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A Avaliação de Execuções Musicais; Problemas de Filosofia da Crítica

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António Lopes<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa<br />

Relativismo na <strong>Avaliação</strong> <strong>de</strong> <strong>Execuções</strong> <strong>Musicais</strong><br />

Um facto interessante a notar relativamente à especulação filosófica sobre a arte,<br />

e em particular à mais recente, é que, sendo o tema <strong>da</strong> avaliação <strong>da</strong> arte, dos princípios<br />

gerais que permitem discernir entre patamares <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> artística, provavelmente o<br />

tema mais central a esse domínio filosófico, a sua discussão ocupa um lugar<br />

<strong>de</strong>sproporcionalmente pequeno a essa centrali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Com efeito, po<strong>de</strong>ríamos resumir a<br />

situação <strong>de</strong> um modo informal dizendo que, em torno <strong>de</strong> um pequeníssimo número <strong>de</strong><br />

propostas, umas mais sistemáticas que outras, <strong>de</strong> encarar <strong>de</strong> frente o problema,<br />

avançando critérios com um grau aceitavelmente gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> generali<strong>da</strong><strong>de</strong> para a<br />

fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou a<strong>de</strong>quação, ou outro, dos juízos críticos em arte –<br />

Hutcheson, Kant, Beardsley, Goodmann, para não ser excessivamente económico –<br />

encontramos como satélites discussões, mais frequentemente <strong>de</strong>tractoras e menos<br />

assiduamente aperfeiçoantes, <strong>de</strong>ssas propostas, e eis tudo.<br />

A este facto não será alheio, é simples <strong>de</strong> constatar, um predomínio <strong>de</strong> posições<br />

do tipo céptico ou relativista em matéria <strong>de</strong> crítica <strong>de</strong> arte, muito em consonância com a<br />

velha máxima latina acerca <strong>de</strong> gostos e cores. Dado um tal panorama, não será <strong>de</strong><br />

estranhar que os filósofos <strong>da</strong> arte se ocupem primordialmente com tópicos como a<br />

<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Arte, a ontologia <strong>da</strong>s obras artísticas, a expressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e as emoções, a<br />

existência e natureza <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> uma experiência estéticas, e dos problemas<br />

que emanam <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> tipo particular <strong>de</strong> arte, como a interpretação e a<br />

ficcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> na literatura, a representação em pintura ou a relevância <strong>de</strong> conteúdos<br />

morais em teatro e cinema, evitando incursões num núcleo duro tão pouco promissor<br />

que parece só servir para ocasionais a<strong>de</strong>n<strong>da</strong>s às razões para o alegado falhanço <strong>da</strong>s<br />

doutrinas positivas disponíveis, e, frequentemente, para explicar que qualquer<br />

alternativa concebível esteja vota<strong>da</strong> a <strong>de</strong>stino semelhante.<br />

Se assim é na <strong>Filosofia</strong> <strong>da</strong> Arte em geral, não seria lícito esperar algo <strong>de</strong><br />

diferente no domínio <strong>da</strong> filosofia <strong>da</strong> música. Mas, apesar <strong>de</strong> as coisas parecerem não<br />

po<strong>de</strong>r ser piores para o <strong>de</strong>fensor <strong>da</strong> mais ténue e mo<strong>de</strong>sta variante <strong>de</strong> objectivismo na<br />

arte dos sons, elas po<strong>de</strong>m <strong>de</strong> facto sê-lo, se, como é o caso, se escolher, como campo <strong>de</strong><br />

investigação, não o <strong>da</strong> avaliação <strong>da</strong>s obras <strong>de</strong> arte musicais, on<strong>de</strong> a escassez <strong>da</strong>s<br />

1


eferi<strong>da</strong>s doutrinas positivas espelha fielmente a situação geral, mas o <strong>da</strong> avaliação<br />

crítica <strong>de</strong> execuções musicais, on<strong>de</strong> o esquecimento por parte <strong>de</strong> filósofos contrasta,<br />

gritante mas reveladoramente, com a proliferação <strong>da</strong> investigação sobre o tema sob<br />

perspectivas <strong>de</strong>scritivas, nomea<strong>da</strong>mente na musicologia e na psicologia <strong>da</strong> música.<br />

Uma <strong>da</strong>s raríssimas incursões na matéria é o ensaio Evaluating Musical<br />

Performance, em que Jerrold Levinson lança mais umas quantas achas para a pira<br />

funerária em que jazem as pretensões objectivistas em matéria <strong>de</strong> execução musical.<br />

Tomando como domínio <strong>da</strong> discussão a tradição musical clássica do Oci<strong>de</strong>nte,<br />

envolvendo obras nota<strong>da</strong>s sob a forma <strong>de</strong> partitura e <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a serem executa<strong>da</strong>s<br />

segundo certas convenções, a sua tese central é a <strong>de</strong> que na<strong>da</strong> <strong>de</strong> sustentável po<strong>de</strong> ser<br />

dito mediante juízos do tipo ‘a execução P é uma boa execução <strong>da</strong> obra W’ se estes<br />

forem tomados simpliciter, i.e., sem qualificação ou referência a contextos. Po<strong>de</strong>mos<br />

isolar as premissas do seguinte modo:<br />

1. P po<strong>de</strong> ser avalia<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista diferentes.<br />

2. Os veredictos resultantes <strong>de</strong> avaliações <strong>de</strong> P sob diferentes pontos <strong>de</strong> vista são,<br />

geralmente, diferentes.<br />

3. Esses vários pontos <strong>de</strong> vista são, enquanto perspectivas <strong>de</strong> avaliação <strong>de</strong><br />

execuções, igualmente legítimos à luz <strong>da</strong>s nossas práticas musicais (mesmo que<br />

um <strong>de</strong>les possa habitualmente ser tido como referência na ausência <strong>de</strong><br />

especificação).<br />

Daqui se segue que uma execução julga<strong>da</strong> boa quando encara<strong>da</strong> <strong>de</strong> um certo ponto<br />

<strong>de</strong> vista po<strong>de</strong> não o ser se consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> <strong>de</strong> outro, sendo ambos relevantes, o que é o<br />

mesmo que dizer que os juízos cujo tipo indicámos acima são, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, fúteis.<br />

Levinson chama a esta posição relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> avaliação musical a perspectivas.<br />

O meu propósito será o <strong>de</strong> escrutinar os argumentos que, no enten<strong>de</strong>r do autor,<br />

permitem estabelecer uma tal posição. Em particular, e <strong>da</strong>do que 1. e 2. são ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

factuais, embora triviais, procurarei mostrar que 3. é <strong>de</strong>masiado fraca para firmar um<br />

relativismo consequente, e que os argumentos a seu favor são, ou <strong>de</strong>sa<strong>de</strong>quados ou<br />

inconclusivos como argumentos para uma tal versão não trivial, que seria a pretendi<strong>da</strong>.<br />

Saliente-se que o meu objectivo é, <strong>de</strong> momento, puramente negativo. Sem querer<br />

ensaiar qualquer <strong>de</strong>fesa directa <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> objectivismo na avaliação <strong>da</strong>s<br />

2


execuções musicais, pretendo apenas mostrar que pelo menos estes argumentos em<br />

favor <strong>da</strong> doutrina oposta não colhem, e que, em geral, o ataque é mal direccionado. O<br />

relativista tem, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, armas bem mais po<strong>de</strong>rosas ao seu dispor.<br />

Comecemos por esclarecer o que se enten<strong>de</strong> aqui por pontos <strong>de</strong> vista relevantes<br />

numa abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma execução <strong>de</strong> uma obra musical. Levinson tem em<br />

mente diferenças <strong>de</strong> três níveis 1 : diferenças <strong>de</strong> papel do avaliador no contexto <strong>da</strong><br />

activi<strong>da</strong><strong>de</strong> musical, ou seja, se se é o (ou um dos) executante(s), o compositor <strong>da</strong> obra,<br />

ou apenas ouvinte <strong>da</strong> mesma (‘apenas’ porque este papel está incluído nos dois<br />

primeiros); diferenças presentes neste último papel quanto ao grau <strong>de</strong> familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> com<br />

uma obra específica e com o contexto histórico-musical, artístico e técnico <strong>de</strong> obras <strong>da</strong><br />

categoria e estilos relevantes e respectiva execução 2 ; e, finalmente, diferenças <strong>de</strong><br />

objectivos e contextos práticos com os quais ou nos quais as execuções são apresenta<strong>da</strong>s<br />

aos diferentes auditórios. Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é no segundo tipo <strong>de</strong> diferenças que se jogam os<br />

argumentos fun<strong>da</strong>mentais <strong>de</strong> Levinson: resumi<strong>da</strong>mente, o que é consi<strong>de</strong>rado, <strong>de</strong> modo<br />

legítimo, como boa execução do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> uma primeira audição, ou <strong>de</strong> um<br />

ouvinte neófito no estilo, género ou na totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> música “erudita”, po<strong>de</strong> ser<br />

avaliado, <strong>de</strong> modo i<strong>de</strong>nticamente legítimo, por um ouvinte experiente em todos esses<br />

sentidos, como meramente passável. Por esta razão, mas também porque me parece<br />

haver aí alguma falta <strong>de</strong> clareza acerca do que se está a discutir, abor<strong>da</strong>rei primeiro a<br />

relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> quanto a pontos <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>correntes dos papéis assumidos numa execução,<br />

e quanto a objectivos e contextos, <strong>de</strong> modo a po<strong>de</strong>rmos pô-las <strong>de</strong> parte e ir directamente<br />

ao essencial <strong>da</strong> argumentação.<br />

Segundo Levinson, os intérpretes têm, no acto <strong>da</strong> execução, uma experiência<br />

que, embora distinta <strong>da</strong> dos ouvintes, é também, grosso modo, estética, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que, sem<br />

<strong>da</strong>nos para a integri<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra, procurem intensificar, mediante esse acto, a sua<br />

experiência (<strong>da</strong> obra, pressuponho). Ele i<strong>de</strong>ntifica casos como aqueles em que o<br />

1 O modo <strong>de</strong> apresentação <strong>de</strong>sses pontos <strong>de</strong> vista por Levinson limita-se a uma lista em que to<strong>da</strong>s as<br />

variantes surgem como casos a par uns dos outros, e inclui ain<strong>da</strong> o “ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> própria obra”, i.e., o<br />

critério <strong>da</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Penso que a arrumação nas duas categorias acima faz sentido e é económica,<br />

<strong>da</strong>do que o último ponto <strong>de</strong> vista não po<strong>de</strong>rá ser aqui tratado, uma vez que qualquer abor<strong>da</strong>gem útil do<br />

problema exigiria muito mais espaço do que aquele que lhe po<strong>de</strong>rmos <strong>de</strong>dicar aqui.<br />

2 Trata-se <strong>de</strong> competências diferentes e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, como fica patente se compararmos a situação em<br />

que um musicólogo especializado em música barroca ouve pela primeira vez um concerto particular <strong>de</strong><br />

Vivaldi <strong>de</strong> entre as centenas que o compositor veneziano escreveu, com uma em que um ouvinte sem<br />

instrução musical, conhecimentos <strong>de</strong> história <strong>da</strong> música ou <strong>de</strong> técnica vocal escuta pela 20ª vez a sua ária<br />

<strong>de</strong> ópera favorita (<strong>da</strong>s três que figuram na gravação <strong>de</strong> um espectáculo <strong>de</strong> beneficência organizado por<br />

Pavarotti).<br />

3


executante procura uma i<strong>de</strong>ntificação com o compositor, o que origina uma certa<br />

maneira <strong>de</strong> frasear, ou busca uma sensação <strong>de</strong> libertação na facili<strong>da</strong><strong>de</strong> com que executa<br />

passagens particularmente rápi<strong>da</strong>s e difíceis. Deste modo, uma execução po<strong>de</strong> ser, para<br />

o próprio, satisfatória, ao passo que o ouvinte permanece alheio a tal avaliação.<br />

Mas, em primeiro lugar, em que sentido serão estas experiências genuinamente<br />

estéticas? É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que tais sensações surgem numa execução, e que <strong>de</strong>correm <strong>da</strong>s<br />

exigências <strong>da</strong> obra, que por vezes não se po<strong>de</strong>m arrumar facilmente como puramente<br />

técnicas, havendo uma mistura com a componente artística; mas <strong>da</strong>í a reclamar para elas<br />

o estatuto <strong>de</strong> experiência estética vai um gran<strong>de</strong> passo. Elas são do tipo genérico <strong>da</strong><br />

experiência <strong>de</strong> superar airosamente uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou <strong>da</strong> partilha <strong>de</strong> certas intenções e<br />

emoções (neste caso, com uma persona, talvez), e nenhum <strong>de</strong>stes tipos parece garantir o<br />

carácter estético <strong>da</strong> experiência. Mas, em segundo lugar, mesmo que conce<strong>da</strong>mos que<br />

ela é estética num certo sentido muito lato, ela parece ser <strong>de</strong>rivativa relativamente<br />

àquela que usualmente tomamos como a experiência estética que tipicamente se procura<br />

na audição <strong>de</strong> música, a que os compositores têm em mente proporcionar quando<br />

compõem, e que os executantes, eles próprios, tentam veicular (diferente <strong>da</strong> que (só)<br />

eles próprios têm, mais semelhante à que teriam como ouvintes <strong>de</strong> uma gravação <strong>da</strong> sua<br />

própria execução). Se a perspectiva <strong>de</strong> que a culinária é uma arte com analogias com as<br />

artes performativas, e <strong>de</strong> que proporciona experiências genuinamente estéticas, embora<br />

à primeira vista bizarra, colhe no entanto alguns argumentos respeitáveis, creio que<br />

cairíamos no absurdo se reclamássemos que a componente estética estivesse na<br />

sensação <strong>de</strong> se ter acertado na quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> exacta <strong>de</strong> pimenta, por oposição à apreciação,<br />

concentra<strong>da</strong> e dota<strong>da</strong> <strong>de</strong> discernimento, do prato (ain<strong>da</strong> que se seja o chef e o gourmet<br />

<strong>da</strong> refeição). Em ambos os casos, há uma experiência-alvo, que po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> pretexto<br />

para várias experiências associa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> realização, i<strong>de</strong>ntificação, etc., mas que não se<br />

confun<strong>de</strong> com elas.<br />

O mesmo vale para o ponto <strong>de</strong> vista diferenciado do compositor que ouve a sua<br />

obra estrea<strong>da</strong>, possivelmente numa execução única. Levinson diz-nos que este preferirá,<br />

quase sempre, uma execução que “lance luz sobre o processo composicional” ou sobre a<br />

arquitectura formal <strong>da</strong> obra, ao passo que o juízo do ouvinte po<strong>de</strong>rá ser outro. Quanto ao<br />

primeiro, parece-me duvidoso como critério estritamente estético <strong>de</strong> avaliação <strong>de</strong><br />

execuções, por <strong>de</strong>masiado <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> relação pessoal com a obra e pelo carácter<br />

extrínseco <strong>da</strong> pretensa proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> (que tem um aroma excessivamente intencionalista),<br />

enquanto que o segundo, pelo contrário, sendo <strong>de</strong> facto um critério indisputavelmente<br />

4


estético, a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>nte não é, porém, mais valoriza<strong>da</strong> pelo compositor<br />

que por qualquer ouvinte informado; com efeito, ela representa uma <strong>da</strong>s mais-valias<br />

praticamente indisputáveis <strong>de</strong> uma execução musical. Mas a questão fun<strong>da</strong>mental<br />

mantém-se: seja qual for a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> e natureza <strong>da</strong>s experiências ou preferências <strong>de</strong><br />

intérpretes e compositores como não-ouvintes, parece-me evi<strong>de</strong>nte que, no campo <strong>da</strong><br />

avaliação, e a fortiori no <strong>da</strong> avaliação <strong>da</strong>s execuções (não <strong>da</strong> técnica ou <strong>da</strong> obra em si),<br />

elas <strong>de</strong>vem ce<strong>de</strong>r lugar à do ouvinte ‘enquanto ouvinte’, para quem, afinal, a música é<br />

escrita e executa<strong>da</strong>.<br />

Passemos ao terceiro tipo <strong>de</strong> diferenças supostamente conducentes a relativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

na avaliação. Levinson sustenta que os diferentes objectivos que uma execução concreta<br />

po<strong>de</strong> servir legitimam diferentes pontos <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> avaliação, o mesmo se passando<br />

com os variados contextos em que elas têm lugar. Por exemplo, <strong>da</strong><strong>da</strong> uma certa<br />

similari<strong>da</strong><strong>de</strong> entre uma passagem <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> Haydn e uma <strong>de</strong> Wagner, e uma<br />

execução que realce esse facto, diferentes juízos <strong>de</strong> valor serão admitidos consoante esta<br />

se <strong>de</strong>stine a servir <strong>de</strong> introdução à ópera <strong>de</strong> Wagner, a acompanhar uma conferência<br />

sobre “Haydn: a Música do Futuro?” ou “Haydn: as Raízes Rococó”, ou a integrar uma<br />

fonoteca como gravação única. De igual modo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, uma execução é julga<strong>da</strong><br />

legitimamente <strong>de</strong> modos diferentes conforme figure como parte <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong><br />

concerto variado em autores e estilos, como execução <strong>de</strong> uma obra única que cobre todo<br />

o concerto, ou como parte <strong>de</strong> um ciclo <strong>de</strong> concertos com a integral <strong>da</strong>s obras do<br />

compositor nesse género musical. Estamos a falar, <strong>de</strong> novo, em opções interpretativas<br />

como as <strong>de</strong> sublinhar a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> ou a ruptura com o passado, com o estilo do<br />

próprio compositor nesse género, e evi<strong>de</strong>nciar os efeitos e pormenores <strong>da</strong> obra em<br />

<strong>de</strong>terimento <strong>da</strong> coesão formal e uni<strong>da</strong><strong>de</strong> orgânica, ou vice-versa. Tais opções, entre<br />

outras, só po<strong>de</strong>m ser ti<strong>da</strong>s como boas ou más em função do objectivo <strong>de</strong>sempenhado<br />

pela execução, e do contexto em que ela é escuta<strong>da</strong>.<br />

Comecemos por fazer aqui uma distinção. Das diversas opções interpretativas<br />

menciona<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>vemos isolar a última, à semelhança do que fizemos na discussão do<br />

ponto anterior. Trata-se <strong>de</strong> uma opção que está presente (ou pelo menos <strong>de</strong>ve estar) em<br />

to<strong>da</strong> e qualquer execução séria <strong>de</strong> uma obra digna <strong>de</strong> atenção, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong><br />

quais os contextos e objectivos. A avaliação do sucesso em equilibrar os dois critérios<br />

ou na opção por um como dominante <strong>de</strong>ve ser, por esse mesmo motivo, igualmente<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />

5


Quanto ao grosso do argumento <strong>de</strong> Levinson, e pondo <strong>de</strong> parte alguns exageros,<br />

creio que pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> uma excessiva contextualização do acto <strong>de</strong> avaliação <strong>da</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>s execuções. Não falo apenas dos evi<strong>de</strong>ntes parâmetros subjacentes (técnicoartísticos)<br />

em relação aos quais to<strong>da</strong> a gente concor<strong>da</strong>ria que contam como necessários<br />

para uma boa execução a um nível mais básico; mas também do facto <strong>de</strong> que, tanto<br />

quanto me é <strong>da</strong>do ver, se se está a pôr em causa que haja qualquer base para estabelecer<br />

uma hierarquia <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista sobre a execução no que toca à sua avaliação, há que<br />

ter em conta que, se todos eles po<strong>de</strong>m parecer legítimos, a legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> é um critério <strong>de</strong><br />

segun<strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>masiado fraco para o efeito. Se a perspectiva do estu<strong>da</strong>nte que vai<br />

assistir ao concerto <strong>de</strong> acompanhamento <strong>da</strong> conferência sobre o carácter revolucionário<br />

<strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Haydn é legítima, isso não nos garante que o seu veredicto, suponhamos<br />

informado e dotado <strong>de</strong> discernimento, sobre a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> execução, influenciado<br />

como está pelo facto <strong>de</strong> estar a ser guiado para uma suposta característica <strong>da</strong> música <strong>de</strong><br />

Haydn, esteja ao nível do <strong>de</strong> um crítico profissional trazido para o concerto no perfeito<br />

<strong>de</strong>sconhecimento do contexto. Com efeito, embora este conhecimento seja, em geral,<br />

uma quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>quele que emite juízos críticos, nos casos que estamos agora a<br />

consi<strong>de</strong>rar, parece-me que a sua ausência teria algo do carácter <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong><strong>de</strong> ou<br />

neutrali<strong>da</strong><strong>de</strong> que igualmente caracterizam o crítico competente. Não creio que o facto <strong>de</strong><br />

acompanhar uma <strong>da</strong><strong>da</strong> conferência em vez <strong>de</strong> outra no sentido inverso <strong>de</strong>va contar a<br />

favor ou contra o veredicto <strong>de</strong> que uma <strong>da</strong><strong>da</strong> escolha interpretativa (digamos, salientar<br />

certas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>m ser toma<strong>da</strong>s como antecipatórias <strong>de</strong> estilos futuros)<br />

funciona em termos estritamente musicais, o que é diferente <strong>de</strong> funcionar como<br />

consecução do objectivo <strong>da</strong> conferência em que está integra<strong>da</strong>.<br />

Assim, po<strong>de</strong>mos resistir a esta espécie particular <strong>de</strong> relativização <strong>de</strong> avaliações a<br />

contextos por meio <strong>de</strong> uma estratégia simples. Tomem-se to<strong>da</strong>s as execuções <strong>de</strong> que<br />

temos vindo a falar, com seus diferentes contextos e suas opções interpretativas<br />

divergentes, como eventos sónicos, e consi<strong>de</strong>rem-se to<strong>da</strong>s elas como gravações <strong>da</strong><br />

mesma obra, competindo em pé <strong>de</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo estatuto <strong>de</strong> boa execução neste<br />

sentido comparativo. Creio que estaria assegura<strong>da</strong> uma perspectiva <strong>de</strong> plano superior,<br />

mais abstracta, em que as proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s estéticas, e mesmo as artísticas relevantes,<br />

po<strong>de</strong>m ser cui<strong>da</strong>dosamente escrutina<strong>da</strong>s pelo crítico experiente, e proponho que, <strong>de</strong>sta<br />

perspectiva englobante, ain<strong>da</strong> que artificial, os critérios que o crítico poria em<br />

funcionamento para a emissão do seu juízo <strong>de</strong> valor informado – aquele a que <strong>da</strong>ríamos<br />

privilégio – seriam no essencial aqueles que contariam como a<strong>de</strong>quados e relevantes<br />

6


(ain<strong>da</strong> que outros possam ser legítimos), se esse mesmo indivíduo estivesse presente, na<br />

sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> crítico, em to<strong>da</strong>s as situações contextualmente distintas acima<br />

<strong>de</strong>scritas.<br />

Convém não confundir o que aqui digo com uma negação <strong>de</strong> que certas<br />

avaliações são feitas com referência a certos parâmetros contextuais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se leve<br />

em conta que a avaliação é assumi<strong>da</strong> como limita<strong>da</strong> a esses parâmetros. Em concreto, é<br />

evi<strong>de</strong>nte que o crítico profissional que assiste a um concerto por uma orquestra <strong>de</strong><br />

escola po<strong>de</strong> proferir um juízo do tipo “foi uma execução <strong>da</strong> Eroica razoavelmente boa<br />

para uma orquestra <strong>de</strong> escola” (ou mesmo “para uma orquestra <strong>de</strong> escola com<br />

estu<strong>da</strong>ntes <strong>de</strong>ste nível, com este número <strong>de</strong> ensaios, com este maestro, etc.). Mas isto<br />

não me parece ter consequências minimamente relativistas 3 , uma vez que o mesmo<br />

crítico po<strong>de</strong>ria ser chamado a proferir um juízo com um nível <strong>de</strong> generali<strong>da</strong><strong>de</strong> superior,<br />

e facilmente obteríamos <strong>de</strong>le o tipo <strong>de</strong> juízo cuja relevância Levinson contesta: “foi uma<br />

execução medíocre <strong>da</strong> Eroica simpliciter”.<br />

Abor<strong>de</strong>mos agora o tipo <strong>de</strong> relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> restante, aquele que diz respeito ao grau<br />

<strong>de</strong> familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> do ouvinte com a obra e/ou com a informação histórico-musicológica<br />

relevante. O argumento é mais claramente compreendido se seguirmos apenas o<br />

exemplo central <strong>de</strong> Levinson. Consi<strong>de</strong>re-se o 1º an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> Sonata D 960, a<br />

última <strong>de</strong> Schubert, e o parâmetro <strong>da</strong> agógica 4 . Para o indivíduo que o escuta pela<br />

primeira vez, um tempo mo<strong>de</strong>rado a puxar para o rápido será mais indicado (i.e., fará<br />

uma execução melhor), uma vez que não só permite uma melhor apreensão <strong>da</strong> estrutura<br />

formal do an<strong>da</strong>mento, como provavelmente evita uma per<strong>da</strong> <strong>de</strong> concentração mais ou<br />

menos natural para um tal indivíduo se o tempo for mais lento. Já para o ouvinte<br />

experiente, um tempo mais relaxado po<strong>de</strong>rá ser consi<strong>de</strong>rado a<strong>de</strong>quado, <strong>de</strong>ixando<br />

apreciar, p. ex. todos os pormenores que o executante realça, ou tornando a execução<br />

mais expressiva, nostálgica e romântica, <strong>da</strong>do que ele está já preparado para a audição<br />

<strong>de</strong> um an<strong>da</strong>mento muito extenso, controla o enca<strong>de</strong>amento <strong>da</strong>s secções, a função e o<br />

carácter expressivo <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> passagem, etc. Assim, uma interpretação “invulgar e<br />

eleva<strong>da</strong>” seria, <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong> vista, a melhor interpretação, ao passo que do ponto <strong>de</strong><br />

vista anterior, tal veredicto recairia sobre a execução que melhor veicula os contornos<br />

formais e o <strong>de</strong>senrolar do an<strong>da</strong>mento.<br />

3 Provavelmente, antes pelo contrário. Cf. K. Walton, Categories of Art.<br />

4 Correspon<strong>de</strong> à rapi<strong>de</strong>z <strong>da</strong> sucessão dos eventos musicais, também se usando a palavra italiana tempo<br />

para evitar a ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ‘an<strong>da</strong>mento rápido’ (secção <strong>de</strong> uma peça/veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> concreta escolhi<strong>da</strong> para<br />

a sua execução).<br />

7


Po<strong>de</strong>mos contestar esta linha <strong>de</strong> argumentação <strong>de</strong> dois modos. Um consiste em<br />

disputar casuisticamente as afirmações sobre a a<strong>de</strong>quação necessária (ou quase) <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> execução às exigências do ouvinte. Assim, po<strong>de</strong>mos sugerir que, em pelo<br />

menos alguns casos, o ouvinte não-iniciado fique relativamente indiferente ao<br />

an<strong>da</strong>mento, sobretudo ao carácter sublimemente nostálgico do seu famoso tema <strong>de</strong><br />

abertura, precisamente em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> escolha <strong>de</strong> um tempo mo<strong>de</strong>rado/rápido que o<br />

po<strong>de</strong>ria banalizar. É até bastante provável, pois o que a maior rapi<strong>de</strong>z consegue em<br />

termos <strong>de</strong> projecção <strong>da</strong> arquitectura <strong>da</strong> obra (pelo simples facto <strong>de</strong> as secções se<br />

suce<strong>de</strong>rem mais rapi<strong>da</strong>mente) po<strong>de</strong> sacrificar um bem argumentavelmente maior para o<br />

próprio principiante, i.e., a pura beleza melódica dos temas principais, algo bem mais<br />

acessível e atraente a esse ouvinte do que proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s do género formal, habitualmente<br />

mais preza<strong>da</strong>s (e <strong>de</strong> resto, nota<strong>da</strong>s) pelos iniciados.<br />

Assim, e usando as próprias palavras <strong>de</strong> Levinson, não é <strong>de</strong> modo algum<br />

estranho que este nosso ouvinte reaja positivamente a algumas idiossincrasias do<br />

intérprete no sentido <strong>de</strong> realçar aquelas características em <strong>de</strong>terimento <strong>de</strong>stas, ou, em<br />

geral, privilegiar pormenores e efeitos, ain<strong>da</strong> que evi<strong>de</strong>ntes, tirando <strong>de</strong>les o maior<br />

partido expressivo e procurando uma interpretação eleva<strong>da</strong>, embora o carácter invulgar<br />

não possa ser apreendido pelo neófito (mas isso é irrelevante). Já do lado do<br />

especialista, uma olha<strong>da</strong> rápi<strong>da</strong> aos escritos críticos sobre execuções <strong>de</strong>sta obra não<br />

<strong>de</strong>ixa gran<strong>de</strong> margem para dúvi<strong>da</strong>s: a lentidão, a indulgência na exploração <strong>de</strong> efeitos<br />

românticos, e sobretudo a menor clareza na projecção <strong>da</strong> forma são quase<br />

invariavelmente aponta<strong>da</strong>s como <strong>de</strong>feitos, e a naturali<strong>da</strong><strong>de</strong> no fluir do discurso musical,<br />

o evitar <strong>da</strong> sobreposição do ego do intérprete à simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> aparente <strong>da</strong> música, e em<br />

geral a contenção e economia <strong>de</strong> meios são as marcas <strong>de</strong> uma interpretação madura e<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>. 5<br />

Mas é claro que esta não é a via mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> <strong>de</strong> contestar a tese <strong>de</strong> Levinson,<br />

pois arrisco-me a ver uma <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> substituí<strong>da</strong> por um seu negativo<br />

(embora isso não seja estritamente ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, p.ex. se atentarmos no último ponto em que<br />

há um consenso algo geral). Prefiro a segun<strong>da</strong> estratégia, reminescente, <strong>de</strong> resto, <strong>da</strong>quilo<br />

que <strong>de</strong>fendi atrás, e que passa por pôr em causa o nivelamento <strong>da</strong> relevância dos pontos<br />

<strong>de</strong> vista para a correcta avaliação <strong>da</strong> execução. Sejam quais forem as proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s que<br />

5 Note-se que não <strong>de</strong>sejo endossar esta perspectiva como a correcta comparativamente à imediatamente<br />

anterior. Apenas procuro mostrar “como as coisas são”, com o objectivo <strong>de</strong> contestar que elas sejam<br />

provavelmente do modo contrário neste ponto específico, como Levinson <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>.<br />

8


ca<strong>da</strong> ouvinte <strong>de</strong>tecta, subjectivamente, em ca<strong>da</strong> execução, há claramente um nível mais<br />

informado, mais dotado <strong>de</strong> discernimento estético, <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência e distanciação, <strong>de</strong><br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> comparação com as categorias e exemplos relevantes, em referência ao<br />

qual o juízo emitido por indivíduos com um grau menor <strong>de</strong> qualquer uma <strong>de</strong>sta<br />

competências ou conhecimentos é normalmente qualificado, ou mesmo corrigido. Essa,<br />

sim, é a prática do mundo artístico ao longo <strong>da</strong>s diversas artes. De facto, não se trata<br />

propriamente <strong>de</strong> uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> filosófica, mas sim do apelo à noção <strong>de</strong> crítico i<strong>de</strong>al do<br />

céptico David Hume no seu ensaio clássico “On the Stan<strong>da</strong>rd of Taste”. Interrogando-se<br />

sobre as razões <strong>da</strong> dispari<strong>da</strong><strong>de</strong> dos juízos estéticos, Hume separa o problema do<br />

relativismo em duas fatias. Em relação a uma <strong>de</strong>las, po<strong>de</strong>mos fazer alguma coisa, <strong>da</strong>do<br />

que gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sacordo se <strong>de</strong>ve à ausência, na maioria dos indivíduos, <strong>da</strong>s<br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s raras que são a marca do crítico competente: sentidos apurados, sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>lica<strong>da</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> pela prática e aperfeiçoa<strong>da</strong> pela comparação, isenção <strong>de</strong><br />

preconceitos. É o juízo <strong>de</strong>ste que <strong>de</strong>vemos ter em conta (não o do <strong>de</strong>butante, do autorjuíz<br />

em causa própria ou <strong>de</strong> outras varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s). E quando, como ocasionalmente suce<strong>de</strong>,<br />

a discórdia irrompe mesmo entre as falanges dos críticos competentes? Pois bem, essa é<br />

a outra fatia do problema, e, reconhece Hume, é basicamente intratável, pois envolve<br />

disposições individuais acerca <strong>da</strong>s quais pouco po<strong>de</strong>mos fazer. Ora, se repararmos bem,<br />

o plano em que Levinson preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar a sua espécie <strong>de</strong> relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> é precisamente<br />

o <strong>da</strong> fatia em que o próprio Hume reclama uma dose saudável <strong>de</strong> objectivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não me<br />

parece haver gran<strong>de</strong> vantagem nem sucesso em tentar ser mais humeano do que Hume.<br />

Chamo agora a atenção para uma i<strong>de</strong>ia que influencia a posição <strong>de</strong> Levinson, e<br />

que é a diferença que este vê entre a natureza <strong>da</strong> avaliação <strong>de</strong> obras musicais e a <strong>de</strong><br />

execuções <strong>de</strong>ssas obras. A doutrina <strong>de</strong> que intérpretes são artistas no sentido pleno, e <strong>de</strong><br />

que interpretações, no nível artístico que estamos aqui a consi<strong>de</strong>rar, são obras <strong>de</strong> arte<br />

por direito próprio, tem sido <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>, entre outros, por Peter Kivy, e, pessoalmente,<br />

simpatizo com ela. De qualquer forma, as razões avança<strong>da</strong>s por Levinson para a suposta<br />

assimetria são fracas ou mesmo falsas: a singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s obras face à multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>s interpretações; o carácter temporalmente efémero <strong>de</strong>stas; o facto <strong>de</strong> as obras serem<br />

o objecto primordial <strong>de</strong> atenção em to<strong>da</strong>s as execuções; o facto <strong>de</strong> que a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

obras não está <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do falhanço <strong>de</strong> alguém menos preparado em apreciá-las.<br />

Daqui conclui que a relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que afecta a avaliação <strong>de</strong> execuções é muito menor que<br />

a que afecta a <strong>de</strong> obras, on<strong>de</strong> o apelo ao ouvinte i<strong>de</strong>al é lícito. Ocupando-me apenas <strong>da</strong><br />

última razão aponta<strong>da</strong>, não compreendo <strong>de</strong> todo por que motivo po<strong>de</strong>rá o valor <strong>de</strong> uma<br />

9


interpretação ser afectado pela falta <strong>de</strong> sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e do conhecimento relevante <strong>de</strong> um<br />

ou vários dos seus ouvintes contextualmente situados, e menos ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> um modo tão<br />

drasticamente superior relativamente a obras musicais. Em termos <strong>de</strong> teorias do valor<br />

estético, ambas as enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s, obra e execução, funcionam perfeitamente como objectos<br />

estéticos na visão instrumentalista prevalecente <strong>de</strong> que esse valor consiste na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que o objecto tem para gerar uma experiência com <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s características. 6<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, penso que Levinson se trai um pouco quando admite o seguinte:<br />

“Se bem que pense que o ponto <strong>de</strong> vista do ouvinte experiente e informado é central,<br />

[...] dificilmente é a única posição <strong>de</strong> importância no contexto musical” 7 . Bem, o facto é<br />

que estas palavras se aplicam perfeitamente à avaliação <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> arte em geral: há<br />

ganhos a tirar <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> tais objectos estéticos em todos os graus <strong>de</strong><br />

familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> com eles (incluindo algumas situações “esteticamente anómalas”, como<br />

fruir <strong>da</strong>s mais ricas, complexas e profun<strong>da</strong>s pinturas ou composições como padrão para<br />

papel <strong>de</strong> pare<strong>de</strong> ou música <strong>de</strong> elevador). Mas é pacífico que o ponto <strong>de</strong> vista do crítico<br />

experiente e informado é, não meramente central no sentido fraco que Levinson<br />

emprega, mas <strong>de</strong>cisivo, se alguma coisa o é (se o não for, a consequência mais grave<br />

seria trazer obra musical e interpretação ao mesmo nível, o que contradiria a i<strong>de</strong>ia <strong>da</strong><br />

assimetria obra/interpretação acima discuti<strong>da</strong>). Ora, em geral, uma tese relativista tem<br />

que provar a inexistência ou ilegitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma perspectiva <strong>de</strong> nível superior, em<br />

qualquer dos sentidos relevantes <strong>da</strong> expressão, e é isso que Levinson não parece<br />

conseguir estabelecer, pois o mesmo mundo <strong>da</strong> música cujas evidências invoca para <strong>da</strong>r<br />

substância ao seu perspectivismo, reconhece perspectivas mais eleva<strong>da</strong>s. O facto <strong>de</strong> que<br />

“algumas execuções servem melhor ouvintes em <strong>de</strong>terminado momento do que outras” 8<br />

não exclui que haja um ponto <strong>de</strong> vista sobre elas que é i<strong>de</strong>almente imune precisamente<br />

ao critério relativizante <strong>de</strong> quem é “melhor servido”. Esse é o ponto <strong>de</strong> vista do crítico<br />

i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> Hume e dos seus mais terrenos homólogos humanos, e essa a razão pela qual a<br />

eles recorremos.<br />

Novembro <strong>de</strong> 2004<br />

Levinson, Jerrold<br />

“Evaluating Musical Performance”, in Music, Art and Metaphysics<br />

Cornell, 1996.<br />

6<br />

Quais elas são, variará consoante a teoria. Mas o essencial é que execuções na<strong>da</strong> têm <strong>de</strong><br />

constitutivamente impeditivo a que ocupem o papel <strong>de</strong> objectos estéticos nessas teorias.<br />

7 Pag. 191<br />

8 Pag. 190<br />

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