.
A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 147<br />
– Onelook – é um motor de busca de palavras, i.e., dá a indicação de várias<br />
fontes onde se podem encontrar definições (pesquisa monolingue) ou<br />
equivalentes (pesquisa multilingue) da palavra indicada;<br />
– Wordreference – é uma base de dicionários bilingues e monolingues<br />
(inglês). Neste último caso, fornece uma excelente definição <strong>do</strong>s termos;<br />
– Terminology Collection – disponibiliza uma completa colecção de<br />
dicionários e de glossários;<br />
– Lexical FreeNet – Dicionário de sinónimos excelente. Quan<strong>do</strong> não tem<br />
resposta remete para outras fontes;<br />
– Foreignword – sítio de tradução com dicionários, glossários, tradutores<br />
automáticos, etc. Excelente;<br />
– Linguateca – permite a livre consulta de dicionários, glossários, corpora<br />
(em Português!), etc. e pesquisar nos diversos catálogos (de recursos, de<br />
actores, de ferramentas computacionais);<br />
– Ciberdúvidas da Língua Portuguesa – o nome diz tu<strong>do</strong>. Indispensável;<br />
– Verbix – Conjugação de verbos em várias línguas. Pode também<br />
descarregar-se em versão freeware.<br />
Como a lista já vai longa, convidamos os nossos leitores a acederem ao<br />
sítio proposto, a analisarem os restantes endereços e a construírem a sua<br />
biblioteca digital...<br />
2.1.2 Fóruns de Discussão<br />
Como dissemos em 2.1, a nossa abordagem à Internet considera apenas a<br />
WWW e os Fóruns de Discussão, onde incluímos mailing lists, newsgroups e chats.<br />
Destes três, falaremos apenas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is primeiros, uma vez que o último está<br />
mais conota<strong>do</strong> com a utilização da Internet por lazer <strong>do</strong> que por motivos de<br />
trabalho, apesar de existirem chats de temáticas profissionais.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, não queríamos deixar de referir esta ferramenta, pois,<br />
segun<strong>do</strong> a opinião de tradutores profissionais 8 , este recurso pode, em certas<br />
ocasiões, revelar-se mais útil <strong>do</strong> que qualquer dicionário ou glossário por <strong>do</strong>is<br />
motivos:<br />
a. É uma forma de o tradutor se sentir membro de uma comunidade, o<br />
que, no caso de tradutores freelance, que não trabalhem em equipa, ajuda a<br />
quebrar a solidão e o isolamento;<br />
b. É um meio de superar as lacunas de dicionários, glossários, etc.: a<br />
experiência de outros tradutores ou o conhecimento de especialistas da<br />
área, mesmo a centenas de quilómetros de distância são, por vezes, a única<br />
maneira de conseguir definir um termo ou encontrar um equivalente<br />
váli<strong>do</strong>.
148<br />
Tradução e Multimédia<br />
Mailing Lists<br />
Como o nome indica, são listas que funcionam por correio electrónico, i.e.,<br />
são círculos de discussão temática em que os membros partilham informação.<br />
É necessário um registo prévio, o que salvaguarda participações indesejadas ou<br />
inúteis, e, a partir daí, to<strong>do</strong>s os membros recebem as mensagens uns <strong>do</strong>s<br />
outros. É um excelente recurso para se poder comunicar com outros tradutores<br />
ou linguistas, mas tem a desvantagem de poder “entupir” a caixa de correio,<br />
uma vez que o caudal de mensagens diário, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> tema em discussão<br />
e <strong>do</strong> número de membros, pode ser enorme. No sítio proposto acima podem<br />
encontrar-se algumas destas listas.<br />
Newsgroups<br />
São semelhantes às mailing lists. No entanto, têm uma participação mais<br />
alargada, o que pode trazer mais ruí<strong>do</strong> à comunicação. São grupos de discussão,<br />
disponíveis em vários servi<strong>do</strong>res (newsservers) aos quais é necessário aderir, i.e.,<br />
apesar <strong>do</strong> canal de comunicação ser também o correio electrónico, são fóruns<br />
independentes da caixa de correio, não haven<strong>do</strong> o risco desta ser entupida. As<br />
mensagens-resposta a qualquer tema proposto são automaticamente “apensas”<br />
à mensagem original, o que facilita mais a consulta e selecção <strong>do</strong> que o caudal<br />
indiferencia<strong>do</strong> das listas referidas anteriormente. Tal como estas, são<br />
igualmente um óptimo recurso para contactar especialistas de diversas áreas.<br />
3. Tradutores Automáticos<br />
São, no meio de muitas outras que aqui poderíamos referir, uma<br />
ferramenta de trabalho preciosa, por um la<strong>do</strong>, e, por outro, talvez o inimigo<br />
mais temi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s tradutores. Louvada por uns – empresas-clientes – como a<br />
solução rápida e económica que veio resolver to<strong>do</strong>s os problemas de tradução,<br />
e criticada por outros – tradutores humanos – pela falta de qualidade, falhas de<br />
transferência linguística e ameaça de extinção da classe, a TA não será nem uma<br />
coisa nem outra. Como diz Austermühl 9 ,<br />
The antiquated image of a lone translator, armed only with a pencil or a typewriter<br />
and surrounded by dusty books, is no longer realistic. However, the idea of an<br />
independently acting, errorfree translating machine is equally unrealistic and will<br />
not become a reality for a long time, if at all. 10<br />
De facto, a TA tem vantagens e desvantagens, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> texto que<br />
se pretende traduzir 11 e, para além disso, veio para ficar... e para ser
A Tradução num Mun<strong>do</strong> Globaliza<strong>do</strong> 149<br />
aperfeiçoada. Por outro la<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s sabemos que não há traduções perfeitas,<br />
quer sejam feitas pelo Homem, quer pela máquina. Neste contexto, a melhor<br />
solução para os tradutores, depois de tantas quezílias sobre a ameaça e falhas da<br />
TA, parece ser a de seguir a sabe<strong>do</strong>ria milenar de “se não podes vencê-los,<br />
junta-te a eles” e, dessa união, aproveitar o que de bom tem a TA para oferecer:<br />
– uma pré-tradução indicativa que pode poupar muito tempo;<br />
– uma melhoria da qualidade <strong>do</strong> serviço presta<strong>do</strong>, com o auxílio da<br />
máquina;<br />
– a ideia de que a máquina precisará sempre <strong>do</strong> Homem para ser perfeita;<br />
– a criação de novas profissões, como seja a de revisor.<br />
Assim, segun<strong>do</strong> alguns autores, a actividade de revisão <strong>do</strong>s textos<br />
traduzi<strong>do</strong>s automaticamente será a tarefa principal <strong>do</strong>s tradutores no futuro 12 ,<br />
i.e., a sua função consistirá em dar senti<strong>do</strong> à pré-tradução produzida pela<br />
máquina, já que esta não entende o que traduz, nem tem bom senso.<br />
No entanto, independentemente da perspectiva de cada um em relação a<br />
esta questão – não é nossa intenção discutir este problema aqui, apenas referilo,<br />
não como um problema mas como um desafio –, é indiscutível que a TA irá<br />
desempenhar um papel crucial neste milénio, ajudan<strong>do</strong> a derrubar as barreiras<br />
de comunicação num mun<strong>do</strong> recentemente globaliza<strong>do</strong>.<br />
CONCLUSÃO<br />
Independentemente desta previsão se concretizar ou não, a verdade é que,<br />
como em to<strong>do</strong>s os sectores, também a indústria da comunicação e da<br />
linguagem e os seus operários têm que, cada vez mais, saber trabalhar com a<br />
tecnologia. O mun<strong>do</strong> industrializa<strong>do</strong> não pára e o que interessa é ser o primeiro<br />
a chegar ao merca<strong>do</strong> global e a tradução não pode vir “depois”... Por isso, se o<br />
tradutor quiser estar à altura <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> da tradução, tem que, como dizíamos<br />
no início, estar “no local certo, à hora certa”, i.e., não pode aparecer depois <strong>do</strong><br />
produto. Tem que nascer com ele ou, pelo menos, acompanhá-lo desde muito<br />
ce<strong>do</strong>, ou seja, tem de deixar a sua “torre” e ir para a linha-de-montagem:<br />
It is obvious that translators can achieve substantial savings by having access at<br />
any one moment to full information on the design and production process<br />
languages of their clients, so that they are available in final printed form at the<br />
same time as the product is ready for marketing. (Sager, 1993: 294)<br />
Ao deixar de ser um escritor e passar a ser um “operário” especializa<strong>do</strong>, o<br />
tradutor não pode esquecer a sua mala de ferramentas, manten<strong>do</strong>-as sempre em
150<br />
Tradução e Multimédia<br />
óptimo esta<strong>do</strong> (leia-se actualizadas): recursos online, ferramentas linguísticas<br />
usadas na TA, a própria e a melhor tecnologia ao serviço da tradução.<br />
________<br />
1 A indústria automóvel, aeronáutica e farmacêutica, só para dar alguns exemplos,<br />
já utilizam há muito a tradução automática com óptimos resulta<strong>do</strong>s.<br />
2 Segun<strong>do</strong> estatísticas recentes, 75% <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> tradutor é gasto em pesquisa.<br />
3 Op. Cit..<br />
4 Uniform Resource Locator, i.e., o endereço de uma página na WWW.<br />
5 Uniform Resource Locator, i.e., o endereço de uma página na WWW.<br />
6 Em alguns motores, como o Google, não é necessário este opera<strong>do</strong>r. Esta função<br />
é assumida por defeito.<br />
7 Coman<strong>do</strong> útil, por exemplo, na pesquisa de sinónimos.<br />
8 Vide Alanen, Op.Cit.<br />
9 Op.Cit., pág. 11.<br />
10 Sublinha<strong>do</strong> nosso.<br />
11 A TA pode ser óptima a traduzir um texto informativo, pobre em estilo e<br />
ambiguidade, i.e., com uma linguagem controlada, e desastrosa na tradução de um texto<br />
com um conteú<strong>do</strong> mais literário.<br />
12 Segun<strong>do</strong> Champollion (2001), dentro de três a cinco anos, o tradutor será<br />
apenas um revisor de textos.<br />
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Internet”, Proseminar Paper. (20.1.2003) http://www.uta.fi/~tranuk/prosemc.htm<br />
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http://accurapid.com/journal/15mt.htm.
SISTEMAS MULTIMÉDIA APLICADOS AO ENSINO DE TRADUÇÃO<br />
– ESTUDO DE UM CASO<br />
Manuel F. Moreira da Silva<br />
O uso recrudescente das novas tecnologias de informação conduziu ao<br />
aparecimento de novos ambientes de ensino, nos quais o computa<strong>do</strong>r, a<br />
Internet, a intranet e o software específico ocupam, em grande parte, o papel <strong>do</strong><br />
manual e da sebenta, exigin<strong>do</strong> ao professor e aos alunos novas competências e<br />
estratégias. No <strong>Instituto</strong> Superior de Contabilidade e Administração <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />
(ISCAP), os Centros Multimédia de Línguas (CML) disponibilizam um conjunto<br />
de meios destina<strong>do</strong>s ao ensino em áreas como a da Legendagem, da Tradução<br />
Assistida por Computa<strong>do</strong>r, <strong>do</strong> ensino e aprendizagem de Línguas para Fins<br />
Específicos e, ainda numa fase piloto, <strong>do</strong> ensino à distância e apoio online.<br />
Este projecto de inovação pedagógica e científica foi introduzi<strong>do</strong> no ano<br />
lectivo de 2000/2001, não só para acomodar o crescente número de alunos nas<br />
disciplinas de Tradução e Interpretação, como também para responder a uma<br />
restruturação curricular da Licenciatura em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />
Tradução Especializada. A atenção às novas realidades de um merca<strong>do</strong> cada vez<br />
mais global contribuiu igualmente para esta aposta clara na introdução das mais<br />
recentes tecnologias numa área tradicionalmente deficitária nas universidades e<br />
nos politécnicos, com o consequente e necessário reforço <strong>do</strong>s meios físicos e<br />
técnicos para a leccionação das aulas e para o desenvolvimento de projectos<br />
científicos ou de parcerias com entidades privadas.<br />
Esta aposta resultou também da percepção, por parte <strong>do</strong> ISCAP, de que a<br />
profissão <strong>do</strong> tradutor está a sofrer uma alteração profunda a to<strong>do</strong>s os níveis,<br />
provocada pela introdução das tecnologias da comunicação e informação e pela<br />
virtualização da vida empresarial, alteração que terá de conduzir,<br />
necessariamente, a uma mudança de paradigmas nas técnicas, estratégias e<br />
meto<strong>do</strong>logias de ensino.<br />
O objectivo primordial deste projecto resume-se a procurar fornecer aos<br />
alunos um ambiente de aprendizagem capaz de proporcionar uma formação de<br />
grande qualidade, que os prepare efectivamente para o merca<strong>do</strong> de trabalho e<br />
que potencie o número de oportunidades e de ofertas.<br />
Ao mesmo tempo, procura-se desenvolver condições para acompanhar,<br />
progressivamente, a inovação a que o merca<strong>do</strong> de emprego no ramo da
Sistemas Multimédia Aplica<strong>do</strong>s ao Ensino da Tradução 153<br />
tradução está sujeito, tanto em termos da alteração das meto<strong>do</strong>logias de<br />
trabalho, como das exigências de formação.<br />
Os esforços vão, assim, no senti<strong>do</strong> de reforçar a oferta de base em termos<br />
das ferramentas disponíveis para:<br />
– o ensino das línguas estrangeiras (Inglês, Francês e Alemão);<br />
– o ensino e a prática da Tradução, pelo recurso à introdução de aplicações<br />
de tradução assistida e de tradução automática;<br />
– o ensino e a prática da Interpretação Simultânea e da Interpretação<br />
Consecutiva, através de meios de transmissão e gravação de discursos em<br />
formato digital;<br />
– o ensino e a prática da Legendagem, recorren<strong>do</strong> à Legendagem em<br />
suporte digital, com aplicações de cariz pedagógico e profissional.<br />
Após uma pesquisa no merca<strong>do</strong> nacional e internacional de equipamentos e<br />
aplicações informáticas que completassem o rol de necessidades educativas<br />
previamente estabelecidas, e feita a respectiva aquisição, seguiu-se um perío<strong>do</strong><br />
de experimentação, aprendizagem e de formação <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong>cente. Este<br />
perío<strong>do</strong>, como se pode agora verificar, não foi um momento único de<br />
experimentação de novas técnicas, meto<strong>do</strong>logias e ferramentas. Foi, antes, o<br />
primeiro passo de muitos que estão a ser da<strong>do</strong>s, à medida que novas<br />
necessidades e vontades vão surgin<strong>do</strong> nas diferentes áreas que envolvem o uso<br />
das tecnologias de informação e comunicação, o que, no momento actual,<br />
corresponde a todas as áreas de ensino anteriormente identificadas.<br />
Esta constatação coloca os <strong>do</strong>centes perante novas exigências, quer em<br />
termos de percursos de ensino e de aprendizagem, quer, sobretu<strong>do</strong>, no que diz<br />
respeito às suas competências e ao conhecimento das novas tecnologias<br />
multimédia e <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s dispersos online, actividade que exige uma<br />
dedicação constante e absorvente, nem sempre devidamente reconhecida ou<br />
(re)compensada. De facto, qualquer política de inovação que abranja um<br />
departamento ou escola coloca grandes exigências de tempo e disponibilidade<br />
ao corpo <strong>do</strong>cente, que não se coadunam, por vezes, com o desenvolvimento de<br />
uma carreira académica (no senti<strong>do</strong> mais restrito <strong>do</strong> termo).<br />
O desenvolvimento deste tipo de projectos passa, assim, pela participação<br />
de grupos de <strong>do</strong>centes com um grande espírito de voluntaria<strong>do</strong> e de dedicação,<br />
recompensa<strong>do</strong>s pela participação e adesão <strong>do</strong>s alunos aos diferentes projectos e<br />
pelo efectivo reconhecimento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de trabalho, que recruta os alunos <strong>do</strong><br />
ISCAP em detrimento de outros menos bem prepara<strong>do</strong>s para responder às<br />
sempre crescentes exigências <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de trabalho nacional e internacional.
Concluí<strong>do</strong> o processo de aquisição de aplicações e de formação, o ISCAP<br />
passou a dispor de <strong>do</strong>is Laboratórios Multimédia, um com 20 postos para<br />
alunos e outro com 12, cuja utilização é feita em paralelo com <strong>do</strong>is<br />
Laboratórios de Interpretação Simultânea e Consecutiva, cada um com 15<br />
postos/cabinas. Cada laboratório multimédia disponibiliza ao <strong>do</strong>cente<br />
ferramentas que incluem, entre outros, leitores de vídeo, dvd e cassetes, a<br />
possibilidade de gravação de som e imagem entre as diferentes fontes, o acesso<br />
à Internet e a utilização de to<strong>do</strong> o tipo de suportes digitais, bem como a<br />
possibilidade de interacção e intercomunicação individual ou colectiva com os<br />
alunos, através de um sistema de intranet extremamente maleável e eficiente.<br />
Aos alunos é disponibiliza<strong>do</strong> o acesso a todas as aplicações ao dispor<br />
<strong>do</strong> professor, ao que acresce o uso de um sistema de reconhecimento de voz,<br />
que permite a captação e gravação digital <strong>do</strong>s seus discursos e interpretações ou<br />
a elaboração de exercícios de fonética e de pronúncia de grande qualidade nas<br />
três línguas ensinadas – o Inglês, o Francês e o Alemão.<br />
O funcionamento <strong>do</strong>s laboratórios é apoia<strong>do</strong> por um Centro de Recursos<br />
Multimédia, equipa<strong>do</strong> com meios de edição de som e imagem profissionais, que<br />
tem por função acompanhar a realização de eventos, gravar e editar conteú<strong>do</strong>s<br />
produzi<strong>do</strong>s no e pelo ISCAP em formato vídeo VHS e digital e desenvolver<br />
<strong>do</strong>cumentos para acrescentar ao acervo da mediateca, cuja utilização tem vin<strong>do</strong><br />
a sofrer um incremento, também em função <strong>do</strong>s novos formatos<br />
disponibiliza<strong>do</strong>s pelas editoras, cada vez mais empenhadas no desenvolvimento<br />
de conteú<strong>do</strong>s digitaliza<strong>do</strong>s e online.
Sistemas Multimédia Aplica<strong>do</strong>s ao Ensino da Tradução 155<br />
A existência <strong>do</strong> Centro de Recursos permite aos <strong>do</strong>centes a criação de<br />
recursos educacionais multimédia, o que facilita, por um la<strong>do</strong>, a aquisição de<br />
novos saberes e, por outro, a projecção e desenvolvimento de materiais,<br />
conteú<strong>do</strong>s e actividades interdisciplinares, que vão desde o estabelecimento de<br />
programas curriculares idênticos, ao longo <strong>do</strong>s vários anos da licenciatura, até<br />
ao desenvolvimento de conferências e aulas em equipa. Estes recursos, da<strong>do</strong> o<br />
seu formato digital e a não existência de direitos de autor externos, são<br />
facilmente reutilizáveis e actualizáveis, o que potencia o seu uso e origina novos<br />
projectos nas diferentes áreas.<br />
A conjugação <strong>do</strong>s elementos acima descritos originou alterações profundas<br />
no ambiente de trabalho, tornan<strong>do</strong>-se este, em alguns aspectos, mais atractivo e<br />
interactivo, sen<strong>do</strong> que a disponibilidade no acesso aos meios e aos conteú<strong>do</strong>s,<br />
acrescida da sua diversidade, potenciou a utilização de novos recursos, até aqui<br />
afasta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ambiente da sala de aula, quer por impossibilidade técnica, quer<br />
por impreparação para o seu uso, lacunas que, entretanto, foram, estão a ser ou<br />
irão ser ultrapassadas.<br />
Exemplos desta nova realidade são, entre outros a possibilidade de:<br />
– acesso rápi<strong>do</strong> in loco a <strong>do</strong>cumentos autênticos e actuais na Internet,<br />
factor de grande importância para o ensino da tradução e da interpretação,<br />
onde os discursos mais recentes contêm um maior número de elementos<br />
pertinentes e de proximidade temporal, o que permite uma melhor<br />
problematização da temática, da necessidade <strong>do</strong> seu conhecimento e da<br />
importância de uma actualização constante;<br />
– tradução e armazenamento <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s em memórias de tradução e, em<br />
simultâneo, elaboração de glossários terminológicos sobre temáticas<br />
específicas;<br />
– acesso, consulta e recolha de informação em enciclopédias, dicionários,<br />
glossários multilingues, jornais, artigos, etc., a grande velocidade;<br />
– participação em grupos de discussão e acesso a material educativo<br />
disponível apenas no espaço virtual.<br />
O trabalho em laboratório multimédia permite, também, abordagens muito<br />
diferentes ao desenvolvimento e à aplicação <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s a cada disciplina e a<br />
cada aula em concreto. Um outro aspecto fundamental e inova<strong>do</strong>r é a<br />
possibilidade de promover um ensino verdadeiramente individualiza<strong>do</strong>, no qual<br />
as potencialidades de cada aluno podem ser devidamente encorajadas e o<br />
insucesso combati<strong>do</strong>.<br />
Todas estas actividades podem decorrer de forma paralela e transversal,<br />
dentro <strong>do</strong> âmbito das várias disciplinas ou projectos de tradução propostos,
desde que enquadra<strong>do</strong>s por projectos inter e transdisciplinares, ou até<br />
interinstitucionais.<br />
Obviamente que to<strong>do</strong>s estes factores dão origem a um ambiente de<br />
ensino/aprendizagem com características particulares. De facto, a sala de aula<br />
sofre transformações que a tornam num ambiente de trabalho que podemos<br />
caracterizar como sen<strong>do</strong>:<br />
– activo: os alunos estão envolvi<strong>do</strong>s na aprendizagem e têm uma grande<br />
responsabilidade na produção e qualidade <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s (ex.: criação de<br />
memórias de tradução), bem como na gestão <strong>do</strong>s vários projectos de<br />
tradução;<br />
– colaborativo: o laboratório permite um trabalho e uma progressão<br />
conjunta e uma grande interactividade entre o professor e os alunos e,<br />
mais importante, entre diferentes grupos de trabalho;<br />
– contextualiza<strong>do</strong>: as tarefas propostas são idênticas às <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de<br />
trabalho ou baseadas em resolução de problemas (case-based/problem-based).<br />
Pretende-se que, num futuro muito próximo, estas tarefas surjam<br />
associadas a projectos de tradução autênticos, provenientes de acor<strong>do</strong>s e<br />
protocolos de cooperação já celebra<strong>do</strong>s com entidades privadas<br />
representantes <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> empresarial <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, como a EXPONOR ou a<br />
ACP;<br />
– transdisciplinar: a elaboração <strong>do</strong>s programas e o delinear de objectivos a<br />
atingir ao longo <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is anos de licenciatura nas diferentes disciplinas de<br />
cada língua é estruturada em conjunto, como é o caso da disciplina de<br />
Interpretação Simultânea e Consecutiva, permitin<strong>do</strong> assim o desenvolver<br />
de interligações e de uma formação mais coerente e consistente;<br />
– reflexivo: os alunos articulam os seus conhecimentos e reflectem, ao<br />
longo <strong>do</strong> processo de aprendizagem, sobre as tarefas a resolver e os<br />
resulta<strong>do</strong>s a obter, muitas vezes em condições que pretendem simular<br />
aquelas que potencialmente encontrarão na vida activa.<br />
Esta caracterização é, para já, o resulta<strong>do</strong> de uma análise impressionística,<br />
não pretenden<strong>do</strong> ser uma abordagem exaustiva aos paradigmas didácticos e<br />
meto<strong>do</strong>lógicos <strong>do</strong> ensino em laboratórios multimédia, até porque é nossa<br />
percepção de que muitas das actividades pedagógicas que estão a ser<br />
desenvolvidas nesta era eminentemente tecnológica, se revestem de um cariz<br />
experimental, estan<strong>do</strong> a aferição <strong>do</strong>s seus resulta<strong>do</strong>s ainda em fase de estu<strong>do</strong> e<br />
desenvolvimento.
Sistemas Multimédia Aplica<strong>do</strong>s ao Ensino da Tradução 157<br />
Ainda decorrente deste processo de introdução e desenvolvimento de aulas<br />
de tradução, interpretação e legendagem com base em sistemas multimédia,<br />
surgiu um outro projecto, que iremos abordar de forma sucinta, designa<strong>do</strong> por<br />
PAOL – Projecto de Apoio On-Line <strong>do</strong> ISCAP, que conta com a participação de<br />
várias disciplinas <strong>do</strong> curso de Tradução. Este projecto, que se encontra ainda<br />
numa fase piloto, pretende estabelecer as bases para o desenvolvimento de<br />
actividades de formação e educação à distância, que abranjam sobretu<strong>do</strong><br />
estudantes com dificuldades específicas ou com problemas em assistir às aulas<br />
em regime presencial.<br />
Dentro deste âmbito, têm vin<strong>do</strong> a ser desenvolvi<strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s para<br />
algumas disciplinas de Interpretação e de Tradução, que, à semelhança das aulas<br />
presenciais, procuram (re)criar um ambiente próximo da realidade, ainda que<br />
pelo recurso ao espaço virtual. Esta actividade requer, da parte <strong>do</strong> corpo<br />
<strong>do</strong>cente, um tipo de competências muito específicas e de grande complexidade,<br />
que se conjugam e complementam com as actividades desenvolvidas nos<br />
laboratórios multimédia, o que permite uma maior celeridade na elaboração e<br />
disponibilização <strong>do</strong>s módulos ou aulas, bem como na preparação e design <strong>do</strong>s<br />
vários componentes necessários a to<strong>do</strong> o processo de e-learning.<br />
Este é um projecto que está na sua fase embrionária, mas que procura, por<br />
um la<strong>do</strong>, avaliar as necessidades tecnológicas e o nível de relacionamento com<br />
as Tecnologias de Informação e Comunicação de <strong>do</strong>centes e discentes e, por<br />
outro, reconhecer e estabelecer padrões de formação para um futuro que se<br />
prevê não muito distante.<br />
Finalmente, e no senti<strong>do</strong> de reforçar to<strong>do</strong> este processo de ensino e de<br />
aprendizagem, têm vin<strong>do</strong> a ser estabelecidas ligações com entidades e/ou<br />
associações empresariais, algumas das quais já aqui referidas, através da<br />
celebração de protocolos, no senti<strong>do</strong> de reforçar a ligação da instituição com o<br />
meio envolvente e, em especial, para permitir aos alunos <strong>do</strong> curso de Tradução<br />
e Interpretação Especializada um maior número de experiências, quer sobre a<br />
forma de estágios, quer de participação em eventos, fornecen<strong>do</strong> serviços de<br />
tradução e interpretação. Estas ligações ao exterior surgem como mais uma<br />
consequência <strong>do</strong> rumo e <strong>do</strong> investimento inicial, que contribuem decisivamente<br />
para credibilizar o curso, o trabalho realiza<strong>do</strong> pelo corpo <strong>do</strong>cente e a formação<br />
oferecida aos alunos.<br />
Feita a reflexão sobre as condições em que decorre o processo de formação<br />
<strong>do</strong>s futuros tradutores e intérpretes nos laboratórios <strong>do</strong> ISCAP, interessaria<br />
agora equacionar algumas das práticas que a enformam. No entanto, esta<br />
questão, bem como outras <strong>do</strong> foro pedagógico não cabem nesta nossa análise,
uma vez que o seu tratamento ocuparia mais <strong>do</strong> que um artigo e só seria<br />
coerente se retratasse e desse voz às experiências e vivências <strong>do</strong>s vários actores<br />
de cada disciplina e de cada projecto.<br />
Terminamos com as primeiras palavras de Frank Austermühl, no seu livro<br />
Electronic Tools for Translators, que afirma:<br />
The main task of translation – the transfer of technical and cultural information –<br />
can now only be achieved through the use of extensive knowledge bases. As a<br />
knowledge-based activity, translation requires new strategies and a paradigm shift<br />
in metho<strong>do</strong>logy. This shift must embrace practice, teaching and research.<br />
(Austermühl, 2001:1)
Sistemas Multimédia Aplica<strong>do</strong>s ao Ensino da Tradução 159
A NOVA TORRE DE BABEL<br />
– QUE FUTURO PARA A TRADUÇÃO AUTOMÁTICA?<br />
Sara Cerqueira<br />
E o Senhor disse: «Eles constituem apenas um povo e falam uma única<br />
língua. Se principiarem desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de<br />
futuro, de realizarem to<strong>do</strong>s os seus projectos. Vamos, pois, descer e<br />
confundir de tal mo<strong>do</strong> a linguagem deles que não se compreendam uns<br />
aos outros». E o Senhor dispersou-os dali para toda a face da terra, e<br />
suspenderam a construção da cidade. Por isso, lhe foi da<strong>do</strong> o nome de<br />
Babel, visto ter si<strong>do</strong> lá que o Senhor confundiu a linguagem de to<strong>do</strong>s os<br />
habitantes da terra.<br />
Génesis, 11, 1-9<br />
Poderá, um dia, a tradução automática suprimir ou dissipar as diferenças<br />
que bloquearam e obstruíram a comunicação na mítica torre babeliana? Será a<br />
tradução automática capaz de diluir as diferenças linguísticas que separam as<br />
comunidades humanas? Estas perguntas são, provavelmente, as que ocorrem ao<br />
público em geral, quan<strong>do</strong> ouve falar de uma nova descoberta em Inteligência<br />
Artificial ou de uma nova aplicação informática para tradução. A curiosidade e<br />
o entusiasmo <strong>do</strong> público não-especialista contrasta, não raras vezes, com algum<br />
cepticismo e desconfiança de tradutores e teóricos da tradução 1 .<br />
A proliferação <strong>do</strong> acesso a tradutores automáticos disponíveis na Internet<br />
conduziu, por um la<strong>do</strong>, à disseminação da obtenção de informação e obriga,<br />
por outro, a uma requalificação e re-orientação de formação da profissão de<br />
tradutor, que terá, necessariamente de passar por uma abordagem destas novas<br />
tecnologias. Este imperativo, nem sempre é bem aceite pelos profissionais de<br />
tradução. Considerar, porém, a TA utópica, arrogante e insolente, só porque os<br />
resulta<strong>do</strong>s que se obtiveram são nitidamente incipientes e até mesmo<br />
anedóticos, não nos deve fazer voltar as costas a uma realidade que não só<br />
existe, como tem também provas dadas em vários campos. Ver a TA como uma<br />
ameaça para o futuro <strong>do</strong>s tradutores e a virtualização <strong>do</strong> trabalho de tradução<br />
como um monstro desumaniza<strong>do</strong>r, só encurta os horizontes de conhecimento<br />
e, logo, uma das qualidades imperativas de um bom tradutor, a assimilação de<br />
conteú<strong>do</strong>s e a adaptação a uma realidade em constante mudança. “It is clear<br />
that machine translation will play an important role in the new millennium,<br />
helping to bring <strong>do</strong>wn the communication barriers in the newly interconnected
A Nova Torre de Babel 161<br />
world. It is up to us translators to explain to the general public what machine<br />
translation is, what are its strengths and weaknesses, and what is its likely role in<br />
the future development of our civilization” (Vitek, 2000: 7). Um uso<br />
profissional e meto<strong>do</strong>logicamente correcto da TA requer, aliás, as competências<br />
de um tradutor humano e especializa<strong>do</strong>, uma vez que, como adiante se dirá, as<br />
mais recentes aplicações de TA incluem avanços qualitativos, tais como a pré e<br />
pós-edição.<br />
Hoje em dia, não se pode descurar o papel das novas tecnologias aplicadas<br />
ao processo tradutivo, nomeadamente as mais recentes aplicações informáticas,<br />
arriscan<strong>do</strong>-se o tradutor, se o fizer, a tornar-se obsoleto e inadapta<strong>do</strong>. A<br />
principal tarefa <strong>do</strong> tradutor só poderá, <strong>do</strong>ravante, ser compreendida num<br />
contexto de globalização, especialização e digitação e requer um novo<br />
paradigma teórico-prático onde deverá, obrigatoriamente, constar a<br />
incorporação <strong>do</strong>s recursos da linguagem electrónica e das novas ferramentas de<br />
tradução assistida por computa<strong>do</strong>r. O uso da Tecnologia de Informação e<br />
Comunicação (TIC) é, nos nossos dias, um fait accompli. E não são somente os<br />
prazos e as pressões editoriais que convencem os tradutores a um uso extensivo<br />
das Tecnologias da Informação e Comunicação. A exposição a uma<br />
meto<strong>do</strong>logia correcta no uso de ferramentas electrónicas acarretará uma<br />
automatização <strong>do</strong> trabalho de tradução, que apoia os tradutores na<br />
incrementação exponencial da qualidade e eficiência <strong>do</strong>s seus serviços.<br />
São, pois, <strong>do</strong>is os factores a considerar na abordagem <strong>do</strong> uso da TIC:<br />
– melhoria da qualidade;<br />
– aumento da produtividade.<br />
Urge, pois, descobrir as várias aplicações existentes, bem como<br />
compreender as suas utilizações actuais e os seus desafios futuros. Para este<br />
efeito, ir-se-á, num primeiro momento, recuar no tempo e conhecer um pouco<br />
da história e evolução da TA, para, de seguida, se proceder a uma tipologização<br />
das diferentes ferramentas de TA.<br />
BREVE HISTORIAL DA TRADUÇÃO AUTOMÁTICA<br />
O primeiro marco da história da tradução automática (TA) deve datar-se<br />
no início <strong>do</strong>s anos 40, quan<strong>do</strong> a recém-fundada ciência informática se propôs<br />
como primeira tarefa a de desenvolver aplicações de tradução automática,<br />
potenciada pela explosão na transmissão de informação e pela errónea<br />
facilidade de decalcar uma técnica humana aparentemente simples: a tradução.
162<br />
Tradução e Multimédia<br />
O início da guerra-fria iria, em 1946, dar o primeiro impulso a este<br />
processo, sustenta<strong>do</strong> pela necessidade de obter informações soviéticas à<br />
distância, da forma mais rápida e eficiente possível. O inglês Booth e o<br />
americano Warren Weaver iriam entrar na história como os percursores da<br />
tradução automática, deven<strong>do</strong>-se-lhes a criação de uma calcula<strong>do</strong>ra científica<br />
com da<strong>do</strong>s suficientes para fazer tradução palavra por palavra, alheada de<br />
qualquer tipo de consideração sintáctica ou da ordem lexical (Alfaro, 1998:05).<br />
Weaver, antigo presidente da Fundação Rockefeller, concebia a TA de forma<br />
bastante simplista, ao sustentar que o processo de tradução seria basicamente<br />
análogo ao processo de descodificação de códigos para fins militares. Estava<br />
largamente convenci<strong>do</strong> de que esta modalidade era um objectivo facilmente<br />
alcançável, dan<strong>do</strong> origem a um movimento de crescente interesse pela TA, bem<br />
como à fundação de diferentes grupos de investigação nos EUA e na Europa.<br />
Em 1948, o inglês Richens introduziria melhorias na máquina<br />
desenvolvida por Booth e Weaver, nomeadamente informações relativas à<br />
análise gramatical das desinências russas. Em 1950, Weaver proporia a<br />
exploração automática <strong>do</strong> contexto terminológico, visan<strong>do</strong> solucionar as<br />
ambiguidades semânticas. Desde esta data, com reflexões como as de Reifleir,<br />
que insistia na necessidade de preparação prévia <strong>do</strong>s textos submeti<strong>do</strong>s a<br />
tradução automática, começa a delinear-se um paradigma de reflexão que torna<br />
imperativos a pré-edição, o auxílio humano durante a tradução e/ou a revisão<br />
de textos.<br />
Ainda durante a década de 50, várias investigações envidam esforços no<br />
senti<strong>do</strong> de desenvolver a tradução automática. A primeira conferência sobre TA,<br />
realizada no Massachusetts Institute of Technology, dava grande azo ao<br />
optimismo e ao entusiasmo característicos desta primeira fase de pesquisas. Os<br />
trabalhos concluiriam da necessidade primordial de orientar os paradigmas<br />
meto<strong>do</strong>lógicos lexicalmente, enquanto as análises sintáctica e semântica <strong>do</strong><br />
texto eram relegadas para um plano secundário. Até aos anos 50 e inícios <strong>do</strong>s<br />
anos 60, os investiga<strong>do</strong>res estavam plenamente convenci<strong>do</strong>s que seria possível<br />
desenvolver sistemas que produzissem “Fully automatic high-quality machine<br />
translation” (FAHQMT). Rapidamente se perceberia que nem tu<strong>do</strong> seria tão fácil.<br />
Chega<strong>do</strong>s aos anos 60, já o desânimo e o cepticismo se tinham apodera<strong>do</strong><br />
mesmo <strong>do</strong>s que se mostraram mais optimistas. “As aplicações práticas não<br />
correspondiam às previsões teóricas e a linguística formal não conseguia<br />
explicar problemas liga<strong>do</strong>s a estruturas, processos, funções e formas que se<br />
multiplicavam” (Alfaro, 1998:07). As traduções palavra por palavra não<br />
conseguiam produzir resulta<strong>do</strong>s inteligíveis e a formalização das regras
A Nova Torre de Babel 163<br />
sintácticas a partir das gramáticas não era suficiente para abarcar to<strong>do</strong>s os<br />
aspectos linguísticos observáveis. O cientista norte-americano Bar-Hillel será<br />
uma das vozes mais críticas das orientações das pesquisas da época,<br />
sublinhan<strong>do</strong> o facto de a resolução das ambiguidades semânticas patentes nas<br />
diferentes línguas só ser possível graças à introdução de quantidades<br />
inestimáveis de conhecimentos enciclopédicos. É famoso o exemplo da<strong>do</strong> por<br />
Bar-Hillel, ao apontar os problemas que um programa de TA encontraria ao<br />
traduzir frases como: “Little Peter was looking for his toy box. The box was in<br />
the pen”. Bar-Hillel argumenta que esta passagem será correctamente<br />
interpretada somente quan<strong>do</strong> se tem o conhecimento <strong>do</strong> tamanho típico de<br />
canetas e caixas para que se reconheça a impossibilidade de se colocar uma<br />
caixa dentro de uma caneta. Assim, recorre-se a um contexto infantil, onde<br />
“pen” se refere a “playpen”. Segun<strong>do</strong> Bar-Hillel, um computa<strong>do</strong>r nunca<br />
poderia ser provi<strong>do</strong> de conhecimento suficiente para lidar com este tipo de<br />
problema; os objectivos das pesquisas em TA deveriam, por consequência, ser<br />
mais modestos (Bar-Hillel, 1964).<br />
A desilusão definitiva virá com o relatório ALPAC (Automatic Language<br />
Processing Advisory Committee) – encomenda<strong>do</strong> pelos principais investi<strong>do</strong>res norteamericanos<br />
– que, em linhas gerais, concluiu da ausência de necessidade da TA,<br />
dada a relativa inexistência de procura, negan<strong>do</strong>, igualmente, a futura redução<br />
efectiva <strong>do</strong>s custos e a improbabilidade imediata de a TA produzir traduções de<br />
textos de linguagem geral sem a intervenção humana. Estas conclusões, embora<br />
parciais e tendenciosas, conduziriam ao descrédito da TA e as verbas<br />
governamentais para o desenvolvimento de investigação sofrerão cortes<br />
radicais. Efectivamente, facilmente se rebaterá qualquer um destes pontos,<br />
como manifesta Frank Austermühl:<br />
In view of what we know about the constantly growing volume of texts to be<br />
translated, the first point made by the ALPAC Report particularly seems quite<br />
short-sighted. Although widely condemned as being narrow and biased, the<br />
ALPAC Report had considerable influence on MT research in the 1960‟s. It led to<br />
the virtual end of US government funding and most MT projects were stopped.<br />
(2001:156)<br />
Nos EUA, apenas alguns cientistas e esforços isola<strong>do</strong>s persistem nos seus<br />
estu<strong>do</strong>s, como é o caso de Peter Toma, responsável pelo desenvolvimento <strong>do</strong><br />
Systran (http://www.systransoft.com).<br />
Os anos 80 trarão novo fôlego à investigação em tradução automática. O<br />
interesse recrudescente por parte de diversas instituições, nomeadamente da<br />
CEE, que em 1976 comprará o Systran, o aumento exponencial da
164<br />
Tradução e Multimédia<br />
informatização e o desenvolvimento da linguística formal esboçariam um<br />
quadro de circunstâncias ideais para que a inteligência artificial e a TA<br />
recebessem novo alento e apoios financeiros. É de destacar o papel<br />
preponderante desempenha<strong>do</strong> pela UE, que desde sempre se notabilizou e<br />
distinguiu como bastião contra a uniformização linguística, garantin<strong>do</strong> a cada<br />
um <strong>do</strong>s seus actuais 15 países membros o direito de usar a sua língua oficial nas<br />
instituições europeias. O Systran é hoje em dia, aliás, usa<strong>do</strong> extensivamente pela<br />
Comissão Europeia que, já no início <strong>do</strong>s anos 80, decidiu fundar um projecto<br />
ambicioso com vista a desenvolver um sistema multilíngue para as línguas <strong>do</strong>s<br />
países membros – o EUROTRA<br />
(http://www.ccl.kuleuven.ac.be/about/EUROTRA.htlm). Equipas de cada<br />
país membro, num total de cerca de cem linguistas, desenvolvem méto<strong>do</strong>s e<br />
paradigmas de análise da sua língua. Paralelamente, os investimentos da<br />
indústria privada abririam novos horizontes ao desenvolvimento de projectos<br />
de TA e de Tradução Assistida por Computa<strong>do</strong>r (TAC).<br />
Com efeito, a partir da década de 80, os estu<strong>do</strong>s e investigações em TA<br />
passam a orientar-se segun<strong>do</strong> objectivos mais realistas e modestos, instiga<strong>do</strong>s<br />
pelos fracassos sucessivos de um projecto demasiadamente ambicioso. A<br />
focalização passou então a ser, não a de produzir um sistema capaz de gerar<br />
uma tradução correcta sem intervenção humana, mas, ao invés, a de<br />
desenvolver aplicações informáticas que auxiliassem a tradução e programas de<br />
tradução automática que permitissem a intervenção humana. A principal meta<br />
da pesquisa em TA passou a ser a oferta de instrumentos eficazes, que num<br />
espaço de tempo razoável possam ajudar o tradutor humano, tornan<strong>do</strong> o seu<br />
desempenho mais rápi<strong>do</strong>, menos repetitivo e menos monótono.<br />
DA TRADUÇÃO HUMANA À TRADUÇÃO AUTOMÁTICA: TIPOLOGIAS<br />
Uma primeira abordagem da TA deverá, por conseguinte, incluir uma<br />
tipologização das várias ferramentas electrónicas disponíveis, de forma a que se<br />
distinga o largo espectro de aplicações existentes, funcionan<strong>do</strong> esta<br />
categorização como ponto de partida para uma reflexão epistemológica sobre<br />
os seus usos, possibilidades e avaliação. O modelo mais divulga<strong>do</strong> é<br />
provavelmente o que diz respeito ao grau de automatização <strong>do</strong> processo de<br />
tradução, fazen<strong>do</strong> apelo aos diversos acrónimos em inglês, usa<strong>do</strong>s para<br />
descrever este processo:<br />
· HT (Human Translation): Tradução Humana
A Nova Torre de Babel 165<br />
· CAT (Computer-Assisted Translation): Tradução Assistida por<br />
Computa<strong>do</strong>r<br />
· HAMT (Human-Aided Machine Translation): Tradução Automática<br />
Com Pós-Edição<br />
· MAHT (Machine-Aided Human Translation): Tradução Humana<br />
Assistida por Computa<strong>do</strong>r<br />
· MT (Machine Translation): Tradução Automática<br />
· FAHQMT (Fully Automatic High Quality Machine Translation):<br />
Tradução Automática de Alta Qualidade<br />
Os termos MAHT e HAMT estão normalmente agrupa<strong>do</strong>s no acrónimo CAT<br />
(Tradução Assistida por Computa<strong>do</strong>r). Esta listagem apresenta-nos um grau<br />
crescente de automatização <strong>do</strong> processo tradutivo, que vai da Tradução humana<br />
à Tradução inteiramente Automática de Alta qualidade, passan<strong>do</strong> pelos sistemas<br />
de tradução Assistida por Computa<strong>do</strong>r.<br />
Embora a FAHQMT – o mais extremista <strong>do</strong>s conceitos – esteja longe<br />
<strong>do</strong>s objectivos sonha<strong>do</strong>s nos anos 40 e 50, ela tem numerosas provas dadas em<br />
três sectores de vital importância para a economia. Referimo-nos aos sectores<br />
aeronáutico, farmacêutico e meteorológico, que conseguiram alcançar um <strong>do</strong>s<br />
objectivos fundamentais persegui<strong>do</strong>s pela TA, o de reduzir os custos e aumentar<br />
a rapidez de execução, sem descurar a qualidade. Como foi isso possível?<br />
Mediante a limitação da terminologia empregue, alicerçada numa extrema<br />
simplicidade sintáctica. No caso da indústria aeronáutica, por exemplo, os<br />
limites terminológicos são de cerca de três mil palavras 2 .<br />
É óbvio, tal como defende Melby, que no momento actual das<br />
investigações, os sistemas de TA bem sucedi<strong>do</strong>s só podem ser compreendi<strong>do</strong>s<br />
num contexto de especialização. “Current techniques in machine translation<br />
produce fully-automatic high quality translation only when applied to a body of<br />
similar texts which are all restricted to the same <strong>do</strong>main. The texts must be<br />
static in that they <strong>do</strong> not contain new metaphors, allusions or grammatical<br />
constructions.” (Melby, Abril, 1999). O facto é que a maioria <strong>do</strong>s sistemas de<br />
TA depende <strong>do</strong> auxílio humano, preven<strong>do</strong> quer a pós quer a pré-edição, o<br />
recurso a dicionários electrónicos ou a memórias de tradução, ou seja, cada vez<br />
mais se deve entender a TA como uma Tradução Assistida.<br />
Na última década, foram gastas inúmeras verbas no desenvolvimento e<br />
marketing de produtos capazes de cobrir de forma completa o processo<br />
tradutivo. Os produtos, idealiza<strong>do</strong>s para automatizar a tradução de forma
166<br />
Tradução e Multimédia<br />
(quase) completa são, a saber: as memórias de tradução; as ferramentas de<br />
software de localização; e os sistemas de tradução automática:<br />
• As memórias de Tradução: tais como o IBM Translation Manager<br />
(http://www-4.ibm.com/software/ad/translat/), o Déjà Vu<br />
(http://www.atril.com) e o TRADOS – Translators Workbench<br />
(http://www.tra<strong>do</strong>s.com), são arquivos de texto multilingues conten<strong>do</strong><br />
textos segmenta<strong>do</strong>s, alinha<strong>do</strong>s e classifica<strong>do</strong>s, que permitem o<br />
armazenamento e/ou busca de segmentos textuais, através <strong>do</strong> alinhamento<br />
de textos de partida com textos de chegada.<br />
• O Software de Localização: como o Corel Catalist, que permite adaptar<br />
um produto à situação específica <strong>do</strong> seu merca<strong>do</strong> alvo, retratan<strong>do</strong> a<br />
máxima “think globally, act locally”. Os sistemas de localização traduzem<br />
os textos adaptan<strong>do</strong>-os às normas culturais <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> local. Numa só<br />
aplicação, combinam-se várias funções relevantes numa tradução:<br />
extracção terminológica, busca automática de glossários, memórias de<br />
tradução e editores WYSIWYG (What you see is what you get).<br />
• A Tradução Automática: uma máquina que converta a língua de partida<br />
numa versão perfeita da língua de chegada, sem qualquer tipo de<br />
interferência humana. Como já vimos, após uma fase de grande<br />
investimento em pesquisa em tradução automática, os investiga<strong>do</strong>res<br />
voltaram-se para projectos menos ambiciosos, usan<strong>do</strong> textos de estrutura<br />
sintáctica simples e campos enciclopédicos ou terminológicos<br />
extremamente reduzi<strong>do</strong>s; são exemplos o Systran, ou o TAUM-Meteo.<br />
Se até há bem pouco tempo, estas diferentes aplicações pareciam<br />
irreconciliáveis e as firmas que os produziam e comercializavam mantinham<br />
uma postura perante o merca<strong>do</strong> de forte concorrência, hoje em dia, e<br />
nomeadamente em conferências internacionais, as investigações parecem<br />
concorrer no senti<strong>do</strong> de uma concertação de esforços, com o objectivo final de<br />
produzir aplicações informáticas, que com maior rapidez e fiabilidade possam<br />
traduzir uma língua de partida numa língua de chegada. Com efeito, quer os<br />
investiga<strong>do</strong>res em memórias de tradução quer os que desenvolvem aplicações<br />
de TA, que até hoje viviam de costas voltadas, podem, num futuro próximo,<br />
unir experiências para optimizar as ferramentas já disponíveis, nomeadamente<br />
cruzan<strong>do</strong> as regras de simplicidade sintáctica e terminológica de uns, com as<br />
milhões de memórias de tradução, de outros. Estaremos, então, a construir uma<br />
nova Torre de Babel?
A Nova Torre de Babel 167<br />
________<br />
1 Tal é o caso de autores como Melby ou Vitek que, embora reconhecen<strong>do</strong> o<br />
papel que a Tradução Automática desempenha, negam a possibilidade de, no futuro, ela<br />
conseguir produzir resulta<strong>do</strong>s de qualidade semelhante à da tradução humana, quan<strong>do</strong><br />
aplicada a textos de linguagem geral.<br />
2 É exemplar o caso <strong>do</strong> sistema TAUM-METEO, que traduz, directa e<br />
automaticamente, boletins meteorológicos <strong>do</strong> inglês para o francês, sem qualquer tipo<br />
de revisão ou pós-edição. O seu sucesso deve-se, em grande parte, à limitação <strong>do</strong> texto<br />
de partida numa sublíngua, em que a estrutura sintáctica e a terminologia empregues<br />
são restritas, repetitivas e simples.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
ALFARO, Carolina (1998) Descobrin<strong>do</strong>, Compreenden<strong>do</strong> e Analisan<strong>do</strong> a Tradução<br />
Automática. Monografia de Fim de Curso de Especialização em Tradução<br />
Inglês/Português, PUC-Rio de Janeiro.<br />
ARNOLD, D. et al. (1994) Machine Translation: an Introduction Guide, Lon<strong>do</strong>n, NCC<br />
Blackwell<br />
AUSTERMÜHL, Frank (2001) Electronic Tools for Translators, Massachusetts, Saint<br />
Jerome.<br />
BAR-HILLEL (1964) Language and Information. Selected essays on their theory and<br />
application, Massachusetts, Addison-Wesley Publishing Company.<br />
GERBER, Laurie Working Toward Success in Machine Translation. Disponível em:<br />
http://www.elsnet.org/mt2010/gerber.pdf.<br />
GUESSOUM, A., ZANTOUT, R. Semi-Automatic Evaluation of the Grammatical<br />
Coverage of Machine Translation Systems, Disponível em:<br />
http://wwweamt.org/summitVIII/papers/guessoum.pdf.<br />
MELBY, Alan K. (1995) The Possibility of Language, Amsterdam & Philadelphia,<br />
Benjamins.<br />
(1999) «Machine Translation and Philosophy of Language», Machine<br />
Translation Review, nº9, pp. 6-17, Disponível em:<br />
http://www.bcs.org.uk/siggroup/sg37.htm.<br />
(1999) “Why Can‟t a Computer Translate More Like a Person?” – 1995 Barker<br />
Lecture, Disponível em: http://www.ttt.org/theory/mt4me/index.htlm.<br />
SPECIA, Lucia, RINO, Maria Helena Macha<strong>do</strong> (2002) Introdução aos Méto<strong>do</strong>s e<br />
Paradigmas de Tradução Automática, Série de Relatórios <strong>do</strong> Núcleo Interinstitucional de<br />
Linguística Computacional, NILC – ICMC-USP, São Paulo.<br />
VITEK, S.V. (2000) «Reflections of a Human Translator on Machine Translation<br />
or Will Translation MT Become the “Deus Ex Machina” Rendering Humans Obsolete
168<br />
Tradução e Multimédia<br />
in an Age When “Deus Est Machina”?» Translation Journal, Volume 4, Nº3, Disponível<br />
em:http://www.accurapid.com/journal/13mt.htm.
ALGUNS RECURSOS EM LINHA<br />
Filipe Pinto 1<br />
Os Dicionários, coita<strong>do</strong>s, sabem<br />
o que dizem, mas não sabem falar.<br />
Miguel Esteves Car<strong>do</strong>so<br />
Esta recolha de recursos „em linha‟ incidiu sobre as seguintes áreas:<br />
1. Dicionários e Glossários<br />
2. Sítios sobre Tradução<br />
3. Oportunidades de Emprego<br />
4. Directórios<br />
5. Outras hiperligações<br />
1. Dicionários & Glossários<br />
Além das páginas oficiais das editoras, é possível também encontrar<br />
páginas que reunem os mais varia<strong>do</strong>s dicionários gerais e específicos, assim<br />
como glossários. Aqui são da<strong>do</strong>s alguns exemplos:<br />
A) Yourdictionary.com<br />
É um <strong>do</strong>s sítios mais completos e dedica<strong>do</strong> quase exclusivamente a<br />
dicionários, conforme o nome indica. Só de língua portuguesa estão presentes<br />
mais de 30 dicionários e glossários. Contêm várias combinações linguísticas.<br />
Existe ainda uma secção de tradução. Para aumentar o conhecimento <strong>do</strong> Inglês,<br />
é possível receber diariamente por e-mail a palavra <strong>do</strong> dia.<br />
B) M-W.com<br />
É o sítio de uma das mais conhecidas editoras de obras de referência:<br />
Merriam-Webster. Além de ser possível procurar qualquer palavra de língua<br />
inglesa, distingue-se <strong>do</strong>s outros por conter um dicionário de sinónimos.<br />
Encontra-se aqui também jogos de palavras, etimologia. É possível encomendar<br />
dicionários e existe um dicionário gratuito que se pode adicionar ao browser.<br />
1 Aluno da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de Tradução<br />
Especializada.
C) Glossarist.com<br />
Talvez o sítio mais completo exclusivamente dedica<strong>do</strong> a glossários.<br />
Infelizmente, o português não é considera<strong>do</strong>. Mas, ainda assim, pode ser<br />
bastante útil numa retroversão, já que é muito preciso e aborda uma infinidade<br />
de temáticas (ex: vinho ou hidrologia).<br />
D) Onelook.com<br />
O onelook.com é um sítio que compreende mais de 800 dicionários<br />
indexa<strong>do</strong>s. Basta escrever a palavra ou expressão no motor de busca e ele<br />
direcciona a mesma para um <strong>do</strong>s dicionários indexa<strong>do</strong>s. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
podemos nós mesmos ter acesso à lista de dicionários a pesquisar.<br />
E) Foreignword.com<br />
Funciona à base de um motor de busca, onde basta a simples introdução<br />
da palavra acerca <strong>do</strong> assunto pretendi<strong>do</strong> (por exemplo: engenharia, medicina),<br />
para termos acesso imediato a dicionários e glossários específicos. Inclui um<br />
fórum, onde é possível discutir sobre tradução, dicionários na web, memórias de<br />
tradução, entre outros aspectos.<br />
2. Sítios sobre Tradução<br />
Esta secção versa não apenas sobre sítios que ajudem de alguma forma a<br />
fazer uma tradução, mas também sobre outros que falem <strong>do</strong> fenómeno da<br />
tradução.<br />
A) http://accurapid.com/Journal<br />
O subtítulo da publicação diz tu<strong>do</strong>: “A publication for translators by<br />
translators about translators and translation”.<br />
Aqui, é possível ler artigos sobre tradução, ter acesso aos números<br />
anteriores da publicação, etc. Disponibiliza ainda uma série de ferramentas úteis<br />
para tradução.<br />
B) http://europa.eu.int/eurodicautom/controller<br />
Sítio oficial de tradução da União Europeia. Faculta a pesquisa por áreas<br />
temáticas. É possível traduzir de e para qualquer língua da União Europeia.<br />
Ajuda a criar um padrão terminológico e linguístico europeu.<br />
C) Lai.com/lai/companion.html
Alguns Recursos em Linha 171<br />
O próprio sítio define-se como “The Translator‟s Home Companion”.<br />
Aqui, é possível estar-se a par das últimas notícias sobre tradução, ter acesso a<br />
glossários e a motores de busca só sobre tradução e interpretação, procurar<br />
empregos, entrar em contacto com agências de tradução e organizações e<br />
também recolher informações actualizadas sobre conferências e seminários.<br />
D) Linguateca.pt<br />
É o sítio onde se encontra o Corpus português. Qualquer palavra, por<br />
exemplo, saída no jornal Público, mas não só, bem como o contexto em que foi<br />
utilizada, fica armazenada na base de da<strong>do</strong>s. Também é possível pesquisar<br />
expressões estrangeiras (desde que publicadas). Disponibiliza uma série de<br />
ferramentas (incluin<strong>do</strong> a tradução automática), bem como o acesso a léxicos<br />
gerais e especializa<strong>do</strong>s. Permite a consulta de teses sobre língua portuguesa,<br />
assim como o acesso a várias outras funções.<br />
E) Multilingual.com<br />
“Multilingual” é o nome de uma publicação sobre linguagem. É<br />
fundamentalmente vocacionada para a tradução. Permite o acesso em linha aos<br />
artigos sem necessidade de qualquer subscrição. Permite ainda procurar<br />
empregos que tenham si<strong>do</strong> anuncia<strong>do</strong>s numa secção criada para o efeito, estar a<br />
par das últimas novidades na área de tradução e conhecer os eventos dedica<strong>do</strong>s<br />
à tradução que se vão realizar brevemente.<br />
3. Oportunidades de Emprego<br />
Com o rápi<strong>do</strong> desenvolvimento tecnológico actual, torna-se mais fácil<br />
acompanhar o merca<strong>do</strong> de trabalho. Nos dias que correm, é mais fácil ter<br />
acesso a oportunidades de trabalho que de outra forma nos passariam<br />
despercebidas. Embora a concorrência seja obviamente maior, o merca<strong>do</strong><br />
também é cada vez mais livre. Estão presentes na internet alguns sítios<br />
dedica<strong>do</strong>s ao merca<strong>do</strong> de trabalho e à tradução, onde é possível competir com<br />
outros tradutores por trabalhos coloca<strong>do</strong>s por agências de tradução, empresas<br />
ou individuais.<br />
A) Proz.com<br />
A Proz.com é uma agência de emprego apenas dedicada à tradução.<br />
Depois de nos registarmos e colocarmos o nosso currículo em linha, as<br />
oportunidades de trabalho relacionadas com o nosso currículo ser-nos-ão<br />
enviadas via e-mail. Infelizmente, também são enviadas para dezenas de outros<br />
tradutores, mas é sempre possível disputar os trabalhos.
O sítio constitui igualmente um ponto de discussão onde é possível<br />
esclarecer ou tirar dúvidas de tradução. É possível tornar-se membro especial<br />
(sob pagamento), de mo<strong>do</strong> a ter acesso a uma maior quantidade de trabalhos.<br />
Inclui glossários cria<strong>do</strong>s pelos membros, mas que podem ser consulta<strong>do</strong>s<br />
gratuitamente.<br />
B) Aquarius.net<br />
É muito semelhante ao Proz.com, embora menos completo. Funciona da<br />
mesma forma (receber a proposta, fazer a oferta). Faz igualmente a distinção<br />
entre os membros. Permite que coloquemos o nosso perfil, para que os clientes<br />
tenham acesso ao mesmo. Publica uma newsletter mensal. Fornece ligações para<br />
vários <strong>do</strong>mínios da tradução.<br />
C) Xtranslation.com<br />
Mais um sítio em que é possível ter acesso a trabalhos de tradução, mas ao<br />
contrário <strong>do</strong>s anteriores, não tem nenhum carácter económico. É possível<br />
aceder a dicionários e glossários, bastan<strong>do</strong> para tal seleccionar a língua<br />
pretendida. Disponibiliza ainda outras ferramentas. Faz uma série de<br />
recomendações sobre livros de tradução.<br />
D) Foreignword.biz<br />
Este é um sítio onde cerca de 7000 profissionais de tradução estão<br />
regista<strong>do</strong>s. Além de ser possível procurar trabalhos através <strong>do</strong> motor de busca<br />
ou receber trabalhos (depois de colocarmos o currículo), oferece ainda uma<br />
série de aplicações, tais como programas informáticos de tradução, glossários,<br />
dicionários, etc...<br />
4. Directórios<br />
A função principal <strong>do</strong>s directórios é a de reunir informação específica no<br />
âmbito de determinada área. Apresentam a vantagem de nos oferecerem<br />
imediatamente várias alternativas para o mesmo assunto.<br />
A) Translationresearch.com<br />
Um sítio que se subdivide em várias categorias, todas relacionadas com<br />
tradução. Fornece as hiperligações para, por exemplo, várias organizações de<br />
tradução espalhadas pelo mun<strong>do</strong>, teoria da tradução, publicações, ferramentas,<br />
educação. Faz ainda uma distinção nos vários tipos de tradução (técnica,<br />
médica, literária, jurídica).
Alguns Recursos em Linha 173<br />
B) Lexicool.com<br />
O lexicool.com é um directório de dicionários bilingues e multilíngues.<br />
To<strong>do</strong>s os dicionários gratuitos presentes na net são indexa<strong>do</strong>s ao sítio. No sítio,<br />
está presente um motor de busca, onde o utiliza<strong>do</strong>r pode escolher a<br />
combinação linguística (inclui o português), assim como a temática que<br />
pretende pesquisar.<br />
C) Ilovelanguages.com<br />
É um sítio que organiza e categoriza os recursos de linguagem presentes<br />
na internet, relaciona<strong>do</strong>s com educação, aprendizagem e uso das línguas.<br />
Entre as categorias é possível pesquisar sobre organizações, dicionários,<br />
recursos educativos, conferências, entre outros.<br />
5) Outras hiperligações<br />
Aiic.net – Sítio da Associação Internacional de Intérpretes de Conferência.<br />
Apet.pt – Sítio da Associação Portuguesa de empresas de Tradução.<br />
Apt.pt – Sítio da Associação Portuguesa de Tradutores.<br />
Atanet.com – Associação Americana de Tradutores<br />
Atelier-traduction.com – Espaço dedica<strong>do</strong> à tradução de obras teatrais.<br />
Fit-ift.org – Fédération Internationale des Traducteurs.<br />
http:://trans.voila.fr – Espaço de tradução francês. Utiliza o Systran.<br />
Jrdias.com – Como deve ser o site de um tradutor.<br />
Legallanguage.com – Sítio sobre tradução e interpretação jurídica.<br />
Leo.org – Dicionário Inglês/Alemão. Um projecto da Universidade de<br />
Munique.<br />
S9.com – Dicionário biográfico.<br />
Sk.com.br – Sítio muito completo sobre características da língua inglesa.<br />
Thesaurus.com – Incide sobre gramática e estilo.<br />
T-online.de – Motor de busca alemão.<br />
Visualthesaurus.com – Dicionário de inglês. Muito apelativo visualmente.<br />
Cada homem e tu<strong>do</strong> o que ele cria, cada língua e tu<strong>do</strong> o que ela veicula, são únicos<br />
– “traduzi-los” comprometerá irremediavelmente tais especificidades. Para quê<br />
então traduzir?... Com to<strong>do</strong>s os seus senões, vale a pena correr os riscos, aceitar as<br />
desfigurações, e assim, facilitar, através da passagem para outra língua, [...] dizer<br />
não apenas a alguns homens mas a to<strong>do</strong>s eles.<br />
Fernan<strong>do</strong> Namora, in Senta<strong>do</strong>s na Relva, 1986
ecensões
TRANSLATORS AS HOSTAGES OF HISTORY<br />
Ensaio<br />
De: Theo Hermans e Ubal<strong>do</strong> Stecconi<br />
URL: http://europa.eu.int/comm/translation/theory/lectures/2001_01_18_history.pdf<br />
O presente discurso foi proferi<strong>do</strong> no Luxemburgo e em Bruxelas, a 17 e<br />
18 de Janeiro de 2002, integran<strong>do</strong>-se na série de seminários “Theory meets<br />
Practice”, organizada anualmente pelo Serviço de Tradução da Comissão<br />
Europeia (SDT). A convite <strong>do</strong> SDT, <strong>do</strong>is teóricos da tradução tomaram<br />
conhecimento <strong>do</strong> trabalho aí desenvolvi<strong>do</strong>, através de uma visita guiada, e<br />
apresentaram um tema susceptível de debate. Da<strong>do</strong> que os seminários não são<br />
acessíveis ao público, os ora<strong>do</strong>res forneceram uma versão escrita <strong>do</strong> discurso,<br />
de forma a ser disponibilizada em linha.<br />
O texto evolui de forma apelativa e original, sen<strong>do</strong> as intervenções<br />
partilhadas por <strong>do</strong>is ora<strong>do</strong>res, Theo Hermans e Ubal<strong>do</strong> Stecconi. Theo<br />
Hermans efectua uma incursão pelas metalinguagens figurativas da tradução na<br />
Europa Ocidental, citan<strong>do</strong> alguns <strong>do</strong>s teóricos mais proeminentes. Ubal<strong>do</strong><br />
Stecconi intervém com comentários relativos à aplicação das diferentes<br />
orientações meto<strong>do</strong>lógicas pelo SDT. Numa perspectiva histórica, desde a<br />
Antiguidade até à actualidade, passan<strong>do</strong> pelos perío<strong>do</strong>s renascentista e<br />
romântico, tentam dar resposta a algumas questões controversas, entre as quais<br />
a da invisibilidade <strong>do</strong> tradutor e a da pouca criatividade apontada ao seu<br />
trabalho. Neste contexto, realçam a diversidade e a complexidade <strong>do</strong> trabalho<br />
de tradução, questionam-se sobre as medidas a tomar para alterar algumas<br />
ideias pré-concebidas acerca <strong>do</strong>s tradutores e tentam explicar o facto de estes se<br />
sentirem voluntariamente presos a uma tradição de subserviência discreta.<br />
Após uma breve introdução, Theo Hermans inicia o seu estu<strong>do</strong> histórico<br />
pela Antiguidade Clássica. O termo utiliza<strong>do</strong> para tradução, que deriva<br />
etimologicamente <strong>do</strong> Latim translatio, transferre, está imbuí<strong>do</strong> de uma carga<br />
metafórica. Denota um senti<strong>do</strong> espacial de movimento físico, facto que nos<br />
leva a encarar metaforicamente a tradução como algo que envolve uma carga<br />
(significa<strong>do</strong>), transportada de um la<strong>do</strong> para outro numa espécie de contentor<br />
(linguagem). A insistência na colagem ao original explica por que razão o<br />
tradutor „fiel‟, fidus interpres, resulta na ideia <strong>do</strong> tradutor tími<strong>do</strong>, apaga<strong>do</strong> ou<br />
servil, que se mantém sempre fiel ao texto. Com efeito, uma das questões que<br />
maior debate suscitou ao longo <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> histórico foi a noção de equivalência,<br />
que aparece ligada à noção de transparência, imaginan<strong>do</strong>-se os tradutores como<br />
intérpretes e, por isso, transparentes e invisíveis. Estas metáforas, que espelham
178<br />
Recensões<br />
mo<strong>do</strong>s de pensamento específicos, afectaram desde sempre o estatuto <strong>do</strong>s<br />
tradutores.<br />
Ao redescobrir a cultura clássica, o perío<strong>do</strong> renascentista trouxe para a<br />
ribalta o tema da tradução enquanto algo de valioso há muito esqueci<strong>do</strong>. A<br />
tradução é então considerada um serviço público, por disponibilizar textos e<br />
ideias outrora inacessíveis. Mas o poder da tradução era também visto como<br />
sen<strong>do</strong> potencialmente subversivo.<br />
No século XX, privilegia-se o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo de transferência entre o<br />
texto de partida e o texto de chegada. Os funcionalistas descrevem a tradução<br />
como uma actividade dirigida a um objectivo, com um ponto de partida, um<br />
percurso e um destino. A abordagem pós-colonialista rejeita os estereótipos <strong>do</strong><br />
tradutor, quer como alguém totalmente devota<strong>do</strong> a servir o autor, quer como<br />
um trai<strong>do</strong>r infiel que adultera culturalmente o original. Opta, assim, por diluir o<br />
servilismo tradicional <strong>do</strong> tradutor em favor de uma mistura complexa de<br />
criação, crítica e adaptação. As abordagens inspiradas nas correntes feministas<br />
denunciam a posição de subordinação e restrição de que tanto as mulheres<br />
como a tradução têm si<strong>do</strong> alvo na sociedade.<br />
O debate acerca <strong>do</strong> trabalho desenvolvi<strong>do</strong> no SDT, suscita<strong>do</strong> por Ubal<strong>do</strong><br />
Stecconi, decorre sem fins estatísticos e sem a pretensão de resolver problemas<br />
de terminologia. A proposta inclui a procura da metalinguagem figurativa nas<br />
traduções que circulam no SDT e a análise <strong>do</strong> papel e <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> da tradução<br />
no projecto europeu, cuja política se baseia numa perspectiva multilinguística e<br />
multicultural, no respeito pela diversidade de cada tradição europeia e na defesa<br />
da qualidade <strong>do</strong> serviço presta<strong>do</strong>. O SDT, decerto o maior gabinete de tradução<br />
existente na Europa, possui uma longa tradição e está extremamente bem<br />
estrutura<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> cada membro da equipa um papel defini<strong>do</strong>. As questões da<br />
terminologia e da fidelidade desempenham um papel importante no discurso<br />
sobre tradução no SDT, embora a ideia de equivalência <strong>do</strong>s termos e frases surja<br />
de forma quase obsessiva. O SDT dispõe de ferramentas auxiliares de trabalho,<br />
compostas por palavras e frases curtas que permitem a correspondência lexical<br />
e a tradução controlada, e de bases de da<strong>do</strong>s em linha, como a Eurodicautom e a<br />
Celex. A esta abordagem da tradução atribui-se o nome de “processamento de<br />
palavras”, pois consiste em substituir palavras isoladas de uma língua por outras<br />
palavras noutra língua. Esta abordagem poderá justificar-se em termos de<br />
normalização, estilo e registo oficial, mas a tradução palavra a palavra revela-se<br />
inútil, necessitan<strong>do</strong> o SDT de se concentrar na produção de textos informativos<br />
e claros. Ora, uma das falhas apontadas ao SDT reside, precisamente, no facto<br />
de a sua linguagem, a Eurospeak, ser pouco clara, persuasiva e compreensível<br />
para a maioria <strong>do</strong>s cidadãos. Esta atitude de “processamento de palavras”<br />
acarreta o receio por parte <strong>do</strong>s tradutores relativamente à inevitabilidade <strong>do</strong>
Theo Hermans e Ubal<strong>do</strong> Stecconi 179<br />
progresso da tradução automática. Como é óbvio, esta perspectiva mecanicista<br />
da profissão <strong>do</strong> tradutor não é a melhor forma de granjear respeito profissional.<br />
No âmbito <strong>do</strong> aspecto multilinguístico e multicultural, a Comissão<br />
Europeia (CE) deve comunicar com to<strong>do</strong>s os seus constituintes além-fronteiras,<br />
isto é, deve localizar-se. O termo localização, muito divulga<strong>do</strong> ultimamente,<br />
surgiu há cerca de dez anos para indicar a tradução e a adaptação de software<br />
para os países que não se exprimem em Inglês. A CE não deve negligenciar este<br />
aspecto, constituin<strong>do</strong> os tradutores um recurso muito importante, que vai<br />
muito além <strong>do</strong> seu papel tradicional como profissionais que se limitam a<br />
reescrever palavras impressas. Os tradutores foram assimilan<strong>do</strong> competências<br />
que poderão ser apuradas e aplicadas em diversas áreas, especialmente agora,<br />
perante o alargamento que se avizinha. Ao a<strong>do</strong>ptar uma atitude activa, os<br />
tradutores poderão comercializar essas capacidades, contribuin<strong>do</strong> para melhorar<br />
o seu estatuto e assim ressalvar o futuro.<br />
A cada leitor deste discurso caberá decidir se as ideias nele expressas são<br />
passíveis de conduzir a uma maior satisfação profissional ou a uma atitude<br />
crítica de alerta. O levantamento destas questões poderá não ter uma utilidade<br />
imediata para a prática diária da tradução profissional, mas permite encará-la de<br />
forma dinâmica. Na realidade, a análise das ideias acerca da tradução poderá<br />
ajudar o tradutor a expandir os seus conhecimentos e a compreender melhor a<br />
sua tarefa, afastan<strong>do</strong> a noção de que os teóricos apenas querem impor-lhe<br />
regras para traduzir. Este trabalho de carácter académico proporciona assim<br />
uma reflexão cuidada e uma leitura enriquece<strong>do</strong>ra.<br />
Theo Hermans (MA e PhD) é professor no University College of Lon<strong>do</strong>n,<br />
onde lecciona Literatura Alemã Comparada. Na sequência <strong>do</strong>s seus estu<strong>do</strong>s<br />
sobre tradução, publicou obras como: Translation in Systems – Descriptive and<br />
Systemic Approaches Explained (1999) e The Babel Guide to Dutch and Flemish Fiction<br />
in English Translation (2001).<br />
Ubal<strong>do</strong> Stecconi é licencia<strong>do</strong> em Tradução pela Universidade de Trieste.<br />
Leccionou Teoria e Prática de Tradução em Itália, nas Filipinas e nos Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s. É tradutor da Comissão Europeia, em Bruxelas, desde 2001. Publicou<br />
livros sobre Teoria da Tradução e Semiótica e redigiu vários artigos literários e<br />
entrevistas.<br />
Carla de Jesus 1<br />
1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de<br />
Tradução Especializada.
SAMURAI – NOME DE CÓDIGO<br />
Ficção<br />
De: Neal Stephenson<br />
Trad. portuguesa de Paulo Faria<br />
Título original: Snow Crash<br />
Lisboa: Editorial Presença, 2002 / 1992<br />
ISBN: 972-98506-5-8<br />
469 páginas.<br />
Desde as primeiras páginas deste romance cyberpunk, Neal Stephenson<br />
mergulha os seus leitores numa fascinante visão de um futuro talvez próximo.<br />
Neste futuro, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s não passam de um mosaico de cidades-esta<strong>do</strong><br />
concessionadas a empresas rivais, o sistema político-legal desapareceu, a Máfia<br />
controla a distribuição de pizzas – elevada ao estatuto de suprema actividade<br />
económica – as vagas de refugia<strong>do</strong>s asiáticos e africanos são uma ameaça<br />
mundial e a classe média encerra-se em con<strong>do</strong>mínios suburbanos ultra-vigia<strong>do</strong>s,<br />
ilhas de normalização obsessiva cercadas pelo caos triunfante. A internet é<br />
agora um universo paralelo – o Metaverso – povoa<strong>do</strong> de avatares extravagantes,<br />
onde as leis da probabilidade e da física foram subvertidas pelo poder<br />
imaginativo <strong>do</strong>s hackers. É aqui notável o visionarismo de Neal Stephenson,<br />
pois não esqueçamos que Snow Crash é um original de 1992, a Idade Média da<br />
internet, tal como hoje a conhecemos e utilizamos.<br />
Entre estes <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s move-se com desenvoltura Hiro Protagonista,<br />
hacker de prestígio, pai funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Metaverso, espadachim samurai,<br />
colabora<strong>do</strong>r irregular da nova CIA privatizada e entrega<strong>do</strong>r, prontamente<br />
demiti<strong>do</strong>, ao serviço da Pizza CosaNostra. Ao longo da sua aventura, Hiro<br />
procura desvendar o segre<strong>do</strong> de “Snow Crash”, um vírus letal que ameaça o<br />
sistema linguístico e informático, afectan<strong>do</strong> o software e o hardware que tanto<br />
máquinas como humanos possuem. Viajante <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> tempo, “Snow<br />
Crash” foi responsável pela destruição da civilização suméria, pela dispersão das<br />
línguas e pela criação de Babel. As vítimas modernas experimentam o linguajar<br />
místico da glossolália, perdem as suas capacidades racionais e tornam-se<br />
facilmente presa <strong>do</strong>s desígnios totalitaristas e globalizantes de uma sinistra mas<br />
irónica trindade: um magnata <strong>do</strong>s media, o reveren<strong>do</strong> supremo de um franchising<br />
religioso e um terrorista nuclear.<br />
A um ritmo alucinante, Snow Crash/Samurai: Nome de Código cruza<br />
referentes múltiplos, da metafísica suméria à teologia <strong>do</strong> Velho Testamento,<br />
sem esquecer as miragens de uma civilização pós-moderna à beira <strong>do</strong> colapso,<br />
que somos obriga<strong>do</strong>s, com lucidez e humor, a reconhecer como sen<strong>do</strong> aquela
Neal Stephenson 181<br />
em que vivemos. O contexto linguístico, histórico e cultural evoca<strong>do</strong> é<br />
complexo, exigente para o leitor, mas por demais interessante, satírico e<br />
enriquece<strong>do</strong>r. Como se constata, as questões da comunicação, da linguagem e<br />
da tradução, em sintonia com as novas tecnologias, motivam não só<br />
publicações académicas mas também romances futuristas de qualidade.<br />
Snow Crash (“Nevão Mara<strong>do</strong>”, na tradução de Paulo Faria, mas outras<br />
opções existiriam) deveria ter origina<strong>do</strong> um título mais atraente <strong>do</strong> que a<br />
tradução livre para Samurai: Nome de Código, sem ligação evidente à narrativa e<br />
mais apropria<strong>do</strong> para uma edição de “manga” importada <strong>do</strong> Japão. No geral, a<br />
tradução consegue transmitir o ritmo imprevisível, o registo múltiplo, o humor,<br />
a ironia e a polissemia <strong>do</strong> original, cumprin<strong>do</strong> com sucesso uma tarefa árdua,<br />
dificultada pelos inúmeros neologismos e jogos lexicais que percorrem o texto e<br />
sem os quais muito <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> se perderia. Samurai: Nome de Código é o<br />
primeiro título da colecção “Viajantes no Tempo”, um projecto que a Editorial<br />
Presença não deverá descurar.<br />
Neal Stephenson, um <strong>do</strong>s raros ficcionistas a colaborar na revista Time, é<br />
autor de diversas obras de ficção científica, como Cryptonomicon, The Diamond<br />
Age, The Big U, Zodiac: The Eco-Thriller ou Quicksilver. Snow Crash recebeu vários<br />
prémios, entre os quais o “Grand Prix de L‟Imaginaire” e o “Prix Ozone” de<br />
1997.<br />
Clara Sarmento
THE DANTE CLUB<br />
Ficção<br />
De: Matthew Pearl<br />
Nova Iorque: Ran<strong>do</strong>m House, 2003<br />
ISBN: 0-375-505296-6<br />
372 páginas.<br />
In 1865 post-Civil War Boston, the literary geniuses of the Dante Club –<br />
poets and Harvard professors Henry Wadsworth Longfellow, Oliver Wendell<br />
Holmes and James Russell Lowell, along with publisher J. T. Fields – are<br />
finishing America‟s first translation of The Divine Comedy and preparing to unveil<br />
Dante‟s masterpiece to the New World.<br />
But the powerful fellows of the Harvard Corporation are fighting to keep<br />
Dante in obscurity, believing that the infiltration of a foreign culture into the<br />
conservative minds of New England will prove as corrupting as the immigrants<br />
arriving at Boston Harbour. Matthew Pearl draws an excellent picture of the<br />
atmosphere of the period, as well as of the attitudes that prevailed against the<br />
influx of immigrants and the so-called threat of foreign literature.<br />
The members of the Dante Club fight to keep a literary cause alive, but<br />
they are shaken in their ivory towers when a series of cruel murders erupts<br />
through Boston. Only this small group of scholars realizes that the killings are<br />
modelled on the descriptions of Hell‟s punishments from Dante‟s Inferno.<br />
Knowing that only a limited number of people in America are familiar with<br />
Dante‟s work, the members of the Dante Club conduct their own investigation<br />
into the killings. In their decision to pursue the killer, they are joined by<br />
Nicholas Rey, a fictional character based on the first black police officer in<br />
America. Rey rises above general racism and proves to be both the best of all<br />
detectives and a cunning reader. Expertly weaving together historical fact (the<br />
Dante Club did exist in reality, and even Ralph Wal<strong>do</strong> Emerson appears in a<br />
brief passage), complex characters and suspense, Pearl has written a unique and<br />
absorbing tale.<br />
While reading Matthew Pearl‟s The Dante Club, we understand that<br />
literature, life (and death) can be very close, that reading, writing and translating<br />
are indeed passionate activities, true adventures. Words can bleed, for sure, but<br />
they can also breathe, gain life and give life: “The fate of literature prophesied<br />
by Mr. Emerson has come to life by the events you describe – literature that<br />
breathes life and death, that can punish, and can absolve” (228).<br />
The Dante Club is both an historical narrative and a mystery novel that<br />
recalls characteristics of Umberto Eco‟s Il Nome della Rosa. In the political
machinations going on inside the walls of Harvard College, we recognize Eco‟s<br />
monks and abbots, who consider themselves as the unquestionable guardians<br />
of truth, knowledge and faith and that would resort to every means in order to<br />
keep those sacred principles to themselves. “Thou shall not share your<br />
knowledge with the commons” seems to be some characters‟ motto. “The<br />
motto of the College is „Christo et Ecclesiae‟ and we are beholden to live up to<br />
the Christian spirit of that ideal”, says the sinister Augustus Manning, treasurer<br />
of the Corporation. But we are to learn that: “The motto used to be „Veritas‟,<br />
Truth” (205).<br />
Along the pages of The Dante Club, there is a mirror play between author<br />
and translators, between the plot and the translating process itself, with an<br />
unexpected epilogue that questions the reality of real life and shows the dangers<br />
and mysteries of the task of the translator.<br />
This novel is a first-rate complementary reading and motivation for<br />
students of Translation. Future translators are offered a very romantic<br />
perspective of their job, that appears to be thrilling, defiant, non-conformist.<br />
When a translator complains about his/her career being nothing but sitting in a<br />
lonely room and rewrite someone else‟s words among a pile of dictionaries,<br />
he/she should think of Longfellow‟s slow recovery from tragedy through his<br />
impassioned work, of Fields commitment to his writers, of Lowell‟s<br />
determination, and even of Holmes‟s weaknesses which, in certain moments,<br />
we all share. A good translator – just like a good writer or a good police officer<br />
(like Nicholas Rey) – may write his/her name into History. Translators like the<br />
ones at The Dante Club have the power to subvert the system, because their<br />
mission is, indeed, to bring new worlds into their already old Ivy League world.<br />
In this passage, when Longfellow is working on his translation of Dante,<br />
Pearl offers his readers a beautiful image of the translating process:<br />
But Dante resisted mechanical intrusions, and withheld himself, demanding<br />
patience. Whenever translator and poet came to this impasse, Longfellow would<br />
pause and think: Here Dante laid <strong>do</strong>wn his pen – all that follows was still a blank.<br />
How shall it be filled up? What new figures shall be brought in? What new names<br />
written? Then the poet resumed his pen – and, with an expression of joy or<br />
indignation upon his face, wrote further in his book – and Longfellow now<br />
followed without timidity. (221)<br />
Matthew Pearl graduated from Harvard University in English and<br />
American Literature in 1997, and in 2000 from Yale Law School, where he<br />
wrote the first draft of The Dante Club. In 1998, he won the prestigious Dante<br />
Prize from the Dante Society of America for his scholarly work. He is the<br />
editor of the new Modern Library edition of Dante‟s Inferno, translated by<br />
Henry Wadsworth Longfellow. The Dante Club is his first novel.
184<br />
Recensões<br />
Clara Sarmento
GRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA<br />
Gramática de Português Europeu<br />
De: Maria Helena Mira Mateus, et al.<br />
Lisboa: Editorial Caminho, 2003<br />
ISBN: 972-21-0445-4<br />
1127 páginas.<br />
Mais sobre a anatomia da língua portuguesa...<br />
Os ávi<strong>do</strong>s por questões relacionadas com o funcionamento da língua<br />
portuguesa podem já dissecar mais um estu<strong>do</strong> meticuloso sobre aspectos da sua<br />
organização interna. Mas desengane-se quem espera um texto canónico, que<br />
prescreva <strong>do</strong>gmaticamente regras de bem escrever ou de bem falar, pois tal<br />
como se pode ler no prefácio à última edição, trata-se de um trabalho de<br />
carácter descritivo e analítico:<br />
[...]não é uma gramática normativa, ou seja, não é um instrumento que regule o<br />
bom uso da língua. O seu objectivo consiste na apresentação de descrições e<br />
análises de um largo conjunto, evidentemente não exaustivo, de aspectos da língua<br />
portuguesa. (2003:17)<br />
Apresentada a público no início de Março deste ano, a 5ª edição da<br />
Gramática da Língua Portuguesa é motivo de júbilo por duas razões fundamentais:<br />
uma polifonia de perspectivas, decorrente <strong>do</strong> alargamento <strong>do</strong> grupo de quatro<br />
linguistas que esteve na sua génese (Maria Helena Mira Mateus, Ana Maria<br />
Brito, Inês Duarte e Isabel Hub Faria), ao qual se juntaram, nesta edição, Sónia<br />
Frota, Gabriela Matos, Fátima Oliveira, Marina Vigário e Alina Villalva; e,<br />
consequência da primeira razão evocada, uma nova organização interna. Esta<br />
última reflecte um aprofundamento e uma reconceptualização da estrutura que<br />
enformou as edições anteriores. As três partes constituintes deram, agora, lugar<br />
a seis, expon<strong>do</strong> um percurso que se vislumbra <strong>do</strong> nível macro-estrutural ao<br />
nível micro-estrutural.<br />
A Parte I – A Língua Portuguesa: Unidade e Diversidade – contempla,<br />
sobretu<strong>do</strong>, aspectos relativos à variação diacrónica e diatópica <strong>do</strong> português,<br />
ou, por outras palavras, à variação da nossa língua no tempo e no espaço. Não<br />
pude, todavia, deixar de notar, no Capítulo II – Dialectos e Variedades <strong>do</strong><br />
Português – a não referência à variedade africana [PA]. A análise contrastiva<br />
intralinguística que é apresentada para o Português Europeu [PE] e para o<br />
Português <strong>do</strong> Brasil [PB] deverá, em edições posteriores, ser ampliada àquela<br />
variedade. Afinal, a “velha” Gramática <strong>do</strong> Português Contemporâneo, de
186<br />
Recensões<br />
Lindley Cintra & Celso Cunha (editada pela primeira vez em 1984) é, neste<br />
<strong>do</strong>mínio, bem mais contemporânea <strong>do</strong> que esta edição de 2003.<br />
Porém, o escrutínio de todas as outras partes revela ser notória a<br />
actualidade e profundidade no tratamento <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s. Na Parte II – Uso da<br />
Língua, Interacção Verbal e Texto – encontra-se patente uma série de questões<br />
<strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio da Pragmática Linguística, negligenciadas por gramáticas<br />
congéneres e aqui apresentadas com clareza, simplicidade e abrangência, já que,<br />
para além da moldura teórica, são abordadas modalidades discursivas distintas.<br />
Na Parte III – Aspectos Semânticos da Gramática <strong>do</strong> Português – são<br />
descritas e analisadas, em profundidade, as classes gramaticais verbo e<br />
substantivo. O enquadramento teórico das diferentes sub-secções é<br />
amplamente sustenta<strong>do</strong> por uma profusão de exemplos facilita<strong>do</strong>res da<br />
compreensão ao consulente menos experimenta<strong>do</strong> em terminologia linguística.<br />
A inegável preferência das autoras pelo subsistema sintáctico <strong>do</strong><br />
português é testemunhada pela extensão física da Parte IV: 642 páginas, ou seja,<br />
mais de metade da obra. Nesta parte, é visível uma minúcia descritiva e temática<br />
que lhe confere notoriedade face às congéneres.<br />
Na Parte V – Aspectos Morfológicos da Gramática <strong>do</strong> Português – são<br />
efectuadas diferentes operações de segmentação e hierarquização que<br />
explicitam a estrutura das classes de palavras susceptíveis de formação<br />
morfológica. São também trata<strong>do</strong>s os principais mecanismos de formação de<br />
palavras: afixação e composição.<br />
Por último, a Parte VI – Aspectos Fonológicos e Prosódicos da Gramática<br />
<strong>do</strong> Português – põe em relevo aspectos segmentais (que dizem respeito aos<br />
segmentos fonológicos), e traços prosódicos e rítmicos <strong>do</strong> discurso (que se<br />
relacionam com o tom, o acento e a duração), sen<strong>do</strong> estes últimos um tema<br />
frequentemente ausente em textos da mesma tipologia.<br />
Em suma, as mil cento e vinte sete páginas oferecem quadros teóricos com<br />
um forte poder explicativo <strong>do</strong> funcionamento <strong>do</strong> português europeu. E, apesar<br />
de uma certa assimetria e desproporção no tratamento das questões propostas e<br />
de uma terminologia linguística não isenta de austeridade, a “nova” gramática é,<br />
seguramente, uma incontornável fonte de pesquisa para to<strong>do</strong>s os que trabalham<br />
com a língua portuguesa e se interessam por análises minudentes da sua<br />
anatomia.<br />
Joana Castro Fernandes
em anexo
RELATÓRIO DE ACTIVIDADES 2002/2003<br />
Nas páginas seguintes, apresentamos um relatório de actividades resumi<strong>do</strong>,<br />
onde damos conta <strong>do</strong>s inúmeros projectos realiza<strong>do</strong>s no ISCAP – por <strong>do</strong>centes,<br />
com a colaboração de alunos e funcionários – ao longo deste ano lectivo de<br />
2002/2003.<br />
1. Formação de Alunos<br />
Como complemento essencial à formação <strong>do</strong>s alunos <strong>do</strong> Curso Superior<br />
de Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de Tradução Especializada, a Área de<br />
Línguas e Culturas <strong>do</strong> ISCAP tem vin<strong>do</strong> a desenvolver diversas actividades<br />
extracurriculares, sobretu<strong>do</strong> no âmbito da tradução especializada, mas, também,<br />
nas áreas afins sem as quais a tradução, enquanto disciplina e enquanto prática,<br />
não existiria.<br />
1.1 Conferências<br />
Comissão executiva: Suzana Noronha Cunha, Arminda Sequeira e Carla<br />
Avelino<br />
Com frequência mensal, o II Ciclo de Conferências de Línguas e<br />
Secretaria<strong>do</strong> teve como objectivo a ligação da instituição à realidade profissional<br />
e empresarial. Durante o ano lectivo 2002/2003, realizaram-se as seguintes<br />
conferências:<br />
Interpretação: Que Futuro?<br />
Conferencista: Dr. Rui Silva, Intérprete free-lance<br />
Traduzir a Irreverância. Charles Bukowski: Vida ou Obra?<br />
Conferencista: Prof. Gerald Lochlin, Californian State University, USA<br />
Using Multimedia and the Web in Language Instruction<br />
Conferencista: Prof. Christopher Jones, Carnegie Mellon University, USA<br />
Comunidades de Prática (PoC)<br />
Conferencista: Dr. João Batista, ISCAA
190<br />
Em Anexo<br />
Certificação de Qualidade: Vantagens e Limitações<br />
Conferencista: Eng. Rui Santos<br />
Estas conferências não se esgotam na comunicações apresentadas. De<br />
facto, os contactos estabeleci<strong>do</strong>s têm resulta<strong>do</strong> num intercâmbio extremamente<br />
proveitoso entre convida<strong>do</strong>s e o ISCAP, nomeadamente na colocação de<br />
licencia<strong>do</strong>s em gabinetes de tradução e na oferta de material autêntico para<br />
utilização nas diferentes disciplinas de tradução técnica. Está ainda a ser criada<br />
uma videoteca das gravações das conferências, em estreita colaboração com o<br />
Centro de Recursos Audiovisuais <strong>do</strong> ISCAP. Alguns <strong>do</strong>s conferencistas estão a<br />
apoiar trabalhos de licenciatura.<br />
1.2 Acções de Formação<br />
Objectivos: Optimizar as práticas de ensino/aprendizagem, de mo<strong>do</strong> a<br />
colmatar as situações de insucesso escolar; fomentar a reflexão sobre méto<strong>do</strong>s<br />
de estu<strong>do</strong> e a exploração das novas tecnologias de informação como<br />
ferramentas auxiliares e motiva<strong>do</strong>ras de estu<strong>do</strong>; criar condições que facilitem o<br />
aprofundamento <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio da Língua Portuguesa.<br />
Programa das Acções de Formação realizadas durante o ano lectivo de 2002/2003:<br />
Aprender a Aprender<br />
Forma<strong>do</strong>res: Cristina Pinto da Silva e Ivone Cunha<br />
Técnicas de Expressão em Português (escrito)<br />
Forma<strong>do</strong>res: Manuela Marques da Silva e Joana Fernandes<br />
Técnicas de Expressão em Português (oral)<br />
Forma<strong>do</strong>res: Anabela Sarmento e Estrela Carvalho<br />
A Internet como Ferramenta Auxiliar de Estu<strong>do</strong><br />
Forma<strong>do</strong>res: Ana Afonso e Manuel Moreira da Silva<br />
Estruturação de Texto<br />
Forma<strong>do</strong>res: Dalila Lopes e Kai Immig<br />
Oficina de Escrita Criativa<br />
Organização: Clara Sarmento, Helena Anacleto, Manuela Veloso, Paula Ramalho<br />
Almeida e Suzana Cunha<br />
Forma<strong>do</strong>r: João Gesta
Dizeur: Daniel Maia Pinto Rodrigues<br />
Relatório de Actividades 2002/2003 191<br />
Como Concorrer a um Emprego<br />
Forma<strong>do</strong>res: Cristina Pinto da Silva, Estrela Carvalho, Joana Fernandes, Pedro<br />
Ruiz e Suzana Cunha<br />
1.3 Seminários<br />
Ferramentas Electrónicas para Tradução<br />
Docente: Alexandra Albuquerque<br />
Apesar da prática estar muitas vezes afastada <strong>do</strong>s pressupostos teóricos e<br />
das evidências, é hoje impensável conceber a actividade <strong>do</strong> tradutor<br />
especializa<strong>do</strong> sem o recurso a auxiliares multimédia e digitais, nomeadamente a<br />
Internet, a Tradução Automática, Memórias de Tradução, Bases<br />
Terminológicas. Assim, neste seminário, os alunos foram essencialmente<br />
convida<strong>do</strong>s a aprender a utilizar a Internet como ferramenta de investigação e<br />
consulta, descobrir/treinar a utilização de ferramentas electrónicas actuais em<br />
linha e a construir bases terminológicas (em Multiterm), essenciais à sua<br />
actividade de tradução.<br />
Tradução e Legendagem de Audiovisuais<br />
Docente: Paula Ramalho Almeida<br />
Pela primeira vez, o ISCAP oferece um Seminário de Tradução e<br />
Legendagem de Audiovisuais No mun<strong>do</strong> em que vivemos, onde pre<strong>do</strong>mina a<br />
imagem visual, a linguagem icónica serve, cada vez mais, de complemento à<br />
linguagem verbal. Neste contexto, o merca<strong>do</strong> actual exige ao tradutor um<br />
conhecimento abrangente <strong>do</strong>s vários mo<strong>do</strong>s de tradução e <strong>do</strong>s tipos de texto a<br />
traduzir, pelo que a versatilidade se torna uma mais-valia para quem pretende<br />
ingressar numa carreira profissional em tradução. Este seminário teve como<br />
objectivos familiarizar os alunos com as especificidades da linguagem<br />
cinematográfica e <strong>do</strong> texto audiovisual, demonstrar os processos envolvi<strong>do</strong>s na<br />
tradução de audiovisuais e traduzir e legendar audiovisuais.<br />
2. Formação de Docentes<br />
2.1 Acção de Formação em WebCT<br />
O Projecto de Apoio On-Line <strong>do</strong> ISCAP (PAOL) completou este ano a sua<br />
fase piloto. Enquadra<strong>do</strong> na área <strong>do</strong> Ensino à Distância, o projecto assumiu, no
192<br />
Em Anexo<br />
ISCAP e nesta primeira fase, uma vertente de apoio a alunos. Realizou-se uma<br />
Acção de Formação em WebCT, a plataforma de e-learning a<strong>do</strong>ptada, que contou<br />
com a participação voluntária de <strong>do</strong>centes das diferentes áreas científicas, das<br />
quais se destaca a de Línguas e Culturas. Estes <strong>do</strong>centes puderam, em seguida,<br />
desenvolver conteú<strong>do</strong>s e disponibilizar os seus cursos online. Procurou-se, com<br />
este projecto, potenciar novas competências a nível técnico, meto<strong>do</strong>lógico e<br />
pedagógico, quer de <strong>do</strong>centes, quer de discentes.<br />
2.2 Acção de Formação em Laboratórios Multimédia<br />
Esta acção enquadrou-se no desenvolvimento <strong>do</strong> projecto <strong>do</strong> Centro<br />
Multimédia de Línguas e teve por objectivos:<br />
–permitir aos <strong>do</strong>centes da área de Línguas e Culturas o completo <strong>do</strong>mínio<br />
de todas as ferramentas que o Centro Multimédia de Línguas disponibiliza;<br />
–aumentar o número de <strong>do</strong>centes habilita<strong>do</strong>s a utilizarem o Centro e,<br />
consequentemente, permitir um acesso alarga<strong>do</strong> aos alunos <strong>do</strong>s diferentes<br />
anos e cursos;<br />
–disponibilizar informação e recursos que facilitem a introdução de novas<br />
meto<strong>do</strong>logias e estratégias de ensino, bem como a construção de novos<br />
materiais a utilizar nas aulas leccionadas no ISCAP;<br />
–promover a introdução de novas tecnologias, meios e méto<strong>do</strong>s<br />
pedagógicos, que possibilitem um ensino actualiza<strong>do</strong>, de qualidade e de<br />
referência no contexto <strong>do</strong> ensino das línguas de especialidade;<br />
–optimizar a criação e utilização de novos meios que promovam a adesão<br />
à aprendizagem das línguas estrangeiras e combatam o insucesso escolar.<br />
2.3 Acção de Formação em TRADOS<br />
O propósito desta acção foi o de dar a conhecer o funcionamento das<br />
ferramentas de Tradução Assistida, em geral, e da aplicação TRADOS, em<br />
particular. Simultaneamente, sensibilizou-se o corpo <strong>do</strong>cente para as novas<br />
práticas no campo da tradução e para o papel fulcral que as novas tecnologias<br />
assumem no desenho da profissão <strong>do</strong> tradutor.<br />
3. Encontros e Congressos<br />
3.1 Oficina de Tradução 2003 – Prática da Tradução<br />
em Ambiente Multimédia
Relatório de Actividades 2002/2003 193<br />
Organiza<strong>do</strong>res: Alexandra Albuquerque, Joana Castro Fernandes, Manuel<br />
Moreira da Silva, Maria da Graça Chorão, Paula Ramalho Almeida, Suzana<br />
Noronha Cunha<br />
Forma<strong>do</strong>res: Alexandra Albuquerque, Carla Avelino, Manuel Moreira da<br />
Silva, Manuela Veloso, Marco Furta<strong>do</strong>, Maria da Graça Chorão, Paula Ramalho<br />
Almeida, Sandra Ribeiro, Sara Cerqueira, Suzana Noronha Cunha<br />
Objectivos: O Projecto OT2003 – Prática da Tradução em Ambiente Multimédia,<br />
que teve lugar no ISCAP, no dia 11 de Abril, foi uma iniciativa pioneira no<br />
âmbito <strong>do</strong>s encontros académicos da área científica da Tradução. Preconizou<br />
recriar uma verdadeira workshop ou oficina, onde os inscritos tiveram<br />
oportunidade de interagir em ambiente multimédia.<br />
A componente prática deste evento compreendeu três oficinas: uma de<br />
carácter obrigatório e duas de carácter opcional.<br />
Os forman<strong>do</strong>s experimentaram, na oficina Tradução e Internet, percursos<br />
auxiliares da prática tradutiva, através da potencialização <strong>do</strong>s motores de<br />
pesquisa mais comuns e da optimização <strong>do</strong>s recursos gratuitos, disponíveis em<br />
linha.<br />
Nas oficinas de carácter opcional, privilegiou-se igualmente a vertente<br />
experimental, facultan<strong>do</strong> o contacto com os instrumentos ao dispor da<br />
tradução assistida por aplicações informáticas, testan<strong>do</strong> a sua validade na<br />
tradução de textos técnicos ou audiovisuais (oficinas 2a e 2b, respectivamente).<br />
A componente expositiva <strong>do</strong> evento circunscreveu-se a uma Mesa<br />
Re<strong>do</strong>nda intitulada: Tradutor profissional = tradutor virtual?, a qual agregou<br />
profissionais que exploraram novas vertentes <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> tradutivo português.<br />
Acolhimento da iniciativa: Foi grande a receptividade ao evento, tanto por<br />
parte <strong>do</strong> público interno como externo, ten<strong>do</strong> a comissão organiza<strong>do</strong>ra si<strong>do</strong><br />
forçada a devolver inscrições, dada a limitação de espaços físicos e o carácter<br />
prático <strong>do</strong> evento (um computa<strong>do</strong>r por participante).<br />
Balanço geral: A OT2003 foi acolhida com grande entusiasmo por parte <strong>do</strong>s<br />
forman<strong>do</strong>s, que a qualificaram como uma iniciativa muito boa ou excelente,<br />
através <strong>do</strong> preenchimento <strong>do</strong> inquérito sobre a organização, os conteú<strong>do</strong>s e o<br />
desempenho <strong>do</strong> forma<strong>do</strong>res e ainda na sessão de encerramento.<br />
Em suma, to<strong>do</strong>s os objectivos preconiza<strong>do</strong>s foram plenamente<br />
consegui<strong>do</strong>s, tanto no que respeita ao formato <strong>do</strong> encontro, como à sua<br />
organização e conteú<strong>do</strong>. Por um la<strong>do</strong>, esta oficina “fugiu” ao tradicional<br />
formato unilateral das palestras académicas, que não obstante a sua validade
194<br />
Em Anexo<br />
científica, tende a relegar para segun<strong>do</strong> plano tanto os problemas como as maisvalias<br />
da prática tradutiva num “ecossistema virtual”; por outro la<strong>do</strong>, a<br />
profunda receptividade e as sugestões apresentadas para temas de encontros<br />
futuros animam-nos a prosseguir.<br />
3.2 II Congresso Internacional da AELFE<br />
A realizar no <strong>Porto</strong> entre 11 e 13 de Setembro de 2003.<br />
Dan<strong>do</strong> continuidade aos Congressos Luso-Espanhóis de Línguas<br />
Aplicadas às Ciências e Tecnologias, o ISCAP está a organizar o II Congresso<br />
Internacional da AELFE (Associação Europeia de Línguas para Fins<br />
Específicos), cuja temática ambiciona abrir caminhos para o futuro das Línguas<br />
Para Fins Específicos e Profissionais no contexto europeu <strong>do</strong> século XXI.<br />
Pretende-se promover o intercâmbio de experiências e a divulgação de<br />
trabalhos de investigação entre a comunidade académica e científica<br />
internacional, com vista a melhorar práticas lectivas e optimizar a futura<br />
inserção <strong>do</strong>s alunos no merca<strong>do</strong> de trabalho. Está já inscrito um número<br />
significativo de congressistas e assegurada a presença de duas investiga<strong>do</strong>ras de<br />
renome, Maria José Sá-Correia e Margaret McGuinity.<br />
4. A Escola e a Sociedade<br />
4.1 Protocolos<br />
Foram assina<strong>do</strong>s vários Protocolos que visam a cooperação e o<br />
estreitamento de relações institucionais entre vários parceiros <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
empresarial e académico. Estes protocolos facilitam ainda a inserção <strong>do</strong>s<br />
discentes <strong>do</strong> ISCAP no merca<strong>do</strong> de trabalho, já que lhes permitem aplicar os<br />
conhecimentos e formação obti<strong>do</strong>s em situações reais. De entre estes, destacase<br />
o protocolo de colaboração institucional com a EXPONOR, que se articula em<br />
vários eixos de actuação, a saber:<br />
Eixo 1: prestação de serviços de tradução, interpretação e consultoria<br />
linguística por parte <strong>do</strong> ISCAP.<br />
Eixo 2: oferta de estágios profissionais em ambiente real de trabalho,<br />
ministra<strong>do</strong>s por empresas a discentes <strong>do</strong> ISCAP.<br />
Eixo 3: colaboração no desenvolvimento de projectos inova<strong>do</strong>res, numa<br />
perspectiva de enquadramento entre o ensino superior e o merca<strong>do</strong> de<br />
trabalho, nomeadamente no âmbito <strong>do</strong> programa IDEIA.
Relatório de Actividades 2002/2003 195<br />
De realçar, ainda, pela sua importância, os Protocolos de prestação de<br />
serviços de Tradução e Interpretação com a ACP (Associação Comercial<br />
Portuense), com a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e, ainda<br />
em fase de negociação, com a ACICP (Associação Comercial e Industrial <strong>do</strong><br />
Concelho de Paredes).<br />
4.2 Estágios<br />
A Licenciatura em Línguas e Secretaria<strong>do</strong> – Ramo de Tradução<br />
Especializada oferece aos seus alunos uma ampla e vasta formação científica,<br />
técnica e profissionalizante, particularmente na área da tradução técnica, com<br />
base em méto<strong>do</strong>s de ensino que privilegiam as novas tecnologias. Assim, o<br />
ISCAP tem da<strong>do</strong> relevo ao desenvolvimento de estágios curriculares que<br />
permitem ao aluno integrar-se num contexto real de trabalho, e se constituem<br />
como um espaço singular para o desenvolvimento das competências necessárias<br />
ao desempenho profissional futuro. No ano lectivo de 2002/2003, celebraramse<br />
protocolos com diversas instituições que ofereceram estágios a dezoito<br />
alunos finalistas. Esta é mais uma prova de um esforço continua<strong>do</strong> de estreitar<br />
a ligação entre o meio académico e a realidade profissional.<br />
4.3 Curso de Formação para Seniores<br />
Forma<strong>do</strong>res: Helena Anacleto, Pedro Ruiz e Sandra Ribeiro<br />
ISCAP, Julho de 2003