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No centro da cultura

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REVISTA<br />

ITAÚ CULTURAL 26<br />

<strong>No</strong> <strong>centro</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>cultura</strong><br />

Nesta edição, a Continuum visita a periferia.<br />

Eduardo Marques, Gilberto<br />

Dimenstein, Jorge Broide,<br />

Raquel Rolnik e Rose Satiko<br />

apontam caminhos para<br />

o reforço <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />

E mais:<br />

Na Fotorreportagem, a visão de passageiros de ônibus<br />

é turva<strong>da</strong> de interferências.<br />

Ficção inédita de Paulo Lins conta a história de um pecado.<br />

A cratera que virou moradia para o saci-pererê e outras<br />

45 mil pessoas.<br />

itau<strong>cultura</strong>l.org.br/continuum | participe com suas ideias


Um conceito bem relativo<br />

Quando você pensa em periferia, logo a associa a um espaço pobre, cheio de problemas como a violência e<br />

a falta de serviços básicos. Pois bem, essa é apenas uma ideia que se pode ter sobre o assunto. Periferia é algo<br />

mais amplo. E pode remeter ao nosso próprio corpo, com o <strong>centro</strong> e suas extremi<strong>da</strong>des, como faz pensar a<br />

Crônica que abre esta edição.<br />

Ao chamar para a discussão o tema Periferia e batizar este número com o título <strong>No</strong> <strong>centro</strong> <strong>da</strong> <strong>cultura</strong>, a<br />

Continuum quer provocar seu leitor a olhar as regiões que se situam nas bor<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des de outra<br />

forma. Uma frase que resume o espírito <strong>da</strong> edição foi <strong>da</strong><strong>da</strong> pelo jornalista Gilberto Dimenstein, na Entrevista<br />

(que ele compartilha com outros especialistas no tema): “Um jovem alienado de classe média alta é periférico”.<br />

Definitivamente, periferia é um conceito bem relativo.<br />

Centro e fronteira se misturam o tempo todo, <strong>da</strong> mesma<br />

forma que convivem vários Brasis num só país. Mas é certo<br />

que um elemento faz com que as distâncias diminuam. É ele<br />

a <strong>cultura</strong>. Por meio dela, movimentos surgidos em bairros<br />

de baixa ren<strong>da</strong> vêm reforçando a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e o poder mobilizador<br />

dessas populações, como conta a reportagem que<br />

começa na página 14. É com arte que se começa a eliminar<br />

estigmas. A música, por exemplo, consegue estabelecer<br />

um elo entre as periferias. Mas novamente cabe derrubar a<br />

ideia pronta. Engana-se quem pensa que nessas comuni<strong>da</strong>des só se ouvem e tocam funk ou hip-hop,<br />

revela a reportagem que encerra a edição.<br />

Seguindo o exemplo dos movimentos <strong>da</strong> periferia, a revista também oferece arte aos leitores,<br />

na Ficção inédita do escritor Paulo Lins, autor de Ci<strong>da</strong>de de Deus, e na Fotorreportagem, que<br />

mostra a visão turva<strong>da</strong> que se tem de dentro dos ônibus de uma metrópole.<br />

Em tempo: é com alegria que contamos que a Continuum recebeu<br />

o Prêmio ABCA 2009, <strong>da</strong> Associação Brasileira dos Críticos<br />

de Arte, na categoria Difusão <strong>da</strong>s Artes<br />

Visuais na Mídia.<br />

Ilustração: Azeite de Leos<br />

Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Design gráfico Laura Daviña Edição Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacer<strong>da</strong> Re<strong>da</strong>ção André Seiti,<br />

Thiago Rosenberg Produção editorial Caio Camargo Revisão Polyana Lima Colaboraram nesta edição Arthur Rampazzo Roessle, Augusto Paim,<br />

Azeite de Leos, Cassimano, Cia de Foto, Clayton Cassiano, Eduardo Lyra, Gabriel Bitar, Karina Buhr, Lourenço do Carmo, Lourival Cuquinha, Marcel Nanni<br />

Fracassi, Mariana Leme, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Patrícia Cornils, Patrícia Stavis, Paulo Lins, Pedro Henrique França, Raquel Krügel, Ratão<br />

Diniz, Renata Ursaia, Rafael Tonon, Roberta Guedes, Rodrigo Silveira, Ronaldo Bressane, Tatiana Diniz, Wilson Inacio Agradecimentos Neomisia Silvestre<br />

e Fernando Alves (Instituto Pombas Urbanas), Rogério Schlegel (Centro de Estudos <strong>da</strong> Metrópole)<br />

capa foto: Ratão Diniz<br />

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)<br />

Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminha<strong>da</strong>s ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento<br />

continuum@itau<strong>cultura</strong>l.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554<br />

Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico <strong>da</strong> Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.<br />

2 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 3


28<br />

40<br />

50<br />

Fotorreportagem<br />

20. Tempos parados<br />

Jorna<strong>da</strong>s cotidianas: imagens captam as impressões – e expressões – de<br />

quem utiliza diariamente os transportes públicos.<br />

Reportagem<br />

8. Espelho, espelho meu<br />

O surgimento <strong>da</strong>s periferias revela, numa perspectiva<br />

histórica, a lógica de exclusão do mercado imobiliário.<br />

14. Povo lindo, povo inteligente<br />

Literatura, música, cinema... Veja por que a <strong>cultura</strong> é uma<br />

forte alia<strong>da</strong> na superação de problemas de populações<br />

de baixa ren<strong>da</strong>.<br />

36. Melô <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de<br />

Comuni<strong>da</strong>des do Brasil inteiro encontram um elo na<br />

música. Mas se engana quem pensa que na periferia<br />

só se ouvem funk e rap.<br />

40. O bairro que nasceu de um cometa<br />

Conheça a cratera que, a 50 quilômetros do <strong>centro</strong><br />

<strong>da</strong> capital paulista, se tornou a casa de mais de 45 mil<br />

pessoas. Entre elas, o saci-pererê.<br />

46. Onde menos vira mais<br />

Da necessi<strong>da</strong>de surge a sustentabili<strong>da</strong>de. As práticas<br />

cotidianas nas periferias e nas comuni<strong>da</strong>des com menor<br />

poder aquisitivo podem inspirar soluções ecologicamente<br />

viáveis.<br />

50. Atos de uma vi<strong>da</strong> em construção<br />

Uma noite de sábado na Ci<strong>da</strong>de Tiradentes, São Paulo.<br />

Saiba como se divertem os moradores de um dos maiores<br />

complexos habitacionais <strong>da</strong> América Latina.<br />

Entrevista<br />

28. Espaços em transformação<br />

Eduardo Marques, Gilberto Dimenstein, Jorge Broide,<br />

Raquel Rolnik e Rose Satiko apresentam suas visões<br />

sobre a importância <strong>da</strong> mobilização periférica.<br />

Crônica<br />

6. O <strong>centro</strong> do mundo é aonde vão os seus pés.<br />

O resto é periférico<br />

A periferia como a delimitação imaginária do corpo.<br />

O corpo como o <strong>centro</strong> de tudo. O sertão como o<br />

<strong>centro</strong> do corpo.<br />

Balaio<br />

54. O periférico está no <strong>centro</strong><br />

As dicas de livros, filmes, site e música <strong>da</strong> Continuum.<br />

Ficção<br />

58. O pecado mortal de Maria<br />

Em texto inédito do escritor Paulo Lins, a via sacra de uma<br />

mulher, transforma<strong>da</strong> em santa pela opinião pública.<br />

Espaço do Leitor<br />

64. Convocação<br />

Saiba como ser um repórter <strong>da</strong> revista e fique por<br />

dentro do tema <strong>da</strong> próxima edição. Você pode ain<strong>da</strong><br />

man<strong>da</strong>r cartas ou e-mails com sugestões, críticas e,<br />

é claro, elogios.<br />

65. Área Livre<br />

Confira, em trabalhos artísticos, a visão dos leitores <strong>da</strong><br />

Continuum sobre a periferia.<br />

Deadline<br />

56. O McFavela <strong>da</strong> diretoria<br />

Um McLanche Infeliz para viagem: a lanchonete de periferia<br />

que irritou a famosa rede internacional de sanduíches.<br />

4 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 5<br />

2010|26


crônica<br />

O <strong>centro</strong> do mundo é aonde vão os<br />

seus pés. O resto é periférico<br />

A periferia é a linha imaginária que delimita os corpos.<br />

Por Micheliny Verunschk | Ilustração Gabriel Bitar<br />

O corpo é o que está no <strong>centro</strong> de tudo. O <strong>centro</strong> é o ponto de convergência. É para onde se voltam os<br />

olhares, as atenções, os interesses e os corpos. O corpo é o <strong>centro</strong> do mundo. O corpo é o que está dentro<br />

do oco do oco do mundo.<br />

O <strong>centro</strong> do mundo é onde estão plantados os seus pés. A periferia é para onde as folhas apontam.<br />

O <strong>centro</strong> do mundo é o sertão. A periferia é o que está por fora.<br />

A maior invenção do século XVI foi o Brasil. E foi no Brasil que se inventou o sertão. Que se batizou, se<br />

nomeou o sertão.<br />

O Sertão, este vocábulo obscuro, não cabe nos dicionários porque como dizem escritores, cientistas, e, é claro,<br />

o burburinho <strong>da</strong>s praças, o sertão é tudo. Tudo ou na<strong>da</strong>.<br />

Deserto. Desertão. De sertão. Sertão.<br />

Diz-se que o sertão é seco, tradicional, que o sertão está dentro, que o sertão está fora do <strong>centro</strong>.<br />

O Brasil inventou o sertão que queria, mas o sertão há muito se sabia e já estava aí quando nem a história<br />

existia. Assim, é lugar de fábula, de alegoria, é o lugar do olhar que descobre no fundo <strong>da</strong> caverna a luz que<br />

cria a sombra e o dia.<br />

E foram os gregos sertanejos que criaram a filosofia.<br />

O sertão tem a música dos chocalhos plangentes e parabólicas que se sustentam na taipa mais antiga.<br />

<strong>No</strong> sertão, deus e o diabo rodopiam.<br />

Sendo assim, como pode ser periferia algo que está no peito, coração bombeando seu sangue para as artérias,<br />

no Brasil, na Rússia, na África, na Inglaterra?! E não, não me venha com backlands e hinterlands, vaqueiro de<br />

iPod, selvagem <strong>da</strong> motocicleta!<br />

O negócio é sertão mesmo, com to<strong>da</strong>s as letras e<br />

sotaques, babel indiscreta.<br />

Para além do Alentejo, o sertão é janga<strong>da</strong> joga<strong>da</strong> num<br />

mar de pedras. E não se engane não, profeta, ele não<br />

vira mar, ele vira mundo, mundo em espera.<br />

Pois o sertão procura, encontra, doma e inaugura. Está<br />

em todos os lugares e, assim, se transfigura.<br />

Do sertão nascem todos.<br />

Do sertão saem todos, parto, ato, migração primordial.<br />

E é este o fato: do sertão nascem todos: as rodovias,<br />

o sistema venoso, as ci<strong>da</strong>dezinhas de grandes olhos<br />

e pequenas janelas, também as metrópoles, os seus<br />

membros, os prédios, os dedos de ruas, vielas, favelas.<br />

E hoje no século pós-tudo o sertão é que é a grande invenção.<br />

É o ponto equidistante entre o que se fala e o que<br />

se desconhece.<br />

É o ponto equidistante entre o espelho e o que não<br />

se reconhece.<br />

O sertão, esse corpo multiforme, é o ponto equidistante<br />

entre o que é dito e o que passa despercebido. Talvez por<br />

isso a melhor imagem seja a <strong>da</strong> ponte. Porque o sertão é<br />

o caminho do meio entre o meio e o homem.<br />

Um corpo é<br />

a periferia de outro corpo.<br />

O <strong>centro</strong> de tudo é o desejo.<br />

O desejo é o ponto de convergência. É para<br />

onde se voltam os olhares, as atenções, os<br />

interesses e os corpos.<br />

O desejo é o <strong>centro</strong> do mundo. O desejo é o que está<br />

dentro do oco do oco do corpo do mundo.<br />

Sertão, substantivo masculino. Região afasta<strong>da</strong> dos<br />

núcleos urbanos, do litoral e <strong>da</strong>s terras de plantio.<br />

Interior.<br />

O sertão é o que está por dentro, as vísceras e o desejo.<br />

O <strong>centro</strong> de tudo é o desejo.<br />

O sertão é o ponto de convergência. É para onde se voltam<br />

os olhares, as atenções, os interesses e os corpos.<br />

O sertão é o <strong>centro</strong> do mundo. O sertão é o que está dentro<br />

do oco do oco do corpo do mundo.<br />

O sertão é tudo.<br />

A periferia é o <strong>centro</strong> do que ela mesma inventa.<br />

Micheliny Verunschk é autora de Geografia Íntima do<br />

Deserto (Landy, 2003).<br />

6 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 7


eportagem<br />

Espelho, espelho meu<br />

<strong>No</strong>ssas metrópoles refletem a socie<strong>da</strong>de que construímos.<br />

Por Mariana Lacer<strong>da</strong> | Ilustração Rodrigo Silveira<br />

Periferia é o nome que, no Brasil, foi <strong>da</strong>do aos lugares menos privilegiados para morar. Longe dos espaços<br />

mais bem providos de infraestrutura, os bairros periféricos de nossas grandes ci<strong>da</strong>des se formaram em várzeas,<br />

nas áreas de mangue, nos descampados, sobre beira de rios, no acostamento de estra<strong>da</strong>s deste mundo,<br />

que antes era de meu Deus mas agora pertence à maioria <strong>da</strong> população brasileira que não pode pagar pelo<br />

preço <strong>da</strong>s moradias existentes nas áreas centrais – e, portanto, mais bem equipa<strong>da</strong>s.<br />

Essa é uma história que tem a ver com a dinâmica <strong>da</strong> produção capitalista. Em torno de casas e edifícios, em<br />

nossa ci<strong>da</strong>de todos os dias acontece uma luta silenciosa. E a explicação é bem simples. De um lado estamos<br />

nós, que vemos na ci<strong>da</strong>de, em suas ruas, nos seus parques as condições que consideramos boas para viver.<br />

Queremos moradia, oportuni<strong>da</strong>de de trabalho, escola para os nossos filhos, acesso às uni<strong>da</strong>des de saúde,<br />

diversão. Queremos estar perto de tudo isso. E no outro extremo existe o mercado imobiliário, para quem<br />

a ci<strong>da</strong>de não passa de uma mercadoria que só não é outra qualquer porque é valiosíssima – claro, é o lugar<br />

que oferece melhores condições de vi<strong>da</strong> e oportuni<strong>da</strong>des para a maioria <strong>da</strong>s pessoas, sendo legítimo, portanto,<br />

sua escolha de lá viver. É aí que se inicia o nó: “A luta que se trava na ci<strong>da</strong>de pela apropriação <strong>da</strong> ren<strong>da</strong><br />

imobiliária é a própria expressão <strong>da</strong> luta de classes em torno do espaço construído”, diz a urbanista Ermínia<br />

Maricato, em seu livro Habitação e Ci<strong>da</strong>de (Atual, 1997).<br />

8 Continuum Itaú Cultural


Saneamento e segregação<br />

<strong>No</strong> Brasil, essa é uma história bastante antiga. Ela está<br />

nos livros de urbanismo que tentam explicar as tramas<br />

políticas e sociais que constituem uma ci<strong>da</strong>de, mas<br />

também está nas apostilas didáticas que tínhamos<br />

quando éramos pequenos.<br />

Antes, quando ain<strong>da</strong> existia escravidão no Brasil, os<br />

espaços eram compartilhados por todos. Os escravos<br />

viviam na casa dos seus senhores. Eram as mães de leite<br />

negras que alimentavam os meninos brancos. Serviam<br />

também de elevadores, ventiladores; e faziam o transporte<br />

de água, de compras e de pessoas, a limpeza <strong>da</strong><br />

casa e o saneamento, além <strong>da</strong> comi<strong>da</strong>.<br />

Com a abolição <strong>da</strong> escravidão e a instauração do<br />

regime republicano, “era preciso apagar os resquícios<br />

escravistas do passado recente”, explica Ermínia,<br />

também professora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo e<br />

a responsável por formular a proposta de criação do<br />

Ministério <strong>da</strong>s Ci<strong>da</strong>des. As reformas urbanas, segundo<br />

ela, estavam incluí<strong>da</strong>s entre as medi<strong>da</strong>s destina<strong>da</strong>s<br />

a simbolizar o momento <strong>da</strong> então história brasileira,<br />

para assim fazer chegar os recursos externos para a<br />

economia do café. O problema é que nessas reformas<br />

não existiam planos para a massa pobre trabalhadora,<br />

a maioria forma<strong>da</strong> por ex-escravos que do<br />

dia para a noite passaram a não mais caber<br />

no <strong>centro</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, o coração que batia e<br />

ditava as leis sociais e políticas e, com<br />

isso, dividia o espaço conforme as<br />

relações de poder.<br />

A reforma urbana do Rio de Janeiro, chama<strong>da</strong> Regeneração,<br />

foi a mais importante, uma vez que a então<br />

capital estabelecia as condutas <strong>da</strong> República. São Paulo,<br />

Santos, Recife, Manaus, portanto, seguiram caminhos<br />

bem semelhantes. A inspiração principal vinha <strong>da</strong> reforma<br />

urbana de Paris, executa<strong>da</strong> entre os anos de 1850 e<br />

1879 pelo Barão de Haussmann, que entendeu o verbo<br />

sanear como embelezamento e segregação social. “O<br />

saneamento tinha como objetivo, além <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s<br />

propriamente higienistas, afastar <strong>da</strong>s áreas centrais os<br />

pobres, mendigos e negros, juntamente com os seus<br />

estilos de vi<strong>da</strong>”, escreveu Ermínia. A comuni<strong>da</strong>de de<br />

Cabeça de Porco, um dos primeiros cortiços surgidos<br />

no <strong>centro</strong> do Rio e onde viviam cerca de 4 mil pessoas,<br />

foi literalmente varri<strong>da</strong> <strong>da</strong>quele pe<strong>da</strong>ço de mapa. Sua<br />

alma, contudo, permanece bem viva, disfarça<strong>da</strong> sob o<br />

nome Cabeça de Gato no clássico romance de Aluísio<br />

Azevedo O Cortiço (Ática, 2009).<br />

Consolidou-se assim o urbanismo que ditou a construção<br />

e a expansão <strong>da</strong>s metrópoles brasileiras: a<br />

modernização <strong>da</strong>s áreas centrais – marcos de sua face<br />

institucionaliza<strong>da</strong> ou oficial –, com a consequente<br />

segregação espacial e social (e vice-versa). Na raiz<br />

dessa transformação social estava o contínuo processo<br />

que fez – e continua fazendo – de casas e edifícios<br />

uma mercadoria.<br />

Ser proprietário de um pe<strong>da</strong>ço de terra era a condição<br />

primeira para que se pudesse ter acesso a essa tal mercadoria<br />

traduzi<strong>da</strong> em um teto para viver, uma mora<strong>da</strong><br />

segura para dormir, sonhar, acor<strong>da</strong>r, trabalhar – em paz.<br />

Pois, como escreveu o filósofo francês Gaston Bachelard<br />

no ensaio A Poética do Espaço (Martins Fontes, 2008): “A<br />

casa, na vi<strong>da</strong> do homem, afasta contingências, multiplica<br />

seus conselhos de continui<strong>da</strong>de. Sem ela, o homem<br />

seria um ser disperso. Ela é o corpo e alma”. Talvez por<br />

isso mesmo, já na segun<strong>da</strong> metade do século XIX, o<br />

abolicionista André Rebouças tenha anotado em seus<br />

diários: “Quem possui a terra possui o homem”.<br />

Já nessa época surgia uma legislação complica<strong>da</strong><br />

que estabelecia critérios para a construção de casas e<br />

edifícios. Posse legal <strong>da</strong> terra, plantas arquitetônicas,<br />

eram fornecidos os ingredientes para a consoli<strong>da</strong>ção,<br />

nos primeiros anos <strong>da</strong> República, do tão conhecido<br />

mercado imobiliário.<br />

Vem <strong>da</strong>í<br />

também o surgimento<br />

<strong>da</strong>s favelas, que passarão a<br />

marcar definitivamente a paisagem<br />

do Rio de Janeiro. Lá, assim como em São<br />

Paulo, a extensão do transporte ferroviário<br />

terminou por viabilizar o assentamento <strong>da</strong> massa<br />

trabalhadora pobre nos seus subúrbios. A construção<br />

em áreas de encostas, de várzeas ou mangues<br />

em regiões longínquas feita pelas próprias famílias,<br />

alia<strong>da</strong> à extensão de linhas de transporte, foi a<br />

responsável pela formação de vastas periferias nas<br />

metrópoles brasileiras.<br />

Muitos historiadores e urbanistas consideram o ano<br />

de 1930 o início <strong>da</strong> urbanização e <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong>ção<br />

<strong>da</strong>s periferias brasileiras de fato. <strong>No</strong> campo, a agri<strong>cultura</strong><br />

trocava mão de obra por máquinas, enquanto<br />

as ci<strong>da</strong>des assistiam de perto ao governo de Getúlio<br />

Vargas (presidente entre 1930 e 1945 e tido como<br />

o “Pai dos pobres”), que instituiu a Consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s<br />

Leis Trabalhistas (CLT) – e com ela fixou um salário<br />

mínimo para o trabalhador. Resultado: a troca <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

no campo pela vi<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong>de levou ao êxodo rural e,<br />

com ele, o inchaço <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des.<br />

Queremos moradia, oportuni<strong>da</strong>de de trabalho, escola<br />

para os nossos filhos, acesso às uni<strong>da</strong>des de saúde, diversão.<br />

Mas existe o mercado imobiliário, para quem a<br />

ci<strong>da</strong>de não passa de uma mercadoria que só não é outra<br />

qualquer porque é valiosíssima.<br />

Aos poucos, o Estado passou a reconhecer que o<br />

mercado privado não tinha condições de resolver o<br />

problema <strong>da</strong> habitação popular. Era sua a responsabili<strong>da</strong>de<br />

de fazê-lo (moradia digna foi reconheci<strong>da</strong><br />

em 1948 como direito de todos, com a Declaração<br />

Universal dos Direitos do Homem). Com o regime<br />

militar, veio a criação do Sistema Financeiro <strong>da</strong><br />

Habitação – e do seu agente, o Banco Nacional <strong>da</strong><br />

Habitação, o BNH, extinto em 1986. Desde então, a<br />

política habitacional brasileira tem sido objeto de<br />

governos, sejam estaduais, sejam federais.<br />

10 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 11


Em comum, são políticas que resultam em decisões<br />

arbitrárias: a construção de casinhas ou prédios, que<br />

constituem extensos conjuntos habitacionais em algum<br />

lugar bem longe do <strong>centro</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Projetos que<br />

terminam, sim, por levar a infraestrutura de serviços<br />

públicos, “embora ela sempre seja deficitária”, diz o<br />

sociólogo Tiarajú D´Andrea, pesquisador em sociologia<br />

urbana <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo. Mora<strong>da</strong>s em<br />

lugares-dormitórios que surgem do na<strong>da</strong>, mas que,<br />

dia após dia, a ca<strong>da</strong> nascimento de filho, aniversário,<br />

bebedeira ou reza santa, mar de histórias e de sonhos,<br />

ganham passado. Pois “é graças à casa que um grande<br />

número de nossas memórias está guar<strong>da</strong>do”,<br />

anotou Bachelard. Com a construção <strong>da</strong> memória<br />

nasce a identi<strong>da</strong>de e, nela, o afeto pelo<br />

canto, pelo bairro, pelo lugar – apesar<br />

de sua conquista ser não raro<br />

por vias tortas.<br />

Para o urbanista italiano Bernardo Secchi, governantes,<br />

arquitetos e urbanistas devem agora observar com atenção<br />

como periferias e favelas reinventam modos de viver, e oferecer<br />

melhorias ao que já está consoli<strong>da</strong>do e <strong>da</strong>ndo certo.<br />

Déficit questionável<br />

Como produto resultante de relações sociais, as ci<strong>da</strong>des<br />

não poderiam deixar de expressar a reali<strong>da</strong>de social e<br />

econômica em que vivemos. Segundo <strong>da</strong>dos do Instituto<br />

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os cerca<br />

de 18 milhões de brasileiros ricos (10% <strong>da</strong> população<br />

nacional) detêm 18 vezes a ren<strong>da</strong> dos 70 milhões mais<br />

pobres (40% <strong>da</strong> população).<br />

A história de ca<strong>da</strong> metrópole do mundo é diferente, claro,<br />

mas to<strong>da</strong>s elas têm uma semelhança: a de cobrar caro<br />

pela moradia provi<strong>da</strong> de boa infraestrutura, boas escolas,<br />

vizinhança, serviços públicos – não podemos nos esquecer<br />

de que o mundo quebrou no final de 2008 exatamente<br />

por causa <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> moradia. A crise econômica<br />

mundial inicia<strong>da</strong> nos Estados Unidos se deu porque<br />

proprietários já não conseguiam pagar as hipotecas e as<br />

prestações de seus imóveis. Por isso, bancos deixaram de<br />

receber dinheiro e decretaram falência; e o resto <strong>da</strong> história<br />

permeou jornais e revistas durante todo o ano de 2009.<br />

A solução<br />

para nossas periferias e<br />

favelas é tema de debate entre<br />

os urbanistas, a exemplo do italiano<br />

Bernardo Secchi, que, em sua visita ao<br />

Brasil, em abril deste ano, se sensibilizou ao<br />

visitar Paraisópolis, bairro <strong>da</strong> periferia de São<br />

Paulo. Em sua opinião, governantes, arquitetos<br />

e urbanistas devem agora observar com atenção<br />

como periferias e favelas reinventam modos de viver,<br />

e oferecer melhorias ao que já está consoli<strong>da</strong>do e<br />

<strong>da</strong>ndo certo. Como exemplo, um estudo feito pela<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal de Pernambuco em áreas<br />

periféricas do Recife, cujo resultado mostrou que,<br />

nessas regiões, o valor do aluguel é negociado (não<br />

raro verbalmente entre proprietário e morador) de<br />

acordo com o perfil socioeconômico <strong>da</strong> deman<strong>da</strong>.<br />

Desatar o nó para resolver a questão <strong>da</strong> boa moradia<br />

parece complicado, mas nem tanto. Na opinião de<br />

D´Andrea, uma solução simples e viável seria o poder<br />

público estabelecer teto máximo para o preço dos<br />

aluguéis, além de cobrar impostos caros de proprietários<br />

de terras caras. “Assim, ela se tornaria barata”.<br />

Outra solução, tão viável quanto lógica, desta vez para<br />

resolver o problema de quem simplesmente não tem<br />

onde morar: a legalização <strong>da</strong> ocupação dos prédios<br />

abandonados. Em São Paulo, por exemplo, o “déficit<br />

habitacional”, explica D’Andrea, é de 250 mil famílias.<br />

E existem na capital paulista cerca de 400 mil imóveis<br />

vazios, muitos deles na região central. “Ou seja, em<br />

tese, não existe déficit habitacional.”<br />

Ideias simples que talvez possam minimizar os problemas<br />

de metrópoles cujas tramas constituem pergaminhos<br />

em que diversas gerações, desde o início<br />

<strong>da</strong> história, têm deixado suas marcas, escrito seus<br />

caminhos, estratificando-os. Como escreveu Secchi em<br />

um de seus mais importantes livros sobre a construção<br />

de ci<strong>da</strong>des, Primeira Lição de Urbanismo (Perspectiva,<br />

2006), “Muitas vezes contradizendo-se [...] e levando a<br />

resultados surpreendentes e de difícil interpretação”.<br />

12 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 13


Povo lindo, povo inteligente<br />

reportagem<br />

Movimentos surgidos nas periferias reforçam o papel <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> no protagonismo<br />

desses espaços.<br />

Por Patrícia Cornils<br />

Em 1916, Donga vestiu seu terno, foi à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e registrou a autoria <strong>da</strong> música<br />

“Pelo Telefone”, em parceria com Mauro de Almei<strong>da</strong>, como um “samba carnavalesco”. Ao assumir o papel<br />

de autor e, assim, se colocar na posição de receber pelo seu trabalho, ele queria que sua produção <strong>cultura</strong>l<br />

fosse reconheci<strong>da</strong> profissionalmente. Entre os muitos sambistas <strong>da</strong> época, que eram pobres e vendiam suas<br />

músicas ou a autoria delas a quem tivesse dinheiro para comprar – e que depois recebiam os louros e mais<br />

dinheiro se a música virasse um sucesso –, ele foi pioneiro.<br />

O rapper Rappin’ Hood: “Se você pensar na ci<strong>da</strong>de de São Paulo, a periferia é o próprio espaço urbano” | foto: Cia de Foto<br />

Donga, ou<br />

Ernesto dos Santos, era<br />

negro, filho de Tia Amélia, festeira<br />

baiana <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de <strong>No</strong>va, e frequentava as<br />

festas <strong>da</strong> casa de Tia Ciata, onde os estribilhos<br />

que viriam a fazer parte de “Pelo Telefone” eram<br />

entoados. A Ci<strong>da</strong>de <strong>No</strong>va, também chama<strong>da</strong><br />

de Pequena África, era a região do Rio de Janeiro<br />

onde viviam descendentes dos baianos <strong>da</strong> Guerra<br />

de Canudos e a população pobre – e negra – <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de, desloca<strong>da</strong> pelas reformas urbanas do prefeito<br />

Pereira Passos, que a expulsara <strong>da</strong> Zona Portuária.<br />

Donga morou no Centro do Rio, na Rua Riachuelo,<br />

com Pixinguinha e Heitor dos Prazeres. Descendente<br />

de escravos, vinha <strong>da</strong> periferia do Brasil. Nessa periferia,<br />

em que balançava com lundus, modinhas e<br />

choros, foi inventado o samba, que hoje faz parte <strong>da</strong><br />

identi<strong>da</strong>de nacional.<br />

Periferia é periferia em qualquer lugar, constatam os<br />

Racionais MCs, e uma <strong>da</strong>s maneiras de definir esse<br />

lugar é a exclusão econômica e social. “Dos jovens de<br />

periferia sem antecedentes criminais, 60% já sofreram<br />

violência policial. A ca<strong>da</strong> quatro pessoas mortas pela<br />

polícia, três são negras. Nas universi<strong>da</strong>des brasileiras,<br />

apenas 2% dos alunos são negros. A ca<strong>da</strong> quatro horas<br />

um jovem negro morre violentamente em São Paulo”,<br />

diz a música “Capítulo 4, Versículo 3”, um “manifesto <strong>da</strong><br />

condição periférica”, de acordo com Leite. A exclusão<br />

<strong>cultura</strong>l também existe. Dados do Instituto Brasileiro de<br />

Geografia e Estatística (IBGE), pesquisados a pedido do<br />

Ministério <strong>da</strong>s Comunicações, mostram que somente<br />

13% dos brasileiros vão ao cinema pelo menos uma<br />

vez por ano. A museus 92% nunca foram, assim como<br />

93,4% nunca estiveram em uma exposição de arte e<br />

78% jamais assistiram a um espetáculo de <strong>da</strong>nça. Mais<br />

de 90% dos municípios do país não têm sala de cinema,<br />

teatro, museu ou outros espaços <strong>cultura</strong>is.<br />

Dados mostram que somente 13% dos brasileiros vão ao<br />

cinema pelo menos uma vez por ano. A museus 92% nunca<br />

foram, assim como 93,4% nunca estiveram em uma exposição<br />

de arte e 78% jamais assistiram a um espetáculo de<br />

<strong>da</strong>nça. Mais de 90% dos municípios do país não têm sala<br />

de cinema, teatro, museu ou outros espaços <strong>cultura</strong>is.<br />

Se a <strong>cultura</strong> que nasce na periferia determina a identi<strong>da</strong>de<br />

do Brasil, por que ain<strong>da</strong> é vista como “de periferia”?<br />

Talvez porque “a mídia e a informação são centraliza<strong>da</strong>s<br />

nas mãos de alguns, e o povo não se vê representado<br />

pelas redes de comunicação”, constata o rapper Rappin’<br />

Hood. A reali<strong>da</strong>de de que há, nesses lugares, “um mundo<br />

de coisas, ban<strong>da</strong>s bombando, escritores bombando, assuntos<br />

bombando”, diz Hood, também aparece pouco. E<br />

esses lugares são um mundo. “Se você pensar na ci<strong>da</strong>de<br />

de São Paulo, a periferia é o próprio espaço urbano”,<br />

observa Eleilson Leite, coordenador de Cultura <strong>da</strong> ONG<br />

Ação Educativa e editor <strong>da</strong> Agen<strong>da</strong> Cultural <strong>da</strong> Periferia,<br />

guia de <strong>cultura</strong> publicado mensalmente na capital<br />

paulista. “Mais de 60% <strong>da</strong> população de São Paulo vive<br />

na periferia. É um universo com características próprias<br />

e é natural que também surja <strong>da</strong>í uma estética própria.”<br />

Contrariando estatísticas<br />

Esse povo, no entanto, adora contrariar as estatísticas.<br />

<strong>No</strong> caso <strong>da</strong> <strong>cultura</strong>, a periferia faz isso saindo <strong>da</strong> negação<br />

(aqui não tem na<strong>da</strong>) e, apesar <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de de acesso<br />

a cinemas, teatros, shows, realiza uma produção <strong>cultura</strong>l<br />

vigorosa. Os próprios Racionais mostram isso. Em 1997,<br />

lançaram Sobrevivendo no Inferno, disco onde está<br />

“Capítulo 4, Versículo 3”. Venderam mais de 1 milhão de<br />

cópias à margem <strong>da</strong>s gravadoras oficiais. Na periferia.<br />

Também em 1997, a Companhia <strong>da</strong>s Letras publicou<br />

Ci<strong>da</strong>de de Deus, de Paulo Lins [leia a Ficção assina<strong>da</strong><br />

pelo autor, na pág. 58], um escritor de periferia que<br />

fala sobre a ação do tráfico nesse bairro <strong>da</strong> zona oeste<br />

carioca. Bombou. “O romance de estreia de Paulo Lins<br />

[...] merece ser sau<strong>da</strong>do como um acontecimento. O<br />

14 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 15


interesse explosivo do assunto, o tamanho <strong>da</strong> empresa,<br />

a sua dificul<strong>da</strong>de, o ponto de vista interno e diferente,<br />

tudo contribui para a aventura artística fora do comum”,<br />

apresenta o crítico literário Roberto Schwarz em seu livro<br />

de ensaios Sequências Brasileiras (Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1999).<br />

A produção <strong>cultura</strong>l <strong>da</strong> periferia não parou depois <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de 1990. Em Belém, to<strong>da</strong> semana, milhares de<br />

pessoas participam <strong>da</strong>s festas de aparelhagem. Em<br />

2006, uma pesquisa <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Getulio Vargas e <strong>da</strong><br />

Fun<strong>da</strong>ção Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe)<br />

constatou que as aparelhagens e as ban<strong>da</strong>s de música<br />

brega realizavam 3.164 festas e 849 shows por mês na<br />

região metropolitana <strong>da</strong> capital paraense. Criaram um<br />

enorme mercado de ven<strong>da</strong> de CDs e DVDs em camelôs<br />

e são estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s até hoje como um novo modelo de<br />

produção e ven<strong>da</strong> de música popular.<br />

[A <strong>cultura</strong> <strong>da</strong> periferia] fala de exclusão, mas não trata<br />

somente <strong>da</strong> negação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, porém <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de<br />

de transformá-la. A saí<strong>da</strong> não é sair <strong>da</strong> periferia, e sim<br />

mu<strong>da</strong>r sua situação.<br />

Show do AfroReggae: núcleos de <strong>cultura</strong> em diversas favelas cariocas | foto: Cia de Foto<br />

Para <strong>da</strong>r um exemplo dessa movimentação <strong>cultura</strong>l, na<br />

Agen<strong>da</strong> Cultural <strong>da</strong> Periferia de São Paulo, em março,<br />

havia 14 saraus e ro<strong>da</strong>s de diálogo sobre literatura, 16<br />

ro<strong>da</strong>s de samba, eventos de hip-hop, seis espetáculos de<br />

teatro, saraus sertanejos, festas de celebração <strong>da</strong> <strong>cultura</strong><br />

negra, como o Panelafro e o Jambaque, e encontros de<br />

DJs <strong>da</strong> Liga do Vinil e do projeto Vitrola’s, que ressaltam<br />

a importância do vinil.<br />

<strong>No</strong> Rio de Janeiro, o Grupo Cultural AfroReggae, criado<br />

em 1993, tem núcleos de <strong>cultura</strong> na favela de Vigário<br />

Geral, do Cantagalo, de Para<strong>da</strong> de Lucas, do Complexo de<br />

Favelas do Alemão e de <strong>No</strong>va Era. Produz um programa<br />

de TV para o canal fechado Multishow, cinco programas<br />

de rádio e uma revista de <strong>cultura</strong> e mantém dez ban<strong>da</strong>s<br />

(de rock, reggae, samba), uma orquestra de violinos e<br />

grupos de teatro e de circo. “A <strong>cultura</strong> de periferia, hoje,<br />

é muito ampla”, diz Anderson Sá, vocalista do grupo.<br />

“Ca<strong>da</strong> estado tem sua reali<strong>da</strong>de, ca<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de tem<br />

sua <strong>cultura</strong>”, opina.<br />

Projeto coletivo<br />

O AfroReggae foi criado para transformar a reali<strong>da</strong>de de<br />

jovens moradores de favelas utilizando a educação, a<br />

arte e a <strong>cultura</strong> como instrumentos de inserção social.<br />

Essa relação entre a produção <strong>cultura</strong>l e a vontade de<br />

mu<strong>da</strong>r seu lugar é uma marca <strong>da</strong> <strong>cultura</strong> de periferia<br />

dos últimos 20 anos, afirma o professor de estudos<br />

comparativos transatlânticos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

Manchester, João Cezar de Castro Rocha. “O que tem<br />

mu<strong>da</strong>do de maneira notável na produção <strong>cultura</strong>l dos<br />

últimos 15 anos é que não se trata unicamente de uma<br />

solução individual. É um projeto coletivo”, afirmou<br />

ele em uma entrevista para a revista Época, em 2007.<br />

“Não se trata mais <strong>da</strong> expressão de uma individuali<strong>da</strong>de<br />

privilegia<strong>da</strong>. Quando você vê a produção do Ferréz, do<br />

Paulo Lins, dos Racionais MCs, <strong>da</strong> Cooperifa e de trabalhos<br />

semelhantes em todo o Brasil, percebe que é um projeto<br />

coletivo.” Além disso, continua ele, essa periferia está,<br />

pela primeira vez na história do Brasil, falando com<br />

voz própria, interpretando e imprimindo seus pon-<br />

tos de vista<br />

sobre a reali<strong>da</strong>de sem<br />

intermediários, e “propondo uma<br />

interpretação radical <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de<br />

no país”. É quase como se todos os músicos<br />

<strong>da</strong> casa de Tia Ciata tivessem decidido registrar<br />

suas obras. Donga teria muita companhia, em seu<br />

caminho para a Biblioteca Nacional.<br />

Essa voz está reconfigurando o conceito de periferia,<br />

explica Helena Abramo, socióloga e pesquisadora de<br />

temas relativos à juventude. Além de valorizar sua<br />

própria história, afirmar sua identi<strong>da</strong>de, a periferia “criou<br />

um conceito que é mais que territorial, que expressa<br />

uma noção de classe, de lugar na estrutura social”.<br />

Quando se expressa, hoje, não está dizendo somente<br />

que o morro não tem vez. Fala de exclusão, mas não<br />

trata somente <strong>da</strong> negação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, porém <strong>da</strong><br />

necessi<strong>da</strong>de de transformá-la. A saí<strong>da</strong> não é sair <strong>da</strong><br />

periferia, e sim mu<strong>da</strong>r sua situação. “É uma ação política<br />

16 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 17


que parte do princípio de que se você não mu<strong>da</strong>r a<br />

sua vizinhança você não mu<strong>da</strong> o bairro, o município, o<br />

Brasil”, afirma Castro Rocha. Isso acontece, entre outras<br />

coisas, porque uma <strong>da</strong>s características <strong>da</strong> produção<br />

<strong>cultura</strong>l <strong>da</strong> periferia é não separar o cotidiano, o dia a<br />

dia, <strong>da</strong> produção artística.<br />

não tem coitadinho, temos digni<strong>da</strong>de. A poesia é<br />

uma ferramenta importante para a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia”, diz<br />

Sérgio Vaz, poeta e organizador <strong>da</strong> Cooperifa, em<br />

uma entrevista ao Correio Popular, de Campinas.<br />

“Além <strong>da</strong> literatura, há uma produção crescente na área de<br />

audiovisual, em que ocorre uma enorme apropriação <strong>da</strong>s<br />

tecnologias pelos jovens.” (Eleilson Leite)<br />

<strong>No</strong> Sarau <strong>da</strong> Cooperifa, que acontece desde 2001<br />

to<strong>da</strong>s as quartas-feiras no Bar Zé Batidão, no Capão<br />

Redondo, zona sul de São Paulo, um poeta motoboy<br />

recita, cruzando o chão do bar de capacete, versos de<br />

O Navio Negreiro, de Castro Alves. O que a Cooperifa<br />

mudou em seu lugar? “Através <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, muita<br />

gente chegou aos livros. Muitos voltaram ou começaram<br />

a estu<strong>da</strong>r. Ninguém mais abaixa a cabeça, ali<br />

Na literatura, com exemplos como Paulo Lins, Ferréz,<br />

Sérgio Vaz, criou-se uma linguagem, com denominação<br />

de origem. E, nas outras expressões, há<br />

algo tão novo como era, em 1916, o samba?<br />

“Ain<strong>da</strong> não se sabe se to<strong>da</strong> essa produção<br />

configura um movimento estético”,<br />

constata Eleilson Leite.<br />

“Mas sabemos<br />

Sarau <strong>da</strong> Cooperifa, no Bar Zé Batidão, zona sul de São Paulo | foto: Cia de Foto<br />

A arte do futebol nasce nas pela<strong>da</strong>s em campinhos de periferia, como mostra Várzea, a Bola Rola<strong>da</strong> na Beira do Coração | foto: Cassimano<br />

que, além <strong>da</strong><br />

literatura, há uma produção<br />

crescente na área de audiovisual, em<br />

que ocorre uma enorme apropriação <strong>da</strong>s<br />

tecnologias pelos jovens.” Ele cita, como exemplo,<br />

o filme Várzea, a Bola Rola<strong>da</strong> na Beira do Coração,<br />

do poeta e arte-educador Akins Kinte. Lançado<br />

em fevereiro deste ano, mostra os campões de<br />

barro onde rolam os ver<strong>da</strong>deiros campeonatos do<br />

futebol brasileiro. Onde os peladeiros arrancam,<br />

dão caneta, lençol, pe<strong>da</strong>lam, fazem gol de letra...<br />

Como diz o jornalista Xico Sá, é onde se escreve a<br />

poesia do futebol, onde os grandes não têm vez e de<br />

onde saem os craques brasileiros, rumo ao <strong>centro</strong> do<br />

mundo do futebol.<br />

“A tecnologia e a internet estão a favor de diversos<br />

segmentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, e isso colabora para que o<br />

esquecido e o invisível apareçam”, diz João Carlos Teixeira<br />

Chaves, o Negro JC. Um dos criadores do Coletivo Imagens<br />

Periféricas, formado na Ci<strong>da</strong>de Tiradentes, periferia<br />

de São Paulo, em 2002, ele está desenvolvendo, com a<br />

produtora de vídeo Correria Filmes, o Canal Periférico,<br />

um website para exibição de peças audiovisuais cujo<br />

objetivo é ampliar o espaço de difusão <strong>da</strong>s manifestações<br />

<strong>cultura</strong>is na periferia e também sua relevância nesses<br />

espaços. “A <strong>cultura</strong> pode superar diversas coisas, como<br />

melhorar as condições de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas e estabelecer<br />

um diálogo positivo entre a periferia e o <strong>centro</strong>”, diz. Se<br />

o verso “Quando derem vez ao morro/To<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de<br />

vai cantar”, do samba “O Morro Não Tem Vez,” de Tom<br />

Jobim e Vinicius de Morais, ain<strong>da</strong> soa como reali<strong>da</strong>de<br />

a todos, a periferia brasileira <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de mostra que<br />

o morro criou, sim, sua própria voz. E ela é ouvi<strong>da</strong> em<br />

todo o país, que canta, escreve, filma, joga futebol, com<br />

milhões de instrumentos, harmonias, rimas, percussões,<br />

imagens, passes e melodias.<br />

18 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 19


fotorreportagem<br />

Tempos parados<br />

Fotos Renata Ursaia<br />

Horas passa<strong>da</strong>s no trânsito, todos os dias. Objetivo: locomover-se entre a periferia, local do acolhimento,<br />

e as regiões centrais onde se ganha a vi<strong>da</strong>, na quarta maior metrópole do mundo, São Paulo. Segundos,<br />

minutos, horas dos quais o que resta é tecer o tempo, apreendido neste ensaio fotográfico.<br />

20 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 21


22 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 23


24 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 25


Quodi sundusSit, volorrum sit quas, 2010 | foto: Henrique Manreza<br />

Quodi sundusSit, volorrum sit quas, 2010 | foto: Henrique Manreza<br />

26 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 27


entrevista<br />

Espaços em transformação<br />

Por Mariana Sgarioni e Rafael Tonon | Ilustração Mariana Leme<br />

Geralmente, a periferia é vista pelas pessoas como um bloco único, um problema único ou uma condição<br />

única de existência. Mas a aproximação ao tema faz ver que, apesar de traços comuns, ca<strong>da</strong> periferia tem sua<br />

especifici<strong>da</strong>de e, dependendo do enfoque, ela pode ser um conceito relativo. Para Gilberto Dimenstein, por<br />

exemplo, um jovem de classe média alta alienado é periférico. Em contraponto, analisa o jornalista, um dos<br />

entrevistados nesta seção, um jovem periférico integrado socialmente ultrapassa seus limites geográficos.<br />

Na opinião do psicanalista Jorge Broide, também entrevistado, os problemas enfrentados pela periferia,<br />

especialmente a violência, dificultam a circulação <strong>da</strong> palavra, expressa entre outros aspectos pela arte e pela<br />

<strong>cultura</strong>. Outro convi<strong>da</strong>do a refletir sobre a periferia é o professor e pesquisador Eduardo Marques, que vê<br />

com otimismo a quebra <strong>da</strong> homogenei<strong>da</strong>de dessas populações, à medi<strong>da</strong> que avançam os serviços públicos<br />

e a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. Uma vontade política ampla é o primeiro passo para reverter o estigma de exclusão que<br />

paira sobre pessoas que vivem fora do <strong>centro</strong> <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des, na visão <strong>da</strong> antropóloga Rose Satiko.<br />

<strong>No</strong> entanto, a urbanista Raquel Rolnik, cuja entrevista fecha a seção, observa que, apesar de a <strong>cultura</strong> <strong>da</strong><br />

periferia ganhar ca<strong>da</strong> vez mais espaço dentro e fora dela, sua força política foi captura<strong>da</strong> pelo jogo eleitoral.<br />

Conheça essas e outras reflexões dos especialistas convi<strong>da</strong>dos a debater esses espaços em transformação.<br />

EDUARDO MARQUES<br />

Professor livre-docente do Departamento de Ciência Política<br />

<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, é diretor do Centro de Estudos<br />

<strong>da</strong> Metrópole, em São Paulo, desde 2004, e pesquisador <strong>da</strong><br />

pobreza e <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de social do Brasil.<br />

Para você, o que é periferia?<br />

As periferias são as áreas mais externas <strong>da</strong>s grandes<br />

ci<strong>da</strong>des, ocupa<strong>da</strong>s desde os anos 1970 por populações<br />

de baixa ren<strong>da</strong> que viviam em condições muito<br />

precárias e estavam submeti<strong>da</strong>s a vários tipos de risco.<br />

Em termos recentes, as periferias têm se tornado mais<br />

heterogêneas socialmente, assim como têm tido<br />

maior acesso a políticas e serviços públicos, embora<br />

grandes diferenças de quali<strong>da</strong>de dos serviços ain<strong>da</strong><br />

perdurem. Apesar de ain<strong>da</strong> ser espaços de<br />

pobreza e privação, elas se transformaram<br />

muito. Por isso, faz mais sentido falar<br />

de periferias (no plural) nos<br />

dias de hoje.<br />

Que tipo de problema social a periferia representa?<br />

Eu não diria que elas representam um problema, mas<br />

que têm problemas. De acesso a serviços, de segregação<br />

no espaço (e grandes distâncias ao mercado de trabalho<br />

e ao lazer) e, mais recentemente, de violência, uma <strong>da</strong>s<br />

principais questões que temos visto nas regiões periféricas.<br />

As iniciativas que tentam integrar a periferia ao<br />

restante <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des geram resultados?<br />

Considero essas iniciativas muito importantes, principalmente<br />

as de promoção de infraestrutura e implantação de<br />

equipamentos, mas também as de indução de ativi<strong>da</strong>des<br />

econômicas, para a redução <strong>da</strong> segregação social nesse<br />

espaço urbano que ain<strong>da</strong> é excluído.<br />

Qual a força <strong>da</strong> periferia em termos políticos? E no<br />

tocante à arte e à <strong>cultura</strong>?<br />

A periferia tem muita força política, tanto eleitoral quanto<br />

organizativa. Recentemente, suas expressões <strong>cultura</strong>is<br />

têm aparecido com força crescente, o que é muito bom.<br />

Em um aparente paradoxo, têm se afirmado em torno<br />

de identi<strong>da</strong>des periféricas gerais, em um momento de<br />

aumento de sua heterogenei<strong>da</strong>de.<br />

Como transformar o estigma de exclusão que paira<br />

sobre os moradores <strong>da</strong> periferia?<br />

Por um lado, com investimentos públicos de grande<br />

porte que permitam tornar as periferias lugares ca<strong>da</strong><br />

vez mais consoli<strong>da</strong>dos em termos urbanos. Por outro,<br />

através <strong>da</strong> ação política dos grupos <strong>da</strong> própria periferia,<br />

organizados politicamente ou não.<br />

28 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 29


Qual a força <strong>da</strong> periferia em termos políticos? E no<br />

tocante à arte e à <strong>cultura</strong>?<br />

JORGE BROIDE<br />

Psicanalista, é doutor em psicologia social e professor do<br />

mestrado Adolescente em Conflito com a Lei, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Bandeirante (Uniban). Também é presidente do<br />

Conselho Consultivo <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Abrinq para os Direitos<br />

<strong>da</strong> Criança e do Adolescente e tem vasta experiência com<br />

pessoas em situação de rua.<br />

Para você, o que é periferia?<br />

É um território com pouca presença do Estado, fragmentado,<br />

atravessado pela pobreza, geralmente distanciado<br />

do <strong>centro</strong>. Mas é, também, marcado pela soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />

e proximi<strong>da</strong>de entre as pessoas. A periferia adotou leis<br />

próprias para sobreviver ao abandono e ao desamparo<br />

vivido no cotidiano. Hoje em dia, há uma importante<br />

mistura entre o formal e o informal, o lícito e o ilícito.<br />

Essas relações se expressam, por exemplo, no controle<br />

que o tráfico de drogas vai adquirindo sobre o território,<br />

fazendo, paradoxalmente, o papel do Poder Judiciário,<br />

através dos julgamentos informais <strong>da</strong>queles que quebram<br />

as normas impostas por eles para o controle de<br />

seu negócio. Essa situação tão complexa dificulta a<br />

circulação <strong>da</strong> palavra. A palavra circula na soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />

e na proximi<strong>da</strong>de entre as pessoas, na arte, na <strong>cultura</strong>,<br />

na organização popular, na organização para a sobrevivência<br />

e está ausente na fragmentação do território.<br />

A psicanálise nos permite entender que onde não há<br />

palavra há um ato mudo e motor. Ele ocorre porque<br />

algo não pode ser dito pela proibição, pelo medo, pela<br />

angústia, pelas per<strong>da</strong>s não elabora<strong>da</strong>s que são muito<br />

grandes na periferia. A violência surge no lugar dessa<br />

ausência <strong>da</strong> palavra.<br />

Que tipo de problema social a periferia representa?<br />

O maior deles é a ausência de futuro. O jovem <strong>da</strong> periferia<br />

vive como se estivesse em uma corri<strong>da</strong> de obstáculos.<br />

Ele tem de enfrentar a desagregação familiar que a pobreza<br />

e a fragmentação do território geram; a ausência<br />

de diferenciação entre a escola e o mundo <strong>da</strong> rua, em<br />

que o professor não consegue mais ser um representante<br />

<strong>da</strong> cadeia simbólica <strong>da</strong> civilização, tornando-se<br />

somente mais uma pessoa na sala de aula; a ausência<br />

de perspectiva profissional, que, muitas vezes, o obriga<br />

a entrar para o tráfico; a violência entre os pares etc.<br />

Essa luta pela sobrevivência material e psíquica faz<br />

com que o sujeito vá se exaurindo e, em determinado<br />

momento, não consiga mais pular o próximo obstáculo.<br />

Quando cai, ele se volta à drogadição, ao alcoolismo e<br />

à violência, sintomas do desamparo e uma tentativa<br />

de amenizar a dor e a frustração.<br />

As iniciativas que tentam integrar a periferia ao<br />

restante <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des geram resultados?<br />

Muitas vezes, a periferia funciona como aquilo que<br />

chamamos de instituição total. O sujeito fica preso<br />

no território sem possibili<strong>da</strong>de de circulação pela<br />

ci<strong>da</strong>de e pelo mundo. Isso aponta a importância<br />

do transporte público, <strong>da</strong> internet e <strong>da</strong> troca dos<br />

bens materiais e simbólicos como <strong>cultura</strong> e arte. A<br />

integração <strong>da</strong> periferia com o restante <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

pressupõe a saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> pressão pela sobrevivência<br />

imediata, ou seja, a resolução do<br />

básico, que é moradia, trabalho,<br />

educação etc.<br />

Há um movimento contraditório e multifacetado entre a<br />

passivi<strong>da</strong>de e as formas de organização efetivas, que vão<br />

do tradicional ao novo. Da mesma forma que o tráfico de<br />

drogas impõe uma estética, uma ética e uma organização<br />

política que fazem parte do controle do território com<br />

regras rígi<strong>da</strong>s, de extraordinária violência e exploração do<br />

trabalho <strong>da</strong> juventude, há também, no mesmo lugar, e<br />

muitas vezes com as mesmas pessoas, um movimento que<br />

busca soluções através de novas formas de organização,<br />

com uma ética e uma estética que promovem o encontro<br />

com o outro no caminho de algo novo.<br />

“Onde não há palavra há um ato mudo e motor. A violência<br />

surge no lugar dessa ausência <strong>da</strong> palavra.” (Jorge Broide)<br />

Como transformar o estigma de exclusão que paira<br />

sobre os moradores <strong>da</strong> periferia?<br />

O estigma e o preconceito não reconhecem o outro.<br />

Tratam a todos de um mesmo grupo como se fossem<br />

iguais. É a questão <strong>da</strong> invisibili<strong>da</strong>de de quem mora na<br />

periferia. A transformação deve ocorrer pela ver<strong>da</strong>deira<br />

inclusão na cadeia simbólica, o que pressupõe<br />

o trânsito <strong>da</strong>s pessoas pela ci<strong>da</strong>de, pela <strong>cultura</strong>, pelo<br />

melhor que o ser humano produziu. Isso subentende a<br />

possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> circulação <strong>da</strong> palavra, que se dá com<br />

base na construção de uma tessitura no território, e<br />

do território para to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de e para o mundo. É<br />

esse movimento que gera escutas, cria matizes,<br />

diferenças, canais de comunicação, aberturas<br />

de pensamentos, outras formas de trabalho e<br />

sobrevivência. Gosto muito <strong>da</strong>quela música<br />

dos Titãs que diz: “Miséria é miséria<br />

em qualquer canto. Riquezas<br />

são diferentes”.<br />

30 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 31


GILBERTO DIMENSTEIN<br />

Jornalista, é membro do Conselho Editorial <strong>da</strong> Folha<br />

de S.Paulo e criador <strong>da</strong> ONG Ci<strong>da</strong>de Escola Aprendiz.<br />

Especialista em jornalismo comunitário, é idealizador do<br />

Catraca Livre (www.catracalivre.com.br), que propõe unir<br />

educação, interação e <strong>cultura</strong>.<br />

Para você, o que é periferia?<br />

É estar excluído dos benefícios sociais, <strong>cultura</strong>is, tecnológicos<br />

e científicos. Ser periférico é estar à parte desses<br />

benefícios. Não se trata, portanto, de uma definição<br />

geográfica, mas de uma definição que trata de aspectos<br />

socio<strong>cultura</strong>is e econômicos.<br />

Que tipo de problema social a periferia representa?<br />

Acredito que seja o déficit educacional. A pior <strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des<br />

é a <strong>da</strong> informação, do conhecimento. E essa<br />

disputa acaba se revelando nas mais diferentes formas,<br />

na questão <strong>da</strong> saúde, <strong>da</strong> <strong>cultura</strong>, do emprego, <strong>da</strong> ren<strong>da</strong>.<br />

É a educação que viabiliza disputar com mais igual<strong>da</strong>de<br />

de oportuni<strong>da</strong>des os benefícios <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, que vão<br />

do progresso científico e tecnológico às questões de<br />

<strong>cultura</strong> e saúde. As pessoas bem informa<strong>da</strong>s se previnem<br />

de doenças, têm menos filhos e se envolvem mais na<br />

educação deles... Isso acaba criando um ciclo vicioso.<br />

As iniciativas que tentam integrar a periferia ao<br />

restante <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des geram resultados?<br />

Quando falamos em integrar a periferia, é importante<br />

ressaltar que ela também está no <strong>centro</strong> e que há pessoas<br />

nas regiões centrais desloca<strong>da</strong>s do acesso aos benefícios.<br />

Penso que as ações mais importantes são aquelas que<br />

trabalham com o protagonismo juvenil. Defendo o<br />

conceito de ci<strong>da</strong>de educadora, de que o espaço urbano<br />

precisa ser<br />

uma plataforma <strong>da</strong> educação.<br />

To<strong>da</strong>s as experiências pratica<strong>da</strong>s<br />

em várias partes do mundo<br />

mostram que, quando se consegue colocar<br />

a juventude no <strong>centro</strong> do processo de produção<br />

do conhecimento, a periferia desaparece.<br />

Quando o jovem periférico tem a possibili<strong>da</strong>de de<br />

se integrar socialmente e ser um articulador comunitário<br />

e <strong>cultura</strong>l, a periferia vira apenas um conceito<br />

geográfico, não mais um conceito socioeconômico e<br />

<strong>cultura</strong>l. Afinal, um jovem <strong>da</strong> classe média totalmente<br />

alienado não deixa de ser periférico. Outro, incapaz de<br />

conhecer as novi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> música, <strong>da</strong> arte, <strong>da</strong> tecnologia,<br />

de enxergar o mundo, também não deixa de<br />

ser. Portanto, a noção <strong>da</strong> periferia não depende só <strong>da</strong><br />

ren<strong>da</strong>, mas <strong>da</strong> absorção do conhecimento.<br />

Qual a força <strong>da</strong> periferia em termos políticos?<br />

E no tocante à arte e à <strong>cultura</strong>?<br />

Politicamente, a periferia é muito mais importante como<br />

eleitorado, essa é a grande ver<strong>da</strong>de. A população <strong>da</strong><br />

“A pior <strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des é a <strong>da</strong> informação, do conhecimento.<br />

[Ela] acaba se revelando nas mais diferentes formas,<br />

na questão <strong>da</strong> saúde, <strong>da</strong> <strong>cultura</strong>, do emprego, <strong>da</strong> ren<strong>da</strong>.”<br />

(Gilberto Dimenstein)<br />

periferia representa a maior parte dos votos ou, pelo<br />

menos, grande parte. Por isso, eleitoralmente ela tem<br />

uma representativi<strong>da</strong>de muito maior na política do que<br />

como formadora de opinião. A periferia tem muito mais<br />

importância, portanto, em épocas de eleição. Já no<br />

tocante às questões <strong>cultura</strong>is e artísticas, o que temos<br />

notado na ci<strong>da</strong>de de São Paulo é um vigor crescente<br />

<strong>da</strong> força <strong>da</strong> periferia, reconheci<strong>da</strong> ca<strong>da</strong> vez mais pelo<br />

<strong>centro</strong>. Podemos citar o grafite, o estêncil, o hip-hop,<br />

as manifestações teatrais. Hoje, na periferia há uma<br />

população jovem ca<strong>da</strong> vez mais educa<strong>da</strong> – inclusive<br />

no sentido formal. Dificilmente se veem jovens sem<br />

o ensino médio. E a internet ajudou a democratizar<br />

muito a informação. São Paulo, bem ou mal, é uma<br />

ci<strong>da</strong>de onde as pessoas interessa<strong>da</strong>s têm espaços de<br />

apropriação do conhecimento, a exemplo de outros<br />

grandes <strong>centro</strong>s urbanos do mundo, que têm<br />

diversas ofertas gratuitas ou a preços populares de<br />

benefícios <strong>cultura</strong>is.<br />

Como transformar o estigma de exclusão que paira<br />

sobre os moradores <strong>da</strong> periferia?<br />

O único jeito é melhorar a educação pública, para aumentar<br />

a possibili<strong>da</strong>de de as pessoas irem às escolas,<br />

às facul<strong>da</strong>des, fazerem cursos técnicos e profissionalizantes.<br />

Já vemos isso acontecer, mesmo que de forma<br />

um pouco tími<strong>da</strong>. A melhora <strong>da</strong> educação vai permitir<br />

mais oportuni<strong>da</strong>des a uma população que ain<strong>da</strong> vive<br />

periférica. Outra questão está relaciona<strong>da</strong> ao orgulho.<br />

Por que se envergonhar de viver na periferia? O estigma,<br />

muitas vezes, está nos próprios moradores.<br />

Não se orgulhar do que você é também é um<br />

sinal de subdesenvolvimento intelectual. Mas<br />

é importante não confundir excesso de<br />

orgulho com baixa autoestima, que<br />

<strong>da</strong>í se cria outra forma<br />

de exclusão.<br />

ROSE SATIKO<br />

Doutora em antropologia social, é professora de antropologia<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo e pesquisadora do<br />

Grupo de Antropologia Visual (Gravi-USP) sobre a produção<br />

audiovisual na periferia de São Paulo.<br />

Para você, o que é periferia?<br />

Acho difícil citar uma definição única. Até porque é<br />

muito difícil pensar em um lugar único. Periferia são<br />

territórios delimitados, com acesso restrito e precário<br />

aos direitos humanos básicos, como educação, saúde,<br />

lazer etc. É importante deixar claro que não é um<br />

lugar necessariamente isolado. Em muitas ci<strong>da</strong>des,<br />

há periferias nos <strong>centro</strong>s urbanos, que, em termos de<br />

localização, não estão em áreas periféricas.<br />

Que tipo de problema social a periferia representa?<br />

O principal deles – e que é comum em lugares periféricos<br />

– é, como disse, a precarie<strong>da</strong>de ao acesso a questões<br />

sociais, como saúde, emprego, espaços de lazer, educação.<br />

Isso é o mais latente. É importante lembrar que a periferia<br />

é o resultado de um amplo processo de desigual<strong>da</strong>de,<br />

essa é sua principal característica. Ela foi se formando ao<br />

longo dos anos no curso <strong>da</strong> urbanização <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des, que<br />

acabou empurrando as populações menos favoreci<strong>da</strong>s<br />

para as áreas mais afasta<strong>da</strong>s do <strong>centro</strong>, dificultando o<br />

acesso delas às melhores oportuni<strong>da</strong>des. Hoje, as periferias<br />

representam os maiores índices de violência e de<br />

criminali<strong>da</strong>de nas grandes ci<strong>da</strong>des. E esses índices não<br />

afetam somente as populações que vivem nessas periferias,<br />

mas sim todos os habitantes do mesmo município.<br />

As iniciativas que tentam integrar a periferia ao<br />

restante <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des geram resultados?<br />

Essas iniciativas têm surgido tanto de agentes externos<br />

(não moradores) que buscam atuar para transformar<br />

essas regiões periféricas quanto – e principalmente – <strong>da</strong><br />

própria periferia para os <strong>centro</strong>s, com diversas ações <strong>da</strong><br />

população que vive ali. Um exemplo são as manifestações<br />

artísticas que surgem na periferia e que acabam por dominar<br />

também o “<strong>centro</strong>”, como no caso do grafite, hoje<br />

presente em conceitua<strong>da</strong>s galerias de arte. E quando falo<br />

em acesso ao <strong>centro</strong> não digo apenas regionalmente,<br />

claro, mas ao <strong>centro</strong> <strong>da</strong> <strong>cultura</strong>, ao núcleo <strong>da</strong>s artes e<br />

32 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 33


do conhecimento. É preciso ressaltar, no entanto, que<br />

existem diferentes tipos de iniciativa. Algumas delas<br />

são muito pontuais e, por isso, não conseguem ter uma<br />

grande representativi<strong>da</strong>de no que diz respeito a uma<br />

ver<strong>da</strong>deira transformação social de integração <strong>da</strong> população<br />

periférica. Muitas não têm continui<strong>da</strong>de, o que é<br />

um problema. Outras preveem projetos de formação de<br />

pessoas <strong>da</strong> própria comuni<strong>da</strong>de que possam se tornar<br />

agentes de transformação e <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>de a essas<br />

dinâmicas dentro <strong>da</strong>s periferias. Essas são muito mais<br />

interessantes no sentido <strong>da</strong> integração.<br />

Qual a força <strong>da</strong> periferia em termos políticos? E no<br />

tocante à arte e à <strong>cultura</strong>?<br />

Os principais movimentos sociais – e, portanto, políticos<br />

– são reflexos de deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong> própria periferia, na<br />

organização <strong>da</strong> população em prol de um bem comum.<br />

Muitos vieram de setores periféricos e foram gestados<br />

nesses espaços de exclusão. Hoje, há um crescimento<br />

importante de ações que se utilizam <strong>da</strong> arte para propor<br />

uma reflexão sobre a condição <strong>da</strong>s pessoas que vivem<br />

nas periferias. Eles são, aliás, tão criativos e de propósito<br />

tão transformador que acabam escapando para os<br />

grandes <strong>centro</strong>s <strong>cultura</strong>is. Há uma efervescência <strong>cultura</strong>l<br />

nas favelas, como provam os saraus literários, os artistas<br />

musicais, a produção e a exibição audiovisual, as <strong>da</strong>nças<br />

que vão do street <strong>da</strong>nce ao afro. Enfim, são as iniciativas<br />

de reflexão sobre essa condição de ser periférico que<br />

estão tornando a periferia mais forte e influenciadora. O<br />

discurso que vemos nas letras de rap, de se orgulhar <strong>da</strong><br />

condição de ser periférico, é algo mais contemporâneo,<br />

e que vem se tornando mais forte hoje em dia.<br />

Como transformar o estigma de exclusão que paira<br />

sobre os moradores <strong>da</strong> periferia?<br />

Acho importante pensarmos, primeiro, na exclusão não como<br />

um estigma, mas como uma reali<strong>da</strong>de. Para transformar<br />

essa exclusão é necessário, antes de qualquer coisa, uma<br />

vontade política ampla. Ain<strong>da</strong> há, claro, imagens e rótulos<br />

estigmatizantes. Mas isso já está se transformando graças<br />

aos próprios moradores <strong>da</strong> periferia, dispostos a ser atores<br />

na transformação desse estigma de uma forma muito<br />

mais reflexiva, que nos aju<strong>da</strong> a questionar a visão que<br />

temos dessa população. Eles querem construir<br />

outra imagem <strong>da</strong> periferia e, para isso,<br />

buscam formas de se apresentar e<br />

se representar.<br />

RAQUEL ROLNIK<br />

Urbanista, é professora <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Arquitetura e<br />

Urbanismo <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo e relatora especial<br />

<strong>da</strong> Organização <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s para o direito<br />

à moradia adequa<strong>da</strong>. Foi diretora de Planejamento <strong>da</strong><br />

Ci<strong>da</strong>de de São Paulo (1989-1992) e coordenadora de<br />

urbanismo do Instituto Pólis.<br />

Para você, o que é periferia?<br />

O conceito de periferia foi forjado de uma leitura <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de surgi<strong>da</strong> de um desenvolvimento urbano que se<br />

deu a partir dos anos 1980. Esse modelo de desenvolvimento<br />

privou as faixas de menor ren<strong>da</strong> de condições<br />

básicas de urbani<strong>da</strong>de e de inserção efetiva à ci<strong>da</strong>de. Essa<br />

talvez seja sua principal característica, migra<strong>da</strong> de uma<br />

ideia geográfica, dos loteamentos distantes do <strong>centro</strong>.<br />

Mas é preciso lembrar que a periferia é marca<strong>da</strong> muito<br />

mais pela precarie<strong>da</strong>de e pela falta de assistência e de<br />

recursos do que pela localização. Hoje há condomínios<br />

de alta ren<strong>da</strong> em áreas periféricas que, claro, não podem<br />

ser considerados <strong>da</strong> mesma forma que seu entorno,<br />

assim como há periferias em áreas nobres <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Que tipo de problema social a periferia representa?<br />

O principal problema <strong>da</strong>s periferias hoje está na ambigui<strong>da</strong>de<br />

constitutiva entre a ci<strong>da</strong>de e seus assentamentos<br />

populares, principalmente de áreas irregulares e ilegais.<br />

Em primeiro lugar, na própria questão do pertencimento<br />

desses assentamentos à ci<strong>da</strong>de: eles fazem ou não parte <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de? A quem ela pertence? Apesar de estar no controle<br />

do aparato do Estado, há muitos lugares, como favelas<br />

urbaniza<strong>da</strong>s de grandes ci<strong>da</strong>des, em que as prefeituras<br />

não entram para fazer coleta de lixo ou manutenções<br />

(drenagem, limpeza de bueiros etc.), algo que é comum<br />

aos outros bairros. Essa questão é transcendente porque<br />

joga luz sobre muitos outros problemas <strong>da</strong>s periferias,<br />

como a crescente violência e o controle do tráfico de<br />

drogas. Um lugar em que reina a ambigui<strong>da</strong>de é uma<br />

“terra sem dono”, onde teoricamente qualquer pessoa<br />

ou grupo pode tomar para si o seu controle. É isso que<br />

acontece, por exemplo, com o próprio tráfico.<br />

As iniciativas que tentam integrar a periferia ao<br />

restante <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des geram resultados?<br />

Acho que grande parte <strong>da</strong>s iniciativas hoje são absolutamente<br />

fragmenta<strong>da</strong>s e pontuais, uma vez que não<br />

conseguem resolver a principal questão que paira sobre<br />

a periferia, que é romper o nosso modelo de desenvolvimento<br />

econômico. As iniciativas não conseguem parar a<br />

máquina de produção <strong>da</strong> exclusão. O salário do trabalhador<br />

formal do Brasil não consegue cobrir o custo de moradia,<br />

seja em aluguel, seja na casa própria. E isso não é para<br />

uma pequena parcela <strong>da</strong> população, mas para 60%, 70%<br />

dela. Ao mesmo tempo, as políticas e os investimentos<br />

valorizam a terra, aumentam ca<strong>da</strong> vez mais o seu valor.<br />

Nesse contexto, aos pobres resta morar onde? Por isso<br />

temos mais pessoas vivendo em áreas periféricas, sem<br />

acesso a recursos, e longe dos <strong>centro</strong>s <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des.<br />

“O estigma se dá quando a periferia é representa<strong>da</strong> e mostra<strong>da</strong><br />

pelo olhar de alguém que não vem de lá, que não vive<br />

lá, um olhar totalmente estrangeiro sobre aquela reali<strong>da</strong>de.”<br />

(Raquel Rolnik)<br />

Qual a força <strong>da</strong> periferia em termos políticos? E<br />

no tocante à arte e à <strong>cultura</strong>?<br />

Acredito que a força política <strong>da</strong> periferia foi captura<strong>da</strong><br />

pelo jogo político e eleitoral. O poder político ain<strong>da</strong><br />

está ali – afinal, a periferia é muito representativa na<br />

medi<strong>da</strong> em que faz parte de uma enorme parcela<br />

<strong>da</strong> população do país, eleitoralmente muito forte –,<br />

mas perdeu a força transformadora que tinha. Se está<br />

muito mais esvazia<strong>da</strong> em termos políticos, no entanto,<br />

também vejo a periferia muito mais forte na questão<br />

<strong>da</strong>s manifestações <strong>cultura</strong>is e artísticas. Muitos de seus<br />

movimentos artísticos ganharam uma expressão mais<br />

ampla do que seus próprios bairros. Eles quebraram as<br />

barreiras geográficas e se difundiram no restante <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de, em outras ci<strong>da</strong>des, em outros países. Por isso,<br />

acho que a força <strong>da</strong> periferia, hoje, está muito mais nas<br />

questões <strong>cultura</strong>is do que políticas.<br />

Como transformar o estigma de exclusão que paira<br />

sobre os moradores <strong>da</strong> periferia?<br />

Não se trata só de um estigma de exclusão, mas de uma<br />

exclusão que é real, e não imaginária. Acho difícil romper<br />

essa imagem quando os meios de comunicação, por<br />

exemplo, mostram apenas o lado negativo <strong>da</strong>s periferias,<br />

salvo raríssimas exceções. O estigma se dá quando ela é<br />

representa<strong>da</strong> e mostra<strong>da</strong> pelo olhar de alguém que não<br />

vem de lá, que não vive lá, enfim, de um olhar totalmente<br />

estrangeiro sobre aquela reali<strong>da</strong>de. Para minimizar<br />

essa imagem, é imprescindível <strong>da</strong>r voz também a<br />

outras questões, mostrar outras ver<strong>da</strong>des. Para<br />

isso, é necessário oferecer oportuni<strong>da</strong>des<br />

para que a periferia possa se mostrar<br />

<strong>da</strong> forma como gostaria.<br />

34 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 35


eportagem<br />

Melô <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de<br />

A música <strong>da</strong> periferia brasileira pode ser mais plural do que se imagina, mas<br />

é necessário chegar mais perto para ver. E ouvir.<br />

Por Augusto Paim | Fotos Ratão Diniz<br />

Chovia, e o chão estava cheio de lama. O fotógrafo Ratão Diniz pulava poças nas ruas <strong>da</strong> <strong>No</strong>va Holan<strong>da</strong>, uma<br />

<strong>da</strong>s favelas do Complexo <strong>da</strong> Maré, no Rio de Janeiro. De repente, escutou o som de um acordeão vindo de<br />

uma casa às escuras. Ele ficou imaginando a cena. Para <strong>da</strong>r sentido ao que pensava, teve a ideia de começar<br />

uma série de fotografias sobre músicos <strong>da</strong> favela. Escolheu o acordeão como motivo em comum <strong>da</strong>s imagens<br />

que iria produzir, porque “é um instrumento tradicional que foge do estereótipo <strong>da</strong>s favelas“, afirma.<br />

O primeiro fotografado é Joaquim Severino <strong>da</strong> Silva, de 79 anos. Seu Joaquim chegou à Maré no dia 10 de<br />

maio de 1948, vindo do vilarejo de Mamanguape, litoral <strong>da</strong> Paraíba. Aprendeu a tocar ain<strong>da</strong> criança, mexendo<br />

nos instrumentos no intervalo dos bailes. Foi só quando chegou ao Rio de Janeiro, no entanto, que começou<br />

a colecioná-los. Além do acordeão, ele tem um pandeiro, um violão, um violino, um cavaquinho e um triângulo.<br />

“Não é que eu saiba tocar“, diz, modesto, embora saiba tocar samba, baião, forró, bolero, samba-canção,<br />

valsa, músicas de sua juventude.<br />

E o que seu Joaquim pensa sobre as músicas <strong>da</strong> juventude de hoje? Ele acredita que, de certa forma, as<br />

mu<strong>da</strong>nças sociais ocorri<strong>da</strong>s nos últimos 60 anos acabam se refletindo na música <strong>da</strong> favela, que, para ele, “incentiva<br />

a violência“. Diz ain<strong>da</strong> que no tempo de Jorge Negão (traficante que comandou a Maré nas déca<strong>da</strong>s<br />

de 1970 e 1980, muito querido e lembrado pelos moradores) era diferente; ele incentivava Folia de Reis. “Os<br />

traficantes de hoje não. O malandro antigamente se vestia bem, era boa-pinta. O de hoje é bandido“, diz.<br />

O paraibano Joaquim Severino <strong>da</strong> Silva, morador do Complexo <strong>da</strong> Maré, no Rio de Janeiro<br />

Participe com suas ideias 37


Janela aberta<br />

“Quem disse que só tem rap e funk?” A pergunta é<br />

lança<strong>da</strong> por Manoel Soares, jornalista e coordenador<br />

<strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de gaúcha <strong>da</strong> Central Única <strong>da</strong>s Favelas (Cufa/<br />

RS). A sede fica no Morro Santa Tereza, em Porto Alegre,<br />

dentro <strong>da</strong> favela, na própria casa de Soares.<br />

Ele liga o alto-falante. O som de música clássica atravessa<br />

a janela e alcança as casas cola<strong>da</strong>s umas às outras. “Eles<br />

me contaminam, e eu contamino eles”, brinca Soares.<br />

É uma brincadeira, pois não se trata de “contaminar”,<br />

mas de “compartilhar”. O antropólogo Hermano Vianna<br />

recomen<strong>da</strong>: “Passeie por uma favela, domingo de tarde:<br />

janelas abertas, som alto, todo tipo de música bombando.<br />

Músicas muito diferentes umas <strong>da</strong>s outras, do gospel<br />

mais sagrado ao funk mais profano“.<br />

Soares cita o caso de uma vizinha, de 50 anos, aproxima<strong>da</strong>mente,<br />

catadora de garrafas PET, que costuma lhe<br />

pedir para pôr a trilha sonora de O Poderoso Chefão. A<br />

própria mãe de Soares é um exemplo curioso: Dona<br />

Ivanete é cantora de rap, mas “não fuma maconha,<br />

odeia palavrão e não gosta do ritmo”, descreve. De que<br />

jeito ela pode ser rapper, então? Pois dona Ivanete criou<br />

suas próprias letras e ritmos, que são um sucesso entre<br />

as outras mães <strong>da</strong> favela.<br />

Em abril, Afrika Bambaataa, pseudônimo de Kevin<br />

Donovan, norte-americano considerado o inventor<br />

do movimento hip-hop, esteve em turnê no Brasil e,<br />

a convite de Soares, subiu o morro Santa Tereza para<br />

conhecer a Cufa/RS. Bambaataa já tinha passado por<br />

outros estados brasileiros quando pôde observar como<br />

sua criação havia adquirido nuances regionais conforme<br />

a interação com a <strong>cultura</strong> local. “É como o feijão, que<br />

tem no Brasil inteiro. O feijão dos tropeiros gaúchos,<br />

porém, é diferente <strong>da</strong> feijoa<strong>da</strong> baiana”, compara.<br />

Com tanta diversi<strong>da</strong>de, é possível falar num elo entre<br />

as periferias brasileiras? Soares acredita que o rap e<br />

o hip-hop cumprem essa função porque são “autobiográficos”.<br />

Daí se explica também o porquê de as<br />

músicas muitas vezes versarem sobre violência, drogas<br />

e exclusão social. “A música na favela é o único registro<br />

confiável dos dias atuais. Fala sobre o que vai descer<br />

o asfalto <strong>da</strong>qui a alguns anos”, diz o jornalista, que<br />

completa: “O cantor de rap é um griô (contador de<br />

histórias na tradição oral dos quilombos) <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

moderna”. Soares lembra que Mano Brown e MV<br />

Bill já falavam, há mais de dez anos, sobre o<br />

crack, assunto que vem ganhando destaque<br />

na mídia somente hoje, porque<br />

não é mais um problema só<br />

<strong>da</strong> favela.<br />

“Passeie por uma favela, domingo de tarde: janelas abertas,<br />

som alto, todo tipo de música bombando. Músicas muito<br />

diferentes umas <strong>da</strong>s outras, do gospel mais sagrado ao funk<br />

mais profano.” (Hermano Vianna)<br />

Nas on<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Maré<br />

<strong>No</strong> Morro do Timbau, outra favela <strong>da</strong> Maré, há um bar.<br />

Um desses típicos de esquina que se pode encontrar<br />

em qualquer lugar do Brasil e onde se espera curtir uma<br />

ro<strong>da</strong> de samba ou pagode. Nisso, porém, o bar Zé Toré,<br />

de José Camilo <strong>da</strong> Silva Filho, de 54 anos, é diferente:<br />

ali o som <strong>da</strong> noite é o rock ’n‘ roll. Silva organiza shows<br />

no espaço desde 2000. Já chegou a juntar mais de<br />

300 pessoas no pequeno estabelecimento – o público<br />

precisou ocupar a rua. Lá tocam ban<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Maré,<br />

com música própria, mas também há covers de rock<br />

internacional e nacional dos anos 1980. O proprietário<br />

é enfático na definição do público: “Não curtimos funk<br />

nem rap. Aqui é o ponto do rock ‘n‘ roll”.<br />

Na Maré, há também adoradores de heavy metal. Tão<br />

adoradores que criaram um culto religioso na favela<br />

Baixa do Sapateiro: o Metanoia, surgido na déca<strong>da</strong> de<br />

1990 e hoje com cinco ban<strong>da</strong>s e 30 membros, aproxi-<br />

Diversi<strong>da</strong>de musical: ensaio de uma <strong>da</strong>s ban<strong>da</strong>s de heavy metal do culto religioso Metanoia<br />

ma<strong>da</strong>mente. Seu fun<strong>da</strong>dor é o pastor Enok Galvão – no<br />

passado, “uma espécie de líder de uma galera que se<br />

encontrava para beber e se drogar ao som de muita<br />

música pesa<strong>da</strong>“, como descrito na homepage do grupo<br />

(www.metanoiaunderground.com.br). O site também<br />

relata a conversão vivi<strong>da</strong> por ele, que passou a pregar<br />

a mensagem bíblica na pesa<strong>da</strong> noite carioca.<br />

Joab Careca é o codinome de Joab Pinto <strong>da</strong> Silva,<br />

membro do Metanoia, que comenta sobre a diversi<strong>da</strong>de<br />

musical na periferia: “Já vi grupos de blues, reggae,<br />

jongo, choro e alguns outros dentro <strong>da</strong> favela”. E há<br />

preconceito com o heavy metal? “Quando a vizinhança<br />

se acostuma com as camisas pretas debaixo do sol<br />

carioca de 40 graus, as caretas somem e tudo segue<br />

na maior harmonia”, diz ele.<br />

Como heavy metal e religião podem an<strong>da</strong>r juntos?<br />

Careca dá uma resposta que diz muito sobre o cenário<br />

musical <strong>da</strong> periferia brasileira: “O rock ‘n‘ roll na<br />

sua essência, ou na maioria <strong>da</strong>s suas vertentes, já é<br />

uma música utiliza<strong>da</strong> para protestar. Isso tem muita<br />

semelhança com os ensinamentos de Cristo,<br />

pois foi ele quem mais se levantou em to<strong>da</strong><br />

a história contra as injustiças cometi<strong>da</strong>s<br />

na socie<strong>da</strong>de em que vivia. Isto é<br />

cristianismo e isto também é<br />

rock ‘n‘ roll”.<br />

A periferia é o mundo<br />

A incursão no Complexo de Favelas <strong>da</strong> Maré e no Morro<br />

Santa Tereza serve para mostrar que é necessário ver –<br />

e ouvir – para crer. Crer na diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> favela. Um<br />

exemplo ain<strong>da</strong> a ser citado vem de Belém, no Pará.<br />

O tecnobrega é tão conhecido que Ronaldo Lemos,<br />

professor <strong>da</strong> Escola de Direito <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de Getulio<br />

Vargas, no Rio de Janeiro, listou-o num artigo publicado<br />

no site Overmundo como um dos exemplos do<br />

que ele chama de “música eletrônica globoperiférica”<br />

[overmundo.com.br/overblog/tudo-dominado-a-musica-eletronica-globoperiferica].<br />

O tecnobrega aparece<br />

ao lado do funk carioca, <strong>da</strong> champeta (Colômbia), do<br />

kuduro (Angola), do kwaito (África do Sul), <strong>da</strong> cumbia<br />

villera (Argentina), do bubblin (Suriname), do dubstep<br />

(Inglaterra) e do coupé decalé (França). Todos, segundo<br />

ele, são exemplos de músicas que surgiram na periferia,<br />

portanto, fora do circuito comercial de produção<br />

musical, e alcançaram o mundo.<br />

Talvez o que tenha ocorrido com esses ritmos seja apenas<br />

uma ressonância do que Preto Zezé, coordenador<br />

<strong>da</strong> Cufa no Ceará, diz: “O que se convenciona chamar<br />

música de favela é a música do mundo”.<br />

***<br />

Sobre o assunto, leia também: baixa<strong>cultura</strong>.org/2010/02/08/<br />

musica-periferica-global/.<br />

38 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 39


O bairro que nasceu de um cometa<br />

A vi<strong>da</strong> em Vargem Grande, comuni<strong>da</strong>de que habita um astroblema – cratera<br />

forma<strong>da</strong> pelo impacto de um corpo celeste – em plena periferia de São Paulo.<br />

Por Ronaldo Bressane | Fotos André Seiti<br />

reportagem<br />

Saci-Pererê tem 44 anos e usa uma gravata azul com listras cinzentas e pretas. <strong>No</strong> bolso esquerdo de sua<br />

impecável camisa branca, leva um papelzinho com uma relação de tarefas laboriosamente escritas em letras<br />

maiúsculas azuis. “É para não esquecer na<strong>da</strong>”, explica em suavizado sotaque carioca, os dentes muito brancos<br />

brilhando na cara muito escura. Como o Saci veio parar ali no cemitério de Colônia? Do alto de seu 1,80 metro,<br />

muito bem-posto sobre as duas pernas, ele coça de leve a cabeça de cabelos cortados bem rentes – não há<br />

mais a carapuça – e respira fundo: “Ih, rapaz, é uma longa história. Minha vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>ria um livro...”.<br />

Clima sobrenatural<br />

<strong>No</strong> começo dos anos 1990, Rinsberg vendeu a chácara<br />

à União <strong>da</strong>s Favelas do Grajaú (Unifag). Três mil famílias<br />

vin<strong>da</strong>s de bairros e favelas do sul paulistano compraram<br />

lotes de 250 metros quadrados para erguer sobrados<br />

na várzea. Vinte anos depois, vivem ali 45 mil pessoas –<br />

suficientes para lotar o Estádio do Pacaembu. Um povo<br />

orgulhoso de seu passado. “É comum esse sentimento<br />

de autoestima em comuni<strong>da</strong>des que construíram as<br />

próprias casas”, conta Marli Catucci, arte-educadora<br />

que trocou a vi<strong>da</strong> num bairro de classe média para ser<br />

é igreja: tem boteco que vira templo a ca<strong>da</strong> 15 dias,<br />

e vice-versa”, ri. Quatro supermercados, duas escolas,<br />

uma creche, um posto policial, uma lan-games, uma<br />

lan-house, nenhum semáforo e 32 ônibus, que servem<br />

a população <strong>da</strong>s 3h30 à meia-noite; às 5 <strong>da</strong> manhã os<br />

carros partem totalmente lotados. Somente uma quadra<br />

de esportes, zero cinema, zero <strong>centro</strong> <strong>cultura</strong>l – assim,<br />

jovens e crianças ficam zanzando de rua em rua; seus<br />

pais voltam lá pelas 9, 10 <strong>da</strong> noite. “Mas as tardes são<br />

tranquilas”, afirma o bicicleteiro Fernando Souza, que<br />

pe<strong>da</strong>lou para Vargem Grande atrás de sossego. Segundo<br />

os moradores, a criminali<strong>da</strong>de restringe-se a brigas<br />

Trata-se de um círculo de 3,6 quilômetros de diâmetro e<br />

bor<strong>da</strong>s de 150 a 250 metros de profundi<strong>da</strong>de, que pode ter<br />

sido formado pelo impacto de um asteroide, talvez meteoro,<br />

quem sabe cometa.<br />

São 5 <strong>da</strong> tarde de uma quarta-feira de outono e o sol se aconchega numa <strong>da</strong>s bor<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Cratera de Colônia,<br />

próxima ao cemitério onde trabalha o ilustre morador do bairro vizinho, Vargem Grande. Antes de contar<br />

como o Saci perambula pelo mais antigo campo-santo de São Paulo, mergulhemos em outro mistério. Pouca<br />

gente sabe, mas a periferia <strong>da</strong> quarta maior ci<strong>da</strong>de do planeta oculta um astroblema, cratera provoca<strong>da</strong> pela<br />

colisão de um corpo celeste. “O evento ocorreu entre 5 e 35 milhões de anos atrás”, calcula o geólogo Victor<br />

Velásquez, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, que estu<strong>da</strong> a cratera há cinco anos. Só em 1961 foi descoberta a<br />

depressão entre os distritos de Parelheiros e Engenheiro Marsilac, extremo sul <strong>da</strong> capital paulista, a 50 quilômetros<br />

do <strong>centro</strong>. Trata-se de um círculo de 3,6 quilômetros de diâmetro e bor<strong>da</strong>s de 150 a 250 metros de<br />

profundi<strong>da</strong>de, que pode ter sido formado pelo impacto de um asteroide, talvez meteoro, quem sabe cometa.<br />

Até então, a Cratera de Colônia escondia-se na chácara do alemão João Rinsberg. Seu único habitante era<br />

um índio proscrito pelos krucutus, uma <strong>da</strong>s duas aldeias guaranis que residem em Parelheiros. “O índio sumiu<br />

pouco depois que a gente veio para cá”, conta o bibliotecário Eduardo Francisco, postado entre os 18 mil<br />

volumes que guar<strong>da</strong> na biblioteca pública de Vargem Grande, bairro cercado pela Mata Atlântica.<br />

Vista panorâmica <strong>da</strong> Cratera de Colônia, no extremo sul <strong>da</strong> capital paulista<br />

professora na cratera. O outono chega forte na região<br />

de Parelheiros, que registra as mais baixas temperaturas<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Não raro, a cratera fica to<strong>da</strong> coberta<br />

pela neblina. Durante o dia tem mesmo um aspecto<br />

fantasma, uma vez que a maior parte dos residentes<br />

trabalha “em São Paulo”, como se referem aos bairros<br />

de fora do buraco, voltando só para dormir.<br />

Vargem Grande abriga cem igrejas evangélicas, dois<br />

templos católicos e um número inexato de terreiros<br />

de umban<strong>da</strong> – “atrás de to<strong>da</strong> igreja tem um<br />

terreiro”, diverte-se Marina Nunes, agente<br />

<strong>da</strong> Associação Comunitária Habitacional<br />

Vargem Grande (Achave).<br />

“Difícil saber o que<br />

de casal ou futebol; vários afirmaram não conhecer<br />

ninguém que tenha sido assaltado. “Se tem roubo, os<br />

próprios irmãos [do PCC] resolvem, não ficam esperando<br />

a polícia não”, segre<strong>da</strong> um morador. “Morte mesmo,<br />

só entre traficantes, disputa de boca de fumo e pó.” A<br />

política do “não sei, não vi, não conheço” impera: você<br />

não mexe comigo que eu não mexo contigo e beleza.<br />

A via principal é a Aveni<strong>da</strong> <strong>da</strong>s Palmeiras – embora<br />

não ostente nenhum coqueiro –, que é povoa<strong>da</strong><br />

por lojas de materiais de construção, lingerie<br />

e tudo-a-1-real e por lanchonetes como a<br />

Cinquentão, que vende deliciosas<br />

coxinhas a cinquenta centavos<br />

(R$ 16 o cento).


Facha<strong>da</strong>s de lojas na Aveni<strong>da</strong> <strong>da</strong>s Palmeiras, a principal <strong>da</strong> cratera<br />

tanto para<br />

o meio ambiente como<br />

para o ambiente do meio. A entra<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> penitenciária atulha-se de<br />

barracas que vendem comi<strong>da</strong>, cigarros e<br />

DVDs e alugam moletons e havaianas (vestimenta<br />

permiti<strong>da</strong> aos visitantes). O lixo é jogado<br />

na beira <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> do presídio, na mata e até nas<br />

bicas de água que descem do Vermelho.<br />

Vargem Grande vive a encruzilha<strong>da</strong> de sua história.<br />

Por ter crescido demais, o condomínio original está<br />

“congelado”, não pode mais abrigar construções – algo<br />

impossível de fiscalizar. O Conselho de Defesa do Patrimônio<br />

Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico,<br />

Condephaat, liga<strong>da</strong> ao Estado, tombou a cratera, o que<br />

dificulta a edificação de obras sociais. O bairro não está<br />

regularizado porque a escritura original permanece em<br />

poder <strong>da</strong> Unifag, desbravadora <strong>da</strong> área, cujo grupo foi<br />

substituído pelo <strong>da</strong> Achave. As trilhas mata adentro,<br />

que poderiam ser abertas ao turismo, estão “lacra<strong>da</strong>s”<br />

porque a cratera vive sob a Área de Proteção Ambiental<br />

Capivari-Monos, bacia que pode vir a abastecer São Paulo.<br />

Ain<strong>da</strong> assim, não falta interesse pelo local. A Universi<strong>da</strong>de<br />

Mackenzie presenteou a comuni<strong>da</strong>de com um plano<br />

urbanístico que prevê retirar as famílias que ocupam<br />

os lotes próximos a mananciais e córregos. Há projetos<br />

para um parque ecológico. “Tudo parado na prefeitura”,<br />

reclama a presidente <strong>da</strong> Achave, Marta de Jesus.<br />

Agora, sim, o Saci<br />

Se cientistas são visitas frequentes, há uma torci<strong>da</strong> para<br />

que a região seja descoberta pelo turismo ecológico. Afinal,<br />

o interior <strong>da</strong> cratera abriga uma turfeira a 450 metros<br />

de profundi<strong>da</strong>de – matéria orgânica em decomposição<br />

desde o surgimento do astroblema. “Esses sedimentos<br />

podem conter registros <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças climáticas dos<br />

últimos 4 milhões de anos”, afirma o geólogo Claudio<br />

Riccomini, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo. “Devido ao<br />

fato de ain<strong>da</strong> estar fecha<strong>da</strong> e isola<strong>da</strong> por suas bor<strong>da</strong>s,<br />

essa cratera é única.” Realmente: só existem mais seis<br />

Trata-se <strong>da</strong> “única rua do mundo que tem um rio”, conforme<br />

o bicicleteiro Souza. É que, quando chove, a água<br />

desce <strong>da</strong> bor<strong>da</strong> <strong>da</strong> cratera formando um córrego de<br />

águas cristalinas entre o calçamento e a curta calça<strong>da</strong>.<br />

“Uma vez vi uma senhora aí lavando um bife que havia<br />

pego no lixo trazido pela enxurra<strong>da</strong> para <strong>da</strong>r ao filho”,<br />

conta Marina. “Aquilo me deu um negócio... Corri e<br />

peguei uma cesta básica <strong>da</strong> Achave. Mas dei a ela como<br />

se fosse um presente meu. Se não no dia seguinte teria<br />

fila na porta <strong>da</strong> associação, e a gente não <strong>da</strong>ria conta.”<br />

Embora existam miseráveis – morando nos lotes ao<br />

final <strong>da</strong>s ruas, na porta <strong>da</strong> mata, onde às vezes se empilham<br />

16 pessoas na mesma casa –, o bairro é carente,<br />

porém, não pobre. Celular não pega e não existe ban<strong>da</strong><br />

larga, mas há casas com piscina, outras com lareira; há<br />

quem ven<strong>da</strong> lotes na Palmeiras por R$ 40 mil; e 60%<br />

têm carro. É difícil se perder aqui: to<strong>da</strong>s as 89 ruas são<br />

quadricula<strong>da</strong>s e numera<strong>da</strong>s – agora rebatiza<strong>da</strong>s com<br />

nome de pássaros, flores e animais. Além <strong>da</strong>s dezenas<br />

de botecos/igrejas, a Palmeiras acolhe a Pizzaria Cratera’s,<br />

cuja mo<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa é a Pizza <strong>da</strong> Tia: bacon, carne-seca,<br />

bacon, calabresa, bacon, mussarela, bacon, cebola – e<br />

bacon. A cozinheira Tia Ci<strong>da</strong> adora Vargem Grande. “Uma<br />

vez peguei um tiú na minha cama!”, entusiasma-se. A<br />

fauna do lugar exibe de veados a suçuaranas, passando<br />

por cascavéis, preguiças, tamanduás, lobos, capivaras,<br />

antas, joaninhas de cores exóticas, muitos macacos<br />

e, pasme o urbanoide, uma farta varie<strong>da</strong>de de tatusbolinha.<br />

Isso sem falar nas plantas raras.<br />

A irregular “Alphavella” não foi a primeira ocupação do<br />

astroblema, e sim o Centro de Detenção Provisória,<br />

que abriga 1.200 presos – num dia bom. Criado no<br />

governo Quércia, o presídio devastou enorme área<br />

na cratera, hoje uma faixa de mil metros quadrados<br />

de terra vermelha e escura, que jamais viu nascer<br />

árvore. A terra nomeia o principal curso d’água, o<br />

Ribeirão Vermelho, que recebe sem tratamento<br />

os dejetos <strong>da</strong> prisão. Vargem Grande, que só<br />

há um ano ganhou saneamento, assenta-se<br />

sobre mananciais: a água bebi<strong>da</strong> provém<br />

de quatro poços artesianos. O presídio<br />

representa perigo<br />

Rua próxima ao terminal de ônibus: muita lama em dias de chuva<br />

42 Continuum Itaú Cultural<br />

Participe com suas ideias 43


crateras do tipo no Brasil, 11 na América Latina e 170 no<br />

resto do mundo. Riccomini imagina que o impacto <strong>da</strong><br />

que<strong>da</strong> – dez bombas atômicas – tenha matado animais<br />

que viviam num raio de 50 quilômetros, assim como<br />

o choque de um asteroide no México abriu a cratera<br />

de Chicxulub, principal evidência de que o impacto<br />

de um corpo celeste teria provocado a extinção dos<br />

um exagerozinho, que a água degusta<strong>da</strong> em Vargem<br />

Grande tenha vindo do espaço.<br />

<strong>No</strong> mundo só existe outra cratera habita<strong>da</strong>: a ci<strong>da</strong>de<br />

medieval de Ries, Alemanha, que sobrevive <strong>da</strong> ren<strong>da</strong><br />

gera<strong>da</strong> pelo turismo. Esse é o sonho de muitos habitantes<br />

de Vargem Grande, comuni<strong>da</strong>de surgi<strong>da</strong>, por<br />

O punhal de gelo teria penetrado na terra, misturando-se<br />

aos lençóis freáticos – donde se deduz, talvez com um<br />

exagerozinho, que a água degusta<strong>da</strong> em Vargem Grande<br />

tenha vindo do espaço.<br />

dinossauros. Como não há vestígios desse astro,<br />

Riccomini crê que o impacto tenha sido causado<br />

por um cometa. “Por isso não deixou vestígios:<br />

como um punhal de gelo que se desfaz depois<br />

de um crime”, sugere. O punhal de gelo<br />

teria penetrado na terra, misturandose<br />

aos lençóis freáticos – donde<br />

se deduz, talvez com<br />

coincidência, ao lado de uma vila alemã – o bairro de<br />

Colônia. Logo após a Independência, dom Pedro I, comovido<br />

com os insistentes pedidos <strong>da</strong> esposa oficial,<br />

a imperatriz austríaca Maria Leopoldina, importou de<br />

Innsbruck 226 colonos para povoar a região entre Itapecerica,<br />

Santo Amaro e Parelheiros. Muitos se fixaram em<br />

Colônia, onde viviam do carvão e <strong>da</strong> salsicha, trocados<br />

com a “ci<strong>da</strong>de” por sacas de sal. Os alemães fun<strong>da</strong>ram<br />

André Luiz Barboza: o saci que virou administrador do cemitério particular mais antigo do Brasil<br />

Uma <strong>da</strong>s cem igrejas evangélicas do bairro<br />

o primeiro cemitério particular do Brasil, em 1827, e<br />

a igreja de Santo Expedito, em 1910. O campo-santo,<br />

a associação de cemitérios protestantes e a Oktoberfest<br />

– aqui, Colônia Fest – são tocados por André Luiz<br />

Barboza, um boa-praça ci<strong>da</strong>dão nascido na favela do<br />

Vidigal, Rio de Janeiro.<br />

“Fui o primeiro Saci do Sítio do Picapau Amarelo”,<br />

orgulha-se Barboza do passado de artista <strong>da</strong> Rede<br />

Globo. “Sempre fui metido a besta, queria ser artista...”, ri<br />

o magro diretor do cemitério. “Mas, depois <strong>da</strong> primeira<br />

tempora<strong>da</strong> do programa, em 1977, tive uns probleminhas.<br />

Minha carreira não deslanchou”, lamenta. “Mas<br />

beleza! Trabalhei para uma empresa que imprimia <strong>da</strong>tas<br />

de vali<strong>da</strong>de em produtos e que me mandou para São<br />

Paulo. Quando procurava lugar para morar, descobri o<br />

loteamento em Vargem Grande e comprei uma casa<br />

na Rua 1, número 50, hoje Rua dos Jatobás. Soube<br />

que precisavam de um funcionário no cemitério e me<br />

apresentei”, conta ele, hoje formado em administração<br />

e gestão ambiental e falante do alemão.<br />

Ao lado de Barboza, o paraibano Severino Carlos, vicepresidente<br />

<strong>da</strong> Achave, conta que vem se dissipando a<br />

antiga rivali<strong>da</strong>de entre colonenses e vargem-grandenses.<br />

Fermentam ideias de aproximar os bairros, mu<strong>da</strong>ndo o<br />

nome de Vargem Grande para Cratera de Colônia – o<br />

que uniria a tradição de um assentamento à força do<br />

outro. Se depender dos orgulhosos ocupantes dessa<br />

região <strong>da</strong> Mata Atlântica, pode ser que mu<strong>da</strong>nças<br />

ocorram em ritmo acelerado. Onde uma hora cai um<br />

corpo celeste, milhões de anos depois vivem 45 mil<br />

pessoas; em dois séculos, indígenas são trocados<br />

por paulistas, nordestinos, alemães; em 20 anos,<br />

um ator de TV se reinventa como diretor<br />

de cemitério. Em São Paulo, as histórias<br />

acontecem num rabo de<br />

cometa.<br />

44 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 45


Onde menos vira mais<br />

Da necessi<strong>da</strong>de surge a criativi<strong>da</strong>de: populações de baixa ren<strong>da</strong> fazem de<br />

suas práticas exemplos de sustentabili<strong>da</strong>de.<br />

Por Tatiana Diniz | Ilustração Lourival Cuquinha<br />

reportagem<br />

Déca<strong>da</strong> de 1950. A alfabetizadora de adultos Eunice Araújo crescia na periferia de Arcoverde, no agreste<br />

pernambucano. A casa em que morava era compartilha<strong>da</strong> por dois adultos e dez crianças. A comi<strong>da</strong> era<br />

compra<strong>da</strong> em quanti<strong>da</strong>de suficiente para passar a semana. Os vizinhos mantinham o hábito de trazer as<br />

sobras para alimentar os animais que a família criava no quintal: galinhas, cabras e porcos. <strong>No</strong>s canteiros,<br />

capim-cidreira, boldo e outras plantas medicinais eram cultiva<strong>da</strong>s; a ciência de como usá-las era transmiti<strong>da</strong><br />

dos mais velhos aos mais novos.<br />

Não havia água encana<strong>da</strong>, portanto to<strong>da</strong> a que era carrega<strong>da</strong> em latas tinha de ser reaproveita<strong>da</strong> ao máximo:<br />

“Recolhíamos a água do banho para molhar as plantas e a <strong>da</strong> lavagem de roupa era usa<strong>da</strong> como descarga”,<br />

lembra a educadora.<br />

Reciclar. Reutilizar. Reduzir. Como no exemplo de Eunice, por questão de necessi<strong>da</strong>de, as três premissas<br />

presentes na fórmula para um cotidiano mais sustentável são frequentemente pratica<strong>da</strong>s em contextos de<br />

menor poder aquisitivo. A lógica é simples: quanto menos se tem, menos se estraga e menos se compra. Em<br />

oposição à tendência consumista e ao desperdício característicos dos estratos sociais mais ricos, comuni<strong>da</strong>des<br />

de baixa ren<strong>da</strong> demonstram ter potencial para assimilar<br />

rápido iniciativas que significam custo menor e mais<br />

economia de recursos.<br />

Some-se a isso a reflexão de que sustentabili<strong>da</strong>de não<br />

é um conceito inédito, tampouco emergente exclusivamente<br />

de preocupações intelectuais. Na ver<strong>da</strong>de, a ideia<br />

por trás <strong>da</strong> palavra ba<strong>da</strong>la<strong>da</strong> se aproxima mais de não<br />

gastar do que de gastar muito; de ter menos do que ter<br />

demais e estragar; e de consertar o que se tem em vez<br />

de comprar algo novo. Para que o pouco que existe seja<br />

suficiente para todos, a postura é de contenção: comportamento<br />

que guiou (e guia) importantes períodos<br />

de recuperação <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, como o pós-guerra<br />

ou os momentos que seguiram catástrofes naturais.<br />

Reações periféricas<br />

Diversos projetos têm experimentado práticas inovadoras<br />

de sustentabili<strong>da</strong>de em áreas de baixo poder aquisitivo.<br />

Na esteira deles, inclusão social, valorização do conhecimento<br />

tradicional e profissionalização dos participantes<br />

são alguns dos benefícios. De moradias ecológicas a<br />

hortas orgânicas, passando por aquecimento de água<br />

utilizando energia solar e reciclagem de resíduos em<br />

sistemas de cooperativa, muitos são os exemplos de<br />

quanto menos pode significar mais.<br />

Há um ano, um projeto coordenado pela ONG 5 Elementos<br />

envolve dez famílias <strong>da</strong> região de Parelheiros (zona<br />

sul de São Paulo) na prática <strong>da</strong> agri<strong>cultura</strong> orgânica.<br />

Afastando-se <strong>da</strong> ideia de que “orgânico é coisa de rico”, a<br />

produção de alimentos livres de insumos e agrotóxicos<br />

é acolhi<strong>da</strong> pelos pequenos agricultores como um modo<br />

estratégico de gastar menos no processo produtivo.<br />

“Parelheiros é uma periferia em região de mata, o<br />

que significa uma experiência forte de ligação com a<br />

natureza. Essa ligação é fácil de ser ressignifica<strong>da</strong>. Há<br />

também uma memória coletiva <strong>da</strong> vivência de pais e<br />

avós com a agri<strong>cultura</strong>, que era orgânica. O resgate<br />

desses valores toca as pessoas e facilita seu<br />

envolvimento”, descreve Árpade Spalding,<br />

coordenador do projeto apoiado pela<br />

prefeitura de São Paulo em parceria<br />

com o Centro Paulus e a Associação<br />

Biodinâmica.<br />

Energia solar<br />

Na periferia de São Carlos (SP), um sistema de aquecimento<br />

solar de baixo custo desenvolvido pela Socie<strong>da</strong>de<br />

do Sol (empreendimento social baseado no Centro<br />

Incubador de Empresas Tecnológicas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

de São Paulo – Cietec) é ensinado a famílias de baixa<br />

ren<strong>da</strong> como alternativa para reduzir as despesas com<br />

o chuveiro elétrico.<br />

Feito com materiais baratos, muitos deles oriundos de<br />

reciclagem doméstica (garrafas PET são a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s e<br />

transforma<strong>da</strong>s em boias, por exemplo), o aquecedor<br />

conta com um método simples de montagem. “O<br />

manuseio é fácil e o conhecimento é apreendido<br />

rapi<strong>da</strong>mente pelas comuni<strong>da</strong>des. Essa cama<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

população tem muito interesse em qualquer forma de<br />

economia e entende rápido que energia solar é reduzir<br />

as despesas usando o sol”, afirma Samir Fagury, chefe <strong>da</strong><br />

divisão de obras <strong>da</strong> Prohab, empresa liga<strong>da</strong> à prefeitura<br />

de São Carlos e implementadora do programa, que já<br />

instalou o aquecimento solar de água em 370 casas.<br />

A tecnologia do Aquecedor Solar de Baixo Custo tem<br />

se multiplicado pelas periferias de Guarulhos (SP), Rio<br />

de Janeiro (RJ) e Belo Horizonte (MG), entre outras<br />

locali<strong>da</strong>des. Por trás dela está o idealismo de<br />

um grupo liderado pelo coordenador<br />

<strong>da</strong> iniciativa, Augustin T. Woelz,<br />

que dedicou dez anos<br />

46 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 47


É importante deixar claro que a escassez não pode<br />

ser defendi<strong>da</strong> como a solução para o fim <strong>da</strong>s práticas<br />

não sustentáveis, lembram os especialistas. Isso<br />

seria equivalente a considerar a desnutrição uma<br />

alternativa à obesi<strong>da</strong>de. Grande parte do mérito dos<br />

projetos aqui apresentados reside na habili<strong>da</strong>de de<br />

construir aprendizado a partir <strong>da</strong> situação de escassez<br />

e ressaltar a alternativa sustentável como opção<br />

consciente, processo igualmente válido nas cama<strong>da</strong>s<br />

sociais mais abasta<strong>da</strong>s.<br />

à pesquisa de materiais para a criação do sistema e fez<br />

questão de mantê-lo como tecnologia social, ou seja,<br />

sem patente fecha<strong>da</strong>. O resultado é uma rede que reúne<br />

de pedreiros a gerentes de construtoras, compartilhando<br />

experiências e contribuindo para o aperfeiçoamento<br />

<strong>da</strong> engenhoca ecologicamente correta.<br />

Em Tibagi (PR), além do sistema de água aqueci<strong>da</strong><br />

pelo sol, casas populares estão sendo ergui<strong>da</strong>s desde<br />

março deste ano com tijolos ecológicos fabricados<br />

pela própria comuni<strong>da</strong>de e telhas feitas com caixas<br />

recicla<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Tetra Pack. A iniciativa ganhou o nome<br />

de Ecomoradia e hoje envolve 20 associados<br />

na fabricação de tijolos que não precisam ser<br />

queimados: secam expostos ao ambiente<br />

ao longo de 20 dias. As primeiras quatro<br />

casas já foram construí<strong>da</strong>s e a meta é<br />

chegar a 300 em um período<br />

de três anos.<br />

Escassez não é solução<br />

A reciclagem é outro setor que encontra na periferia<br />

potenciais parceiros para o estabelecimento de iniciativas<br />

bem-sucedi<strong>da</strong>s. Vale lembrar que boa parte<br />

dos catadores, que desempenham função de extrema<br />

relevância no tratamento de resíduos no Brasil, é<br />

moradora dessas áreas. Em Goiânia, a Cooperativa de<br />

Reciclagem de Lixo (Cooprec) é um exemplo de como<br />

a ativi<strong>da</strong>de pode ser organiza<strong>da</strong> de forma eficiente.<br />

Uma <strong>da</strong>s células do Projeto Meia Ponte (criado pelo<br />

Instituto Dom Fernando e pela Socie<strong>da</strong>de Goiana de<br />

Cultura, em parceria com o Sebrae), a Cooprec se tornou<br />

pioneira na transformação de papel e papelão em telhas<br />

para galpão. A produção mensal chega a 14 mil uni<strong>da</strong>des.<br />

Além disso, sacos plásticos são transformados em 13<br />

tonela<strong>da</strong>s mensais de grânulo, matéria-prima vendi<strong>da</strong> a<br />

indústrias de fabricação de mangueiras e sacos para lixo.<br />

Para Pedro R. Jacobi, professor doutor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de<br />

Educação <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo e coordenador<br />

do Teia-USP (Laboratório de Educação e Ambiente),<br />

ain<strong>da</strong> há muitos desafios à implementação de práticas<br />

sustentáveis na periferia. O ciclismo, por exemplo, apesar<br />

de mais difundido nos bairros de baixa ren<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong><br />

deman<strong>da</strong> apoio e regulamentação para que possa ser<br />

praticado com segurança.<br />

Reciclar. Reutilizar. Reduzir. Por questão de necessi<strong>da</strong>de, as<br />

três premissas presentes na fórmula para um cotidiano mais<br />

sustentável são frequentemente pratica<strong>da</strong>s em contextos<br />

de menor poder aquisitivo.<br />

“Na periferia existe muito gato, que é água tira<strong>da</strong><br />

ilegalmente. Zonas pobres, no entanto, podem praticar<br />

a sustentabili<strong>da</strong>de plantando hortas orgânicas;<br />

fazendo coleta seletiva; organizando cooperativas<br />

de recicladores; criando hábitos de convívio nos espaços<br />

públicos e cui<strong>da</strong>ndo deles de forma coletiva;<br />

vendendo materiais encontrados no lixo para fazer<br />

melhoramentos no bairro ou promovendo oficinas<br />

<strong>cultura</strong>is sobre reciclagem e reaproveitamento de<br />

materiais descartados”, enumera Jacobi.<br />

Criar estratégias para aplicar esse potencial de assimilação<br />

em ações educativas que levem a escolhas conscientes<br />

pode ser o atalho para aproveitar bem as vivências<br />

sustentáveis nas comuni<strong>da</strong>des periféricas. “Numa<br />

socie<strong>da</strong>de de consumo de massa e com os meios de<br />

comunicação a serviço dessa socie<strong>da</strong>de, todos somos<br />

afetados permanentemente. Ca<strong>da</strong> nível socio<strong>cultura</strong>l<br />

precisa de<br />

uma linguagem diferencia<strong>da</strong><br />

e que leve em consideração<br />

o contexto na sua pirâmide<br />

de motivações”, conclui o professor doutor<br />

Arnoldo de Hoyos, presidente do Núcleo de<br />

Estudos do Futuro, <strong>da</strong> Pontifícia Universi<strong>da</strong>de<br />

Católica de São Paulo (NEF-PUC/SP).<br />

A semente está planta<strong>da</strong>. Meio século depois de<br />

seu tempo de menina, enquanto o mundo enfrenta<br />

uma revisão de valores e cresce o apelo pelo consumo<br />

consciente de água, a educadora Eunice Araújo<br />

resgatou <strong>da</strong>s memórias <strong>da</strong> infância a bacia de lavar<br />

louça e a reinstalou sob a torneira <strong>da</strong> cozinha, dessa<br />

vez num bairro de classe média. “Ca<strong>da</strong> prato lavado<br />

com a torneira aberta é pelo menos um litro que vai<br />

embora ralo abaixo. Sei que dá para desperdiçar muito<br />

menos”, ensina.<br />

48 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 49


eportagem<br />

Atos de uma vi<strong>da</strong> em construção<br />

Na Ci<strong>da</strong>de Tiradentes, a diversão vem na carona do forró e do samba.<br />

Por Pedro Henrique França | Fotos Patrícia Stavis<br />

Em 2003, o grupo de teatro Pombas Urbanas estava sentindo falta de suas raízes. Surgido em São Miguel<br />

Paulista, em 1989, e tendo migrado para o <strong>centro</strong> em 1998 e, depois, para a Barra Fun<strong>da</strong>, seus integrantes<br />

queriam retomar do seu ponto de parti<strong>da</strong>, a zona leste de São Paulo. Do contato com a Companhia<br />

Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab), surgiu, na Ci<strong>da</strong>de Tiradentes, um espaço de 1.600<br />

metros quadrados. Tratava-se de um galpão abandonado onde funcionava um supermercado. O edifício<br />

foi revitalizado pelo presidente do grupo, Marcelo Palmares, que, com sua equipe, se mudou literalmente<br />

de mala e cuia para a região. Ao chegar, a sensação de todos foi a de um bairro em desenvolvimento,<br />

cuja arte estava em construção. Assim batizaram o espaço de Centro Cultural Arte em Construção, e nele,<br />

além do teatro, passaram a oferecer à população do bairro, incluindo crianças e pessoas <strong>da</strong> terceira i<strong>da</strong>de,<br />

sessões de cinema, aulas de <strong>da</strong>nça e música, biblioteca, tele<strong>centro</strong> e outras ativi<strong>da</strong>des.<br />

Ato 1 – Prólogo<br />

A chega<strong>da</strong> do Pombas Urbanas de alguma forma acompanhou um novo momento <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de.<br />

“Mu<strong>da</strong>mos para cá até para entender as necessi<strong>da</strong>des que a comuni<strong>da</strong>de tinha. <strong>No</strong>sso eixo é o teatro, mas<br />

passamos a investir também em outras expressões artísticas”, diz Palmares, que atualmente conta com<br />

mais de 30 membros na equipe. “Acho que recuperamos a autoestima de muitas pessoas.” Suas palavras<br />

ganham sentido em vozes distintas. O lugar, conhecido como reduto de violência, e ain<strong>da</strong> hoje assim<br />

estigmatizado, parece querer esquecer um passado não muito distante para ir em busca de um futuro<br />

melhor. Seus habitantes brin<strong>da</strong>m a isso com diversão.<br />

A sensação de arte – e bairro – em construção persiste. Localizado a 35 quilômetros <strong>da</strong> Praça <strong>da</strong> Sé, marco<br />

zero <strong>da</strong> capital paulista, a Ci<strong>da</strong>de Tiradentes começou a se formar na déca<strong>da</strong> de 1980 e é aponta<strong>da</strong><br />

como um dos maiores complexos habitacionais <strong>da</strong> América Latina. Isso, porém, não destitui o clima de<br />

interior. Da receptivi<strong>da</strong>de acolhedora às ruas desertas num sábado à noite. Do circo que ilumina uma<br />

<strong>da</strong>s vias principais <strong>da</strong> região ao movimento de jovens nas praças. É muito comum passarem a noite ali,<br />

conversando, bebendo, vendo o sol se pôr (ou nascer) e a noite rolar. “A natureza sempre foi nosso principal<br />

meio de diversão”, afirma o músico Tiago Sena.<br />

Se a Ci<strong>da</strong>de Tiradentes fosse retrata<strong>da</strong> nos cinemas,<br />

teria histórias fragmenta<strong>da</strong>s que por algum motivo<br />

se interligariam, como nos longas de Alejandro<br />

González Iñárritu (Amores Brutos, 2000; 21 Gramas,<br />

2003; e Babel, 2006), ou no colorido sombrio de Tim<br />

Burton (Alice no País <strong>da</strong>s Maravilhas, 2010, e Edward<br />

Mãos de Tesoura, 1990), ou no regionalismo típico de<br />

Cacá Diegues, que, com Antônio Fagundes, afirmou<br />

que Deus É Brasileiro (2003). Acrescente-se a esse<br />

amálgama a técnica de Lars von Trier em Dogville<br />

(2003) e Manderlay (2005), que fundiu teatro e cinema<br />

para fazer pensar a reali<strong>da</strong>de.<br />

Cena 1: O esquenta<br />

Depois de passar a infância nas ruas jogando bola e<br />

pião ou empinando pipa, Sena agora se dedica integralmente<br />

à música. Vocalista <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> Regga<strong>da</strong> a<br />

Café, ele canta num forró de ten<strong>da</strong> improvisa<strong>da</strong>: “Se<br />

você é diferente, o nosso diferente tem um quê de<br />

semelhante”, ensina. Como ele, o colega de ban<strong>da</strong><br />

Charles Costa do Nascimento se entusiasma<br />

com o público de pouco mais de 50 forrozeiros<br />

numa noite fria de sábado, começo de<br />

outono. Morador no bairro desde os 10<br />

anos, Nascimento jogou muito<br />

futebol na escola e andou<br />

de bicicleta pelas ruelas de sobe e desce. Dedica-se<br />

à música, arte transmiti<strong>da</strong> pelo pai, há algum tempo.<br />

Deu aulas de violão, tocou em igreja e hoje faz fé na<br />

ban<strong>da</strong> para vencer um festival de música em Guarulhos.<br />

Para ele, a região está em constante evolução e,<br />

como outros moradores, crê na força <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de<br />

para fazê-la melhor.<br />

O relógio marca 10h30 <strong>da</strong> noite. E Michele Nunes Bonifácio<br />

chama atenção na pista de asfalto, improvisa<strong>da</strong><br />

em frente ao bar Gela Adega. É uma <strong>da</strong>s mais requisita<strong>da</strong>s<br />

para <strong>da</strong>nçar e raras vezes recusa um convite. Os<br />

pés são de bailarina profissional, sacrificados à <strong>da</strong>nça<br />

desde os 7 anos. Ela integra, desde os 13, o corpo de<br />

<strong>da</strong>nça de Ivaldo Bertazzo, com quem já se apresentou<br />

em Paris e Amsterdã. Na<strong>da</strong>, porém, deslumbrou a doce<br />

menina de 20 anos e cabelos cacheados. Ela, que até<br />

recentemente namorava o vocalista <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> – mas<br />

terminou “porque namorar músico é fogo” –, defende,<br />

aguerri<strong>da</strong>, o lugar em que nasceu e desmistifica a<br />

violência. A reclamar, só “a lonjura”. Diariamente, sai<br />

5 <strong>da</strong> manhã de casa e gasta duas horas e meia no<br />

transporte para <strong>da</strong>r aulas na região central <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

ou na zona sul, lugares onde repassa os ensinamentos<br />

do coreógrafo. É frequentadora assídua do forró<br />

aos sábados e, às vezes, comparece ao Delirius, às<br />

sextas. Mas também sai do habitat com os amigos<br />

de Pinheiros e Vila Ma<strong>da</strong>lena. E espera o metrô e o<br />

ônibus até 4h30 para regressar ao bairro.<br />

Pista de <strong>da</strong>nça improvisa<strong>da</strong> em frente ao bar Gela Adega<br />

50 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 51


A <strong>da</strong>nçarina Michele Nunes Bonifácio: apresentações em Paris e Amsterdã com o grupo de Ivaldo Bertazzo<br />

Angélica<br />

Christien Purcino também<br />

é profissional na <strong>da</strong>nça,<br />

como Michele. Aos 18 anos, faz companhia<br />

à amiga nas noita<strong>da</strong>s, mas lembra<br />

com nostalgia dos tempos em que brincava<br />

numa <strong>da</strong>s únicas pracinhas onde se concentravam<br />

as crianças de sua época. Acompanha<strong>da</strong> <strong>da</strong> mãe,<br />

frequentou muito os ensaios <strong>da</strong> escola de samba<br />

Príncipe Negro. A matriarca observava com zelo as<br />

brincadeiras na rua nos tempos em que a violência<br />

se fazia mais presente. “Hoje não pega mais na<strong>da</strong>.”<br />

A ban<strong>da</strong> faz um intervalo. Os donos do Gela Adega,<br />

Geraldo Luis Andrade Ferreira dos Santos e Denis <strong>da</strong><br />

Silva Moraes (conhecido na área como “Macaco”),<br />

estão preparados para fechar o local rigorosamente<br />

à 1 hora. A Lei do Psiu ali também se fez valer, a contragosto<br />

dos microempresários, já alertados com uma<br />

multa de R$ 27 mil em outubro passado – <strong>da</strong> qual<br />

recorreram com êxito, mas preferem não arriscar uma<br />

segun<strong>da</strong> vez. “Inventaram de acabar com os eventos<br />

a céu aberto”, reclama Ferreira dos Santos <strong>da</strong> gestão<br />

do prefeito Gilberto Kassab. Ali, à frente do bar, ele<br />

também promove ro<strong>da</strong>s de samba nos domingos à<br />

tarde. E lembra que, se no subúrbio carioca o funk é o<br />

carro-chefe, na periferia paulistana, no entanto, apesar<br />

de esse gênero musical ter seus fãs, “muita gente ain<strong>da</strong><br />

torce o nariz”. O samba é mais do povão mesmo.<br />

Se a Ci<strong>da</strong>de Tiradentes fosse retrata<strong>da</strong> nos cinemas, teria<br />

histórias fragmenta<strong>da</strong>s que por algum motivo se interligariam,<br />

como nos longas de Alejandro González Iñárritu,<br />

ou no colorido sombrio de Tim Burton, ou no regionalismo<br />

típico de Cacá Diegues.<br />

capaci<strong>da</strong>de máxima para 1.200 pessoas – com um<br />

show recente do grupo de samba Turma do Pagode.<br />

De sexta a domingo, quem esquenta o público é o<br />

samba, com shows ao vivo.<br />

Por volta <strong>da</strong> 0h10, pouco mais de cem pessoas circulam<br />

na pista, ao som de black music comercial.<br />

As mulheres se armam com saltos. E aquelas que se<br />

preveniram do frio logo aposentam os casacos para<br />

exibir os decotes. O visual afro predomina, mas há<br />

também quem faça o contraste com raízes louras. Nas<br />

regras <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de Tiradentes, quem está desimpedi<strong>da</strong><br />

pode circular à vontade. Ali, o machismo se baseia no<br />

compromisso: mulher acompanha<strong>da</strong> deve evitar cenas<br />

que possam sugerir ciúme. Cinthia, que se intimidou<br />

em <strong>da</strong>r o sobrenome, mas sambou a valer, confirma<br />

a tese. Michele, horas atrás no Gela Adega, sublinhou<br />

que a questão depende “do cara”. Para ela, “se ele for<br />

bandido, a menina é louca ao <strong>da</strong>r brecha”. Herbert<br />

Silva, de 21 anos, afirma que a pegação rola solta.<br />

“As mulheres são bem acessíveis.” Mas também<br />

ganha pontos quem tem dinheiro e oferece<br />

conforto – rapazes de Ecosport estão<br />

entre os favoritos.<br />

Por volta <strong>da</strong> 1h30, o pa-<br />

A jovem Cinthia: regras de conduta na bala<strong>da</strong> revelam certo machismo<br />

gode ecoa no palco com a ban<strong>da</strong> que leva o nome <strong>da</strong><br />

casa. Canções que falam de amor e traição são as mais<br />

executa<strong>da</strong>s. Já é espírito de bala<strong>da</strong> em Tiradentes. Mas<br />

há espaço para reivindicações: uma casa é pouco para<br />

o bairro. Para o jovem Maurício, que também não quis<br />

informar seu sobrenome, “Tatuapé é metade <strong>da</strong>qui e tem<br />

muito mais opções”. É dele que surge outra manifestação:<br />

o preconceito aos brancos, minoria na área: “Os negão<br />

parceiro me discriminam, moleque. Falam ‘mano, você<br />

tem que morar na zona sul’ ”. Se de alguma forma é<br />

hostilizado, ele, porém, não cogita sair <strong>da</strong>li. “Eu gosto<br />

<strong>da</strong>qui, pela união do povo, moleque.”<br />

Epílogo<br />

<strong>No</strong> auge <strong>da</strong> noite, por volta <strong>da</strong>s 3 horas, o som nas caixas<br />

traduz variações sobre o mesmo tema – e batuque. Os<br />

ânimos estão turbinados com caipirinha e cerveja. Elas<br />

abusam <strong>da</strong> sensuali<strong>da</strong>de; exaltam as curvas no gingado<br />

sobre os saltos. Eles, em sua maioria, observam, quase<br />

tímidos; rodeiam-nas como abelhas enfeitiça<strong>da</strong>s por<br />

um pote de mel. São reis em busca de suas rainhas<br />

numa noite <strong>da</strong> periferia.<br />

Ela, que dá aulas no CEU Água Azul, admira o Pombas<br />

Urbanas e as iniciativas <strong>cultura</strong>is. “São ações que<br />

abrem os horizontes <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de.”<br />

Cena 2: Holofotes<br />

O relógio beira a meia-noite. Na porta do ex-Levitus,<br />

atual Delirius (desde setembro do ano passado), o<br />

movimento ain<strong>da</strong> é fraco. Dênis Serafim, um dos donos,<br />

recebe a reportagem. “Você sabe, to<strong>da</strong> casa tem<br />

uns caras errados.” Passa<strong>da</strong> a desconfiança, conta que<br />

adquiriu o negócio com mais dois sócios para fazêlo<br />

an<strong>da</strong>r. Mas, por enquanto, só lotou a pista – com<br />

52 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 53


O periférico está no <strong>centro</strong><br />

balaio<br />

Livros, filmes, discos e site que colocam a periferia no alvo <strong>da</strong>s atenções.<br />

Por André Seiti | Consultoria Marcel Nanni Fracassi<br />

MÚSICA<br />

Formigando na Calça<strong>da</strong> do Brasil, de Coletivo Rádio<br />

Cipó (Tratore, 2008)<br />

O encontro do periférico com o central: é mais ou<br />

menos assim que se pode definir a sonori<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong><br />

pelo Coletivo Rádio Cipó. Gêneros que se tornaram<br />

universais (rock, rap, dub e reggae) são misturados a<br />

ritmos regionais (funk de morro, samba e carimbó).<br />

Produzido em parceria com moradores de comuni<strong>da</strong>des<br />

periféricas, o álbum conta com composições de<br />

músicos tradicionais, como Mestre Laurentino, Dona<br />

Onete e Mestre Bereco.<br />

fotografia<br />

Uma Outra Ci<strong>da</strong>de, de Iatã Cannabrava (Terceiro<br />

<strong>No</strong>me, 2009)<br />

As periferias de ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> América Latina, como<br />

São Paulo, Lima, Caracas, La Paz, Buenos Aires,<br />

Montevidéu e Belém, são retrata<strong>da</strong>s pelo fotógrafo<br />

brasileiro Iatã Cannabrava. As imagens foram feitas<br />

entre 2000 e 2009 e não se limitam a mostrar<br />

apenas as (mais que conheci<strong>da</strong>s) condições de<br />

pobreza desses lugares.<br />

LITERATURA<br />

Rastilho <strong>da</strong> Pólvora, vários artistas (Cooperifa, 2004)<br />

Os saraus realizados em um bar <strong>da</strong> zona sul de São<br />

Paulo e promovidos pela Cooperativa Cultural <strong>da</strong><br />

Periferia (Cooperifa) são uma ocasião propícia para<br />

apresentar a produção artística e <strong>cultura</strong>l “escondi<strong>da</strong>”<br />

nas margens do <strong>centro</strong> urbano. Resultado desses<br />

encontros, esta coletânea traz poemas feitos por 43<br />

escritores amadores.<br />

Punk: Anarquia Planetária e a Cena Brasileira, de<br />

Silvio Essinger (Editora 34, 1999)<br />

O livro acompanha a trajetória do movimento surgido<br />

na periferia de Londres, na déca<strong>da</strong> de 1970, até sua<br />

chega<strong>da</strong> ao Brasil. De uma forma leve, sem cair na<br />

tentação do academicismo, o autor examina como<br />

o punk foi recebido no país, suas fases e as ban<strong>da</strong>s<br />

de destaque.<br />

cinema<br />

Site<br />

Nascidos em Bordéis, de Zana Briski (Focus Filmes,<br />

2004)<br />

A intenção inicial <strong>da</strong> inglesa Zana Briski era fotografar<br />

prostitutas do bairro mais pobre de Calcutá. Mas,<br />

durante sua convivência no bairro <strong>da</strong> Luz Vermelha<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de indiana, encontrou nos filhos e filhas dessas<br />

mulheres as histórias que sustentariam a produção –<br />

que lhe rendeu o Oscar de melhor documentário,<br />

em 2005. A diretora colocou na mão <strong>da</strong>s crianças<br />

câmeras fotográficas para registrar tudo o que<br />

chamasse atenção. O resultado é surpreendente.<br />

Da Rua ao Palco: O Balé de Uberlândia, de Zezo<br />

Cintra (Rede SescSenac de Televisão, 2008)<br />

Documentário traz a história e a <strong>da</strong>nça do Balé de<br />

Rua de Uberlândia, em Minas Gerais. A produção<br />

mostra como o grupo incorpora ritmos populares,<br />

a exemplo do funk, em sua coreografia, além de<br />

apresentar o projeto social desenvolvido pela<br />

companhia, voltado a idosos e jovens carentes.<br />

Formou o Bonde, de João Alegria (Canal Imaginário,<br />

1994)<br />

Pegando carona na on<strong>da</strong> do funk, este documentário<br />

trata de forma bem-humora<strong>da</strong> de assuntos ligados<br />

ao comportamento sexual dos jovens <strong>da</strong> periferia<br />

carioca. Repleto de depoimentos de moradores de<br />

Vigário Geral, no Rio de Janeiro, o vídeo toma como<br />

base as expressões curiosas utiliza<strong>da</strong>s nas músicas<br />

do gênero, como a do título dessa produção, usa<strong>da</strong><br />

quando um casal “fica”.<br />

Kinoforum (kinoforum.org)<br />

<strong>No</strong> site <strong>da</strong> Associação Cultural Kinoforum, enti<strong>da</strong>de que<br />

promove ativi<strong>da</strong>des audiovisuais, é possível assistir gratuitamente<br />

a centenas de produções que abor<strong>da</strong>m os<br />

mais variados temas. Os vídeos, realizados por moradores<br />

de comuni<strong>da</strong>des carentes, após oficinas, retratam, por<br />

meio de documentário ou ficção (ou uma mescla de<br />

ambos), histórias do cotidiano <strong>da</strong>s periferias paulistas.<br />

54 Continuum Itaú Cultural<br />

Participe com suas ideias 55


O McFavela <strong>da</strong> diretoria<br />

deadline<br />

Antes <strong>da</strong> falência, uma lanchonete serviu de espaço tanto para a inclusão<br />

social quanto para a contestação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

Por Eduardo Lyra | Ilustração Clayton Cassiano<br />

As portas de aço baixa<strong>da</strong>s e tranca<strong>da</strong>s representam o fim de um começo inacabado. A superfície <strong>da</strong>s letras<br />

do outdoor na entra<strong>da</strong> encoberta de poeira retrata o abandono. A ausência dos 12 jogos de cadeiras enverniza<strong>da</strong>s<br />

que outrora ocupavam a calça<strong>da</strong> indica o desaparecimento de mais um espaço de convivência <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong>de União de Vila <strong>No</strong>va, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo.<br />

O passado, porém, nem de longe sugeria falência. A cena vista numa sexta-feira do mês de fevereiro de<br />

2010 mostra o oposto: eram 21 horas e a noite convi<strong>da</strong>va para um happy hour. Dentro do estabelecimento<br />

dezenas de famílias se deliciavam com os lanches, sob 12 lâmpa<strong>da</strong>s presas ao teto, que, além de iluminar o<br />

ambiente, realçavam o amarelo-ouro <strong>da</strong>s paredes que imitam o McDonald’s. Do lado de fora, um grupo de<br />

pagode tocava para mais de 200 pessoas que se aglomeravam <strong>da</strong>nçando e cantando.<br />

Há quatro anos, o McFavela vinha sendo o ponto de encontro preferido do bairro. A lanchonete parecia mais<br />

uma forma de inclusão social do que um comércio motivado pelo lucro. O acúmulo de pessoas em frente<br />

ao número 225 <strong>da</strong> Rua Catleia impedia a passagem dos ônibus que fazem a linha Jardim Pantanal, como é<br />

conheci<strong>da</strong> a locali<strong>da</strong>de. Eles eram obrigados a mu<strong>da</strong>r o itinerário nos fins de semana, porém o faziam sem<br />

problemas, pois a festa era regi<strong>da</strong> pela batuta <strong>da</strong> paz, espírito que contagiava a todos no entorno.<br />

Enquanto o pagode rolava solto na rua, dentro <strong>da</strong> lanchonete os pedidos fervilhavam no balcão de João<br />

Carlos Mergulhão. Os funcionários, com salário de R$ 650 ca<strong>da</strong> um, corriam para não deixar ninguém chateado<br />

com a espera. Antes que um cliente fosse atendido, outro esbravejava: “Me vê logo aí um McLarica que<br />

eu estou com a maior fome”.<br />

O McLarica era o lanche mais procurado. O preço baixo e a varie<strong>da</strong>de de ingredientes entre as ban<strong>da</strong>s do pão<br />

ganharam fama, fazendo-o cair na graça <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. O nome foi cunhado com clara intenção subversiva.<br />

Foi a opção pelo hilário nos trilhos <strong>da</strong> contestação social. Ao falar <strong>da</strong> lanchonete, o proprietário filosofa: “O<br />

McFavela foi adotado pela comuni<strong>da</strong>de como forma de vivenciar os mesmos prazeres <strong>da</strong> classe média, porém<br />

sem abrir mão <strong>da</strong> sua reali<strong>da</strong>de e de seus valores”.<br />

Contra a burguesia<br />

gritar contra<br />

o sistema. Na porta do<br />

estabelecimento ain<strong>da</strong> se lê: “Em<br />

prol <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Fé em Deus”. Tudo na<br />

loja parecia contestar a estrutura de classes, e<br />

os frequentadores não deixavam por menos. Do<br />

lado de fora há uma pichação com letras garrafais:<br />

“O McFavela é contra a burguesia que despreza nós,<br />

que somos <strong>da</strong> periferia”.<br />

Mergulhão se apressava para servir o lanche, enquanto<br />

algum cliente faminto sempre gritava: “Me man<strong>da</strong> 1<br />

McFavela, 1 McPicanha e 1 McLanche Infeliz, para o<br />

meu filho”. Talvez inconscientemente, o empreendedor,<br />

que ousou desafiar a multinacional, promovia uma<br />

interessante interseção de mundos. Sob os arcos do M<br />

plagiado, pessoas compartilhavam histórias, relatavam<br />

experiências e manifestavam dores, enquanto a cama<strong>da</strong><br />

de queijo derretia na quentura <strong>da</strong> chapa.<br />

O telefone tocava. A atendente anotava o pedido, a<br />

equipe aprontava e Mergulhão chamava o “gerente”<br />

para a entrega. O sistema delivery do McFavela dependia<br />

de bicicletas. Quatro funcionários se apressavam<br />

nas pe<strong>da</strong>la<strong>da</strong>s para que o lanche não esfriasse na<br />

garupa, evitando a irritação do cliente. Ca<strong>da</strong> entrega<br />

rendia R$ 2 ao entregador, preço <strong>da</strong> habili<strong>da</strong>de para<br />

desviar de buracos quase invisíveis sob a má iluminação<br />

<strong>da</strong>s ruas. Determinados, eles <strong>da</strong>vam frea<strong>da</strong>s bruscas<br />

e arranca<strong>da</strong>s fortes sem perder a direção e o prumo.<br />

Em poucos minutos estavam de volta. Suados, mas<br />

prontos para mais uma incursão ao coração <strong>da</strong> favela.<br />

Mergulhão chama isso de integração social e geração<br />

de ren<strong>da</strong>. Ele conta que Silmar, um dos “gerentes,” vivia<br />

pedindo lanche na porta <strong>da</strong> loja. Um dia teve a ideia de<br />

oferecer uma oportuni<strong>da</strong>de às crianças que queriam<br />

comer, mas não tinham nem os R$ 2 necessários.<br />

uma eloquente afirmação de que a comuni<strong>da</strong>de não<br />

tem vergonha de onde mora. O McPicanha mostrava<br />

descontração diante <strong>da</strong> adversi<strong>da</strong>de, pois as pessoas<br />

do bairro acreditam que a picanha é carne para rico. O<br />

McLanche Infeliz, diferentemente do congênere rico,<br />

não vem com brinquedo. O cardápio esclarece: “Aqui<br />

nós tomamos o brinquedo <strong>da</strong> sua criança”. Mergulhão<br />

explica: “É uma aberração pagar R$ 12 por um brinquedinho<br />

fajuto, fabricado na China. Aqui era diferente:<br />

a criança comia e depois se divertia com as outras”.<br />

Sob os arcos do M plagiado, pessoas compartilhavam histórias,<br />

relatavam experiências e manifestavam dores, enquanto a<br />

cama<strong>da</strong> de queijo derretia na quentura <strong>da</strong> chapa.<br />

Porta baixa<strong>da</strong><br />

A iniciativa de Mergulhão não passou despercebi<strong>da</strong><br />

ao McDonald’s, que o notificou exigindo que o M do<br />

outdoor e dos cardápios fosse retirado. Caso contrário,<br />

a rede multinacional moveria uma ação contra o<br />

estabelecimento. A ameaça não encontrou tempo<br />

para se tornar reali<strong>da</strong>de, pois antes disso a porta de<br />

aço foi baixa<strong>da</strong>, não pela Justiça, mas em decorrência<br />

de problemas de administração. <strong>No</strong> momento, o<br />

empreendedor tenta conseguir capital para reabrir<br />

o negócio. Na periferia, sempre há uma maneira de<br />

recomeçar uma história inacaba<strong>da</strong>.<br />

Localizado em frente a um córrego, o McFavela enfrentou duas enchentes, mas nem mesmo a invasão <strong>da</strong>s águas<br />

perturbou o dono. Mergulhão diz que a lanchonete não foi cria<strong>da</strong> apenas para existir, mas principalmente para<br />

Nas coman<strong>da</strong>s iam anotados os pedidos com nomes<br />

que revelam a ideologia do lugar. O McFavela era<br />

Eduardo Lyra é estu<strong>da</strong>nte do curso de jornalismo <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de Mogi <strong>da</strong>s Cruzes.<br />

56 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 57


ficção<br />

O pecado mortal de Maria<br />

O que fazer para o povo acreditar que era uma pecadora de fato?<br />

Por Paulo Lins | Ilustração Karina Buhr<br />

<strong>No</strong> dia trinta e um de dezembro de dois mil e nove, Maria, católica fervorosa, resolveu mu<strong>da</strong>r de vi<strong>da</strong>: iria se<br />

tornar pecadora. Os velhos e os novos pecados <strong>da</strong> igreja católica, <strong>da</strong> umban<strong>da</strong>, do candomblé e <strong>da</strong> religião<br />

evangélica nunca foram cometidos em seus sessenta e oito anos de vi<strong>da</strong>. E sempre procurou saber quais<br />

eram os <strong>da</strong>s principais religiões orientais para se manter pura nesta vi<strong>da</strong> tão atribula<strong>da</strong> que Deus lhe deu.<br />

Foi forte quando abandona<strong>da</strong> pelo marido com os cinco filhos pequenos, na crise mundial de mil novecentos<br />

e oitenta e três. Os mais chegados diziam que ela iria, pelo menos, blasfemar. Manteve, no entanto, a cabeça<br />

ergui<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> fome, do despejo de casa e <strong>da</strong> doença do caçula. Quando todos pensavam que ela iria cair<br />

na gula assim que a vi<strong>da</strong> melhorasse, consumiu apenas o suficiente para se manter em condições de trabalhar<br />

o dia todo na função de diarista e cumprir os afazeres domésticos de sua própria casa.<br />

Na enchente de mil novecentos e sessenta e seis, ao perder os móveis e a geladeira e ver o filho ser arrastado<br />

pela correnteza e sumir num bueiro, não derramou uma lágrima. Disse que a morte do menino foi vontade<br />

de Deus e sendo ele quem dá a vi<strong>da</strong> só ele sabe a hora de tirá-la.<br />

Ao flagrar o marido, na cama do casal, em profundo sexo com sua única irmã, perguntou somente se um<br />

nutria amor pelo outro. Os dois responderam que não.<br />

– Sendo assim, que isso não mais se repita! – disse. E, <strong>da</strong>li para a frente, agiu como se na<strong>da</strong> tivesse acontecido,<br />

sem mágoa nem ressentimento.<br />

Não pecou nem mesmo quando contraiu dengue e não conseguiu vaga para se tratar nos hospitais públicos<br />

de sua ci<strong>da</strong>de.<br />

Mesmo nas tensões pré-menstruais, de nove dias, mantinha-se serena, incapaz de levantar a voz em qualquer<br />

situação que vivenciasse.<br />

Quando criança, num rico colégio católico, quase cometeu um deslize ante a fúria disfarça<strong>da</strong> em brincadeiras<br />

inocentes: os colegas faziam chacotas de sua cor, de seu corpo gordo e de sua roupa pobre. Estu<strong>da</strong>va ali<br />

porque fora contempla<strong>da</strong>, num sorteio, com uma bolsa. Logo, no entanto, abandonou os estudos por repetir<br />

várias vezes a terceira série – decorrência <strong>da</strong> péssima alimentação que recebia e do fato de ter de vender<br />

balas nos sinais de trânsito para aju<strong>da</strong>r a família.<br />

Os mais chegados diziam que ela iria, pelo menos, blasfemar.<br />

Manteve, no entanto, a cabeça ergui<strong>da</strong> diante <strong>da</strong><br />

fome, do despejo de casa e <strong>da</strong> doença do caçula. Quando<br />

todos pensavam que ela iria cair na gula assim que a vi<strong>da</strong><br />

melhorasse, consumiu apenas o suficiente para se manter<br />

em condições de trabalhar.<br />

Não pensem que fazia esforços para levar a vi<strong>da</strong> sem<br />

pecar. Ela agia naturalmente, sem muito trabalho para<br />

não cometer esse ou aquele erro. Foi assim até agora,<br />

mesmo diante de to<strong>da</strong> discriminação que sofreu e sofre<br />

por ser mulher negra, favela<strong>da</strong>, gor<strong>da</strong> e de pouca instrução.<br />

O fato de não pecar nem mesmo era percebido pelos<br />

familiares e amigos. Maria era vista somente como<br />

uma pessoa boa, equilibra<strong>da</strong> e generosa. Só descobriram<br />

que não era pecadora quando o padre<br />

Mário Barata, recém-ordenado e designado<br />

para a paróquia <strong>da</strong> favela havia pouco mais<br />

de um ano, revelou durante a missa que<br />

nas confissões de Maria não havia<br />

pecado a ser denunciado.<br />

58 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 59


Logo na saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> igreja, Maria foi cerca<strong>da</strong> por homens,<br />

mulheres e crianças com os quais não tinha relação de<br />

amizade. As pessoas se ajoelhavam à sua frente, beijavam<br />

suas mãos, pediam conselhos. Curiosos se aproximavam<br />

numa aglomeração que tomou proporções gigantes<br />

atraindo a atenção de policiais que passavam em ron<strong>da</strong>.<br />

Sem saber o que estava acontecendo, atiraram como de<br />

costume, nos últimos tempos, matando duas crianças.<br />

Maria se sentiu responsável pelas duas mortes. Ficou<br />

revolta<strong>da</strong> com o governador, que afirmou, na televisão,<br />

terem os disparos partido <strong>da</strong>s armas de bandidos que<br />

atacaram a viatura, ocasionando uma troca de tiros com<br />

os sol<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> polícia militar. Maria o perdoou, porém,<br />

como os demais moradores, deu a versão correta à<br />

imprensa. Fizeram manifestação pacífica na entra<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> favela. Mas não deu em na<strong>da</strong>, pois a polícia<br />

prendeu um pseudotraficante, dias depois,<br />

dizendo que ele havia confessado a autoria<br />

dos disparos e apresentado<br />

a arma que teria usado.<br />

O tempo foi seguindo em desassossego para Maria<br />

depois que caiu nas garras dos paparazzi e ganhou<br />

destaque na impressa como a mais nova santa brasileira<br />

capaz de efetuar milagres.<br />

A notícia de que havia uma santa numa favela brasileira<br />

correu pelo planeta. Centenas de pessoas, de<br />

to<strong>da</strong>s as partes do mundo, faziam vigília na porta de<br />

sua casa, a despeito de o padre afirmar todos os dias<br />

na missa – ordenado pela cúpula <strong>da</strong> igreja católica<br />

carioca – que Maria cometera pecados de fato e que<br />

tudo não passara de um engano. <strong>No</strong> entanto, durante<br />

as vinte e quatro horas dos dias, doentes de to<strong>da</strong><br />

sorte, cegos, paraplégicos, surdos, mudos apareciam<br />

na esperança de alcançar uma graça <strong>da</strong> Santa Maria<br />

<strong>da</strong> favela do Urubu Branco.<br />

Maria teve de sair de casa e esconder-se numa ínfima<br />

ci<strong>da</strong>dezinha no interior do estado do Rio de Janeiro.<br />

Lá teve alguns dias de paz, mas logo foi descoberta,<br />

e a pequena São Jackson foi invadi<strong>da</strong> por romeiros de<br />

todo o mundo.<br />

Durante as vinte e quatro horas dos dias, doentes de to<strong>da</strong><br />

sorte, cegos, paraplégicos, surdos, mudos apareciam na<br />

esperança de alcançar uma graça <strong>da</strong> Santa Maria <strong>da</strong> favela<br />

do Urubu Branco.<br />

Os milagres começaram a aparecer. Não que ela tivesse<br />

esse poder, mas alguns gaiatos, em troca <strong>da</strong> fama instantânea<br />

na televisão e nos jornais, se diziam curados<br />

desse ou <strong>da</strong>quele mal só por tocarem em alguma parte<br />

do corpo ou <strong>da</strong> roupa de Maria.<br />

Sair do Brasil. Essa foi a melhor opção que amigos e<br />

parentes lhe deram. Mas... ir para onde? Com quais<br />

recursos? Como se manter fora do país?<br />

Todo brasileiro tem parentes em Portugal. E assim aconteceu,<br />

tiraram passaporte e lá se foi ela, escondi<strong>da</strong> de<br />

todos, para a terrinha. Amigos e parentes lhe man<strong>da</strong>riam<br />

dinheiro até a poeira abaixar.<br />

<strong>No</strong> avião, foi reconheci<strong>da</strong> por alguns passageiros e teve<br />

de distribuir autógrafos, tirar fotos, falar por que nunca<br />

tinha pecado. Dava explicações sem muita certeza do<br />

que estava dizendo e deixava isso claro porque nunca<br />

mentiu em to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong>.<br />

Há pouco tempo, preto não era gente para a igreja.<br />

Como poderia imaginar que o mundo todo pudesse<br />

acreditar que ela fosse santa se nem mesmo possuía o<br />

perfil dos gregos? Ou mesmo os olhos azuis dos anjos?<br />

Sem ter cabelos louros? Tudo bem que Obama fora<br />

eleito nos Estados Unidos, mas presidente é uma coisa,<br />

santa é outra. Já existiam <strong>No</strong>ssa Senhora Apareci<strong>da</strong> e<br />

São Benedito. Um é pouco, dois é bom, três é demais.<br />

“Pessoal bobo”, pensava.<br />

Cascais é um lugar tranquilo em Portugal. Tereza, a<br />

prima de terceiro grau, ficou feliz em poder acolher<br />

Santa Maria num momento tão atribulado em sua vi<strong>da</strong>.<br />

M a r i a<br />

provou novamente<br />

<strong>da</strong> tranquili<strong>da</strong>de do anonimato,<br />

essa coisa de ser santa não era para ela.<br />

A prima morava numa vila de paralelepípedos<br />

e casinhas colori<strong>da</strong>s com vasinhos de planta<br />

na frente. Tudo era de uma beleza encantadora.<br />

Tereza afirmou que sua boca era um túmulo e<br />

jamais iriam perturbá-las naquele pequeno paraíso.<br />

<strong>No</strong> início eram só prosas sobre os antepassados portugueses.<br />

Maria se sentia um tanto sem graça por<br />

desconhecer o nome dos bisavôs índios e também<br />

dos africanos. Ficava ali ouvindo coisas de duzentos<br />

anos <strong>da</strong> parte portuguesa <strong>da</strong> família.<br />

Passeou por Cascais, andou por outras ci<strong>da</strong>des, mas a<br />

sau<strong>da</strong>de de casa, dos filhos lhe apertava. Ficou ain<strong>da</strong><br />

mais preocupa<strong>da</strong> quando viu no noticiário que sua<br />

favela estava quase submersa, inun<strong>da</strong><strong>da</strong> pela chuva<br />

incessante que caíra durante todo o mês de novembro<br />

estendendo-se até o início de dezembro. Era um<br />

sem-fim de famílias desabriga<strong>da</strong>s, pessoas leva<strong>da</strong>s<br />

para a morte pela correnteza, crianças desapareci<strong>da</strong>s.<br />

Resolveu voltar para passar a vira<strong>da</strong> do ano com a<br />

família, já que ficaria no Natal com Tereza. Pretendia<br />

aju<strong>da</strong>r os parentes e os vizinhos na reconstrução dos<br />

barracos e na limpeza, contando que a chuva desse<br />

uma trégua no final de dezembro.<br />

Comunicou à prima que voltaria para romper o ano no<br />

Brasil, mesmo com os jornais escrevendo sobre a Santa<br />

Maria desapareci<strong>da</strong> e com o assédio dos paparazzi, que<br />

montavam guar<strong>da</strong> na porta de seu barraco.<br />

60 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 61


Tereza não<br />

saía <strong>da</strong> internet em busca<br />

de notícias sobre a prima, que<br />

pululavam nos sites brasileiros e de<br />

outros países. Por mais que quisesse ser<br />

discreta, não resistiu ao fato de estar com uma<br />

pessoa que era fala<strong>da</strong> no mundo todo sem ninguém<br />

saber. Viu, na prima de terceiro grau, a possibili<strong>da</strong>de<br />

de ser também uma celebri<strong>da</strong>de.<br />

Tereza levava uma vi<strong>da</strong> pacata de publicitária arrependi<strong>da</strong><br />

por ter sempre enganado o povo. “Ossos do ofício”,<br />

lamentava, tentando se justificar. Nunca fez na<strong>da</strong> em<br />

sua vi<strong>da</strong> que realmente tivesse valor. Na juventude,<br />

enchia a cara no Bairro Alto, nas orgias sem limites,<br />

gastando o dinheiro escuso que ganhava na publici<strong>da</strong>de.<br />

Agora, estava na hora de dizer ao mundo que era<br />

prima <strong>da</strong> santa brasileira e não haveria <strong>da</strong>ta melhor do<br />

que o dia vinte e quatro de dezembro para presentear<br />

a comuni<strong>da</strong>de portuguesa com essa revelação. Uma<br />

santa brasileira iria bombar o Natal de Lisboa.<br />

Foi ao correio e enviou telegrama a um jornal revelando<br />

que a Santa Maria estava escondi<strong>da</strong> ali em Cascais. É<br />

certo que poderia ter passado um e-mail falso, mas<br />

teve medo de ser descoberta; pensou em ligar de um<br />

telefone público, mas também se sentiu ameaça<strong>da</strong>.<br />

Ela mesma não sabia explicar por que considerava o<br />

telegrama a comunicação mais segura e que melhor<br />

protege a identi<strong>da</strong>de do remetente.<br />

Em menos de uma hora os fotógrafos clicavam fotos<br />

de Santa Maria numa rua de Cascais enquanto o repórter<br />

a enchia de perguntas. Logo, a notícia estava<br />

no site do Jornal Camões. Em duas horas, centenas de<br />

fotógrafos e jornalistas infernizavam a vi<strong>da</strong> de Maria,<br />

que conseguira passagem para o Brasil somente para<br />

o dia trinta de dezembro.<br />

Os dias que antecederam a viagem foram de insônia.<br />

Curiosos, enfermos, religiosos, jornalistas correspondentes<br />

de to<strong>da</strong> parte do mundo estavam sediados na<br />

porta <strong>da</strong> casa de Tereza, à espera de algum milagre,<br />

exatamente como acontecera em sua terra natal.<br />

Na viagem de volta, Maria teve a brilhante ideia de<br />

pecar em praça pública diante dos fotógrafos e <strong>da</strong>s<br />

câmeras de televisão.<br />

– É só pecar na frente de todo mundo, depois eu me<br />

arrependo, confesso ao padre, pago a penitência e<br />

estou inteirinha de novo. Como fui burra...<br />

Mas qual seria o pecado? O que fazer para o povo<br />

acreditar que era uma pecadora de fato? Contra os<br />

dez man<strong>da</strong>mentos não iria de jeito nenhum, pois,<br />

segundo a Bíblia, Moisés os recebera diretamente de<br />

Deus, em duas tábuas de pedra. E ela jamais iria contra<br />

o que Deus designara.<br />

Fazer o que de errado para acalmar o povo? Matutou, matutou<br />

e se lembrou de que a igreja tinha lançado outros<br />

pecados. Sim, iria escolher um desses, pois pecado novo<br />

Deus relaxa e goza, visto que os fiéis ain<strong>da</strong> não se acostumaram.<br />

Mas qual deles?<br />

Poderia praticar algum pecado <strong>da</strong> igreja evangélica, <strong>da</strong><br />

umban<strong>da</strong> ou do candomblé, mas aí não surtiria muito<br />

efeito, pois quem não é praticante dessas religiões não<br />

as leva muito a sério. Também não cometeria nenhum<br />

dos sete pecados capitais porque, desde o final do<br />

século VI, o Papa Gregório os incorporou nas leis <strong>da</strong><br />

igreja. Eram muito antigos para ser descumpridos.<br />

Fazer o que de errado para acalmar o povo? Matutou,<br />

matutou e se lembrou de que a igreja tinha lançado<br />

outros pecados. Sim, iria escolher um desses, pois<br />

pecado novo Deus relaxa e goza, visto que os fiéis<br />

ain<strong>da</strong> não se acostumaram. Mas qual deles? Bom, fazer<br />

modificação genética estava fora de seu alcance,<br />

causar injustiça social não <strong>da</strong>ria para ela, causar<br />

pobreza jamais! Tornar-se extremamente rica era<br />

impossível, usar drogas também. O negócio<br />

era poluir o meio ambiente, pois um saco<br />

de lixo a mais não iria aumentar o<br />

risco de o planeta acabar.<br />

Maria chegou<br />

à favela gritando<br />

para todos que a seguiam que iria<br />

pecar. Urubu Branco estava um transtorno,<br />

havia as marcas e os estragos <strong>da</strong>s<br />

enchentes por todos os lados e, mesmo assim,<br />

lá estavam os jornalistas do mundo inteiro e os<br />

doentes de to<strong>da</strong> sorte à sua espera.<br />

– Chama o padre! Chama o padre! Quero pecar na<br />

frente dele!<br />

Assim que o padre chegou, Maria entrou em casa,<br />

encheu um saco enorme de lixo, saiu em direção ao<br />

rio e o atirou dentro d’água.<br />

– Pecadora! Agora você é uma pecadora como todos<br />

nós! – festejou o padre com passos de funk.<br />

Os enfermos foram saindo num desengano só. A<br />

imprensa também se retirou. O padre abraçou Maria<br />

em agradecimento pela sua atitude. Alivia<strong>da</strong>, Maria ia<br />

quase chegando em casa quando recebeu um tiro na<br />

nuca que a levou desta para uma melhor.<br />

Fernando Aspas, chefe do tráfico <strong>da</strong> favela, prometera<br />

que mataria qualquer um que jogasse lixo no rio, porque<br />

na última enchente seus filhos foram arrastados pela<br />

correnteza. Ele acreditava que se o povo não tivesse<br />

feito o rio de lixeira seus filhos não teriam morrido.<br />

Ninguém, a partir <strong>da</strong>í, jogou lixo no rio, nunca mais<br />

houve enchente e todos foram felizes para sempre.<br />

Paulo Lins é autor de Ci<strong>da</strong>de de Deus (Cia. <strong>da</strong>s Letras,<br />

1997) e de roteiros para cinema e TV.<br />

62 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 63


convocação<br />

área livre<br />

Veja-se aqui<br />

Desde seu surgimento, há três anos, a Continuum se preocupou em estabelecer um contato permanente<br />

com seus leitores. Hoje, ele se dá em três momentos diferentes. Qualquer pessoa que quiser contribuir com<br />

a revista pode enviar trabalhos artísticos, como contos e ensaios de até 5 mil caracteres, poemas, ilustrações<br />

e fotos. Após analisados, e se estiverem de acordo com o tema de ca<strong>da</strong> edição, eles poderão ser publicados<br />

tanto na revista em papel quanto na versão para internet, na seção Área Livre.<br />

A segun<strong>da</strong> forma de participar é direciona<strong>da</strong> aos estu<strong>da</strong>ntes universitários, que podem enviar projetos de<br />

reportagens para a re<strong>da</strong>ção. A ca<strong>da</strong> edição, um dos projetos é selecionado e seu autor realiza a reportagem,<br />

que é publica<strong>da</strong> na seção Deadline.<br />

Ilustração [detalhe]: Virgílio Neto<br />

Por fim, a revista está aberta ao comentário do leitor, inclusive à sugestão de pautas ou temas para as edições,<br />

desde que enquadrados no universo <strong>da</strong> arte e <strong>da</strong> <strong>cultura</strong>.<br />

Como enviar sua contribuição? Para a Área Livre e a Deadline, o e-mail é participecontinuum@itau<strong>cultura</strong>l.org.br. Para<br />

comentários e sugestões, o endereço é continuum@itau<strong>cultura</strong>l.org.br. É bom lembrar que para ambas as<br />

seções há prazos e condições que ficam estabelecidos aqui, e também podem ser consultados no site <strong>da</strong><br />

revista itau<strong>cultura</strong>l.org.br/continuum. É lá, por exemplo, que colocamos a ca<strong>da</strong> edição uma Convocatória<br />

e o Regulamento para que os estu<strong>da</strong>ntes enviem seus projetos de reportagem.<br />

Agora que está tudo esclarecido, você já pode começar a pensar no trabalho que vai nos man<strong>da</strong>r. Para a<br />

edição de agosto-setembro, o tema é Futebol. E o prazo para envios de trabalhos começa agora e vai até<br />

o dia 10 de setembro.<br />

***<br />

Opa, antes de encerrar nossa conversa, vale reforçar mais um aviso: desde março, a Continuum encerrou a<br />

promoção que garantia a todos a inserção no mailing <strong>da</strong> revista. Mas fique tranquilo, se você solicitou antes<br />

dessa <strong>da</strong>ta o recebimento gratuito, sua entrega está garanti<strong>da</strong> por tempo ilimitado!<br />

Periferia, ilustração de Raquel Krϋgel<br />

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Gravuras Digitais – Série Visão Periférica, de Wilson Inacio<br />

Maquetes – Periferia, de Lourenço do Carmo<br />

Fragmentos <strong>da</strong> Panorâmica, fotos de Arthur Rampazzo Roessle<br />

66 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 67


| foto: Marcos Bonisson

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