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LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

EXEMPLAR AVULSO R$10,00 | DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PARA AS ESCOLAS DO LEIA BRASIL | FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

MEDO<br />

PREPARE-SE!<br />

VOCÊ VAI ENTRAR<br />

EM TERRENO PERIGOSO.<br />

TRATAMOS DOS MAIS VARIADOS<br />

SINTOMAS DO MEDO.<br />

VISITAMOS A LITERATURA E O CINEMA.<br />

BUSCAMOS TODAS AS SUAS CAUSAS:<br />

ESCURIDÃO, VIOLÊNCIA, PERDA E MORTE.<br />

CHEGAMOS AO PRAZER DO MEDO<br />

E AO MEDO DO PRAZER.<br />

COMECE JÁ! NÃO HÁ NADA A TEMER.


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

Editorial p.3<br />

Benita Prieto<br />

O fascínio que as histórias de terror e mistério exercem sobre nós. p. 4<br />

Leila Borges de Araújo<br />

Mary Shelley e a literatura fantástica. p. 8<br />

Charles Feitosa<br />

Como o medo pode ser sábio. p. 10<br />

Tatiana Belinky<br />

Conheça Nieta, uma moça que temia parecer medrosa. p. 11<br />

Miriam Sutter<br />

Fóbos, entidade mitológica. p. 12<br />

Entrevista<br />

O cordelista Gonçalves Ferr<br />

erreir<br />

eira da Silva. p. 14<br />

José Durval Cavalcanti de Albuquerque<br />

Existirá um dia no qual tenhamos vivido sem o mais leve sentimento<br />

de medo? p. 15<br />

Irineu Eduardo do J. . Corrêa<br />

Violência: o medo, às vezes, supera a própria causa. p. 16<br />

Entrevista<br />

Zuenir Ventur<br />

entura e uma cidade partida. p. 18<br />

Bárbara a Aranyl de La Corte<br />

O depoimento de quem sofreu a síndrome do pânico. p. 20<br />

Cássia Janeir<br />

aneiro<br />

Quando o medo pode seduzir. p. 22<br />

Maria Clara a Cavalcanti de Albuquerque<br />

Unidade de leitura. p.24<br />

Entrevista<br />

A autora da coleção “Quem tem medo?” , Fanny Joly, fala, em Paris,<br />

com a jornalistaTatiana atiana Milanez. p. 26<br />

Cacá Mourthé<br />

Pluft, o doce fantasminha com medo de gente. p. 28<br />

João Carlos Rodrigues<br />

Filmes de arrepiar. p. 30<br />

Filmografia<br />

p. 31<br />

Ricardo Oiticica<br />

O diálogo entre Álvares de Azevedo e Augusto dos Anjos. p. 32<br />

Paulo Condini<br />

Luizinho sofre com o valentão do ônibus da escola. p. 34<br />

Roberto Corrêa dos Santos<br />

Breve genealogia do medo na obra de Clarice Lispector. p. 36<br />

Didier Lamaison<br />

O pavor de falar um idioma estrangeiro. p.37<br />

Rosa Gens<br />

A força da literatura de terror e seus maiores nomes. p. 38<br />

Ther<br />

hereza eza Lessa<br />

Um escritor assombrado por fantasmas geniais. p. 41<br />

Bibliografia<br />

p. 42<br />

2


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

BÚÚÚ!<br />

“Se<br />

alguma espécie,<br />

em qualquer tempo, não teve medo,<br />

então essa espécie foi extinta.”<br />

Quando escolhemos o tema dessa edição,<br />

imediatamente nos ocorreu buscar o depoimento<br />

daqueles que julgávamos sem medo: os evictos.<br />

Aqueles que, por estarem condenados por uma<br />

vida à reclusão; por viverem na total promiscuidade<br />

corroendo seu amor-próprio; por terem esquecido<br />

as condições de sociabilidade e já não<br />

terem mais qualquer esperança, são donos do mais<br />

absoluto “nada a perder”.<br />

Puro engano — se há vida, há medo.<br />

Logo descobrimos o conceito que norteia esse<br />

número de Leituras Compartilhadas: se alguma<br />

espécie, em qualquer tempo, não teve medo, então<br />

essa espécie foi extinta.<br />

O medo é o mais básico dos instintos e está<br />

ligado à sobrevivência.<br />

Não só à sobrevivência física, à dor e à morte<br />

da matéria.<br />

Ele está ligado, também, à manutenção de<br />

uma situação confortável. Na psicologia, confortável<br />

não é o que é agradável, mas o que não nos<br />

ameaça com mudanças.<br />

Vem daí o nosso medo de tudo: do desconhecido,<br />

do novo e até da felicidade.E também<br />

do escuro, de altura, de solidão, do outro etc.<br />

Como se isso não fosse o bastante, o medo<br />

nos é ensinado caprichosamente, por tudo e por<br />

todos, ao longo da vida.Quem nunca escutou dos<br />

pais um grito tenso dizendo — “cuidado”.<br />

Cuidado para não cair. Cuidado com estranhos,<br />

com os bichos, com fogo...<br />

Quantas histórias ouvimos na infância como<br />

as de Chapeuzinho Vermelho, Pedro e o Lobo e<br />

o Homem do Surrão, para ficar só nas que nos<br />

aconselhavam e não falar das que nos davam medo<br />

como as cantigas de ninar?<br />

Por isso, talvez, o medo nos cause tantas reações<br />

físicas como suor frio, taquicardia, boca seca,<br />

paralisia, necessidade de fechar ou cobrir os olhos,<br />

pêlos arrepiados, e outros sintomas que são derivações<br />

de medo, que também se desdobra em<br />

pânico, fobia, pavor etc.<br />

Estranhamente, o medo que nos ameaça é o<br />

mesmo que nos seduz.<br />

Drácula, o príncipe das trevas que visitava o<br />

pescoço das donzelas em seus leitos desprotegidos<br />

tarde da noite, aterrorizava e seduzia com a<br />

mesma competência.<br />

É um paradoxo: quanto mais ameaçadora a<br />

história ou a personagem, tão mais atraente a obra.<br />

O medo inspira a literatura, rende bilhões no<br />

cinema e motiva dezenas de esportes chamados<br />

radicais, onde o homem testa seus limites físicos<br />

e emocionais.<br />

Na mitologia, Fóbos, o Deus do Medo, é<br />

filho de Marte, o Deus da Guerra. Curiosamente,<br />

sua face foi pouco interpretada pelas artes<br />

ao longo da história. Talvez porque o medo se<br />

propague e cresça sob o véu da escuridão e do<br />

desconhecimento. Poderíamos até afirmar, diante<br />

disso, que sua mãe seja a Noite, porque é<br />

nesse horário que o medo mais se apodera da<br />

mente humana.<br />

O medo sempre esteve ligado ao olhar, tanto<br />

pelo que se via quanto pelo que não se via: a<br />

Medusa transformava em pedra a todos que a<br />

viam. E todos os monstros — da Esfinge aos dragões<br />

medievais, de Cérbero, o cão do inferno ao<br />

recente Fred Krueger — possuem graves distorções<br />

estéticas que ampliam sua capacidade amedrontadora.<br />

Prepare-se para ler sem sustos nem sobressaltos.<br />

Desta vez vamos falar desse “gigante da alma” 1 ,<br />

sob suas mais variadas faces, para ajudá-lo a livrar<br />

seus alunos dos medos, até mesmo dos livros.<br />

1 Emilio Mira y Lopez.<br />

Leituras Compartilhadas é uma publicação da<br />

ONG <strong>Leia</strong> <strong>Brasil</strong> de Promoção da Leitura, distribuída<br />

gratuitamente às escolas conveniadas à ONG.<br />

Todos os direitos foram cedidos pelos autores<br />

para os fins aqui descritos. Quaisquer reproduções<br />

(parciais ou integrais), deverão ser autorizadas<br />

previamente.<br />

Os artigos assinados refletem o pensamento de<br />

seus autores.<br />

<strong>Leia</strong> <strong>Brasil</strong> e Leituras Compartilhadas são<br />

marcas registradas.<br />

Editor: Jason Prado<br />

Subeditora: Ana Cláudia Maia<br />

Direção de Arte e Produção Gráfica: Barbara Necyk<br />

Projeto Gráfico: Thiago Prado<br />

Consultor literário: Ricardo Oiticica<br />

Revisão: Sueli Rocha<br />

Tiragem: 10.000 exemplares<br />

<strong>Leia</strong> <strong>Brasil</strong> – Organização Não Governamental de<br />

Promoção da Leitura.<br />

Rua Santo Cristo 148/150 parte, Santo Cristo, Rio de Janeiro<br />

CEP 20220300<br />

Tel/Fax: 21 22637449 leiabr@leiabrasil.org.br<br />

www.leiabrasil.org.br<br />

3<br />

Georgii &Vladimir Stenberg<br />

(1927) litografia em cores, detalhe.<br />

Biblioteca Estatal Russa, Moscou.


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

O FASCÍNIO PE<br />

BENITA PRIETO<br />

“A emoção mais forte e mais antiga do<br />

homem é o medo, e a espécie mais forte e mais<br />

antiga de medo é o medo do desconhecido.”<br />

H. P. Lovecraft<br />

Estamos num novo século e a tecnologia<br />

se desenvolve cada vez mais. No entanto, somos<br />

ainda os seres que, maravilhados, ouvimos<br />

histórias de feitos, façanhas, assombrações...<br />

Também aumentaram os veículos de comunicação,<br />

com o surgimento do rádio, cinema,<br />

televisão, computador. Cada um buscando, à<br />

sua maneira, relacionar-se com a narrativa.<br />

E, num caldeirão repleto de gêneros, temos<br />

o desejo pelo medo. Querem a prova?<br />

Pois perguntem a uma criança ou adolescente<br />

que tipo de história quer ouvir e terão como<br />

resposta um sonoro: TERROR!<br />

O medo é um sentimento básico que faz<br />

parte do desenvolvimento emocional. Ele nos<br />

acompanha ao longo da vida e vai adquirindo<br />

novas dimensões e características.<br />

Tudo já começa no nascimento, ou quem<br />

sabe antes, quando o bebê, que se encontrava<br />

numa situação de total aconchego e proteção,<br />

de repente, passa a conviver com um<br />

mundo desconhecido, caótico e confuso. Logo<br />

ele vai atribuir a esse mundo externo tudo que<br />

lhe faz mal, como a fome, o frio, a ansiedade.<br />

O mundo vai ficar dividido no que o satisfaz<br />

e lhe dá prazer e no que lhe provoca<br />

tensão, frustração e mal-estar.<br />

A criança passa por vários estágios. No<br />

princípio, na sua fantasia, ela atribui poderes<br />

mágicos a seus pensamentos e desejos, não<br />

diferenciando o que imagina do que ocorre<br />

na realidade. O que ela representa em imagens<br />

tem relação com a intensidade de suas<br />

tendências amorosas ou destrutivas e com sua<br />

capacidade de tolerância à frustração. A qualidade<br />

dessa dinâmica será a medida dos temores<br />

e dos medos que sente e, no futuro,<br />

poderá se refletir em suas ações, quando for<br />

adolescente, adulto ou velho.<br />

Aos poucos, a fantasia vai se organizar em<br />

um mundo de fadas ou de bruxas, de monstros<br />

ou salvadores. A imaginação é muito rica,<br />

e as intensas e contraditórias emoções do dia<br />

podem se converter em imagens aterradoras<br />

durante a noite, nos sonhos.<br />

Também a escuridão tende a se transformar<br />

em tudo que representa o desconhecido,<br />

num mundo que está começando a se ordenar.<br />

A criança tem muita dificuldade de entender<br />

onde acaba o mundo de dentro e começa<br />

o mundo de fora. A escuridão pode aumentar<br />

essa dúvida e dar a possibilidade de<br />

que a imaginação, os sentimentos e as emoções<br />

reinem absolutos.<br />

Nesse momento, pode-se utilizar a arma poderosa<br />

e ancestral que é o conto popular. Ele é<br />

uma ferramenta valiosíssima a serviço do desenvolvimento<br />

emocional da criança. Nesses contos,<br />

fala-se dos conflitos reais e imaginários que todos<br />

experimentam durante seu crescimento.<br />

Jacqueline Held no livro O imaginário no<br />

poder, apresenta idéias que são fundamentais<br />

para o entendimento da necessidade que temos<br />

dos contos fantásticos. Para ela “a narração<br />

fantástica reúne, materializa e traduz todo um<br />

mundo de desejos para transformar à sua própria<br />

vontade o universo. Mas vai tocar o leitor ou o<br />

ouvinte se não for feito apenas de entidades ou seres<br />

abstratos. O que torna vivo o fantástico é o cotidiano<br />

com todos os seus diferentes aspectos”.<br />

Podemos pensar nessas questões e relacioná-las<br />

com as histórias de medo, tanto<br />

para adultos quanto para crianças. Como já<br />

vimos anteriormente, se inserimos seres fantásticos<br />

em um mundo que é nosso conhecido<br />

eles provocam angústia, pois há sempre<br />

a possibilidade de os relacionarmos com<br />

o nosso real, mesmo sem percebermos. Mas<br />

isso não causa grandes prejuízos e apenas vai<br />

possibilitar que vivenciemos todas aquelas<br />

sensações fortes, trazidas pela história, que se<br />

DIVULGAÇÃO<br />

4


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

LAS HISTÓRIAS<br />

resolverão num plano imaginário, preservando<br />

nossa integridade física.<br />

Acontece que, muitas vezes, pais, avós, familiares,<br />

amigos transformam o quase prazer<br />

que esses contos provocam em algo aterrador,<br />

através da atmosfera de pavor construída, e propositalmente<br />

criando um medo real, como se<br />

algo pudesse acontecer. E muitos de nós já<br />

fomos vítimas desse terror na infância, quando<br />

ouvíamos que uma infinidade de monstros<br />

podiam nos levar.<br />

Por isso deve-se tomar cuidado, não especificamente<br />

com o conteúdo, mas com a forma<br />

de utilização da história. Claro que estamos<br />

pensando em crianças que não estão traumatizadas<br />

ou têm algum transtorno psíquico ou<br />

psicológico. O professor francês Marc Soriano<br />

defende que “as crianças utilizam certo tipo de<br />

imagens que despertam nelas ressonâncias afetivas<br />

para se ‘vacinar’ contra eventuais traumatismos”.<br />

Mas de onde vem esse fascínio pelas histórias<br />

de medo?<br />

O psicólogo Bruno Bettelheim nos explicou<br />

o assunto a propósito dos contos de fadas,<br />

dizendo que são um meio de projeção<br />

dos instintos e problemas da criança. Através<br />

deles são exteriorizados determinados conflitos<br />

da psique infantil, dando forma e corpo a<br />

esses “fantasmas”.<br />

Já Freud interpreta o sinistro como aquilo<br />

que foi convertido em espantoso, mas que em<br />

algum tempo foi familiar e conhecido.<br />

Da união das duas idéias podemos supor<br />

que o sinistro, contido nos contos de medo,<br />

consiste em que tais “fantasmas” pessoais nunca<br />

nos abandonam de todo e nos revisitam<br />

periodicamente, materializando-se na ocasião<br />

em que algum estímulo os evoque. Por detrás<br />

do sinistro está, de forma encoberta um desejo<br />

de algo proibido ou oculto.<br />

Por isso, nos primeiros anos de vida, esses<br />

contos que tanto fascinam são importantes,<br />

como uma forma inconsciente de exorcizar<br />

medos reais através de medos fictícios.<br />

E posteriormente servem para aprofundar o<br />

processo de amadurecimento pessoal, já que<br />

neles estão em jogo emoções básicas.<br />

Outra questão que nos parece muito interessante<br />

é de onde vem essa noção de sinistro<br />

tão em moda atualmente?<br />

Em primeiro lugar, fala-se de uma indução<br />

artística e literária ao medo que é provocada<br />

pelo grotesco, já que ele é o exagero, ou<br />

seja, o deformado, aquele que não tem forma.<br />

Portanto há uma indução ligada à morfologia<br />

ou iconologia literária facilmente identificável<br />

nos fantasmas ou defuntos, por seu aspecto.<br />

Essa idéia-núcleo de deformidade está na base<br />

de diversos arquétipos que se repetem incessantemente<br />

nas expressões artísticas.<br />

Mas o prefixo negativo de (de)formidade<br />

pode ser lido também como aquilo que está<br />

contra a forma habitual. As personificações<br />

deformes seriam aquelas que se contrapõem<br />

à realidade percebida ou que inclusive se<br />

aproximam dos mistérios da morte, do vazio,<br />

do inapreensível.<br />

Também há uma concepção degradada do<br />

grotesco, assimilada do aspecto disparatado,<br />

absurdo, extravagante ou grosseiro que vemos<br />

em muitos personagens.<br />

Historicamente o grotesco já era conhecido<br />

na Antigüidade como podemos ver nas representações<br />

mitológicas dos centauros, sátiros,<br />

medusas... A literatura e a arte medieval<br />

também estão povoadas de expressões grotescas,<br />

por causa do tom religioso dessas artes e a<br />

conexão com o mundo sobrenatural e escatológico.<br />

Portanto o deforme é o que está além<br />

da morte num duplo sentido: como carente<br />

de forma (espíritos, duendes...) e como exagero<br />

ou deformação (as visões do inferno, a imagem<br />

do diabo com chifres e asas de morcego).<br />

Em todo caso, mais que a deformidade, o<br />

conceito moderno sobre monstro está aproximado<br />

ao desconhecido e à surpresa. O monstruoso<br />

é o contravalor da beleza, o espelho ou<br />

o foco que ajusta a sua imagem ou, dito de<br />

continua<br />

5<br />

DIVULGAÇÃO


O FASCÍNIO PEL<br />

LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

outra maneira, a outra face da mesma moeda.<br />

É próprio do sinistro a sua presença latente,<br />

como na Cuca das cantigas de ninar,<br />

ou a necessidade de ocultamento, daí a importância<br />

dos heróis mascarados. Todos são<br />

pessoas com uma “pele de animal”, ou animais<br />

com uma “pele de pessoa”, trazendo<br />

de novo o mito.<br />

Como exemplo de uma figura folclórica<br />

e sinistra, temos o “Homem do Saco”.<br />

Sua fascinação depende do seu mistério,<br />

seu ocultamento, e mesmo seus objetivos<br />

não revelados. O que acontece é que essa<br />

irracionalidade é assimilada rapidamente,<br />

no campo moral, ligado à maldade e à<br />

monstruosidade.<br />

Mas a morfologia das aparições sinistras<br />

coincide também com o luminoso. Assim a<br />

presença de Deus é a intuição do desconhecido,<br />

de uma força sobre-humana que produz<br />

pânico, estupor e fascínio, que causa ao<br />

sujeito experiências de diversos graus de prazer<br />

ou desprazer. Deus, em seus aspectos de<br />

fascinante, excessivo, superabundante, aproxima-se<br />

do conceito de grotesco no seu duplo<br />

sentido como carente de forma ou contra<br />

a forma, contrapondo-se à normal.<br />

A experiência do sagrado se transforma<br />

à medida que a religião racionaliza a idéia<br />

do sagrado, em uma experiência do sinistro,<br />

do não-conhecido, do inominável, que<br />

adota as rubricas literárias do fantástico,<br />

estranho, aterrador.<br />

Desse modo, o sinistro nos aparece<br />

como grotesco e o grotesco se reafirma como<br />

essa percepção irracional dos aspectos desconhecidos<br />

de nossa personalidade, como o<br />

retorno ao proibido, provocado por estímulos<br />

que têm alguma relação (metafórica ou<br />

metonímica) com essa pulsão latente.<br />

A análise do medo, tendo como paradigma<br />

a psicologia e a psicanálise, é muito extensa,<br />

mas não poderia deixar de ser abordada,<br />

mesmo que, minimamente, nesse artigo.<br />

Agora podemos perceber que o desejo<br />

pelas histórias de medo não é da atualidade.<br />

Esses personagens são os que estão<br />

no nosso imaginário e há muito tempo<br />

amedrontam e convivem com o homem,<br />

embora tenham trocado um pouco<br />

de feição.<br />

Nossos monstros de hoje estão baseados<br />

em arquétipos antigos, mas mudaram<br />

de forma e até de endereço. Temos, por<br />

exemplo, os alienígenas e até os psicopatas,<br />

bem verdadeiros, que passeiam pelas<br />

cidades ferindo ou matando.<br />

Podemos conviver com todos os tipos<br />

de monstros, como os dos desenhos japoneses,<br />

os Aliens, os Dráculas, os<br />

morto-vivos e os seres primitivos,<br />

nossos velhos conhecidos, que<br />

ainda existem nas pequenas<br />

comunidades. E<br />

todos podem amedrontar,<br />

pois de<br />

alguma maneira<br />

revivem os mitos.<br />

E será que essas<br />

narrativas também não trazem<br />

embutidas as velhas funções<br />

de Propp? Através delas, não<br />

estaremos buscando como desenlace<br />

a recompensa, a descoberta do objeto mágico<br />

ou a reparação de um mal?<br />

Mas hoje nossos meninos não são os<br />

mesmos. Têm um mundo de modernidades<br />

que os faz ver e sentir de outra<br />

forma. Aprendem com mais rapidez,<br />

quando têm acesso à informação e à escola.<br />

Podem ver o universo através das<br />

telas dos computadores e dos televisores.<br />

Por isso muitas coisas se banalizam<br />

e sentimentos que deveriam ser preservados<br />

para toda a vida são esquecidos<br />

ou nem são sentidos.<br />

Não há mais o silêncio que possibi-<br />

6


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

AS HISTÓRIAS<br />

litava elaborar os medos internos. Nem<br />

existe o mistério e o encanto que rodeava<br />

as coisas. As relações vão ficando<br />

frias e individualizadas. E a criança vai<br />

perdendo a oportunidade de imaginar.<br />

Talvez dai venha a necessidade de ouvir/ver<br />

o terror, que eles querem forte.<br />

As histórias têm que ter muitos componentes<br />

de violência como o sangue,<br />

ossos expostos, morte. Isso deve exprimir<br />

o desejo de algo muito mais horripilante<br />

que a própria crueldade da vida,<br />

vista através dos diversos meios de comunicação.<br />

Há um lado que pode ser saudável<br />

quando atendemos o pedido: levamos<br />

contos que tenham os tais elementos<br />

do horror, mas também ajudem<br />

a recriar algum ambiente<br />

mágico. Dessa maneira<br />

estaremos,<br />

mais uma vez, religando<br />

esses ouvintes<br />

a toda uma<br />

ancestralidade.<br />

Sem esse clima estaremos<br />

apenas contribuindo<br />

para banalizar a morte,<br />

reforçando a violência que vemos<br />

todos os dias em nossas casas,<br />

a qualquer hora, impassíveis, através<br />

das centenas de notícias sobre o assunto.<br />

Outro perigo é que, atualmente,<br />

construímos uma idéia de que somos<br />

imortais. Quem sabe para abafarmos o<br />

enorme pavor que temos de morrer. Essa<br />

falsa idéia de imortalidade deve-se ao<br />

aumento da expectativa de vida do homem,<br />

através do avanço da medicina e<br />

à modificação de nossos rituais, pois geralmente<br />

estamos sós em um leito de hospital<br />

quando chega o nosso momento final.<br />

A morte não é mais compartilhada e,<br />

como diz Philippe Ariès passamos a morte<br />

doméstica para a morte selvagem.<br />

Todas essas coisas se associam e para que<br />

possamos pensar um pouco sobre o reflexo<br />

delas nas crianças, trazemos uma declaração<br />

muito interessante do escritor Jesús Callejo que<br />

está no seu livro Los dueños de los sueños.<br />

Ele sugere que, nos tempos atuais, a Cuca<br />

foi substituída pela opressão e comercialização<br />

que é feita com o carinho, quando alguém<br />

diz para uma criança: Se não fizer tal<br />

coisa, eu não vou mais gostar de você. Assim<br />

a criança vai incorporar à sua grande<br />

lista de temores o de não ser querida por<br />

aqueles de quem ela gosta tanto e necessita.<br />

Esse será mais um dos conflitos psicológicos<br />

que ela terá que vencer ao longo da vida.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

CALLEJO, Jésus. Los dueños de los sueños: ogros, cocos<br />

y otros seres oscuros. Barcelona: Martínez Roca, 1998.<br />

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo:<br />

Palas Athena, 1990.<br />

CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore<br />

brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/<br />

Ministério da Educação e Cultura, 1954. Literatura oral<br />

no <strong>Brasil</strong>. 3.ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:<br />

Editora da Universidade de São Paulo, 1984.<br />

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. 2.ed. Rio<br />

de Janeiro: Ática, 1991.<br />

HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças<br />

e a literatura fantástica. São Paulo: Summus, 1980.<br />

(Novas buscas em educação, v.7)<br />

LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural<br />

na literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.<br />

Benita Prieto Engenheira, atriz, produtora, contadora de histórias<br />

do Grupo Morandubetá, especialista em Literatura Infantil e<br />

Juvenil, e em “Leitura: teoria e práticas”. Autora do livro infantil:<br />

As “armas” penadas.<br />

“O medo é tão saudável para o espírito como o<br />

banho para o corpo.”<br />

Máximo Gorki 1868-1936 escritor russo<br />

DIVULGAÇÃO<br />

7


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

LITERATURA FANTÁSTICA<br />

LEILA BORGES DE ARAÚJO<br />

O medo é um sentimento universal e<br />

muito antigo. Pode ser definido como uma<br />

sensação de que você corre perigo, de que algo<br />

de muito ruim está para acontecer, em geral<br />

acompanhado de sintomas físicos que incomodam<br />

bastante tais como: palpitações, tonturas,<br />

sudorese, calafrios, falta de ar, boca seca,<br />

atordoamento, taquicardia, confusão mental,<br />

contrações musculares, sensação de que algo<br />

horrível está preste a acontecer. Quando esse<br />

medo é desproporcional, irracional, com fortíssimos<br />

sinais de perigo, e também seguido<br />

de evitação das situações causadoras de medo,<br />

é chamado de fobia. A fobia na verdade é uma<br />

crise de pânico desencadeada em situações específicas.<br />

Em nosso artigo não vamos abordar<br />

fobia, mas sim apenas o sentimento de medo.<br />

O medo na literatura gerando um fascínio em<br />

vivenciar este sentimento.<br />

O sentimento do medo libera uma substância<br />

conhecida como adrenalina, e isto sempre<br />

acontece quando passamos por situações<br />

de medo ou estresse. Quando há o alívio desta<br />

situação no nosso organismo, há a liberação<br />

de outra substância conhecida como endorfina,<br />

esta traz uma sensação de alívio e bem<br />

estar. O ato de fazer amor passa pelo processo<br />

de liberação da adrenalina durante o ato e,<br />

depois do orgasmo, a endorfina. Talvez por<br />

isso muitas pessoas tenham um fascínio por<br />

algo que as faça sentir medo, é uma maneira<br />

de liberar tensões reprimidas, e ler contos ou<br />

romances que nos fazem sentir medo nos faz<br />

bem. Algumas pessoas precisam passar por situações<br />

de perigo para se sentirem felizes e satisfeitas.<br />

Poderia citar alguns esportes radicais<br />

praticados pessoas e que são perigos e nos fazem<br />

liberar adrenalina.<br />

De forma mais explícita ou menos, o sentimento<br />

do medo já habitou os mais diversos<br />

gêneros literários. Influenciada por leituras de<br />

histórias de fantasmas alemãs e francesas, Mary<br />

Shelley criou a história de Frankenstein na<br />

Suiça, numa noite de insônia, no verão de<br />

1816. Segundo suas próprias palavras, Mary<br />

“viu” nessa noite a cena central de sua história:<br />

o jovem cientista apavorado diante da grotesca<br />

criatura a que acaba de dar vida. Seu conto<br />

começava com a frase “Era uma noite lúgubre de<br />

novembro...”, que na versão definitiva do romance<br />

corresponde à abertura do capítulo V,<br />

justamente aquele em que se narra o momento<br />

em que a criatura de Frankenstein ganha<br />

vida. A primeira edição do romance data de<br />

1818. Mary Sheley ficou conhecida mundialmente<br />

por esta obra, cujos leitores ficaram<br />

fascinados com o fato da criação de um ser<br />

com pedaços de vários cadáveres, de aspecto<br />

monstruoso e horripilante, que gerava um<br />

sentimento de medo intenso, mas ao mesmo<br />

tempo de curiosidade, fascínio por aquele<br />

ser sobrenatural.<br />

Para entender melhor sobre o fascínio<br />

pelo medo na literatura pode-se abordar o<br />

fantástico na literatura. E o que seria, então,<br />

o fantástico na literatura? Em Introdução à<br />

literatura fantástica, Tzevetan Todorov que<br />

afirma que “o ponto principal do fantástico é a<br />

situação de ambigüidade”. As histórias que<br />

pertencem a este gênero nos deixam as perguntas:<br />

Realidade ou sonho? Verdade ou ilusão?<br />

Quando um leitor se depara com um<br />

mundo que é exatamente como o seu, qualquer<br />

acontecimento que fuja às leis desse<br />

mundo familiar cria a dúvida e a incerteza<br />

sobre a possibilidade do fato ser ou não real.<br />

Todorov diz que “o fantástico ocorre nesta incerteza<br />

(...). O fantástico é a hesitação experimentada<br />

por um ser que só conhece as leis naturais,<br />

face a um acontecimento aparentemente sobrenatural.<br />

O conceito de fantástico se define pois com<br />

relação aos de real e de imaginário...”. O autor<br />

recorrerá a outras definições de fantástico<br />

afirmando que em algumas “cabe ao leitor hesitar<br />

entre as duas possibilidades” e, em outras,<br />

8


“Convivo com o medo de morrer e ele<br />

me fascina.”<br />

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DESEJO<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

AYRTON SENNA 1960-1994 Piloto de Fórmula 1<br />

esta hesitação fica a cargo da personagem. O<br />

limite entre o estranho e o maravilhoso é<br />

apenas o tempo de uma hesitação. Essa hesitação<br />

que, segundo o crítico, é comum ao<br />

leitor e a personagem, porém tem sua duração<br />

restrita ao momento da narração do fato.<br />

A hesitação não só da personagem, como<br />

também do leitor é a condição primeira do<br />

fantástico.<br />

Uma ressalva que o crítico faz às definições<br />

do gênero é a da insistência em colocar<br />

o “critério do fantástico (...) na experiência particular<br />

do leitor”. Mais especificamente na experiência<br />

de medo ou terror que ela é capaz<br />

de provocar. Se a duração do fantástico é a<br />

hesitação, então, estamos diante de um gênero<br />

extremamente frágil, que pode se desfazer<br />

a qualquer minuto.<br />

A literatura fantástica do século XIX surge<br />

como reação a um mundo em que o medo<br />

não tem mais espaço diante da infalibilidade<br />

das leis postuladas pela ciência. A ciência<br />

passa a ser o desconhecido, o fantástico no<br />

mundo.Este mundo ordenado é substituído<br />

por um mundo de ambigüidade, sempre<br />

aberto para uma contínua revisão, tanto dos<br />

valores quanto das certezas.<br />

No século XXI, no entanto, seria isso que<br />

deveria acontecer, a ciência acima de tudo, mas<br />

as pessoas não param de ler e nem de assistir a<br />

cenas que os conduzem e fazem sentir medo.<br />

O homem ainda reage de maneira a querer sentir<br />

esta experiência de medo.<br />

Qual a explicação deste fascínio? A resposta<br />

seria a vontade de viver perigosamente,<br />

liberando adrenalina para depois relaxar<br />

com a endorfina e alcançar o prazer.<br />

LEILA BORGES DE ARAÚJO Doutoranda em Psicologia da Educação<br />

– Universidade do Minho – Braga – Portugal, Mestre<br />

em Literatura Inglesa pela University of London e Mestre em<br />

Psicologia pela Universidade Gama Filho-Coordenadora do<br />

Curso de Letras do Centro Universitário da Cidade –<br />

UniverCidade - Pesquisadora em Psicometria e Desenvolvimento<br />

Cognitivo – Universidade Gama Filho, Universidade<br />

Estácio de Sá e Universidade do Minho<br />

9<br />

O homem<br />

em movimento.<br />

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FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

A SABEDORIA<br />

DO MEDO<br />

DETALHE DE “MORTE E VIDA” DE GUSTAV KLINT (1916)<br />

CHARLES FEITOSA<br />

Segundo uma definição antiga (Aristóteles),<br />

medo é a expectativa de um mal que<br />

se avizinha. O medo pode se manifestar de<br />

várias formas e graus, mas tem sempre uma<br />

causa específica: medo de avião, de altura,<br />

de escuro etc. Todos os animais sentem<br />

medo, mas esse medo refere-se sempre a<br />

uma ameaça iminente (um predador, por<br />

exemplo). Somente o homem é capaz de<br />

sentir medo mesmo que não haja risco à<br />

vista. Somente o homem é capaz de tremer<br />

mesmo no aconchego e na segurança da sua<br />

sala de estar. Esse tipo de medo, especificamente<br />

humano, não é provocado por nenhum<br />

motivo determinado: não há nada<br />

em si que o justifique. Parece um medo de<br />

nada, mas é algo muito mais sério: trata-se<br />

do medo do nada, ou melhor, do “nada”<br />

mesmo se manifestando!<br />

O medo é o começo da sabedoria, diz<br />

o filósofo alemão Hegel (1770-1831) em<br />

uma famosa passagem da sua Dialética da<br />

dominação e da servidão (In: Fenomenologia<br />

do espírito, Cap. IV) . Nesse texto<br />

Hegel descreve teatralmente um combate de<br />

vida e morte entre dois homens, ávidos pelo<br />

reconhecimento de sua autonomia e independência<br />

absolutas. Um deles irá até as<br />

últimas conseqüências, empenhado em confirmar<br />

sua liberdade; o outro vai hesitar ao<br />

considerar que a manutenção da vida é ainda<br />

mais importante. Um tem medo e o outro,<br />

não. Um vai abdicar servilmente da sua<br />

própria independência para se manter vivo;<br />

o outro vai ser premiado, pela sua coragem<br />

de correr riscos, com o poder. Um é o servo:<br />

o outro, o senhor.<br />

É interessante notar que a partilha de<br />

poder não ocorreria se o senhor matasse<br />

o servo. Com a morte do outro, seria vedada<br />

também a possibilidade de obter re-<br />

conhecimento. O senhor precisa do servo<br />

vivo, para que sua autonomia possa se<br />

constituir. Hegel é o primeiro filósofo da<br />

modernidade a mostrar que o poder não<br />

se dá apenas pela administração do governo<br />

ou através de autoridades instituídas,<br />

mas principalmente como uma relação de<br />

força, como uma maneira de controlar<br />

indivíduos, classes, povos, minorias, natureza<br />

ou os próprios desejos. O poder é<br />

uma forma de controle através da ameaça<br />

constante de morte, uma exploração violenta<br />

do medo. Ora, que tipo de sabedoria<br />

pode haver então em uma atitude temerosa<br />

que conduz à servidão?<br />

É no medo do nada, na angústia diante<br />

da morte, que Hegel vê a origem da sabedoria.<br />

Não se trata de uma sabedoria científica,<br />

nem técnica, mas existencial. Para Hegel,<br />

embora o homem que teme se torne um servo,<br />

ele fez uma experiência que o impulsionará<br />

para o futuro. A autonomia do senhor,<br />

ao contrário, se revelará frágil, pois se sustenta<br />

apenas na subjugação do outro. O servo<br />

aprende no medo que a morte é o “senhor<br />

absoluto”, quer dizer, a morte tem poder<br />

tanto sobre o servo como sobre o senhor.<br />

No temor da morte o homem aprende algo<br />

acerca da sua finitude, pois ele treme e esse<br />

tremor faz com que todas as suas certezas,<br />

verdades e valores precisem ser reexaminados<br />

e revalorados. Diante da morte (uma<br />

possibilidade certa, ainda que a hora seja<br />

incerta), todos os problemas têm importância<br />

relativa, todos os projetos têm urgência<br />

absoluta. O medo do servo é em certa medida<br />

um saber da finitude. Essa sabedoria do<br />

medo tem o poder da transformação de si e<br />

do mundo, rumo à outras formas de liberdade,<br />

que não se baseiem mais nem na dominação,<br />

nem na servidão.<br />

Charles Feitosa Doutor em Filosofia pela Universidade de<br />

Freiburg/Alemanha e professor da UNIRIO (Universidade Federal<br />

do Estado do Rio de Janeiro).<br />

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LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

MEDOS E MEDOS...<br />

TATIANA BELINKY<br />

Falar sobre medo é até fácil. Eu poderia<br />

falar do medo do escuro, do medo do trovão,<br />

de fantasma, de vampiro, de bruxa, de cobra,<br />

de lobisomem e de outros menos votados, até<br />

mesmo do popular medo de barata.<br />

Mas o medo de que eu quero falar é um<br />

medo diferente. Não é um medo racional,<br />

nem irracional, nem mesmo o já conhecido<br />

medo do medo. O medo de que eu estou falando<br />

é um medo todo especial: é o medo de<br />

“parecer medroso”!<br />

O medo de parecer medroso resulta da insegurança<br />

que a pessoa – criança ou não – sente,<br />

e que faz com que ela esteja a toda hora querendo<br />

se afirmar, demonstrar que não tem medo<br />

disto, daquilo ou daquilo outro. Isto acontece<br />

muito com a pessoa tímida, que acha que precisa<br />

sempre provar alguma coisa a respeito de si<br />

mesma, do seu próprio valor.<br />

E que por isso mesmo<br />

volta-e-meia se mete em toda sorte de “saias justas”<br />

das quais na verdade não precisaria.<br />

Bem, só pra dar um exemplo, vou contar<br />

um pequeno caso verdadeiro, que aconteceu<br />

com uma moça que eu conheci, há muito tempo.<br />

O caso de uma jovem que não era medrosa,<br />

mas era tímida, e tinha muito medo de “dar<br />

parte de fraca”, em especial diante dos rapazes.<br />

Vamos lá.<br />

Aconteceu certo dia que esta Nieta – digamos<br />

que este era o seu nome – estava em<br />

um daqueles parques de diversões e mostrouse<br />

muito boa de pontaria no estande<br />

de tiro-ao-alvo. Mas muito boa mesmo,<br />

tanto que ganhou vários prêmios,<br />

como um ursinho de pelúcia<br />

e até uma caixa de charutos,<br />

para aplausos dos admirados circunstantes.<br />

E foi aí que aconteceu o inesperado.<br />

O rapaz que a acompanhava,<br />

um garboso estudante de Medicina,<br />

resolveu testála<br />

e provocou:<br />

- Como é Nieta,<br />

você que é tão<br />

boa de pontaria, teria<br />

coragem de acertar com o<br />

seu chumbinho um cigarro na<br />

minha boca, a uns oito metros<br />

de distância – ou teria medo?<br />

Assim desafiada, a Nieta<br />

retrucou sem hesitar<br />

– na esperança, claro,<br />

de que ele estivesse<br />

apenas brincando:<br />

- Ora se você tem coragem de se postar na<br />

minha frente com seu cigarro, eu terei coragem<br />

de atirar!<br />

Mas infelizmente ele não estava brincando,<br />

e se plantou, todo pimpão, de perfil para<br />

Nieta, com o cigarro – um “Minister” longo -<br />

espetado entre os lábios.<br />

E agora? Se a Nieta desistisse de topar o<br />

desafio, passaria por medrosa, e isto ela, nos<br />

seus brios feministas, não podia permitir. Ou<br />

achava que não podia...<br />

Daí, ela pegou a espingarda de ar comprimido,<br />

com seus chumbinhos, e a levou ao<br />

ombro – sem qualquer apoio. Suspense geral,<br />

todos assistindo, meio receosos. E a<br />

Nieta não fez o que obviamente deveria<br />

ter feito, que era mirar bem pra fora daquele<br />

alvo difícil, resolvendo o assunto com um<br />

inofensivo tiro no ar. Mas isto nem sequer<br />

lhe passou pela cabeça. Na sua honestidade<br />

– ou seria ingenuidade? – ela mirou o<br />

cigarro mesmo – do meio para a ponta, é<br />

verdade – mas o cigarro, sim. Mirou e<br />

apertou o gatilho – com tanta sorte (e excelente<br />

pontaria) – que cortou o bendito cigarro<br />

pelo meio!<br />

Vitória! Aplausos gerais para os dois<br />

bobos – a Nieta e seu desafiador. Dois<br />

bobos, sim – porque aquela exibição não<br />

era um ato de coragem, que é o contrário<br />

de medo, mas uma tola bravata dos<br />

dois jovens protagonistas.<br />

E bravata, gente, não é coragem.<br />

Coragem seria vencer um medo verdadeiro<br />

– e muitas vezes sensato e inteligente<br />

– em caso de extrema necessidade ou situação-limite.<br />

Imaginem só se o medo da Nieta, o de<br />

parecer medrosa, resultasse em um ferimento<br />

no rosto, ou mesmo no olho, do valentão<br />

que provocou aquela cena? Ixi!<br />

TATIANA BELINKY Escritora. Entre os seus livros estão: Coral<br />

dos bichos e Mandaliques<br />

ILUSTRAÇÔES DE FÊ PARA O LIVRO DOS DISPARATES DE TATIANA BELINKY, ED. SARAIVA<br />

11


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FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

FÓBOS,<br />

MICHELANGELO<br />

MIRIAM SUTTER<br />

Medo, pânico, terror, temor, horror, pavor,<br />

fobia! A todo o momento nos confrontamos<br />

com estes sentimentos que nos inundam<br />

e assombram e nos parecem únicos e unipessoais.<br />

Cada qual sofre os seus medos! Mas o<br />

que é o medo? A moderna ciência talvez tenha<br />

já suas teorias e suas respostas, talvez não!<br />

Mas antes do pensamento científico, a consciência<br />

mítica, operando por uma lógica diferente,<br />

experienciava o medo e sentimentos semelhantes<br />

e os explicava por meio de uma linguagem<br />

própria, a linguagem mítica. Mas há<br />

algum mito específico do medo? Não, não há!<br />

Mesmo porque na linguagem dos mitos ou na<br />

“gramática” da consciência mítica as palavras<br />

não precisam necessariamente de uma “explanação<br />

discursiva”. Elas próprias, as palavras,<br />

assumem o caráter de “seres míticos”, dotadas<br />

de um poder mágico, que as transforma em<br />

uma espécie de força divina primitiva, de onde<br />

emana e se corporifica ou presentifica tanto o<br />

ser quanto a ação ou sentimento que a palavra<br />

designa. “No princípio era o Verbo …”<br />

Nos mitos gregos encontramos muitas<br />

destas palavras que designam paixões, qualidades<br />

intelectuais, sentimentos: Mnemosýne, a<br />

Memória, a mãe das Musas é uma delas; Éris,<br />

a Discórdia; Éros, o Amor; e assim por diante.<br />

São palavras divinizadas, ou melhor, são daímones,<br />

“poderes divinos” que não possuem<br />

propriamente um mito, mas que se constituem<br />

como realidades divinas no e pelo próprio<br />

nome que as designa. Quando se presentificam<br />

no íntimo do homem, os daímones são<br />

sentidos como forças que ultrapassam e extravasam<br />

o ser humano, pois um daímon é “o<br />

rosto oculto da ação divina”. O medo, em grego<br />

Fóbos (Phóbos) 1 , é uma dessas palavras: é um<br />

daímon, uma força divina.<br />

E é como um daímon que encontramos<br />

Fóbos em Homero. Na Ilíada, Fóbos sempre<br />

está presente quando Ares, o deus da guerra<br />

sanguinolenta, o deus que se sacia de sangue<br />

e de carnificina, o “matador de homens” está<br />

em ação.<br />

Ares instigava os troianos, Atena de olhos<br />

brilhantes, os aqueus. Deímos (o terror) e Phóbos<br />

(o medo) estavam soltos, e também Éris ( a<br />

discódia), a aliada-irmã de Ares matador de homens,<br />

o insaciável e incontido furor da sanguinolenta<br />

carnificina … ( Il.IV, 399 sqq.)<br />

No mundo da lógica lingüística, no entanto,<br />

fóbos possui uma outra história. Em<br />

sua origem ou etimologia, fóbos é um nome<br />

de ação, derivado do verbo “fébomai” (phébomai).<br />

Este verbo é empregado por Homero<br />

no sentido de “fugir”, especialmente quando<br />

menciona um“grupo de pessoas que foge<br />

tomado de medo, pânico ou terror. O sentido<br />

primeiro de fóbos é, portanto, “fuga”, mas<br />

fuga motivada pelo medo. Medo de enfrentar<br />

o adversário na luta, medo da violência<br />

desenfreada de Ares, em última instância,<br />

medo da violência de matar e ser morto. Sentimento<br />

e ação se fundem, e de seu sentido<br />

primeiro, “fuga”, fóbos passa a significar o<br />

próprio medo em si.<br />

Mas para a mentalidade mítico-religiosa,<br />

Fóbos, o medo, é um daímon, uma força exterior<br />

ao homem, e por isso personificada como<br />

um “demônio” divino. Hesíodo, poeta poste-<br />

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FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

UMA POTÊNCIA DIVINA<br />

rior a Homero, confirma esta personificação<br />

na sua Teogonia.<br />

Na genealogia divina de Hesíodo, Fóbos<br />

como personificação do Medo recebe uma<br />

filiação definitiva. Seu pai, como não poderia<br />

deixar de ser, é o terrível deus Ares, o flagelo<br />

dos homens. Mas é então que a simbologia<br />

mítica nos surpreende e encanta. Sua<br />

mãe é Afrodite, a deusa da fecundidade, a<br />

personificação do instinto biológico que assegura<br />

a perpetuação das espécies e, conseqüentemente,<br />

deusa do desejo sexual e deusa<br />

do amor.<br />

Hesíodo, todavia, só menciona a união de<br />

Ares e Afrodite e os filhos que os dois deuses<br />

geraram. Mas Homero, na Odisséia (VIII, 266<br />

sqq.), nos relata um episódio pitoresco da<br />

união amorosa de Ares e Afrodite.<br />

Segundo o mito, Afrodite desposara em<br />

bodas legítimas o deus Hefesto, o deus ferreiro,<br />

que confeccionava artefatos extraordinários<br />

em suas forjas divinas. Mas Hefesto<br />

era o único deus feio e fisicamente imperfeito<br />

do Olimpo, pois era coxo. Além disso,<br />

pode-se dizer que também era “manco” psiquicamente,<br />

uma vez que fora rejeitado por<br />

seus pais, Hera e Zeus, ao nascer. Mas essa<br />

já é outra história.<br />

Certo dia, Hefesto recebeu<br />

a visita de Hélio, o deus<br />

Sol que tudo vê, ao percorrer<br />

diariamente o mundo<br />

em seu magnífico carro<br />

dourado, puxado por cavalos<br />

imortais. Hélio tinha<br />

visto Afrodite e Ares quando<br />

se amavam às ocultas no<br />

próprio palácio de Hefesto.<br />

O feio e coxo deus, julgando<br />

que era desprezado por<br />

sua imperfeição física, resolveu<br />

flagrar os dois amantes.<br />

Confeccionou uma rede de<br />

malhas inquebrantáveis e<br />

invisíveis, estendeu-a sobre o leito conjugal e<br />

avisou a esposa de que saía para receber suas<br />

homenagens cultuais na ilha de Lemnos.<br />

Afrodite imediatamente chamou Ares, que<br />

sôfrega e velozmente se precipitou ao encontro<br />

da amada. Estavam juntos no leito quando<br />

subitamente se viram enredados na armadilha<br />

de Hefesto. Este logo chamou os deuses<br />

para testemunharem a traição e a desonra<br />

do leito conjugal. Para seu espanto, porém,<br />

Apolo, Posídon, Hermes riram-se da situação<br />

e convenceram Hefesto a soltar os dois amantes,<br />

mediante um tipo de “indenização por<br />

perdas e danos”. Libertos, Ares voltou para<br />

seu lar na Trácia; Afrodite, para Chipre, onde<br />

as ninfas a banharam, untaram seu corpo com<br />

óleos odoríferos e a vestiram com mantos deslumbrantes.<br />

Indiscrições homéricas à parte, da união<br />

desses dois extremos antagônicos de um todo,<br />

pulsão de vida (Afrodite) e pulsão de morte<br />

(Ares), nascem Fóbos e seus dois irmãos: Deímos<br />

(o terror) e a bela Harmonia.<br />

Harmonia, etimologicamente, significa “o<br />

acordo”, “a junção das partes”. Harmonia é,<br />

portanto, outra daquelas palavras divinizadas<br />

e personificadas que presentificam uma abstração,<br />

qual seja, a concórdia, o consenso, o<br />

equilíbrio e, como tal, estava desde sempre<br />

associada ao âmbito do amor e à deusa Afrodite,<br />

de cujo cortejo fazia parte. Personificada, torna-se<br />

a filha de pais antagônicos, Ares e Afrodite,<br />

e ganha por irmãos Deímos e Fóbos.<br />

Deímos, o terror que paralisa momentâneamente<br />

o homem, é irmão de Fóbos, o medo<br />

do desconhecido que faz fugir.<br />

Morte, vida, discórdia, concórdia, ódio,<br />

amor, desarmonia, harmonia, medo, destemor<br />

… constelam, assim, na linguagem mitopoética,<br />

um complexo divino de opostos “aparentados”<br />

e, justamente por isso, são símbolos de<br />

realidades paradoxalmente opostas e complementares,<br />

que subjazem à condição humana,<br />

ambígua em si mesma, ontem e hoje … e sempre.<br />

A nós, meros mortais, resta-nos a aventura<br />

de descomplexificá-los, de harmonizá-los,<br />

sem fóbos, ou como diz a nossa poesia oral,<br />

“sem medo de ser feliz”.<br />

1 Fóbos, em grego, possui muitos correlatos semânticos. Pânico<br />

(< panikós “do deus Pã ”, terror infundido pela aparição de<br />

Pã) é um deles; déos, “medo dos deuses”, “temor respeitoso”,<br />

“reverência”; deíma, “temor” são outros, com outras nuances<br />

semânticas.<br />

MIRIAM SUTTER Professora da PUC-Rio, doutora em Língua e<br />

Literatura Latina<br />

DIVULGAÇÃO<br />

13


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

CABRA VALENTE DO CORDEL<br />

ENTREVISTA<br />

“Medo para Rafael<br />

continuava um segredo,<br />

pois aprendeu ser valente<br />

teve que lutar tão cedo<br />

que na vida nunca teve<br />

qualquer sensação de medo.”<br />

Do cordel Duelo de machos, de Gonçalo Ferreira da Silva<br />

A literatura de cordel reflete de forma quase<br />

imediata, o cotidiano, as crenças e aspirações<br />

do povo brasileiro. Um povo, que em grande<br />

parte, raramente tem acesso a uma educação<br />

formal e aos livros. Narrativas jocosas, aventurescas<br />

ou aterradoras mantêm viva essa tradição<br />

do nordeste levada ao sul-maravilha em<br />

caminhões e ônibus de migrantes.<br />

O cordelista Gonçalo<br />

Ferreira da Silva é um<br />

autor e um apaixonado<br />

pela literatura de cordel<br />

e pelo repente.<br />

Em Santa Teresa,<br />

bairro histórico do<br />

Rio de Janeiro, ele<br />

reúne um acervo incomum<br />

de cordéis e<br />

promove encontros<br />

com os denominados<br />

por ele acadêmicos<br />

da Academia <strong>Brasil</strong>eira<br />

de Literatura de<br />

Cordel. Em meio a pequenas<br />

histórias do cangaço,<br />

lendas brasileiras e histórias<br />

urbanas, ele pinçou<br />

uma que fala do medo, ou<br />

melhor, da falta de medo<br />

do homem do nordeste, que<br />

segundo Gonçalo “por natureza<br />

não sente medo, e se sente é algo<br />

secreto. Ele não deixa exteriorizar o medo, a não<br />

ser no dia que tiver uma prova monstruosa. Pois<br />

na literatura de cordel não existe maior virtude -<br />

nem bondade ou beatitude - que a coragem de um<br />

sujeito.”<br />

Um amigo meu estava na casa de um compadre.<br />

Quando chegou perto da meia-noite,<br />

foi aconselhado pelo dono da casa:<br />

- Rapaz, você não devia viajar a esta hora,<br />

é muito perigoso. Você vai passar pela gruta<br />

da Avó.<br />

E o outro, com fama de cabra macho,<br />

retrucou:<br />

- Não, isso é coisa que não existe, é coisa<br />

de leigo.<br />

Quando chegou na gruta da Avó, meu<br />

amigo viu que tinha um camarada parado. De<br />

repente, a figura do sujeito se agigantou de uma<br />

maneira inaceitável, ficando com quatro ou cinco<br />

metros de altura. Aí ele teve medo, muito<br />

medo. Quis correr, mas as pernas lhe negaram<br />

equilíbrio. Ele ficou numa situação tal até que<br />

ele acabou correndo de qualquer maneira.<br />

O sol veio raiando às cinco horas da manhã,<br />

e ele ficou feliz pela vista da porteira do<br />

cercado, da aproximação da casa. E disse:<br />

- Ah! Valeu-me Deus que estou em casa.<br />

Chegando perto da<br />

cerca, tinha seu camarada,<br />

que o havia recebido<br />

na noite anterior,<br />

na porteira:<br />

- Ô rapaz, eu passei<br />

por uma situação esta<br />

noite. Uma situação<br />

inaceitável para um homem<br />

do sertão, acostumado<br />

a não temer coisa<br />

alguma. Meia-noite,<br />

quando fui atravessar<br />

a gruta da Avó,<br />

uma figura se agigantou<br />

de maneira estúpida<br />

na minha<br />

frente. Só o pé<br />

dava mais de um<br />

metro.<br />

- Mais ou menos<br />

assim...<br />

E o sujeito mostrou o<br />

pé que se agigantava nas<br />

sombras do lusco-fusco do<br />

amanhecer. O amigo só<br />

quis mostrar que medo é<br />

coisa de ocasião.<br />

E perguntado se já sentiu<br />

medo Seu Gonçalo responde:<br />

“eu não sei se o que sinto é medo. Pelo que as<br />

pessoas falam, o que eu sinto seria um princípio de<br />

medo, mas como eu não tenho certeza, digo que não.<br />

Só de uma prova monstruosa”.<br />

“Foi este mais um capítulo<br />

da maldade e tirania<br />

da história do nordeste<br />

para ser contado um dia<br />

que acaso for abordado<br />

assunto de valentia”<br />

Do cordel Labareda, o capador de covardes, de Gonçalo Ferreira<br />

da Silva<br />

DETALHES DE XILOGRAVURA DE ERIVALDO PARA O CORDEL A CHEGADA A DE LAMPIÃO NO INFERNO, DE JOSÉ PACHECO<br />

14<br />

14


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

NOSSO VELHO E<br />

ESTRANHO CONHECIDO<br />

JOSÉ DURVAL CAVALCANTI<br />

DE ALBUQUERQUE<br />

Existirá um dia no qual tenhamos vivido<br />

sem o mais leve sentimento de medo?<br />

Não é possível, e ninguém objetará, se após<br />

procurarmos na mais recuada de nossas memórias<br />

dissermos que esse dia não aconteceu.<br />

Medo do dia que se inicia. Medo do<br />

dia que se vai com a noite, a chegar com seus<br />

sortilégios. Medo, onde o sono nos envolve<br />

em sonhos, a nos transportar a lugares<br />

que, apesar de desconhecidos,<br />

são estranhamente familiares.<br />

Medo contido no grito da<br />

criança, na noite, a assustar<br />

seus pais, horrorizada com<br />

as formas da sombra a desenharem<br />

fantasmas de<br />

um “bicho”, de um “ladrão”,<br />

de um “papão”.<br />

Aquele expresso no sonho<br />

de cair no abismo, de contemplar<br />

o próprio corpo, de que<br />

nos perseguem, da onda gigantesca<br />

prestes a nos engolfar, da pessoa<br />

querida com vestes e rosto do desconhecido.<br />

Do sentimento de que nos<br />

contam alguma coisa em voz que não se<br />

ouve. De contemplar uma nuvem a desenhar<br />

formas não sabidas. Medo, que determina<br />

um estupor diante do realizado da tragédia<br />

que só no pensamento foi rascunhada. No<br />

perseverante medo infantil, a nos acompanhar<br />

com a imagem de monstros que nadam<br />

em poço negro e profundo, como algo que<br />

não se gasta e que permanece fora do tempo.<br />

É qualquer coisa que nos habita, que até<br />

no sono nos agita, sem descansar. Angústias<br />

sonhadas, muito mais reais do que as que o<br />

dia a dia nos traz. Sensações somente imagi-<br />

nadas e, no entanto, verdadeiramente sentidas.<br />

São tantas as coisas que, mesmo sem<br />

existirem, existem o tempo todo. É o afeto<br />

que pode nos tomar quando contemplamos<br />

uma bolinha de papel na correnteza d’água,<br />

a pular desassossegada na direção do escuro<br />

de um bueiro. É quando entendemos a noite<br />

que se aproxima como aquilo que tira o mundo<br />

do mundo, assinalando o umbigo do<br />

medo. Como dizia o poeta, “é o medo da morte<br />

e o medo de depois da morte”.<br />

Na sua origem, biologicamente, a criatura<br />

humana, comparada aos outros animais,<br />

sofre uma prolongada dependência daqueles<br />

que a nutrem e amparam. Em seu começo,<br />

este ser constitui-se com um arremedo<br />

de abertura para o mundo, ao qual lançará<br />

seus apelos. Internamente, do ponto de vista<br />

psíquico, um condensado de energias sem<br />

organização, onde não existe vontade, o não,<br />

a contradição, a noção de tempo, mas tão<br />

somente uma força constante e imperiosa na<br />

direção de uma satisfação. Em seu princípio,<br />

este ser inerme sai de sua obscuridade através<br />

do grito. Grito esse a presentificar o outro,<br />

próximo na resposta ao seu apelo. Esta resposta,<br />

formada na ajuda, confere sentido ao<br />

grito. É ato inaugural de uma compreensão<br />

mútua, edificada sobre a dependência constitutiva<br />

do ser humano. É o que determina um<br />

modo de relação que vai servir de palco para<br />

o desenrolar da história do homem.<br />

A criança não sabe do certo ou do errado,<br />

do bem ou do mal. Estas noções encontram-se<br />

no outro, a bem dizer, nos pais, através<br />

do que dizem e mostram. É do próximo<br />

que ela vai receber as palavras com as quais<br />

se “entende”. É da mãe que, ouvindo o choro<br />

da criança, diz: “Tens sono, tens fome,<br />

tens medo”. É um outro que fala pelo um.<br />

Implica isto um constante medo do errar,<br />

num viver entre a culpa e o castigo. No<br />

pior dos medos, a perda do amor ou<br />

do abandono. O homem lança mão<br />

de recursos: heróis imortais e imbatíveis,<br />

espíritos protetores<br />

serão inventados.<br />

Orações poderosas<br />

contra<br />

os inimigos serão<br />

invocadas.<br />

Mais tarde,<br />

quem sabe, talvez,<br />

um “não preciso de nada”. Ou ainda, um de<br />

tudo saber. Antídoto vigoroso, o amor, deve<br />

ser usado. Porém, paradoxalmente, este traz<br />

novamente o medo. O de perder o seu objeto<br />

de amor ou de não ser correspondido. O<br />

retorno ao inanimado, a morte, é o final da<br />

cadeia do medo.<br />

JOSÉ DURVAL CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Médico, psiquiatra<br />

e membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise<br />

Iracy Doyle.<br />

E-mail: jdurval@unisys.com.br<br />

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LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

A VIOLÊNCIA<br />

IRINEU EDUARDO J. CORRÊA<br />

Assaltos, seqüestros, assassinatos, balas<br />

perdidas, brigas em boates e bailes. Todos têm<br />

um caso de violência para contar. A imprensa<br />

noticia a sua banalização e ela acabou por<br />

se tornar a maior preocupação da sociedade.<br />

Várias causas são apontadas para a explicar a<br />

situação: miséria, patologias individuais e sociais,<br />

educação, decisão individual, decisão<br />

política. Um único sentimento está no centro<br />

das ações de vigilância, prevenção e defesa:<br />

o medo de ser tocado por ela.<br />

O medo é um velho companheiro do homem,<br />

embora não tenha nascido com ele. Recém-nascidos,<br />

aparentemente, não têm o que<br />

chamamos de medo. O primeiro choro do<br />

bebe é ocasionado pela distensão dos pulmões<br />

e os imediatamente seguintes são devidos à<br />

sensação de desconforto gerada pela falta de<br />

alimento na barriga ou pela falta de manutenção<br />

da temperatura no nível epidérmico.<br />

Com o passar do tempo, os comportamentos<br />

associados àquelas sensações se tornam<br />

mais complexos e variados. Um deles corresponderia<br />

a uma espécie de angústia, seja diante<br />

da fome, seja pela falta do seio ou da<br />

mamadeira que saciará aquela sensação. Idem<br />

em relação ao frio, que será saciado por uma<br />

boa coberta ou, de modo igualmente eficiente,<br />

por um bom aconchego.<br />

Na medida que as sensações se repetem,<br />

entra em cena uma divisão prática entre aquele<br />

que as sentem, a quem podemos chamar de<br />

sujeito, e aquela coisa outra que sacia. O desenvolvimento<br />

de cada pessoa tem por base<br />

essa relação, um processo que faz as distinções<br />

entre os objetos que estão no mundo, sejam<br />

pessoas, coisas ou ações. Importante lembrar<br />

que todo e qualquer sujeito poderá ocupar a<br />

posição de objeto ou de Outro. E isto não parece<br />

ser problema para nenhum deles, pelo<br />

menos, em situações normais.<br />

Em sua trajetória, as pessoas vão experimentando<br />

uma infinidade de sensações agradáveis<br />

e outras tantas desagradáveis, as quais<br />

podem, até mesmo, estar distanciadas daquelas,<br />

direta e inicialmente, ligadas à fome, ao<br />

frio e à saciedade, até a um ponto quase impossível<br />

de identificar qualquer relação entre<br />

aquelas primeiras e as novas. Nesse processo,<br />

podem entrar na lista de objetos mesmo aqueles<br />

que não foram diretamente testados, bastando<br />

que se pareçam com algum que já esteja<br />

na lista. A identificação dessa semelhança<br />

varia de indivíduo para indivíduo, o que serve<br />

de ponto de referência para um, não serve<br />

necessariamente para outro, embora, num<br />

mesmo grupo os gostos tendam a se aproximar<br />

uns dos outros. Aliás, quem diverge muito<br />

da média do seu grupo costuma ser chamado<br />

de excêntrico ou esquisito. De qualquer<br />

modo, as sensações de ambos os tipos vão se<br />

acumulando e o indivíduo se aproxima de um<br />

estado de equilíbrio homeostático e psicológico,<br />

no qual a sua consciência de diferenciação<br />

das coisas e pessoas do mundo avança, para<br />

além daquela dimensão prática de quando era<br />

bebê, em direção a uma subjetividade que permite<br />

que ele se reconheça definitivamente<br />

como sujeito e reconheça o mundo como diferenciado<br />

de si, onde têm existência objetos e<br />

o Outro.<br />

Todavia, este equilíbrio não é estático ou<br />

definitivo, até mesmo no indivíduo adulto,<br />

e a manutenção do equilíbrio é uma atividade<br />

constante e árdua, mesmo que não seja<br />

consciente todo o tempo.<br />

O ato que identificaremos como violento<br />

é aquele em que o equilíbrio é rompido de<br />

modo drástico e a integridade do sujeito é colocada<br />

em risco, quer do ponto de vista<br />

objetivo, quer do<br />

subjetivo.<br />

Nesta conjunção estarão estabelecidas as<br />

condições para que apareça o estado chamado<br />

de medo. Embora seja claramente um estado<br />

de desequilíbrio, onde predominam as<br />

sensações desagradáveis, o medo tem um papel<br />

importante, de certo modo vital para a<br />

sobrevivência, quando ajuda na identificação<br />

e controle por enfrentamento ou fuga<br />

de alguma situação desfavorável aos seus interesses<br />

ou de algum inimigo.<br />

Mas não é este o medo que se constitui<br />

na preocupação maior da sociedade atual.<br />

Neste caso está o medo que vem sendo gerado<br />

por uma situação de violência que associa<br />

episódios de alta potência com constância<br />

permanente, uma combinação que vem<br />

fazendo com que as pessoas se sintam desamparadas,<br />

de tal forma que perdem o sentimento<br />

de ser sujeito e se vejam como se<br />

fossem mero objeto, subordinado às vicissitudes<br />

da violência que o faz sofrer.<br />

Neste estado de coisas, a imensa desproporção<br />

entre a potência do ato violento e a<br />

presumida capacidade de resposta do indivíduo<br />

faz com que esta se torne inexeqüível<br />

e, de imediato, não reste ao indivíduo nem<br />

a fuga e nem o enfrentamento, apenas aguardar<br />

que passe. Na verdade, uma fuga sim,<br />

mas por uma espécie de congelamento ou<br />

anestesia até que aquele acontecimento termine.<br />

Posteriormente, uma alegria desmedida,<br />

gerada pelo fim da situação de tensão,<br />

pouco depois, uma profunda melancolia e<br />

uma raiva incomensurável, mesmo<br />

quando negadas ou<br />

reprimidas.<br />

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LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

QUE PARALISA<br />

Noutra ponta, as atitudes que preveniriam<br />

a violência tentarão se equiparar a ela em<br />

potência. Ao sujeito ameaçado em sua integridade,<br />

qualquer espaço protegido é considerado<br />

um oásis, não importando o preço que se<br />

pague por isso, em termos concretos ou subjetivos<br />

— seja dinheiro, liberdade individual ou<br />

coletiva. Os automóveis particulares são blindados.<br />

Pessoas, condomínios e trechos de ruas<br />

recebem segurança particular ostensiva. As residências<br />

são gradeadas e se transformam em<br />

verdadeiras fortalezas. A vigilância constante<br />

em locais públicos por câmeras de vídeo se dissemina.<br />

A imprensa repercute o clamor por<br />

uma polícia de eficiência absoluta, leis muito<br />

mais rígidas e sentenças judiciais mais longas e<br />

de execução sem possibilidade de comutação<br />

ou outros recursos de suavização. Ninguém<br />

nota que diariamente a polícia prende mais e<br />

mais suspeitos e criminosos, os tribunais estão<br />

abarrotados de processos, os julgamentos<br />

se sucedem e as prisões e penitenciárias estão<br />

superlotadas. Alguns políticos dizem que “bandido<br />

bom é bandido morto”. Algumas pessoas<br />

concordam. O medo da violência parece<br />

justificar a violência contra o Outro.<br />

IRINEU EDUARDO J. CORRÊA Psicólogo, mestre em Letras e pesquisador<br />

da Fundação Biblioteca Nacional. Trabalhou como coordenador<br />

de projetos da FUNABEM e exerceu a presidência da<br />

Comissão de Ética do Conselho Regional<br />

de Psicologia do Rio de Janeiro.<br />

TERROR DA MORTE (fragmento)<br />

“Ah, o horror de morrer!<br />

E encontrar o mistério frente a frente<br />

Sem poder evitá-lo, sem poder...<br />

Gela-me a idéia de que a morte seja<br />

O encontrar o mistério face a face<br />

E conhecê-lo. Por mais mal que seja<br />

A vida e o mistério de a viver<br />

E a ignorância em que a alma vive a vida,<br />

Pior me [relampeja] pela alma<br />

A idéia de que enfim tudo será<br />

Sabido e claro...<br />

O animal teme a morte porque vive,<br />

O homem também, e porque a desconhece;<br />

Só a mim é dado com horror<br />

Temê-la, por lhe conhecer a inteira<br />

Extensão e mistério, por medir<br />

O [infinito] seu de escuridão.<br />

Medo da morte, não; horror da morte.<br />

Horror por ela ser, pelo que é<br />

E pelo inevitável.<br />

”<br />

FERNANDO PESSOA 1888-1935 Considerado um dos<br />

maiores poetas da língua portuguesa<br />

AMOR E MEDO (fragmento)<br />

“Como te enganas! meu amor, é chama<br />

Que se alimenta no voraz segredo,<br />

E se te fujo é que te adoro louco...<br />

És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...<br />

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,<br />

Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.<br />

Das folhas secas, do chorar das fontes,<br />

Das horas longas a correr velozes.<br />

CASIMIRO DE ABREU 1839-1860<br />

Poeta. Autor de As primaveras.<br />

”<br />

DIVULGAÇÃO<br />

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LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

“Quem tem medo do futuro,<br />

tem medo de ser livre!”<br />

Frei Beto Escritor<br />

ZUENIR VENTURA<br />

ENTREVISTA<br />

O Rio de Janeiro continua lindo. Mas infelizmente<br />

esta beleza está encoberta pela sombra<br />

da violência. Uma sombra que encobre<br />

também outras grandes e belas cidades brasileiras.<br />

É triste ver as cadeiras nas calçadas de<br />

antigas ruas de subúrbio serem recolhidas para<br />

dentro de casas gradeadas. O comércio fecha<br />

suas portas, as casas, suas janelas e a população<br />

seu coração, trancados a cadeado pelo<br />

medo. Lar de brasileiros e estrangeiros, democrática<br />

em suas praias e rodas de samba, e hoje<br />

rasgada pela miséria e violência.<br />

Em seu livro Cidade partida, o jornalista<br />

Zuenir Ventura conta a história de uma cidade<br />

que nasceu com a vocação da acolhida<br />

e foi mutilada pela insegurança. Em entrevista<br />

ao Leituras Compartilhadas, este cronista<br />

da vida carioca fala da cultura do medo estabelecida<br />

e de sua crença de que o Rio de Janeiro<br />

vai continuar sendo...<br />

LC:O grande problema do Rio de Janeiro<br />

atualmente é a violência. O que isto<br />

gera no cotidiano da cidade?<br />

Zuenir: O problema dos níveis de violência<br />

hoje é que eles provocam, além<br />

do medo natural e justificável, o<br />

medo irracional e, às vezes, imotivado.<br />

Há casos em que o<br />

medo se torna pior que a<br />

própria violência. Hoje,<br />

muitos têm medo de<br />

vir ao Rio de Janeiro.<br />

Um medo que não<br />

cede à argumentação<br />

de que muitos<br />

cariocas, por<br />

exemplo, nunca<br />

foram assaltados.<br />

A cultura<br />

da violência acabou<br />

por criar uma cultura do medo que, como já<br />

disse, tornou o medo da violência pior do que a<br />

própria violência.<br />

LC: O início dos agrupamentos humanos, que<br />

deram origem às cidades, foi causado pela necessidade<br />

da união dos habitantes de determinadas<br />

regiões de se unirem para uma melhor defesa contra<br />

inimigos externos. Hoje, o inimigo é interno.<br />

Isto pode gerar um processo inverso de isolamento<br />

e fuga dos grandes centros?<br />

Zuenir: Todas as formas de isolamento, de segregação,<br />

de distanciamento já foram tentadas. Aqui<br />

no Rio, primeiro as pessoas tentaram cercar suas<br />

casas com grades, depois foram para condomínios<br />

fechados. Tentaram criar exércitos particulares<br />

de seguranças, se fechar em verdadeiros<br />

bunkers, e nada disso deu certo. Um caso controvertido<br />

são os condomínios da Barra da Tijuca 1 ,<br />

onde teoricamente as pessoas estariam livres da<br />

violência, com a realidade mantida de fora. Por<br />

fim, foi constatado que havia uma violência endógena,<br />

um tipo de violência interna que se criou<br />

nos condomínios. Hoje, um dos seus maiores<br />

problemas é exatamente a violência dos jovens<br />

que roubam carros para comprar drogas e as brigas<br />

de gangues, tornando os condomínios semelhantes<br />

a guetos violentos. Muitas tentativas<br />

de segregação, de apartheid, foram tentadas e todas<br />

fracassaram. A solução não é fácil. É demorada.<br />

É a solução da integração da cidade. O Rio<br />

de Janeiro é uma cidade calorosa, de encontro,<br />

afetuosa, uma cidade realmente de celebração.<br />

O destino do Rio vai ser o de voltar ao encontro,<br />

à celebração. Espero que o momento atual<br />

seja um acidente de percurso. Espero que a vocação<br />

do Rio, seu destino, seja realmente a da<br />

integração. O apartheid, seja o racial, seja o social,<br />

não dá certo em nenhum lugar do mundo e<br />

no Rio de Janeiro também não dá. Apesar de<br />

tudo, a esperança é que haja realmente o encontro,<br />

o destino natural das cidades.<br />

LC: Então a busca de interação cultural, como os<br />

projetos que procuram integrar os habitantes da<br />

ILUSTRAÇÃO DE JUAREZ MACHADO PARA SEU LIVRO LIMITE, ED. AGIR<br />

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LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

E A CIDADE PARTIDA<br />

favela com os do asfalto, seria um caminho?<br />

Zuenir: Quando eu disse que, às vezes, o medo<br />

da violência é pior do que a violência, isso acontece<br />

muito pelo nosso olhar daqui do asfalto para<br />

as favelas. Nós temos a idéia, a impressão carregada<br />

de estereótipos, de que lá é um antro, uma<br />

usina de violência, esquecendo que ali a maioria<br />

da população é pacífica, ordeira e trabalhadora.<br />

A violência ali é produzida por um núcleo mínimo<br />

de 0,1 % dos moradores. Eu acho que você<br />

olhar para a favela, para o outro, para o diferente,<br />

e mudar seu olhar de suspeita, desconfiança,<br />

é uma forma efetiva de aproximação. A cultura,<br />

mais uma vez, está fazendo isso como fez no<br />

fim do século XIX com o samba, que nasceu<br />

sendo a música dos segregados, discriminado, e<br />

acabou sendo apropriado pela classe média, depois<br />

de um primeiro momento em que ela o rejeitava<br />

e temia. Está acontecendo um pouco isto<br />

com a cultura do hip hop, do funk, e com os grupos<br />

de música de periferia. Essa é uma forma de<br />

integração. No Rio, ou melhor, no <strong>Brasil</strong>, a economia<br />

separa o que a cultura une. A ponte desta<br />

cidade partida tem de ser feita além do movimento<br />

social, também pela cultura.<br />

LC: Cidade partida foi lançado em 1994.<br />

Nestes oito anos, o que mudou? Você considera<br />

que houve melhora ou a situação se degradou<br />

ainda mais?<br />

Zuenir: O que evoluiu daquela época para cá é<br />

que, hoje, a sociedade tem, mais do que naquele<br />

momento, a consciência de que a violência é um<br />

problema dela também. De que não adianta virar<br />

as costas para esta questão. De nada vale dizer<br />

que se pagam impostos, portanto isto é problema<br />

do governo, ele que resolva o problema<br />

da violência. Sabemos que não é assim. Até porque<br />

a bala perdida não escolhe cabeça. Ela está<br />

caindo do nosso lado, aqui no asfalto. Essa consciência,<br />

que ainda é embrionária e precisa ser desenvolvida,<br />

começa a tomar corpo na sociedade.<br />

Com os movimentos do terceiro setor e toda essa<br />

tragédia que aconteceu, de alguma maneira chamamos<br />

a atenção para isto. Eu diria que hoje há<br />

uma maior consciência da sociedade de que ela<br />

tem uma tarefa a cumprir nessa questão.<br />

LC: Então a sociedade, como forma de combater<br />

o medo, partiu para tentar conhecer e entender<br />

os problemas que causam a violência e, por conseguinte,<br />

o medo?<br />

Zuenir: Exatamente. Durante décadas, até mais<br />

de um século, fomos criados com todos os<br />

estereótipos em relação às favelas como um<br />

antro de violência. Quando você vê as condições<br />

de vida lá, se surpreende de como é pacífica<br />

essa população. Porque, na verdade,<br />

todos os bens, direitos e conquistas da cidadania<br />

ainda não chegaram lá. Então criamos<br />

uma série de barreiras preconceituosas, uma<br />

visão estereotipada, estigmatizando um universo<br />

por ele ser diferente do nosso. Diferente<br />

na cor da pele, diferente na maneira de<br />

morar, o fato de ser pobre... Isto tudo em um<br />

processo de associação que é muito mais<br />

antigo.Vou me remeter apenas ao período da<br />

abolição da escravatura, quando os negros foram<br />

jogados na rua: “agora vocês se virem”. Por<br />

esse processo de discriminação ter sido muito<br />

permanente, muito freqüente, ele está arraigado,<br />

entranhado na nossa história recente<br />

e também na mais remota. Para sair disto<br />

leva tempo, mas eu creio que hoje já esteja<br />

surgindo uma luz no fim do túnel. Sabemos<br />

que a solução está na aproximação e não na<br />

guerra. Nós temos uma certa vantagem, pois<br />

no <strong>Brasil</strong> não existem questões explosivas,<br />

como por exemplo, a questão racial do Leste<br />

Europeu, em países como a Iugoslávia em que<br />

se mata por achar que o sangue é diferente.<br />

Temos preconceito e racismo, mas não é uma<br />

forma tão explosiva, de jeito que não estamos<br />

à beira de uma guerra racial, étnica. Podemos<br />

estar próximos de uma guerra social,<br />

isto é, de uma convulsão social. Mas todo problema<br />

social tem jeito. A questão da miséria<br />

é uma questão de vontade política, que pode<br />

ser resolvida com um programa de integração<br />

social. O <strong>Brasil</strong> tem - e o Rio de Janeiro<br />

tem muito - uma energia vital, uma alegria,<br />

muito grande. Apesar de tudo, neste momento,<br />

o que vivemos é a vocação da celebração,<br />

do encontro, da alegria, da paz.<br />

1 Bairro do Rio de Janeiro conhecido por seus condomínios e shoppings .<br />

ZUENIR VENTURA Jornalista e professor universitário há 40 anos.<br />

Ganhou o prêmio Esso de Reportagem e o Prêmio Wladimir Herzog<br />

de Jornalismo, em 1989. É autor de 1968, O ano que não terminou<br />

e Cidade partida. Atualmente é colunista do jornal O Globo.<br />

ANA CLÁUDIA MAIA<br />

“...A missa foi na segunda-feira, e no dia<br />

seguinte, no feriado ensolarado, quem não estava<br />

vendo a parada militar, estava na praia.<br />

Às 12h45, as areias de Ipanema e Arpoador<br />

estavam lotadas.<br />

De repente, a confusão. Cerca de cinqüenta<br />

garotos, identificados depois como funkeiros<br />

de algumas favelas da cidade, começaram a<br />

brigar. Os tiros disparados para o alto pelos<br />

policiais militares – uns poucos, já que a maioria<br />

estava no desfile – aumentaram o pânico.<br />

O tumulto durou menos de uma hora, mas<br />

foi suficiente para esvaziar as duas praias vizinhas<br />

e encher a imaginação das pessoas de terror.<br />

Os banhistas correram apavorados, achando<br />

que iriam ser vítimas de um arrastão igual<br />

ou pior do que o de outubro de 1992.<br />

Às duas manifestações anteriores de violência<br />

– a chacina de Vigário Geral e um mês<br />

antes o massacre dos oito meninos de rua na<br />

Candelária – se somava mais essa. Os três episódios<br />

estavam carregados de um intenso peso<br />

simbólico. Segundo o antropólogo Luiz Eduardo<br />

Soares, significavam ‘a violação de três espaços<br />

míticos: o espaço sagrado, o espaço doméstico<br />

e o espaço do convívio democrático, a<br />

praia’. A imagem da cidade apartada pelo<br />

medo reforçava a comoção social.”<br />

Cidade partida, de Zuenir Ventura, Ed. Companhia das<br />

Letras, págs. 87,88.<br />

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LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

SÍNDROME DO PÂNICO<br />

UMA HISTÓRIA REAL<br />

BÁRBARA ARANYL<br />

DE LA CORTE<br />

Até onde consigo me lembrar, tive minha<br />

primeira crise de pânico aos 17 anos. Naquela<br />

época ainda não eram freqüentes - não mais<br />

que uma a cada 5 meses - mas já o suficiente<br />

para me fazer acreditar ser algo amalucada, ou<br />

cercada por espíritos malignos... Em 1987 pouco<br />

ou nada se falava no <strong>Brasil</strong> sobre a síndrome<br />

do pânico. Passaram-se os anos e várias crises<br />

mais, até que um dia eu me deparasse com<br />

uma reportagem sobre a síndrome. Meu sentimento<br />

- diferentemente do da maioria das pessoas<br />

quando recebem esse diagnóstico - foi de<br />

alívio. Opa! Eu não era Carrie, a estranha... E<br />

tampouco a única a ter aquele tipo de problema.<br />

E, melhor ainda, se havia um nome, se<br />

era um quadro clínico, então haveria de existir<br />

também uma forma de tratamento.<br />

Mas ainda levei muitos anos até conseguir<br />

controlar as crises. Vivia em altos e baixos. Às<br />

vezes se passavam muitos meses sem nenhuma<br />

crise e, de repente, tinha duas em um mês.<br />

Cheguei a cercear minha vida em função da<br />

síndrome. Tinha uma crise em um bar, com amigos,<br />

e resolvia que não queria mais sair de noite...<br />

Que em casa estaria mais “segura”. E então<br />

tinha uma crise em casa, e não havia o que fazer...<br />

Demorei algum tempo até perceber que o<br />

problema estava dentro de mim e, não, fora.<br />

É muito difícil explicar uma crise de pânico<br />

a quem nunca as vivenciou. Costumo tentar<br />

assim: imagine-se sozinho, no meio de um<br />

campo e, de repente, vendo um enorme leão<br />

pulando na sua frente, pronto pra devorá-lo.<br />

Só que não há leão.<br />

Física e emocionalmente, isso se traduz em<br />

uma sensação de perda de controle do próprio<br />

corpo, como se estivesse em curso um<br />

motim interno que não nos achamos capazes<br />

de combater. Você sente-se sufocar, faltando o<br />

ar, faltando o chão, faltando-lhe o controle dos<br />

próprios movimentos e pensamentos. E tremores,<br />

ou dentes batendo, cólicas, enjôo, pressão<br />

baixa, muitas vezes tudo ao mesmo tempo.<br />

Terror.<br />

A vontade que se tem nessas horas é de<br />

correr para algum lugar seguro... Mas, uma vez<br />

que não existe leão (ao menos não um de grande<br />

juba e quatro patas), não há esse lugar seguro.<br />

A ameaça é interna, é você frente aos seus<br />

medos, aos seus fantasmas... E eles o acompanharão<br />

para onde você for.<br />

Já ouvi várias explicações para a síndrome<br />

do pânico, dadas por médicos, psicólogos, psiquiatras.<br />

Em todas elas o fator predominante<br />

era o medo. A síndrome é comum em pessoas<br />

ILUSTRAÇÃO DE JUAREZ MACHADO PARA SEU LIVRO LIMITE, ED. AGIR<br />

com nível de exigência muito alto para consigo<br />

mesmas - e o medo de não ser capaz (seja lá<br />

do que for) leva à crise. E há também o medo<br />

de não ter controle absoluto sobre si mesmo,<br />

corpo/mente/coração. E também o medo de<br />

enfrentar o mundo que nos cerca (e que, convenhamos,<br />

não anda dos mais tranqüilos). Ou<br />

o medo do sofrimento, de estar sozinho, de se<br />

entregar... Toda uma família de medos - bastante<br />

aparentados entre si, diga-se de passagem.<br />

Acho difícil falar em superação total desses<br />

medos. Eles vão e vêm, rondam, espreitam...<br />

Mas tenho aprendido que não há outro<br />

caminho que não seja o enfrentamento. Claro<br />

que isso não é fácil, e aí uma ajuda profissio-<br />

20


“Temer o amor é temer a vida e os que temem<br />

a vida já estão meio mortos.”<br />

Bertrand Russell 1872-1970 Filósofo e matemático inglês<br />

LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

O Caderno de Leitura do Programa<br />

<strong>Leia</strong> <strong>Brasil</strong> reunindo crônicas, contos, poesias,<br />

entrevistas e artigos de especialistas para ajudar<br />

educadores a trabalhar a leitura na escola.<br />

nal é, na minha forma de ver, fundamental.<br />

Fazer uma terapia, para tentar descobrir qual a<br />

origem e como funcionam esses medos. E também<br />

buscar um tratamento, seja alopático, homeopático,<br />

acupuntura, ayurveda... Desde que<br />

sério e seguido com constância.<br />

Juntamente com a ajuda profissional, é de<br />

um valor inestimável a ajuda da família e dos<br />

amigos. Carinho é um poderoso remédio contra<br />

a síndrome.<br />

Quanto a mim, não posso me dizer “curada”.<br />

Sigo com meu tratamento, e vou seguir<br />

enquanto for necessário. Estou em algo como<br />

um work-in-progress. Um contínuo respirar fundo<br />

e tomar coragem. Respirar fundo e mandar<br />

os fantasmas procurarem outra morada, porque<br />

aqui eles não são mais bem-vindos. Isso<br />

porque acredito que – um tanto inconscientemente<br />

- somos nós que os mantemos por perto.<br />

E o fazemos quiçá por medo... Sim, porque<br />

por mais contraditório que isso pareça,<br />

esses medos, a síndrome, o pânico, depois de<br />

um tempo, também podem se constituir em<br />

uma morada, conhecida, e, como tal, aparentemente<br />

mais segura. Algo assim como morar<br />

em uma casa mal-assombrada, mas que é a<br />

única casa que você conhece. Quem pode garantir<br />

que fora dela não vá ser ainda pior?<br />

Não é.<br />

Sei muito bem que conselho não se dá, mas<br />

algumas dicas posso, não? São pequenas coisas<br />

que fui descobrindo no decorrer dos anos, e<br />

que me ajudaram muito. Se ajudarem a uma<br />

pessoa mais que seja, já fico feliz. Vamos lá.<br />

A síndrome do pânico atinge cerca de 3% da<br />

população mundial. No <strong>Brasil</strong>, são aproximadamente<br />

cinco milhões de pessoas. Nem<br />

sempre os sintomas são claros. Saiba mais.<br />

Associação Nacional da Síndrome do Pânico<br />

Telefone (11) 5579-7257<br />

Plantão SOS Psicológico<br />

Telefone (11) 3654-1313<br />

www.sos.org.br<br />

21<br />

Velhas diferenças,<br />

que fazem, de<br />

cada um, um.<br />

O que se pode<br />

ler nos rios ou<br />

através deles?<br />

Tome seu lugar<br />

a bordo. Porque<br />

navegar é preciso,<br />

e ler também.<br />

Indispensável para escolas que<br />

têm e que não têm um Programa<br />

de Leitura.<br />

Assine já!<br />

www.leiabrasil.org.br<br />

assinaturas@leiabrasil.org.br


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

APROXIMAÇÃO<br />

DANAIDE, DE AUGUSTE RODIN<br />

CÁSSIA JANEIRO<br />

Ouço passos no corredor comprido de<br />

minha casa. A porta do meu quarto está fechada.<br />

Os passos se tornam mais fortes e eu sei<br />

que, em breve, a porta se abrirá num estrondo.<br />

Tremo sob as cobertas. Poderia fugir, mas<br />

sinto-me inerte.<br />

A peregrinação do desconhecido é um<br />

lapso de tempo, mas<br />

longa como<br />

só a espera pode ser. Sinto meu coração e meus<br />

nervos todos vibram uníssonos, segundo a segundo.<br />

Uma gota de suor escorre em minha<br />

testa, apesar do frio. O teto me comprime, como<br />

se procurasse sufocar qualquer tentativa de fuga.<br />

Imobilizada, apenas ouço e espero ... e espero<br />

... Não posso mais sentir minhas mãos e meus<br />

pés. Paralisia. Não sei o que virá, mas é mais<br />

aterrorizante a espera do que o que está por<br />

acontecer. Meus olhos ainda se mexem e procuram<br />

uma saída, uma réstia de esperança vã.<br />

Sei, contudo, que escapar é impossível. A escuridão<br />

é completa, mas meus olhos tentam, desesperados,<br />

ver através dela..<br />

Um calor lascivo me toma o corpo, num<br />

estranho regojizo desprotegido. Estou só. Eu e<br />

meu desconhecido. Sinto o calor ruborizando<br />

a minha pele clara e delicada. Delírio quente<br />

é o medo. Não sei até quando posso<br />

sustentar a névoa que me encobre as<br />

sensações e, paradoxalmente, as<br />

desvela. Minhas roupas estão<br />

jogadas no chão. Sei que<br />

estou nua e a nudez<br />

me torna ainda mais<br />

frágil e desprotegida<br />

e também<br />

mais quente. Num átimo sinto todo o meu<br />

corpo, a maciez da minha pele, a textura da<br />

minha boca úmida. Os passos estão mais próximos<br />

e agora o medo é fascínio, é sedução e<br />

terror. Quanto mais próximo o som, mais sinto<br />

o corpo, sensível como só aqueles que estão<br />

totalmente expostos podem ser. O lençol<br />

a roçar na minha pele traça um desenho delicado,<br />

uma estranha dança de sensações. Não<br />

me movimento, embora o corpo seja leve; sou<br />

inteira uma teia de possibilidades.<br />

Não ouço mais os passos, não porque não<br />

existam, apenas porque estou embevecida e<br />

abafam-nos as batidas do meu coração. Sei que<br />

a porta se abrirá. Temo porque não conheço e,<br />

não conhecendo, não posso, não estou no<br />

controle. Mas, como alguém que está por afogar-se,<br />

sei que de nada adiantará me debater.<br />

Deixo que a correnteza de sensações me leve<br />

para onde quiser. E, no exato instante em que<br />

paro de lutar, posso desfrutar da hipnose da<br />

minha alma, que também pulsa na sua própria<br />

escuridão. Não procuro alívio. Sei que<br />

estou encurralada e há um estranho prazer nisso.<br />

Arrebata-me a satisfação de não estar mais<br />

no controle, não saber o que virá, não ter idéia<br />

do que acontecerá.<br />

Tenho os olhos fixos na porta agora. Sei<br />

que está muito próximo o momento em que<br />

ela se abrirá. Volto a olhar para as minhas roupas<br />

inertes no chão e minha nudez não é mais<br />

a mesma, é uma nudez total. Inesperadamente<br />

desejo estar ali e não em qualquer outro lugar.<br />

Já não importa o que virá da porta. Ela<br />

está fora de mim. E dentro de mim está uma<br />

desconhecida cujo corpo se contorce faminto<br />

entre os lençóis, derrubando o pesado cobertor.<br />

Descubro o medo nas frestas da minha<br />

alma, parte dela que pulsa e lateja. Não posso<br />

me separar dele, não agora que ele é medo que<br />

se faz fascínio.<br />

A porta se abre num estrondo. Fecho os<br />

olhos e deixo-me tomar. Entregue. Inexorável.<br />

CÁSSIA JANEIRO Poeta e educadora. Autora de Poemas de Janeiro.<br />

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FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

O CORVO DE EDGAR ALLAN POE<br />

“<br />

Tradução de Machado de Assis<br />

(FRAGMENTOS)<br />

Em certo dia, à hora, à hora<br />

Da meia-noite que apavora,<br />

Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,<br />

Ao pé de muita lauda antiga,<br />

De uma velha doutrina, agora morta,<br />

Ia pensando, quando ouvi à porta<br />

Do meu quarto um soar devagarinho<br />

E disse estas palavras tais:<br />

‘É alguém que me bate à porta de mansinho;<br />

Há de ser isso e nada mais’.<br />

Ah! bem me lembro! bem me lembro!<br />

Era no glacial Dezembro;<br />

Cada brasa do lar sobre o chão refletia<br />

A sua última agonia.<br />

Eu, ansioso pelo sol, buscava<br />

Sacar daqueles livros que estudava<br />

Repouso (em vão!) à dor esmagadora<br />

Destas saudades imortais<br />

Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,<br />

E que ninguém chamará mais.<br />

E o rumor triste, vago, brando<br />

Das cortinas ia acordando<br />

Dentro em meu coração um rumor não sabido,<br />

Nunca por ele padecido.<br />

Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,<br />

Levantei-me de pronto, e: ‘Com efeito,<br />

(Disse) é visita amiga e retardada<br />

Que bate a estas horas tais.<br />

É visita que pede à minha porta entrada:<br />

Há de ser isso e nada mais.’<br />

Minh’alma então sentiu-se forte;<br />

Não mais vacilo e desta sorte<br />

Falo: ‘Imploro de vós - ou senhor ou senhora,<br />

Me desculpeis tanta demora.<br />

Mas como eu, precisado de descanso,<br />

Já cochilava, e tão de manso e manso<br />

Batestes, não fui logo, prestemente,<br />

Certificar-me que aí estais’.<br />

Disse: a porta escancaro, acho a noite somente,<br />

Somente a noite, e nada mais.<br />

Com longo olhar escruto a sombra,<br />

Que me amedronta, que me assombra.<br />

E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,<br />

Mas o silêncio amplo e calado,<br />

Calado fica; a quietação quieta;<br />

Só tu, palavra única e dileta,<br />

Lenora, tu, como um suspiro escasso,<br />

Da minha triste boca sais;<br />

E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;<br />

Foi isso apenas, nada mais.<br />

Entro co’a alma incendiada,<br />

Logo depois outra pancada<br />

Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:<br />

‘Seguramente, há na janela<br />

Alguma coisa que sussurra. Abramos.<br />

Eia, fora o temor, eia, vejamos<br />

A explicação do caso misterioso<br />

Dessas duas pancadas tais.<br />

Devolvamos a paz ao coração medroso.<br />

Obra do vento e nada mais’.<br />

Abro a janela e, de repente,<br />

Vejo tumultuosamente<br />

Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.<br />

Não despendeu em cortesias<br />

Um minuto, um instante. Tinha o aspecto<br />

De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,<br />

Movendo no ar as suas negras alas,<br />

Acima voa dos portais,<br />

Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;<br />

Trepado fica, e nada mais.<br />

Diante da ave feia e escura,<br />

Naquela rígida postura,<br />

Com o gesto severo, - o triste pensamento<br />

Sorriu-me ali por um momento,<br />

E eu disse: ‘Ó tu que das noturnas plagas<br />

Vens, embora a cabeça nua tragas,<br />

Sem topete, não és ave medrosa,<br />

Dize os teus nomes senhoriais;<br />

Como te chamas tu na grande noite umbrosa?’<br />

E o corvo disse: ‘Nunca mais’.<br />

Vendo que o pássaro entendia<br />

A pergunta que lhe eu fazia,<br />

Fico atônito, embora a resposta que dera<br />

Dificilmente lh’a entendera.<br />

Na verdade jamais homem há visto<br />

Coisa na terra semelhante a isto:<br />

Uma ave negra, friamente posta<br />

Num busto, acima dos portais,<br />

Ouvir uma pergunta e dizer em resposta<br />

Que este é seu nome: ‘Nunca mais’.<br />

No entanto, o corvo solitário<br />

Não teve outro vocabulário.<br />

Como se essa palavra escassa que ali disse<br />

Toda a sua alma resumisse.<br />

Nenhuma outra proferiu, nenhuma.<br />

Não chegou a mexer uma só pluma,<br />

Até que eu murmurei: ‘Perdi outrora<br />

Tantos amigos tão leais!<br />

Perderei também este em regressando a aurora’.<br />

E o corvo disse: ‘Nunca mais!’<br />

Estremeço. A resposta ouvida<br />

É tão exata! é tão cabida!<br />

‘Certamente, digo eu, essa é toda a ciência<br />

Que ele trouxe da convivência<br />

De algum mestre infeliz e acabrunhado<br />

Que o implacável destino há castigado<br />

Tão tenaz , tão sem pausa, nem fadiga,<br />

Que dos seus cantos usuais<br />

Só lhe ficou, da amarga e última cantiga,<br />

Esse estribilho: ‘Nunca mais’.<br />

“<br />

. . .<br />

‘Ave ou demônio que negrejas!<br />

Profeta, ou o que quer que sejas!<br />

Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!<br />

Regressa ao temporal, regressa<br />

À tua noite, deixa-me comigo.<br />

Vai-te, não fique no meu casto abrigo<br />

Pluma que lembre essa mentira tua.<br />

Tira-me ao peito essas fatais<br />

Garras que abrindo vão a minha dor já crua’.<br />

E o corvo disse: ‘Nunca mais’.<br />

EDGAR ALLAN POE 1809-1849 Poeta, contista e jornalista norteamericano.<br />

Criador do romance policial e um dos grandes nomes<br />

da literatura fantástica. Entre suas obras estão: O gato preto;<br />

O poço e o pêndulo; A queda da casa de Usher.<br />

”<br />

”<br />

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FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

UNIDADE DE LEITURA<br />

QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU?<br />

BONECO DE PEDRO E O LOBO DO GRUPO GIRAMUNDO<br />

MARIA CLARA CAVALCANTI<br />

DE ALBUQUERQUE<br />

Quem tem medo do lobo mau? O Chapeuzinho<br />

Vermelho, os três porquinhos, os<br />

sete cabritinhos, nossos alunos, você e eu.<br />

Uma vez perguntaram ao folclorista Câmara<br />

Cascudo se, depois de tantos anos estudando<br />

nossos mitos, ele acreditava em lobisomem.<br />

Cascudo passou as mãos pelos<br />

cabelos e respondeu mais ou menos assim:<br />

“aqui, nesta sala iluminada, conversando com<br />

você, não acredito não, mas em noite de lua<br />

cheia, andando sozinho no mato, meu amigo...<br />

acredito sim e você também”.<br />

O medo está presente em nossa vida desde<br />

que nascemos. Medo do bicho-papão,<br />

da alma penada, do escuro, de não sermos<br />

amados por nossos pais são somente alguns<br />

pesadelos que povoam nossa infância.<br />

São os lobos infantis que rondam nossos<br />

sonhos e enchem de uivos nossa<br />

imaginação.<br />

Não é à toa que os acalantos<br />

com os quais somos embalados<br />

já nos avisam<br />

dos perigos e<br />

nos orientam<br />

sobre<br />

o que<br />

esperar da vida que se inicia.“Dorme neném<br />

que a Cuca vem pegar / Papai foi à roça, mamãe<br />

foi trabalhar” ou “Bicho-papão em cima<br />

do telhado / Deixa meu menino dormir sono<br />

sossegado.”<br />

Com ouvidos adultos, parece-nos bem<br />

pouco provável que uma criança adormeça<br />

ouvindo sobre perigos tão próximos ou ameaças<br />

tão aterrorizantes, mas o fato de um<br />

adulto compartilhar com ela o conhecimento<br />

da presença do monstro, aliado ao aconchego<br />

e à voz que a embala, dá-lhe a certeza<br />

de não estar sozinha e a faz relaxar.<br />

Não é à toa, também, que as histórias de<br />

fadas clássicas vêm sendo contadas, através<br />

dos séculos, a crianças que nelas encontram<br />

alívio para os mais diferentes sentimentos.<br />

Poder ouvir que a madrasta inveja a beleza<br />

de Branca de Neve; que o Pequeno Polegar<br />

consegue ludibriar o terrível gigante;<br />

que Dona Baratinha, após chorar a morte de<br />

D. Ratão, volta à janela para procurar outro<br />

noivo; que Cinderela, desobedecendo as<br />

ordens da madrasta, vai ao baile proibido e<br />

consegue casar com o príncipe; que João e<br />

Maria conseguem sobreviver apesar do abandono<br />

de seus pais é sinalizar que nem tudo<br />

está perdido.<br />

É saber que não somos os únicos a sentir<br />

inveja, que mesmo a força poderosa de<br />

um gigante pode ser vencida se usarmos a<br />

cabeça, que às vezes é preciso enfrentar as<br />

situações para conseguirmos o que desejamos,<br />

que mesmo após as grandes perdas a vida<br />

continua, e que, mesmo nossos pais, são capazes<br />

de sentimentos ruins.<br />

Ouvir que outras pessoas<br />

compartilham<br />

de nossos<br />

sentimentos<br />

nos faz<br />

menos<br />

sozinhos.<br />

Quando mudamos as estruturas destas<br />

histórias numa tentativa de torná-las menos<br />

tristes, tiramos das crianças a oportunidade<br />

de vivenciar seus medos, compartilhar com<br />

os personagens seus sentimentos menos nobres,<br />

enfim, acalmar seus lobos. Se ressuscitamos<br />

D. Ratão, por exemplo, dando-lhe um<br />

bom banho e o casamos com D. Baratinha,<br />

teremos não só negado à criança que nos escuta<br />

uma excelente oportunidade de aprender<br />

a lidar com perdas, como criado, aí sim,<br />

uma história de terror imensurável. Imaginem<br />

o fruto deste casamento - um rato e uma<br />

barata - nem Lovecraft, em seu mais louco<br />

devaneio, seria capaz de pensar semelhante<br />

horror!<br />

À medida que vamos crescendo e que o<br />

mundo a nossa volta vai se modificando, os<br />

lobos vão ganhando novos nomes e contornos.<br />

Podemos chamá-los de morte, solidão, doença,<br />

guerra, separação, desemprego, violência,<br />

fome... O nome varia, mas o sentimento de<br />

impotência que nos invade é o mesmo.<br />

Como já não temos quem nos tome nos<br />

braços e acalme nosso coração, procuramos<br />

outros meios de enfrentar a alcatéia faminta<br />

que nos rodeia.<br />

Num tempo de alta tecnologia, onde o<br />

homem é capaz de brincar de Deus clonando<br />

animais e ensaiando a clonagem de pessoas,<br />

nunca se estudou tanto as profecias ou<br />

se consultou tantos astrólogos e videntes,<br />

numa tentativa de adivinhar o futuro e acalmar<br />

nossos temores. Como não temer o dia<br />

de amanhã se acompanhamos ao vivo e a<br />

cores, confortavelmente instalados em nossas<br />

salas, o desmoronamento de dois símbolos<br />

do maior império contemporâneo? Se<br />

o lobo já entra em nossa casa não só pela<br />

porta, mas também através do cabo da televisão,<br />

é preciso usarmos todos os meios possíveis<br />

para, pelo menos, enjaulá-lo.<br />

A arte, sempre cronista de seu tempo,<br />

nos sinaliza caminhos e escapes. Os filmes<br />

24


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

coleção<br />

“Ciência e religião têm uma origem comum:<br />

a necessidade humana de controle do medo.”<br />

Marcelo Gleiser Físico.<br />

de terror lotam as salas dos cinemas, os livros<br />

sobre bruxaria alcançam as listas dos<br />

mais vendidos, os jornais e revistas se esgotam<br />

ao falarem do crime organizado. O<br />

outdoor de propaganda de uma revista nos<br />

alerta - Bons tempos em que só se sentia medo<br />

de bandido solto.<br />

Precisamos desesperadamente de alguém<br />

que converse e compartilhe conosco, seja em<br />

que linguagem for, dos nossos medos, pois,<br />

como diz João Carlos Rodrigues em seu artigo,<br />

“nenhuma ficção pode ser hoje mais amedrontadora<br />

do que a realidade.”<br />

No entanto, são as histórias - ficcionais<br />

ou não -, livros, filmes, músicas, peças de<br />

teatro e novelas, as armas com que podemos<br />

nos municiar para tentar, pelo menos, domesticar<br />

nossos lobos particulares e ajudar<br />

nossos alunos a enfrentarem os seus.<br />

Por que não voltarmos com eles ao tempo<br />

de embalá-los com histórias e leituras que<br />

lhes permitam elaborar e compartilhar seus<br />

sentimentos? Ao trabalharmos o medo de<br />

monstros imaginários, estaremos fortalecendo-os<br />

para lidar com os medos reais. Ao falarmos<br />

abertamente de medos contemporâneos,<br />

estaremos lhes dando a oportunidade<br />

de exorcizarem suas preocupações e temores.<br />

É preciso vencer o medo de falar do<br />

medo. O diálogo aberto, a história bem contada,<br />

a leitura compartilhada nos permitirão<br />

olhar o lobo de frente e construir casas resistentes<br />

que não caiam com um mero sopro,<br />

atravessar florestas sabendo como não cair em<br />

conversa de estranhos, saber a quem devemos<br />

ou não abrir a porta de nossa casa e nos mantermos<br />

alertas à aproximação das feras.<br />

Aí sim, como já dizia Cascudo, só sentiremos<br />

medo de lobos e lobisomens no meio<br />

do mato em noite de lua cheia, e não nas<br />

salas iluminadas.<br />

Histórias de bruxas,fantasmas e outros habitantes do<br />

universo do terror sempre fizeram parte do imaginário<br />

infanto-juvenil. E que atire a primeira pedra quem<br />

nunca conferiu se havia um monstro embaixo da<br />

cama ou deixou a luz acesa em noite de tempestade.<br />

MARIA CLARA DE CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Psicóloga e<br />

especialista em Literatura Infanto-juvenil e Leitura.<br />

25<br />

ONDE OS MELHORES AUTORES SE ENCONTRAM<br />

www.record.com.br


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

MEDO DE QUÊ,<br />

TATIANA MILANEZ<br />

Fanny Joly adora rir. Foi rindo que ela escreveu<br />

seu primeiro texto, um monólogo cômico<br />

para a irmã mais velha, a atriz Sylvie Joly.<br />

Isso foi há quase trinta anos. Hoje, aos 47, um<br />

marido e três filhos, a escritora continua se<br />

divertindo com o trabalho. Apesar da Licenciatura<br />

em Letras, Fanny confessa que sua formação<br />

não foi na universidade. Seu aprendizado<br />

foi no trabalho. Começou como redatora<br />

publicitária, uma profissão que, segundo ela,<br />

lhe ensinou a ser direta no texto, dado essencial<br />

na literatura infantil. Fanny também escreveu<br />

roteiros para o cinema e televisão, além<br />

de esquetes para o teatro. Mas o que mais lhe<br />

dá prazer são as histórias para crianças. Foram<br />

mais de 130 livros traduzidos em 14 línguas,<br />

entre eles a conhecida coleção Quem tem<br />

medo de. Nas paredes em volta de sua mesa<br />

de trabalho, vários desenhos de pequenos leitores.<br />

É nesta sala, num apartamento claro e<br />

confortável, a poucos metros da Torre Eiffel,<br />

em Paris, que Fanny Joly recebeu a repórter de<br />

Leituras Compartilhadas:<br />

LC: Os seus livros da coleção Quem tem medo<br />

de falam de medos infantis que parecem universais.<br />

A senhora acredita que existam medos<br />

que todas as crianças sentem em determinada<br />

idade ?<br />

Fanny: Esta coleção é dirigida às crianças entre<br />

3 e 8 anos. Nesta fase existem medos quase<br />

instintivos que encontramos em todas as crianças.<br />

Quando começamos a pensar nesta coleção,<br />

fizemos uma lista de medos. Escolhemos<br />

então doze temas que nos pareciam universais.<br />

Nós até fizemos um teste: perguntamos<br />

a algumas crianças quais os medos que<br />

elas tinham. Nós terminamos por escolher temas<br />

que nos permitiam uma história tranquilizadora<br />

e engraçada. A idéia era mostrar o<br />

medo num contexto onde não haveria razão<br />

para que ele existisse, como medo de dragão,<br />

medo de rato, medo de escuro... Eliminamos<br />

os temas que falavam de coisas que realmente<br />

dão medo e que são perigosas, como por exemplo,<br />

o fogo. A gente preferiu se concentrar em<br />

medos de conto de fada, quase míticos.<br />

LC: E por que escrever sobre o medo? Quando<br />

criança, a senhora tinha medo?<br />

Fanny: Eu era muito medrosa, muito mesmo.<br />

Na verdade, eu não escolhi escrever sobre este<br />

tema. Como na época eu já era uma autora<br />

mais ou menos conhecida dos editores, me<br />

propuseram fazer essa coleção em torno do<br />

medo. E como de fato eu era muito medrosa<br />

quando criança, achei a idéia interessante e me<br />

deu vontade de fazer.<br />

LC: Hoje em dia a educação infantil se preocupa<br />

em ajudar as crianças a perder o medo. Mas<br />

antigamente o medo era utilizado como método<br />

de educação como, por exemplo, “tem<br />

um monstro no teu quarto que vai te pegar, se<br />

você não dormir”. A senhora acredita que<br />

muito dos medos infantis foram criados pelos<br />

adultos?<br />

Fanny: Usar o medo da criança como método<br />

de educação – entre aspas - ou como meio de<br />

obter o que se quer como o exemplo que você<br />

utilizou, eu acho que é algo realmente nocivo.<br />

Para mim, o medo é um elemento muito negativo<br />

no dia-a-dia. Ele nos impede de ir para<br />

a frente, nos bloqueia, nos freia, nos faz andar<br />

para trás. Acho então que é um elemento que<br />

deve ser combatido. É verdade que hoje em<br />

dia nós, adultos, temos razão de ter medo. A<br />

mídia nos submete a uma enorme quantidade<br />

de notícias, nós somos bombardeados de imagens<br />

que nos transtornam, é difícil de lidar com<br />

tudo isso! Mas se eu tivesse que escrever, por<br />

exemplo, “Quem tem medo de seqüestro?”,<br />

num contexto onde isso pode acontecer, não<br />

sei o que faria... Porque o que as crianças amam<br />

nestas histórias sobre o medo é que elas se sentem<br />

tranqüilas. O fio condutor da história é<br />

“você tem medo de rato?”, “mas o rato não<br />

vai te comer!”, “você tem medo de aranha?”,<br />

“mas, olha, a tua avó pega a aranha com a<br />

mão...”. É este tipo de coisa que tranqüiliza,<br />

mas é verdade que com um seqüestrador, por<br />

exemplo, você corre o risco de encontrá-lo e<br />

vai ser horrível!<br />

LC: Os seus livros são sempre engraçados, bem<br />

humorados. A senhora acredita no riso como<br />

arma contra o medo?<br />

Fanny: Ah, sim! Eu acredito no riso como arma<br />

contra quase tudo no mundo. Contra o medo,<br />

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FANNY JOLY?<br />

rir é uma arma fantástica. Quando você está<br />

com medo e alguém te faz rir, o medo se desfaz<br />

imediatamente. De qualquer maneira eu<br />

sou uma pessoa que adora rir e todos os meus<br />

livros têm um tom humorístico. Nessa coleção<br />

eu escolhi um estilo diferente. De todos<br />

os livros que escrevi, os livros Quem tem<br />

medo são os únicos nos quais eu falo com a<br />

criança na segunda pessoa. Geralmente nos livros<br />

para crianças a narração é feita na terceira<br />

ou na primeira pessoa. Nessa coleção eu escolhi<br />

falar diretamente com a criança. Ela é o<br />

herói da história. Quando o medo aparece de<br />

repente, ela se identifica ainda mais, ela está<br />

dentro da história. E o que acontece no livro,<br />

acontece com ela também. E eu acho que esse<br />

estilo funciona muito bem. Eu encontrei muitas<br />

crianças que leram esses livros. Na França,<br />

eles foram publicados há dez anos, então tive<br />

a oportunidade de encontrar muitas crianças e<br />

professores que me disseram que o texto na<br />

segunda pessoa fala diretamente às crianças,<br />

funciona.<br />

LC: Muitas crianças são reprimidas quando têm<br />

medo. Alguns pais dizem aos seus filhos que<br />

medo é sinal de fragilidade. A senhora acredita<br />

que é importante sentir medo?<br />

Fanny: Eu não acho que temos que eliminar o<br />

medo e sim tentar compreendê-lo e superá-lo.<br />

Tentar entender o porquê, se o medo tem razão<br />

de existir naquele momento. O fato de não<br />

termos medo não significa que está tudo bem,<br />

mas o importante é tentar ir em frente, superar<br />

este medo. É uma etapa de crescimento, de<br />

maturidade. É bom poder falar.<br />

LC: A senhora acha que a série sobre o medo<br />

terminou ou acha que daria para escrever mais<br />

alguns livros sobre o tema?<br />

Fanny: Eu acho que acabou. Para mim a idéia<br />

original dessa coleção foi há dez anos. Ela foi<br />

criada num grande formato, depois relançamos<br />

a coleção num formato menor, mas não<br />

escrevi livros novos, ficamos com os doze temas.<br />

Foram os doze estabelecidos inicialmente.<br />

Aliás, o mais difícil para mim foi escrever o<br />

livro Quem tem medo do mar?. É verdade<br />

que existem crianças que têm medo da água e<br />

é verdade que depois que aprendemos a nadar<br />

perdemos esse medo e que no mar tem peixinhos.<br />

Mas, ao mesmo tempo, o mar pode ser<br />

perigoso. Quando eu te dizia que o fogo pode<br />

ser perigoso, o mar também pode ser perigoso,<br />

então não foi muito fácil. Foi o tema mais<br />

difícil a ser tratado.<br />

LC: E como você achou a solução para falar de<br />

um tema difícil?<br />

Fanny: Para mim a melhor solução seria não ter<br />

que escrever sobre o mar. Eu não gosto da idéia<br />

de ter que dizer: “não precisa ter medo do mar”.<br />

Por outro lado, o livro sobre o monstro, por<br />

exemplo, foi fantástico escrever, porque monstros<br />

não existem! É ótimo poder dizer no final<br />

da história: “os monstros são ótimos, mas felizmente<br />

não existem, só nos livros”. Sobre os<br />

extraterrestres, como eu não acredito neles,<br />

adorei poder contar uma história delirante e<br />

saber que nunca vamos encontrar um. Houve<br />

uma idéia de fazer “Quem tem medo de ladrão?”,<br />

- parecido com a idéia do seqüestrador<br />

de que falamos agora há pouco - , mas decidimos<br />

não incluir este tema, porque no nosso<br />

espírito seguro e engraçado, não cabia ...<br />

LC: Hoje em dia as crianças enfrentam o medo<br />

do dia-a-dia: medo de terroristas, medo de<br />

bomba... A senhora acha, no entanto, que elas<br />

ainda têm medo de monstros e bruxas?<br />

Fanny: Sim, porque há um prazer de ter medo,<br />

que é o medo com o qual podemos brincar,<br />

sabendo que ele não existe de verdade. As crianças<br />

têm realmente medo quando vêem o<br />

noticiário com assuntos assustadores, mas elas<br />

adoram ter medo com os livros, com brinquedos...<br />

Elas brincam com o medo porque sabem<br />

que no fundo é mentira e que de alguma<br />

forma é um prazer ter medo. Quando estamos<br />

lendo, nossa vida não corre nenhum risco.<br />

TATIANA MILANEZ Jornalista<br />

Com colaboração de Ana Cláudia Maia<br />

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PLUFT, O FANTASMINHA<br />

CACÁ MOURTHÉ<br />

Como todas as obras de indivíduos criadores,<br />

Pinóquio de Collodi , os contos de fada<br />

de Andersen e outros , as peças de Maria Clara<br />

Machado são importantes tanto para crianças<br />

como para adultos. Um espetáculo de teatro<br />

bem feito é um estímulo para qualquer sensibilidade.<br />

Para a criança então, que não está<br />

tão preparada como nós para lidar com a realidade<br />

externa, por estar mais ligada à sua realidade<br />

interna, ao esforço para crescer e em vencer<br />

seus medos e ansiedades, as boas histórias<br />

e seus símbolos se tornam um alimento necessário<br />

para a alma em desenvolvimento .<br />

O teatro dirigido para a criança é um teatro<br />

muito especial. Enquanto o público adulto<br />

pode pensar sobre o que viu e tem a capacidade<br />

de criticar, de selecionar seus sentimentos<br />

para julgar o que está vendo, a criança só<br />

poderá captar o espírito da obra pelos seus<br />

símbolos. Ela adere totalmente ao que vê,<br />

identificando-se com as personagens, não fazendo<br />

ou não podendo fazer mais a divisão<br />

entre o que é ficção e o que é realidade. Se ela<br />

se identifica com as personagens, ela transfere<br />

os seus medos e ansiedades para essas criaturas.<br />

Está, pois, aliviando as tensões. A criança<br />

vê seus medos interiores exteriorizados<br />

e resolvidos através do faz-de-conta. Ela deixa<br />

o mundo concreto e hostil para se transportar<br />

a um país longínquo onde todas as<br />

dificuldades se tornam menos ameaçadoras.<br />

Estamos, então, lidando com o mundo maravilhoso,<br />

com arquétipos.<br />

A história de Pluft, o fantasminha<br />

gira em torno de uma família de fantasmas<br />

envolvida com marinheiros em busca de um<br />

tesouro. A Senhora Fantasma vive com seu<br />

filho Pluft em uma casa abandonada, onde<br />

foi escondido o tesouro do Capitão Bonança<br />

Arco-Íris. Aparece por lá a menina Maribel,<br />

raptada por Perna de Pau, pirata que está<br />

à procura do tesouro há dez anos. Maribel é<br />

a neta do Capitão Bonança e com ela o pirata<br />

quer se casar. Pluft vê um ser humano pela<br />

primeira vez, quando Maribel surge em sua<br />

casa. Ele tem medo de gente. Sua mãe o repreende,<br />

pois quer fazer um “intercâmbio<br />

cultural” entre gente e fantasmas. Pluft conversa<br />

com Maribel, os dois ficam amigos e o<br />

fantasminha acaba por virar herói ajudando<br />

a menina a libertar-se do pirata.<br />

A peça nos fala do medo que temos de<br />

crescer e sair de nossa casa para o mundo e do<br />

medo que temos do encontro com o outro. O<br />

medo não é um valor absoluto, passa a ser relativo<br />

e todos o possuem: adultos e crianças.<br />

Quando o espetáculo abre com o célebre<br />

diálogo entre Pluft e sua mãe, ele está segurando<br />

uma boneca velha que encontrou dentro<br />

do baú de seu tio Gerúndio. Observa a boneca<br />

e em pânico pergunta:<br />

- Mamãe, gente existe?<br />

- Claro, Pluft, claro que gente existe.<br />

- Mamãe eu tenho tanto medo de gente (larga a<br />

boneca)<br />

- Bobagem Pluft.<br />

- Ontem passou lá embaixo, perto do mar, e eu vi.<br />

- Viu o que, Pluft?<br />

- Vi gente, mamãe. Só pode ser. Três.<br />

- E você teve medo?<br />

- Muito, mamãe.<br />

Pluft se sente frágil para encarar o mundo<br />

real (adulto). Ele prefere não acreditar e continuar<br />

a viver em seu mundo seguro e conhecido.<br />

O desfazer do “velho” em nossas vidas e a<br />

chegada do “novo” nos apavora e nos ameaça<br />

como se não tivéssemos recursos para enfrentá-lo.<br />

É preciso, então, que a vida nos imponha<br />

novas situações. Porque é só através da<br />

experiência que podemos compreender que já<br />

estamos preparados e prontos para o que vier.<br />

Neste momento somos tomados pelo arquétipo<br />

do herói e somos obrigados a deixar de lado<br />

velhas idéias e velhas posturas para, assim, nos<br />

renovarmos e aceitarmos a nova situação.<br />

Outro momento interessante da peça é<br />

quando o bandido Perna de Pau é obrigado a<br />

deixar Maribel sozinha no sótão para buscar<br />

uma vela na cidade. A menina se desamarra e<br />

corre até a janela para pedir socorro. Pluft aparece<br />

e Maribel desmaia. Ele observa a menina<br />

durante um longo tempo tentando entender<br />

as diferenças. Neste momento ela acorda e ficam<br />

os dois parados, emocionados um em<br />

frente ao outro. Neste instante é comum haver<br />

um grande silêncio na platéia. Existe um<br />

enorme suspense. Pluft (o mundo imaginário)<br />

e Maribel (o mundo objetivo) estão frente a<br />

frente. São absolutamente diferentes, não existindo<br />

entre eles nenhuma semelhança. Os dois,<br />

em um primeiro momento, procuram algum<br />

ponto de identificação e não encontram. Mais<br />

tarde, com seus medos aplacados pelo contato<br />

real com o outro, descobrem dentro do baú<br />

(o inconsciente) o Tio Gerúndio - antigo fantasma<br />

de navio e amigo do Capitão Bonança<br />

Arco-Íris, avô de Maribel. A partir daí, os dois<br />

se tornam grandes amigos. O outro ( Pluft X<br />

Maribel ) aqui deve ser escrito com letra maiúscula,<br />

o OUTRO, como um mistério que<br />

devemos aprender a amar. O mistério é sempre<br />

uma intervenção divina que nos impulsiona<br />

para a construção de uma vida plena. Vencido<br />

o medo inicial, que é a tensão entre medo<br />

e coragem, os dois se tornam heróis e vão em<br />

busca do tesouro . O fantasma atua como revelador<br />

de uma verdade interna (inconsciente)<br />

que age de forma poderosa, fazendo com<br />

que a força vital se manifeste. Agora, impulsionados<br />

por essa força, os meninos conseguem<br />

vencer o bandido Perna de Pau e recuperam o<br />

tesouro do velho Bonança Arco-Íris. Pluft, ao<br />

abrir o tesouro, encontra uma foto de Maribel,<br />

um rosário e uma receita de peixe assado,<br />

ao contrário do que imaginava o pirata encontrar,<br />

ouro e jóias. O bandido, em Pluft, somente<br />

conhece o poder materialista da vida. No<br />

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FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

DE MARIA CLARA MACHADO<br />

momento em que o cofre é aberto, uma nova<br />

dimensão da vida é apresentada. O pirata confunde<br />

a riqueza interior com a idéia do poder<br />

material e, por isso, é mandado para o fundo<br />

do mar, para junto do tesouro que procura.<br />

Enfrentado o medo do desconhecido, Pluft e<br />

Maribel descobrem o verdadeiro tesouro da<br />

vida, que somente se encontra através do amor<br />

e do encontro real com o OUTRO que é: um<br />

rosário (alimento para o espírito), uma receita<br />

de peixe assado (alimento para o corpo), uma<br />

foto da neta Maribel (o afeto, alimento para<br />

as relações se perpetuarem).<br />

Estes três ingredientes revelam a verdade<br />

do grande bem da vida, o lado humano e espiritual,<br />

despojado de qualquer conotação material<br />

que possa vir a ter, como recompensas e<br />

heranças que estimulam a ambição e afastam<br />

o homem do seu Ser. Pluft e Maribel encontram,<br />

através da experiência mútua e da superação<br />

dos seus medos, a receita do bem viver.<br />

Maria Clara Machado trabalha o medo em<br />

Pluft, não como um ato de covardia que impediria<br />

o desenvolvimento do homem, mas<br />

com um grande respeito ao medo verdadeiro<br />

da criança em seu processo de crescimento e<br />

entendimento do mundo, fazendo assim com<br />

que a criança o encare como possibilidade de<br />

mudança. Pluft é uma onomatopéia que designa<br />

algo que estoura, que se abre para o mundo.<br />

CACÁ MOURTHÉ Diretora do curso do Teatro Tablado<br />

AMOR E MEDO<br />

“Estou te amando e não percebo,<br />

porque, certo, tenho medo.<br />

Estou te amando, sim, concedo,<br />

mas te amando tanto<br />

que nem a mim mesmo<br />

revelo este segredo.”<br />

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA Poeta, crítico e<br />

cronista. Entre suas obras estão: Textamentos; A mulher<br />

madura.<br />

ASMINHA, TEATRO TABLADO<br />

ANTASMINHA<br />

, O FANT<br />

PLUFT, O F<br />

DETALHE DO CARTAZ DE PLUFT<br />

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O MEDO NO CINEMA<br />

DIVULGAÇÃO. FOTOGRAMAS DE “PSICOSE”, DIRIGIDO POR ALFRED HITCHCOCK<br />

JOÃO CARLOS<br />

RODRIGUES<br />

Os historiadores contam que,<br />

em 1895, em plena Belle-Époque<br />

parisiense, na primeira exibição comercial<br />

do cinematógrafo dos irmãos<br />

Lumière, a platéia entrou em<br />

pânico ao ver um trem avançando<br />

frontalmente em direção à câmera<br />

no documentário A chegada<br />

de um trem na estação. Mais<br />

de um século depois, isso hoje nos<br />

parece engraçado, mas nunca o<br />

olho humano tinha tido oportunidade<br />

de ver uma locomotiva<br />

sob esse ponto de vista sem ter<br />

morrido esmagado. Daí o medo<br />

das pessoas que se abaixaram nas<br />

cadeiras, gritaram no escuro ou<br />

simplesmente saíram correndo.<br />

Meio século depois, a indústria de<br />

Hollywood tentou repetir esse efeito<br />

com as películas em três dimensões,<br />

vistas com óculos especiais,<br />

onde objetos eram atirados em direção<br />

ao público, que desviava o<br />

rosto assustado, embora já sabendo<br />

que se tratava de um truque.<br />

Esses foram casos raros, pois<br />

o medo no cinema em geral está<br />

associado aos filmes de ficção do<br />

gênero terror. Entre cenários góticos<br />

de velhos palácios, cemitérios<br />

e escadarias ocultas pela neblina<br />

habitam as entidades do outro<br />

mundo. Algumas são semi-animalescas,<br />

como o Conde Drácula,<br />

que se transforma em morcego, ou<br />

o Lobisomem, que se metamorfoseia<br />

num lobo sanguinário. Outras<br />

são mortos-vivos como Nosferatu,<br />

a Múmia ou os Zumbis. E até o<br />

cinema nacional contribuiu para<br />

o gênero, com o brasileiríssimo Zé<br />

do Caixão.<br />

Outra vertente de filmes apavorantes<br />

trata do cientista louco,<br />

que desafia a natureza ultrapassando<br />

os limites da sensatez e criando<br />

criaturas monstruosas que fogem<br />

do seu controle. O cenário<br />

aqui é um laboratório, com seus<br />

tubos de ensaio com estranhas<br />

borbulhas. É o caso dos célebres<br />

Dr. Frankenstein (que criou um<br />

homem com pedaços de diferentes<br />

cadáveres), Dr. Moreau (em<br />

cuja ilha animais eram transformados<br />

em gente) e Dr. Jekyll (o médico<br />

que vira monstro ao tomar<br />

uma estranha beberagem). Em<br />

anos mais recentes tivemos o caso<br />

do Parque dos dinossauros e A<br />

mosca, descendentes das tarântulas<br />

e caranguejos gigantes das décadas<br />

anteriores.<br />

O medo também alimenta boa<br />

parte da produção de ficção-científica,<br />

que pode ser ambientada em<br />

naves espaciais de design ultramoderno<br />

ou em cenários cotidianos. Dependendo<br />

do clima político da época<br />

de sua produção, esses filmes representam<br />

o Outro (no caso os alienígenas)<br />

ora como boas-praças mais<br />

desenvolvidos que nós humanos e<br />

que suplantam nosso pânico inicial<br />

(Contatos imediatos do terceiro<br />

grau e ET), ou, pelo contrário,<br />

como forças irracionais e destrutivas<br />

(A invasão dos discos voadores,<br />

a série Alien) que devemos<br />

matar para não morrer.<br />

Segundo o Dicionário Houaiss,<br />

medo é “o estado afetivo de<br />

consciência ou premonição do perigo”.<br />

Daí podermos também incorporar<br />

na nossa lista os filmes de suspense,<br />

nos quais o espectador conhece<br />

tudo o que ameaça os personagens,<br />

mas que estes ignoram.<br />

Psicose, de Alfred Hitchcock é um<br />

clássico desse gênero que amedronta<br />

sem apelar para o sobrenatural.<br />

É o mundo dos assassinos<br />

seriais tipo Freddy Krueger em que<br />

um simples ranger de escada arrepia<br />

nossas espinhas dorsais. Essas<br />

obras, que se passam em cenários<br />

contemporâneos e banais, manipulam<br />

o medo nosso de cada dia.<br />

Hoje, quando a TV mostra<br />

nos telejornais da hora do jantar<br />

tiroteios ao vivo com mortes reais,<br />

e que o filme Cidade de Deus<br />

revela um mundo monstruosamente<br />

impiedoso a poucas quadras<br />

dos nossos lares, os Dráculas<br />

são outros, e podemos encontrálos<br />

em qualquer esquina, à luz do<br />

dia, sedentos do nosso sangue. Nenhuma<br />

ficção pode ser hoje mais<br />

amedrontadora do que a realidade.<br />

E pouco a pouco nos acostumamos<br />

com o que devia nos revoltar.<br />

Vivemos a banalização do<br />

medo. As sepulturas coletivas dos<br />

massacrados da Bósnia e os aviões<br />

se esborrachando nas torres do<br />

World Trade Center nos espreitam...<br />

Longe daqui, aqui mesmo.<br />

Existirá ainda a possibilidade<br />

de voltar atrás, aos bons tempos,<br />

e nos amedrontarmos novamente<br />

apenas com uma simples alma<br />

do outro mundo, um velho vampiro<br />

ou um pobre morto-vivo?<br />

JOÃO CARLOS RODRIGUES Jornalista, pesquisador<br />

e crítico de cinema. É autor dos livros João do Rio:<br />

uma biografia e O negro brasileiro e o cinema.<br />

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ROTEIRO DO MEDO<br />

Quando pensamos em medo imediatamente<br />

lembramos de filmes de terror, dos clássicos<br />

do expressionismo alemão aos famosos e cultuados<br />

filmes B. Mas o medo está presente no cinema<br />

também em dramas, comédias e thrillers psicológicos.<br />

Aqui você tem uma pequena lista de<br />

filmes em que o medo move as personagens para<br />

a fuga ou para o “enfrentamento”, dominando<br />

seus destinos. Muitas vezes o maior terror não<br />

está no sobrenatural, mas nos demônios produzidos<br />

pela própria mente.<br />

ALIEN, O OITAVO PASSA<br />

ASSAGEIRO<br />

(Alien), 1979, EUA.<br />

De Ridley Scott – Tripulantes de uma nave espacial<br />

são ameaçados por uma criatura clandestina que espalha<br />

morte e terror a bordo.<br />

ANATOMIA DO MEDO (Ikimono No Kiroku),<br />

1955, Japão. De Akira Kurosawa – Comédia dramática.<br />

Com medo de ataques nucleares, um<br />

rico comerciante japonês decide se mudar para<br />

o <strong>Brasil</strong>.<br />

ENCURRALADO (Duel), 1971, EUA. De Steven<br />

Spielberg – Homem é perseguido agressivamente<br />

na estrada por misterioso caminhão.<br />

FRANKENSTEIN DE MARY Y SHELLEY (Mary Shelley’s<br />

Frankenstein), 1994, EUA. De Kenneth Branagh –<br />

Jovem cientista pretende vencer a morte e dá vida<br />

a monstruosa criatura.<br />

GASPARZINHO<br />

ARZINHO, O FANT<br />

ANTASMINHA ASMINHA CAMARADA (Casper),<br />

1995, EUA. De Brad Silberling – Solitário fantasminha<br />

não consegue fazer amigos, pois todos têm<br />

medo dele. Até a chegada da filha de um “terapeuta<br />

de fantasmas”.<br />

GUERRA DOS MUNDOS (The War of The Worlds),<br />

1953, EUA. De Byron Haskin – Versão cinematográfica<br />

da história de H.G. Wells que causou<br />

pânico ao ser transmitida pelo rádio por Orson<br />

Welles em 1938.<br />

M, O VAPIRO DE DUSSELDORF (M), 1931, Alemanha.<br />

De Fritz Lang – Grupo de criminosos se une<br />

para capturar e julgar um assassino de crianças.<br />

MEDO DE ESCURO (Afraid Of The Dark), 1991,<br />

França/Inglaterra. De Mark People – Menino, cuja<br />

mãe é cega, mergulha em um mundo de medo e<br />

ansiedade quando um psicótico passa a atacar<br />

mulheres cegas.<br />

MONSTROS S.A<br />

.A. (Monsters, Inc.), 2001, EUA. De<br />

Peter Docter e David Silverman – Animação. As<br />

criaturas que assustam as crianças nos armários e<br />

embaixo das camas são na realidade funcionários<br />

de uma empresa que utiliza os gritos infantis como<br />

fonte de energia para a cidade dos monstros.<br />

NEBLINA E SOMBRAS ( Shadows And Fog), 1992,<br />

EUA. De Woody Allen – Os habitantes de uma<br />

cidadezinha abalada por um misterioso assassino<br />

decidem empreender uma caçada ao criminoso.<br />

Mas o medo faz com que desconfiem uns<br />

dos outros.<br />

NOSFERATU<br />

TU, O VAMPIRO DA NOITE (Nosferatu,<br />

The Phanton Der Nacht), 1979, Alemanha/França.<br />

De Werner Herzog – refilmagem do clássico<br />

de Murnau (1922). Vampiro espalha o terror e a<br />

peste ao chegar a Weimar à procura de jovem<br />

pura e ingênua.<br />

O EXORCISTA (The Exorcist), 1973, EUA. De<br />

Willian Friedkin – Exorcista trava uma batalha com<br />

o demônio para libertar uma menina possuída.<br />

Considerado um dos mais assustadores filmes já<br />

produzidos.<br />

O GABINETE DO DR. CALIGARI (Das kabinett Des<br />

Doktor Caligari), 1919, Alemanha. De Robert Wiene<br />

– Filme que deu origem ao Expressionismo alemão.<br />

Misterioso hipnotizador é suspeito de uma<br />

série de assassinatos.<br />

O ILUMINADO (The Shining), 1980, EUA/Inglaterra.<br />

De Stanley Kubrick – Escritor desempregado<br />

se muda para hotel abandonado com a mulher<br />

e o filho. Aos poucos ele começa a enlouquecer e<br />

se torna uma ameaça para sua família.<br />

O INVASOR<br />

ASOR, 2001, <strong>Brasil</strong>. De Beto Brant – Dois<br />

amigos contratam um matador para assassinar seu<br />

sócio. Depois do crime praticado o assassino invade<br />

suas vidas e um deles passa a sofrer com o medo<br />

e o remorso.<br />

O SALÁRIO DO MEDO (Le Salaire De La Peur),<br />

1953, França. De Henri-Georges Clouzot – Quatro<br />

estrangeiros presos em vilarejo centro-americano<br />

aceitam por uma recompensa de dois mil<br />

dólares a tarefa de atravessar o país dirigindo dois<br />

caminhões carregados de nitroglicerina.<br />

O SÉTIMO SELO (Det Sjunde Inseglet), 1957, Suécia<br />

. De Ingmar Bergman – Cavaleiro Cruzado joga<br />

xadrez com a morte para adiar sua pena até retornar<br />

ao lar. Ele encontra seu país entregue ao fanatismo<br />

e desesperado pela fome e pela peste.<br />

O SEXTO SENTIDO (The Sixth Sense), 1999, EUA.<br />

De M. Night Shyamalan – Menino assustado com<br />

sua capacidade de enxergar os mortos recebe a ajuda<br />

de psicanalista com atormentado passado.<br />

PSICOSE (Psycho), 1960, EUA. De Alfred Hitchcock<br />

– Mulher se hospeda em lúgubre motel<br />

de beira de estrada. Um clássico do suspense.<br />

REPULSA AO SEXO (Repulsion), 1965, Inglaterra.<br />

De Roman Polanski – Mulher perturbada e<br />

sozinha em apartamento vê seus medos virem<br />

à tona quando passa a não diferenciar delírio<br />

e realidade.<br />

SEM MEDO DE VIVER (Fearless), 1993, EUA. De<br />

Peter Weir – Depois de sobreviver a terrível acidente<br />

aéreo, homem acredita ser invulnerável e<br />

passa a arriscar sua vida continuamente.<br />

SOB O DOMINÍO DO MEDO (Straw Dogs), 1971,<br />

EUA. De Sam Peckinpah – Pacato professor se<br />

muda com a esposa para vilarejo escocês onde sofre<br />

a hostilidade de alguns jovens locais. A tesão e as<br />

agressões crescem até um desfecho violento.<br />

UM CORPO QUE CAI (Vertigo), 1958, EUA. De Alfred<br />

Hitchcock – Detetive que tem fobia de altura<br />

é contratado para vigiar uma jovem, suicida em<br />

potencial.<br />

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A CASA-FANTASMA DE<br />

RICARDO OITICICA<br />

No ensaio Amor e medo, Mário de Andrade<br />

faz com Álvares de Azevedo o mesmo<br />

que o modernismo com Augusto dos Anjos:<br />

ignorar o antecipatório de uma poética. Álvares<br />

continuava a ser apenas o “lacrimoso perene”<br />

e Augusto o “poeta do hediondo”, mas na<br />

Paulicéia de 1850 alguém já grafitava<br />

esses versos: “Escrevo na<br />

parede as minhas rimas/ De painéis<br />

a carvão adorno as ruas”, alguém<br />

no Rio-1900 já falava dos “anúncios<br />

das casas de comércio” e “da<br />

cara geral dos edifícios”.<br />

Só mais à frente será passado<br />

recibo: Antonio Candido vai<br />

considerar Álvares “o primeiro,<br />

quase o único antes do modernismo,<br />

a dar categoria poética ao prosaísmo<br />

cotidiano” (o que seria omitir<br />

Augusto), enquanto Ferreira<br />

Gullar acredita que “a poesia de<br />

Augusto opera uma revolução.<br />

Com ela, nossa poesia passa a falar<br />

da vida real, comum” (o que<br />

seria esquecer Álvares). Entre pa-<br />

FOTOGRAFIAS DE CELSO BRANDÃO<br />

rênteses: no elogio ou na crítica, na vida ou<br />

na obra, ambos destinados ao desacerto.<br />

O presente artigo promove, em meio aos<br />

desacertos, o encontro da arte de dois anjos,<br />

par resultante da posição ímpar que ocupam<br />

nas respectivas escolas, o Romantismo e o Simbolismo.<br />

Não apenas porque antecipassem o<br />

prosaísmo – Gregório de Matos o fez bem antes<br />

e mais francamente. É ímpar sua posição<br />

mesmo e sobretudo naquilo que têm de arcaico<br />

e carcomido, vistos de outro ângulo. À luz<br />

do que Augusto chama “a solidariedade subjetiva/<br />

de todas as espécies sofredoras” e Álvares vê<br />

como “Duas almas que moram nas cavernas de<br />

um cérebro pouco mais ou menos de poeta”, eles se<br />

tornam contemporâneos extemporâneos – de<br />

nós e entre si.<br />

Através do médium da crítica, Augusto<br />

lança o grito do seu livro – Eu – para Álvares:<br />

E haja só amizade verdadeira de uma caveira para<br />

outra caveira/ Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!<br />

Antes depois da morte do que nunca.<br />

Álvares confirma o local de encontro: Amizade!<br />

Onde a viste? Foi acaso/ No escuro cemitério<br />

de joelhos/ Sobre o torrão que abriu a pá a<br />

fresco? A hora é a hora da meia-noite que apavora.<br />

Efetivamente, ao pedido de Álvares por<br />

libação, traz fogo e dois charutos/ E na mesa de<br />

estudo acende a lâmpada, um gesto de Augusto<br />

estabelece o contato: Toma um fósforo, acende<br />

teu cigarro.<br />

Psicografia? Não a da pessoa; talvez a de<br />

Pessoa. Não a psicografia realizada por Jorge<br />

Rizzini e Chico Xavier com Augusto dos Anjos,<br />

mas a “autopsicografia” por Fernando Pessoa<br />

e seus heterônimos. Mais precisamente,<br />

uma interpsicografia de texto: os processos<br />

mentais dos poetas de Versos íntimos e Idéias<br />

íntimas gerando a intimidade intertextual,<br />

onde o dado biográfico – o menino autodidata<br />

que, nascido “em meio de avisos sobrenaturais<br />

e almas do outro mundo” num engenho<br />

da Paraíba, sofrerá o vaticínio de que “Este<br />

menino não se cria” (informações de Magalhães<br />

Jr. sobre Augusto dos Anjos), ou o estudante<br />

paulista que prenuncia o ano de sua morte,<br />

ocorrida num domingo da Ressurreição, um<br />

mês após queda de cavalo etc... etc, – só importa<br />

se relacionado ao processo de criação, que<br />

Augusto define por uma “série indescritível de fenômenos<br />

nervosos” e Álvares por<br />

“vibrações convulsas”. A vida enquanto<br />

metalinguagem, tal<br />

como expresso por Augusto em<br />

O poeta do hediondo:<br />

Em alucinatórias cavalgadas,/<br />

Eu sinto então, sondandome<br />

a consciência,/ A ultra-inquisitorial<br />

clarividência/ De todas as<br />

neuronas acordadas (...)/ Eu sou<br />

aquele que ficou sozinho, cantando<br />

sobre os ossos do caminho/ A<br />

poesia de tudo quanto é morto.<br />

Nesse sentido, um texto<br />

pode ser “cavalo” de outro, na<br />

medida em que estabelece a<br />

condição objetiva entre subjetividades,<br />

seja a intra-subjetividade<br />

de um mesmo autor, caso<br />

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ÁLVARES DOS ANJOS<br />

do poema Autopsicografia e dos heterônimos<br />

de Pessoa, seja a intersubjetividade de autores<br />

distintos. Meu sonho, poema de Álvares de<br />

Azevedo, possibilita a leitura dos dois níveis<br />

de subjetividades no diálogo entre as personagens<br />

“Eu” e “O fantasma”.<br />

Atormentado pelo galope agourento, pergunta<br />

o “Eu”:<br />

“Cavaleiro, quem és? Que mistério/ Quem te<br />

força da morte no império/ Pela noite assombrada<br />

a vagar?”<br />

Responde o “fantasma”:<br />

“Sou o sonho da tua esperança,/ Tua febre que<br />

nunca descansa,/ O delírio que te há de matar.”<br />

A intra-subjetividade:<br />

Álvares é ao mesmo tempo<br />

o “Eu” e o “fantasma”, unificados<br />

pela morte após a<br />

queda de cavalo. A febre<br />

que deveras sente já estava<br />

em alto grau no poema. Permeia<br />

a cavalgada ficcional<br />

e a cavalgada verdadeira a<br />

mesma pulsão que o teria<br />

feito escrever, na parede de<br />

seu quarto, o ano de sua<br />

morte, ao lado dos nomes<br />

de colegas de faculdade de<br />

quem fez o elogio fúnebre.<br />

A intersubjetividade: o caráter<br />

dialógico do texto possibilitará<br />

a interlocução<br />

com Augusto dos Anjos,<br />

meio século depois, quando<br />

este, cavalgando, se diz<br />

o cantor de tudo quanto é morto. O “Eu” e o<br />

“fantasma” também são Augusto dos Anjos,<br />

o poeta do Eu. No alucinado galope do tempo<br />

– esse “cavalo de eletricidade”, para Augusto –, os<br />

dois poetas emparelham “como se Deus ou Satã<br />

dissesse-lhes:/ Correi sem mais parar” (ainda Eros e<br />

Tânatos em Álvares), até o encontro virtual das<br />

paralelas na casa-fantasma de um híbrido Álvares<br />

dos Anjos.<br />

Pelo caminho, toda uma fauna em comum:<br />

corvos, cobras, sapos, lagartixas, moscas,<br />

até o indefectível verme da última substância.<br />

Animal doméstico por excelência, o cão<br />

assume proporções de Cérbero, tanto em um<br />

(“E latiu como um cão mordendo um século”) quanto<br />

em outro (“E irá assim, pelos séculos adiante,/<br />

Latindo a esquisitíssima prosódia”), assim como<br />

o cavalo será da estirpe de Ucrânio, a montaria<br />

cantada por Lord Byron. E antes mesmo<br />

de Baudelaire comparar a raça dos poetas à do<br />

inadaptado albatroz, cujas asas de gigante o<br />

impedem de andar, Álvares de Azevedo já vê<br />

o vate “como uma águia nas trevas – tropeçava e<br />

caía”, em muito diferente da águia condoreira<br />

do romantismo. Na casa de Álvares dos Anjos,<br />

há pouso para Poe, conhaque para Byron,<br />

absinto para Baudelaire... e há Mary Shelley.<br />

Arrombada a porta como a uma tumba –<br />

“Cuidado, leitor, ao voltar essas páginas” –, damos<br />

com o corpo da obra. “Poetas, amanhã ao meu cadáver/<br />

Minha tripa cortai mais sonorosa”, diz o bilhete<br />

no bolso de um. “Tome, Dr., esta tesoura... e<br />

corte minha singularíssima pessoa”, é o que vem<br />

no bolso do outro. A autópsia do texto se faz em<br />

rins, tórax, intestino, tripas, estômago, tíbia, fêmur<br />

– despojos encontrados na caixa-livro de<br />

ambos. Aqui o prontuário de um: “Foi-lhe palácio<br />

o hospital, a esse/ Cuja fronte era um trono à poesia”;<br />

ali o prontuário do outro: “O coração do poeta é um<br />

hospital/ Onde morreram todos os doentes”. Mas nenhuma<br />

visita deste mundo. Pudera: se um não é<br />

amado, “Meu Deus! Ninguém me amou!”, o outro<br />

também não ama: “O amor, quando virei por fim a<br />

amá-lo!”. Só o túmulo lhes será alcova para encontros:<br />

“Eis-te aí, prostituída aos vermes/ Que só te<br />

mordem com seus agros beijos. E ainda: Ser meretriz<br />

depois do túmulo/ (...) Oferecer-se à<br />

bicharia infame/ Com a terra do<br />

sepulcro a encher-lhe os olhos”.<br />

A recepção de Augusto dos<br />

Anjos e Álvares de Azevedo é<br />

palco, ela também, da disputa<br />

que se estabelece no interior da<br />

obra, resultando em repulsa e<br />

atração. O que Antonio Candido<br />

diz de Álvares vale para Augusto:<br />

“Ou nos apegamos a sua<br />

obra, passando sobre defeitos e limitações<br />

que a deformam, ou a rejeitamos<br />

com veemência, rejeitando a<br />

magia que dela emana.(...) a ele só<br />

nos é dado amar ou repelir”. Você<br />

pode entender a obra de Álvares<br />

como “falsificações sistematizadas<br />

inconscientemente” (Mário<br />

de Andrade) e como “falseamento<br />

do real” (Ferreira Gullar) ou, à<br />

maneira da referida autopsicografia de Pessoa,<br />

como fingimento: “Escutai-me, leitor, a minha história/<br />

É fantasia, sim, porém amei-a”. Se assim for,<br />

a fantasia leva ao fantasma e a obra de ambos<br />

será lida como quem, no engenho da literatura,<br />

“das ruínas de uma casa assiste ao desmoronamento<br />

de outra casa”.<br />

RICARDO OITICICA Doutor em Letras e pesquisador da Fundação<br />

Biblioteca Nacional<br />

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E ENTÃO...<br />

PAULO CONDINI<br />

— E então?... Estamos conversados? — O<br />

pai perguntou. E em seguida informou: —<br />

Apanhou na rua, apanha em casa.<br />

Luizinho sentiu o coração apertado. As pernas<br />

tremeram e uma coisa entalou na garganta.<br />

— E não adianta ficar me olhando com estes<br />

olhos esbugalhados. — O pai continuou,<br />

sem dar conta do desespero do menino. —<br />

Você entendeu o que eu disse?<br />

— Sim... ele respondeu, num fio de voz.<br />

— Assim está melhor. — O pai falou, olhando-o<br />

muito sério, e arrematou. — Agora trate<br />

de ir para a escola.<br />

A mãe, parada na porta da cozinha, percebeu<br />

a mãozinha trêmula buscar a alça da mochila<br />

amarela que ele adorava. Mas hoje, ela<br />

também notou, Luizinho não demonstrava o<br />

menor prazer em colocá-la às costas.<br />

— Tchau, pai! — Ele falou sem olhar para<br />

o seu lado. — Tchau, mãe! — E lhe endereçou<br />

um olhar de cortar o coração.<br />

Ela bem que gostaria de dizer alguma coisa<br />

para lhe transmitir um pouco de confiança,<br />

mas sabia que se abrisse a boca o marido iria<br />

ficar bravo. Por isso calou e acompanhou a<br />

saída do filho, com um enorme sentimento<br />

de culpa.<br />

O pai voltou ao jornal e ao café da manhã.<br />

Luizinho saiu para a rua.<br />

A mãe foi chorar escondida na área de serviço.<br />

Na calçada, o vento fresco da manhã arrepiou<br />

a penugem dos seus braços finos de menino<br />

de oito anos.<br />

Do outro lado da rua, a moça bonita que<br />

via sair para o trabalho, todas as manhãs, fechou<br />

a porta do carro e arrancou apressada.<br />

Luizinho olhou para a sua esquerda, esperando<br />

ver o ônibus da escola.<br />

A qualquer momento ele iria chegar.<br />

A boca ficou ainda mais seca. O coração<br />

bateu surdo e apressado no peito.<br />

Era tudo o que ele não queria mais ter que<br />

fazer. Subir naquele ônibus, que já fora a sua<br />

alegria, e precisar olhar para a cara repulsiva de<br />

Bruno, um garoto atarracado da quarta série que<br />

gostava de se divertir às custas dos menores.<br />

Ele detestava ver alguém se aproveitar dos<br />

mais fracos.<br />

Lembrou de como o pai costumava fazer<br />

com sua mãe quando ela o contrariava. Era<br />

suficiente perceber seu descontentamento<br />

quando ele chegava em casa com os olhos vermelhos<br />

e a voz empastada.<br />

O ônibus apontou no fim da rua.<br />

Ele se encolheu e sentiu o corpo tremer.<br />

Na memória, viu os olhos de sua mãe ensombrear.<br />

Como num filme, observou o ônibus aproximar-se<br />

lentamente, parecendo não querer ganhar<br />

terreno, como que a retardar ao máximo<br />

o inevitável.<br />

O pouco leite que havia tomado rebelouse,<br />

querendo fugir.<br />

O coração disparou e a coisa entalada na<br />

garganta aumentou.<br />

Finalmente o ônibus parou.<br />

Subiu o primeiro degrau...<br />

Do último banco, a voz esganiçada de<br />

Bruno:<br />

— Entra depressa, Lulu!<br />

A turma, ao seu lado, gargalhou.<br />

Seu rosto ardeu. O leite quase chegou<br />

à boca.<br />

Mesmo assim entrou no corredor e o ônibus<br />

voltou a andar.<br />

Observou os rostos alterados pelo riso da<br />

turma dos meninos maiores, e procurou seu<br />

lugar para sentar.<br />

ILUSTRAÇÃO LUIZ AGNER<br />

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TANTOS MEDOS<br />

Vozes, indistintas, gritavam: “Lulu! Lulu!”<br />

Um zumbido insuportável, na cabeça, quase<br />

o impedia de andar.<br />

As crianças, sentadas nos bancos da frente,<br />

fingiam não estar vendo nem ouvindo nada.<br />

Animado pelo sucesso, Bruno levantou e<br />

foi para o corredor, rindo ensandecido...<br />

O motorista olhou pelo retrovisor e sacudiu<br />

a cabeça.<br />

O ônibus passou por um buraco, na avenida,<br />

e balançou forte.<br />

Luizinho levantou os olhos e viu Bruno<br />

andar em sua direção, com os olhos congestionados,<br />

corpo gingando, a boca entreaberta e<br />

lembrou do seu pai chegando em casa.<br />

Na área de serviços a mãe chorando, encolhida...<br />

E então, como uma centelha, a coisa entalada<br />

na garganta se libertou e, com os olhos<br />

nublados pelas lágrimas, correu pelo corredor<br />

em direção ao brutamontes e desferiu um chute<br />

violento entre suas pernas.<br />

Bruno gritou fino e dobrou o corpo.<br />

A turma do fundão calou-se, surpresa.<br />

Bruno sentou-se no chão a chorar.<br />

Uma voz indistinta gritou:<br />

— Chora, Bru Bru !<br />

E as crianças dos bancos da frente saudaram<br />

com gritos, assobios e muitas palmas...<br />

PAULO CONDINI Jornalista, ator e produtor, foi editor da Melhoramentos<br />

e da Carthago & Forte. Escreveu Scorro; Os filhos do<br />

rio; Juju e o unicórnio.<br />

TANTOS MEDOS<br />

E OUTRAS CORAGENS<br />

(fragmentos)<br />

“Muitos medos a gente tem<br />

e outros a gente não tem.<br />

Os medos são como<br />

olhos de gato<br />

brilhando no escuro.<br />

Há, por exemplo, o medo do escuro<br />

e tudo o que o escuro tem:<br />

lobo mau, floresta virgem, alma<br />

do outro mundo, portas fechadas,<br />

cavernas, porões, ai que pavor!<br />

O escuro tem mãos de veludo<br />

que fazem o coração rolar<br />

pela escada,<br />

pela rua,<br />

pela noite afora<br />

como um cavalo sem freio”<br />

“Os medos são como<br />

flores secretas,<br />

cores secretas,<br />

invisíveis vaga-lumes<br />

marcando o caminho.<br />

Isso a gente faz,<br />

isso a gente não faz.<br />

Como um relógio oculto.<br />

Isso a gente faz,<br />

isso a gente não faz.<br />

Que a vida é um jogo<br />

assim,<br />

de tantos medos<br />

e outras coragens.”<br />

Do livro Tantos medos e outras coragens, Ed. FTD.<br />

ROSEANA MURRAY Poeta. Entre suas obras estão: Manual<br />

da delicadeza; Jardins; Paisagens.<br />

• • •<br />

“Tenho muito medo<br />

das folhas mortas,<br />

medo dos prados<br />

cheios de orvalho.<br />

eu vou dormir;<br />

se não me despertas,<br />

deixarei a teu lado meu coração frio.”<br />

FEDERICO GARCÍA LORCA 1898-1936 Poeta e dramaturgo<br />

espanhol.<br />

• • •<br />

“Aumentam-se-me então os grandes<br />

medos.<br />

O hemisfério lunar se ergue e se abaixa<br />

Num desenvolvimento de borracha,<br />

Variando à ação mecânica dos dedos!”<br />

Augusto dos Anjos 1884-1914 Poeta. Publicou apenas<br />

um livro em vida: Eu.<br />

P R O D U Ç Õ E S<br />

E D I T O R I A I S<br />

Todo mundo pergunta, o que quer dizer Manati. A palavra de origem<br />

caraíba, significa “gênio da água” ou “sereia” e é um dos nomes<br />

populares do peixe-boi-marinho.<br />

A editora Manati nasceu em mares brasileiros, mas esse é apenas<br />

um dos motivos de seu nome. Quem conhece nossos livros sabe que<br />

Manati quer dizer muito mais...<br />

35<br />

manati@uninet.com.br • tel/fax: 21 2512-4810


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O MEDO-AFIRMATIVO<br />

EM CLARICE LISPECTOR<br />

ROBERTO CORRÊA<br />

DOS SANTOS<br />

A vida exige uma legião de sentimentos<br />

a serem polidos para tornar-se ela mesma<br />

uma obra; em certo sentido uma obra-dearte.<br />

Ou seja, algo que vagarosamente e com<br />

delicadeza irá sendo construído, de modo a<br />

ampliar a harmonia dos afetos de que se é<br />

formado e de que se é formador. Para tanto,<br />

retira-se dos próprios meios de subjetivação<br />

(experiência, encontros, perdas, exame do<br />

trânsito entre os seres, os estados e os processos<br />

sociais) a matéria a modelar-se ao abrirse<br />

ao sopro do espírito: o sopro consiste no<br />

nome outro para designar a alma – a rede da<br />

organicidade afetiva.<br />

Dentre os sentimentos a abrigarem a sabedoria<br />

para que um ser amplie seus espaços,<br />

movimentos, gestos e percepções, encontra-se<br />

– e a afirmativa pode parecer paradoxal<br />

– o medo: o medo, em seu grau justo<br />

e necessário (não além do limite do útil à<br />

vida), permite que a força natural (o bicho<br />

que somos) se alastre e detenha os avanços<br />

impedidores do que se costuma chamar de<br />

entendimento coletivo com suas regras gerais<br />

convencionadas por um outro severo e<br />

restritivo da vontade de singularização, a legítima<br />

vontade do experimento e das metamorfoses<br />

das potências do corpo criador.<br />

O animal, por ter medo (pois o medo<br />

procede da mais soberana das forças – a de<br />

viver), desenvolve e aguça seus sentidos (o<br />

tato, o cheiro, o ouvir, a visão e a inteligência<br />

do reconhecimento para mover seu mundo<br />

livre e atento). Assim, ampliam-se as habilidades<br />

do agir: recuar, saltar, observar, comer,<br />

subir, desfazer-se da visibilidade, voar,<br />

migrar. Superar, portanto, a iminência do perigo.<br />

Ter medo como alavanca para vencer:<br />

vencer-se. O medo, nesse grau afirmativo e<br />

constituinte, será sempre imprescindível para<br />

a base sólida do dínamo do crescimento: o<br />

investigar. Nesse ato, o preparo, a pesquisa,<br />

o reconhecer e o reelaborar. Ao saber o bom<br />

uso da investigação, o medo, de constrangedor,<br />

torna-se auxiliar e, então, já não permite<br />

que ele – o medo – se erga a tal altura que<br />

gere o terror, o pânico, a comportar, conseqüentemente,<br />

o afrouxamento das virtudes<br />

da alegria. Esta, em si mesma, libertadora.<br />

Crescido desproporcionalmente, o medo<br />

levaria à ignorância e à cegueira e ao emparedamento,<br />

constituindo um elemento emocional<br />

inibidor, a constranger<br />

e a paralisar.<br />

Como porém, como a<br />

vida quer vida, a educação<br />

dos sensos deverá<br />

convergir para que se<br />

manifeste em nós a outra<br />

face do medo: a audácia.<br />

Os dois termos<br />

integrantes de um único<br />

e mesmo signo. Ir: por<br />

medo. Fazer: por medo.<br />

Ousar: por medo. E<br />

logo – nos desdobramentos<br />

desses atos – ultrapassar<br />

o medo. Revertê-lo, dobrá-lo à nossa<br />

imperiosa energia vital. A cada novo elemento<br />

de confronto (o confronto é uma das<br />

técnicas do aprendizado do medo posto à<br />

nossa serventia), saber que tudo ocorrerá provisoriamente,<br />

pois este – o medo – reatualiza-se<br />

sempre sob diversos formatos. Ora menos,<br />

ora mais fantasmáticos.<br />

Se assim é, deve-se , frente a alguma de<br />

suas aparições, dar-lhe o crédito de invocar<br />

no corpo, e novamente, as reações químicas<br />

de vibrantes atitudes criativas presentes nas<br />

respostas políticas e, tantas vezes, estéticas.<br />

O medo de falhar, em um palco, abre cadeias<br />

de fluxos pelos quais se movem substâncias<br />

poderosas de uma imantação e de uma<br />

fortalecida beleza que, do lado de quem assiste,<br />

não se sabe de onde terá nascido tal<br />

gigante e divino domínio. Tais substâncias<br />

foram exigidas para a plenitude, provisória<br />

qual relâmpago, de um destino ali, em elevada<br />

intensidade da arte, daquela a torcer e<br />

a modelar o medo. É desse modo que o<br />

medo se integra ao fazer de Clarice Lispector:<br />

o medo cria, não interdita. Daí a obra.<br />

Sua radical coragem. Se medo há, será para<br />

desenhá-lo, tecê-lo para a construção dessa<br />

ou daquela personagem, interessando mais<br />

especialmente o sutil vigor<br />

a minuciosamente<br />

construir-se na aparente<br />

e inicial timidez de algumas<br />

delas.<br />

Bem se verá, na genealogia<br />

clariceana, o que se<br />

segue ao medo: a luta, o<br />

salto, o inquebrantável<br />

exame da vida múltipla.<br />

O medo em A paixão segundo<br />

G.H., face à figura<br />

histórica, real e imaginária<br />

da barata, constitui<br />

a usina de fatura de uma<br />

entretecida grade de afecções anímicas que<br />

cruamente se abre a esse-outro-que-lê: o nós.<br />

Esse, sim, intimado a seguir, a ser rápido (qual<br />

sapiente animal), e entender, até certo ponto,<br />

aquilo-que-o-espreita, gestando sua – ágil –<br />

artesania de simultaneamente entregar-se e domar:<br />

trata-se, em Clarice, de um curso para<br />

fazer-se soberano. Estar no e estar para além<br />

do medo. São bem incomuns os modos de<br />

Clarice expor o medo. Descrevem-se, em A<br />

paixão, máscaras do medo. Apresentam-se algumas<br />

delas a fim de que possam servir de<br />

mínima seleta para uma antropologia literária<br />

do medo, a história de suas emergências. Sublinhe-se<br />

parte de como este se encontra por<br />

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“As coisas são para temer somente<br />

que encerrem contra alguém poder de mal;<br />

as outras não, não causam dano à gente.”<br />

DANTE ALIGHIERE 1265-1321 Poeta italiano.<br />

A LÍNGUA TRAVADA<br />

Clarice, desenhado em frases de diamante:<br />

Medo do que é novo; medo de viver o que não<br />

se entende; medo em relação: a ser; medo de ir vivendo<br />

o que for sendo; medo de não pertencer mais<br />

a um sistema; medo de que o nosso modo não faça<br />

sentido. E logo depois, diante da barata, afirma-se:<br />

Estava me libertando da minha moralidade<br />

– embora isso me desse medo, curiosidade e<br />

fascínio. Ou, para ao medo contrapor-se: se eu<br />

for o mundo não terei medo (se a gente é o mundo,<br />

a gente é movida por um delicado radar que guia).<br />

E medos como: o medo do amor; o medo de minha<br />

mudez final na parede.<br />

No amplo raio dos medos, propõe que se<br />

deveria dizer assim – ele está muito feliz porque<br />

finalmente foi desiludido. O que era antes não<br />

era bom. Isso em razão de que, afirmará, ser<br />

necessário: correr o sagrado risco do acaso; substituir<br />

o destino pela possibilidade; perder-se; ir<br />

achando e nem mesmo saber o que fazer do que se<br />

for achando; abandonar a terceira perna (com<br />

duas, anda-se; a terceira prende , estabiliza). E a<br />

aprendizagem da mais forte expressão da<br />

bravura, a que nasce do não temer o medo .<br />

Arriscar: arriscar porque confio na minha covardia<br />

futura, e será minha covardia futura que me<br />

organizará de novo em pessoa; agir face ao horror,<br />

já que o horror sou eu em diante das coisas.<br />

E, para findar esta antologia miúda, que<br />

fique a imagem inscrita em: se uma pessoa tiver<br />

coragem de largar os sentimentos descobre a<br />

ampla vida de um silêncio extremamente ocupado,<br />

o mesmo que existe na barata, o mesmo nos<br />

astros, o mesmo em si próprio. Face a tudo, estarão<br />

no livro o convite e a ordem – dá-me<br />

tua mão. A sentença repete-se e, sobrepondo-se<br />

ao pedido de socorro, arrasta-nos para<br />

que conheçamos os sítios dos medos potentes:<br />

dá-me (leitor) tua mão.<br />

Roberto Corrêa dos Santos Professor dos cursos de pós-graduação<br />

da Faculdade de Letras da PUC-Rio. Autor de Lendo Clarice<br />

Lispector<br />

DIDIER LAMAISON<br />

O ABISMO (Fragmento)<br />

“Tenho medo do sono, o túnel que me esconde,<br />

Cheio de vago horror, levando não sei aonde;<br />

Do infinito, à janela, eu gozo os cruéis prazeres,<br />

E meu espírito, ébrio afeito ao desvario,<br />

Ao nada inveja a insensibilidade e o frio.<br />

- Ah, não sair jamais dos Números e Seres.”<br />

CHARLES BAUDELAIRE 1821-1867 Poeta e escritor francês.<br />

Toda excitação se alimenta de angústias<br />

sublimadas. A excitação da viagem<br />

tem muito de angústias reprimidas,<br />

uma a uma superadas: a angústia de se<br />

perder, a do esquecimento, a da novidade.<br />

Podemos enumerar outras, mas a<br />

angústia mais específica das viagens é<br />

certamente a angústia lingüística. Quando<br />

desembarcamos sem preparação em<br />

terra estrangeira, o primeiro suor frio<br />

que nos percorre é o da descoberta brutal<br />

de que a língua não flui e a comunicação<br />

mais elementar torna-se súbita e<br />

espantosamente problemática. As mais<br />

banais placas de sinalização me são<br />

enigmas absolutos. Concebidas para o<br />

usuário, eu as percebo, ao contrário,<br />

como ameaças: ameaças do sem-sentido,<br />

do contra-senso, da deriva, da marginalização,<br />

da exclusão.<br />

Fazer apelo a alguém não me é menos<br />

complexo, quer dizer: horripilante.<br />

Como perguntar meu caminho, como<br />

entender a resposta? O acúmulo de angústias<br />

provoca verdadeiro pânico. Vivo<br />

a experiência de um mundo opaco, cifrado,<br />

cujo sentido se esquiva. Disso resulta<br />

um extraordinário embaraço do<br />

nosso funcionamento, inteiramente desconectado<br />

e inadaptado, na fronteira da<br />

paralisia. Eu me infantilizo, reencontrando<br />

medos arcaicos que remontam ao<br />

meu segundo ano de existência. Perco<br />

toda autonomia, tudo temo.<br />

Leva tempo recuperar-se dessa terrível<br />

experiência. A angústia inicial do aeroporto<br />

se abranda pouco a pouco em<br />

mania, inquietude, apreensão. Apreensão<br />

que nos toma todas as vezes em que<br />

devemos nos exprimir nessa língua estrangeira<br />

cuja enigmática alteridade tão<br />

profundamente nos transtornou em nossa<br />

chegada. Quanto tempo é preciso para<br />

vencer este medo de “se lançar” num falar<br />

que não é o nosso? Alguns não o dominam<br />

jamais. Ele decorre de duas fixações<br />

diferentes: a de não se fazer devidamente<br />

entender e a de se estar exposto<br />

ao julgamento dos outros. A primeira<br />

põe em risco o liame social que se estabelece<br />

originalmente a partir da comunicação<br />

lingüística. A outra ameaça nossa<br />

própria integridade e nossa identidade:<br />

me arrisco a parecer ao interlocutor<br />

um triste bárbaro, um falante rudimentar,<br />

um comunicador frustrado e inibido,<br />

um inculto, um primitivo obtuso.<br />

E se o aprendizado de línguas vivas<br />

começasse por uma boa psicoterapia, exigindo-se<br />

dos professores, de entrada, sérias<br />

referências em psicologia?<br />

DIDIER LAMAISON Tradutor em língua francesa de alguns<br />

dos mais importantes escritores brasileiros, como Machado<br />

de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar.<br />

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DETALHES DE “O GRITO” DE EDVARD MUNCH, 1893<br />

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PARA ALÉM<br />

ROSA GENS<br />

SOB O DOMÍNIO DO MEDO<br />

Coração acelerado. Respiração entrecortada.<br />

Um calafrio. Um tremer de pernas.<br />

Uma gota de suor que chega e cai. São muitas<br />

as reações físicas a situações de medo que<br />

aparecem no cotidiano e se espraiam. Por<br />

vezes, transformam-se em narrativas, vindo<br />

a se constituir em um circuito de textos que<br />

vai sendo acionado oralmente e reafirma<br />

as reações de susto. No entanto, o estímulo<br />

que deflagra o medo pode ser uma narrativa<br />

escrita, capaz de manter o leitor em<br />

estado de alerta e lançar adrenalina em<br />

seu corpo.<br />

Afinal, por que dar atenção a narrativas<br />

que se centralizam no medo? Basta<br />

pensar, inicialmente, na adesão que os<br />

jovens têm apresentado, ao longo dos<br />

últimos anos, às obras que se embasam<br />

no medo. Nas três últimas décadas,<br />

principalmente, multiplicaram-se livros<br />

e filmes que provocam sensações<br />

de pavor e, mais do que isso, fazem<br />

do medo o seu tema básico. Um arrepio,<br />

um recuo ao toque, uma sensação<br />

de náusea, repulsa e pronto:<br />

estamos face ao que não desejávamos<br />

e é impossível recuar. O horror,<br />

é certo, nos causa ameaça. Em<br />

última instância, ameaça o nosso<br />

mundo, que já anda muito ameaçador.<br />

No entanto, por entre possibilidades<br />

de balas perdidas e um<br />

assalto a cada esquina, podemos<br />

nos dar ao luxo de ficarmos assustados<br />

com histórias de vampiros,<br />

lobisomens, monstros, fantasmas...<br />

PERSEGUINDO O SUSTO<br />

Mas o que provoca o medo? E quais seriam<br />

os principais elementos das narrativas<br />

de terror? Comecemos por ir no rastro de<br />

Howard Phillips Lovecraft. Nascido em 1870<br />

e falecido em 1937, escritor e ensaísta, em<br />

seu longo ensaio O horror sobrenatural na<br />

literatura (Francisco Alves, 1987), formulou<br />

uma estética da história do horror sobrenatural.<br />

O ensaio surgiu encomendado<br />

por um amigo, que pretendia publicá-lo em<br />

uma revista especializada (1924), e revestese<br />

de especial importância por apresentar um<br />

estudo de um escritor que é também ficcionista<br />

–– entre as obras de Lovecraft situa-se<br />

A tumba, considerada uma obra-prima da<br />

literatura de terror.<br />

O discurso de O horror sobrenatural<br />

na literatura se constrói ao arrolar obras e<br />

mais obras, como se fosse um catálogo, só<br />

que fortemente amarrado, numa unidade orgânica.<br />

O autor reconta os livros que leu,<br />

unindo-os na sua busca principal, que é a da<br />

psicologia do medo. A idéia perseguida ao<br />

longo do ensaio é que a emoção mais forte e<br />

mais antiga do mundo é o medo, e, dentro<br />

dessa emoção, a mais forte seria a do medo<br />

do desconhecido. Lovecraft procura mostrar<br />

que a atração pelo espectral e pelo macabro<br />

exige do leitor uma certa dose de imaginação<br />

e capacidade de desligamento da vida cotidiana.<br />

E aponta que relativamente poucos são<br />

os que se deixam levar por uma sedução pelo<br />

desconhecido.<br />

Nas narrativas de horror, para Lovecraft,<br />

o mais importante seria o clima, a atmosfera.<br />

Assim, o único teste da literatura verdadeira<br />

de horror é saber se suscita no leitor um sentimento<br />

de profunda apreensão, uma atitude<br />

sutil de escuta ofegante. E esse sentimento se<br />

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DO SUSTO<br />

perpetua. Os textos de terror são muito, muito<br />

antigos. O horror cósmico aparece em narrativas<br />

do mais remoto folclore; as cerimônias<br />

de conjuração de demônios são comuns<br />

em rituais antigos; tipos e personagens sombrios<br />

de mitos e lendas passaram por séculos,<br />

via tradição oral, e tornaram-se parte da herança<br />

permanente da humanidade. Por exemplo,<br />

a sombra que aparece e reclama o sepultamento<br />

de seus ossos, o demônio enamorado<br />

que vem raptar a amada, ainda viva, o homem<br />

lobo, o mágico imortal, foram narrados<br />

em antigas civilizações, passaram e se fortificaram<br />

na Idade Média, para continuarem em<br />

nosso tempo.<br />

NARRANDO O HORROR<br />

São muitas as narrativas que causam<br />

medo. Contudo, algumas podem ser entrevistas<br />

como matrizes, visto que inauguram<br />

uma certa linhagem. Provocam influência e<br />

continuam, até hoje, vivas, seja pela leitura,<br />

seja pelo recontar, seja por sua inserção em<br />

outras formas de discursos. Todas surgiram<br />

no século XIX: Frankenstein ou O moderno<br />

Prometeu (1816) , de Mary Shelley; O médico<br />

e o monstro–– o estranho caso do Dr.<br />

Jeckyll e Mr. Hyde (1885), de Robert Louis<br />

Stevenson, e Drácula (1897) de Bram Stocker.<br />

Vale a pena recordar que as obras ensejaram<br />

mais de cem filmes e, tanto nos desenhos televisivos<br />

como nas histórias em quadrinhos,<br />

vemos marcas de seu poder. Também nos<br />

RPG e jogos de computador podemos encontrá-las.<br />

E não é à toa que comparecem enfeixadas<br />

em um único livro publicado pela<br />

Ediouro (2002), traduzidas com cuidado por<br />

Adriana Lisboa.<br />

Frankenstein apresenta a possibilidade de<br />

o ser humano criar vida –– em suma, de se<br />

acreditar Deus. Fruto da Ciência, a criatura<br />

formada pelo Dr. Victor Frankenstein desafia<br />

a moral, deixando entrever o questionamento<br />

dos limites entre o errado, numa espécie<br />

de ética de expansão. A narrativa trata<br />

de responsabilidades, entre criadores e criaturas,<br />

e nada poderia ser mais atual em uma<br />

época como a nossa, em que a criação de<br />

humanos, através da clonagem, tornou-se<br />

uma realidade. Drácula aciona a idéia de<br />

finitude da humanidade, justamente por<br />

apresentar a imortalidade como eixo. O<br />

desdobramento obtido a partir do sangue<br />

remete ao aspecto sexual, mas o erotismo<br />

é velado. Em O médico e o monstro, o<br />

tema da duplicidade comparece e faz com<br />

que um médico–– perfeito espécime social<br />

––acabe por perder seu senso de naturalidade<br />

e transforme-se, por meio de<br />

uma poção, em um monstro, capaz de<br />

crimes brutais. Bem e mal aqui travam<br />

uma luta dentro de uma única<br />

criatura.Nos protagonistas das três<br />

obras, concentra-se, à maneira romântica,<br />

o desejo de descobrir a essência<br />

do humano, nelas concretizada<br />

a partir de imagens e metáforas.<br />

Na verdade, podemos até não<br />

querer entrar em contato com essas<br />

personagens, mas elas persistem<br />

em nossa cultura justamente<br />

por mostrarem o desconhecido<br />

que nos habita.<br />

Sustos e revelações são artifícios<br />

dessas obras, e encontram-se<br />

também presentes em lendas do<br />

folclore brasileiro, em Não olhe<br />

atrás da porta, de Lia Neiva, em<br />

Pente de Vênus, de Heloísa Seixas,<br />

nas lendas urbanas que circulam<br />

na Internet e percorrem as<br />

continua<br />

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PARA ALÉM DO SUSTO<br />

cidades, e em muitos outros textos. Tais<br />

narrativas exibem-se, muitas vezes, como rituais<br />

e distorções de nossos maiores medos.<br />

CURIOSIDADE E ESQUIVA<br />

O verdadeiro autor de histórias de terror,<br />

qualquer que seja a sua dimensão, explora<br />

os limites do que as pessoas são capazes<br />

de fazer e as fronteiras do que são capazes<br />

de experienciar. Assim ele se aventura nos<br />

domínios do caos psicológico, desertos emocionais,<br />

traumas psíquicos, abismos abertos<br />

pela imaginação, histeria e loucura, todos os<br />

elementos que ficariam na divisa do bárbaro.<br />

As narrativas de terror muitas vezes apresentam<br />

imagens e figuras de caos e sofrimento,<br />

como se tematizassem várias espécies de<br />

“inferno”, tomando a palavra como exemplo<br />

de uma condição humana extrema.<br />

Trabalhemos um pouco com as palavras<br />

“horror” e “terror”. O horror deriva do latim<br />

horrere: fazer o cabelo se arrepiar. Ou seja,<br />

horripilar: horrorizar, eriçar os cabelos, arrepiar.<br />

Vem do latim eclesiástico horripilare.<br />

O que causa o eriçamento dos cabelos.Já terror<br />

viria do latim terrorem, do tema de terrere,<br />

espaventar, causar grande medo.Assim,<br />

numa abordagem etimológica superficial,<br />

poderíamos aventar a hipótese de que o<br />

horror é uma reação física, enquanto o terror<br />

seria uma reação provocada pelo sobrenatural,<br />

pelo desconhecido, a ameaça desconhecida.<br />

De qualquer forma, as narrativas<br />

de horror de terror (ou horror) parecem surgir<br />

com a tentativa de encontrar adequados<br />

símbolos e descrições para forças, medos e<br />

energias primitivas relacionadas à morte, à<br />

vida após a morte, punição, mal, violência e<br />

destruição.<br />

Convenhamos que, na época em que vivemos,<br />

tornou-se difícil encontrar quem não<br />

tenha participado de uma experiência de horror.<br />

E, caso tenha a sorte de não a ter vivenciado,<br />

pelo menos com ela defrontou-se na<br />

mídia, haja vista a profusão de imagens violentas<br />

que inundam nosso cotidiano via<br />

meios de comunicação. Assim, enquanto<br />

sentamos num sofá, cadeira ou poltrona para<br />

ver televisão, confortavelmente recostados,<br />

entram em nosso lar imagens de guerras, terremotos,<br />

assassinatos, em meio a anúncios<br />

de máquinas de lavar, iogurtes e carros. Também<br />

ao abrirmos os jornais encontramos o<br />

mesmo panorama.<br />

Basta lembrar acidentes de carros, em<br />

que motoristas quase batem ao tentar olhar<br />

o que aconteceu. Podemos ler neste gesto curiosidade<br />

ou até mesmo solidariedade humana,<br />

mas sabemos que não é bem isto que os<br />

move. E nem adianta afirmar que esse é uma<br />

reação que visualiza a realidade como ficção.<br />

Qualquer que seja o ângulo de abordagem,<br />

continua a ser fundamental a idéia de procura<br />

pelo desconhecido, e busca pela<br />

sensação de susto e repulsa. E, ainda<br />

além, constata-se que as pessoas<br />

se sentem fascinadas pelo que<br />

lhes causa repulsa.<br />

Olhar o acidente e, ao<br />

mesmo tempo, desviar o<br />

olhar. Ou, como as crianças,<br />

espalmar a mão<br />

aberta sobre o rosto e<br />

ver entre os dedos,<br />

negando e procurando<br />

a visão. Stephen King nos revela, em seu<br />

prefácio ao volume Sombras na noite (Francisco<br />

Alves, 1987), que o leitor de terror é justamente<br />

aquele que não consegue desviar o<br />

olhar do acidente. E, ainda, observa que existem<br />

narrativas que mostram o próprio acidente,<br />

em detalhes (o que pode ser percebido,<br />

por certos críticos, como mau gosto) e<br />

outras que apenas exibem as ferragens<br />

retorcidas, deixando ao leitor a tarefa de<br />

imaginar o que aconteceu. Para além do<br />

susto, fica a vontade de pensar mais e<br />

mais sobre o destino humano.<br />

ROSA GENS Professora de Literatura <strong>Brasil</strong>eira da Faculdade<br />

de Letras da UFRJ, Coordenadora do Curso<br />

de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil dessa<br />

instituição.<br />

“E, aqui dentro, o silêncio...E este<br />

espanto! e este medo!<br />

Nós dois...e, entre nós dois,<br />

implacável e forte,<br />

A arredar-me de ti, cada vez mais,<br />

a morte...”<br />

OLAVO BILAC 1865-1918 Poeta e contista.<br />

DETALHE DE “CINZAS” DE EDVARD MUNCH, 1894<br />

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AS ABERRAÇÕES SÓ<br />

SÃO SUTIS NO LUSCO-FUSCO<br />

THEREZA LESSA<br />

George K. voltou assombrado da Editora<br />

B. Durante o percurso, não mais de três quadras,<br />

ouviu Borges acusá-lo de cabotino e Nelson,<br />

de canalha. Já não tentava mais argumentar<br />

com os colegas posto que os respeitava. Mas<br />

sentia-se perseguido pelos dois desde que passou<br />

a integrar a lista dos mais vendidos. E eles<br />

eram contundentes, rigorosos e geniais. Como<br />

ignorá-los? Como privar-se de tão estimulante<br />

convívio? Como não se atormentar?<br />

Perplexo com o sucesso do autor, colhendo<br />

os louros de seu terceiro romance, decidiuse<br />

pelo isolamento. Sem entrevistas. Sem lançamentos.<br />

Sem badalações. Amante da melhor<br />

literatura, leitor voraz de romances de fôlego<br />

(lia calhamaços de setecentas páginas no original)<br />

afligia-se por não conseguir o distanciamento<br />

crítico necessário como seu próprio leitor.<br />

Portador de um super-ego proporcional à baixa<br />

auto-estima chegou a pensar em dar por encerrada<br />

a carreira no auge de seu reconhecimento<br />

como escritor: vendia livros num país de analfabetos.<br />

Como conviver com essa contradição?<br />

Há qualquer coisa de podre, brandiu o<br />

bardo inglês. Há qualquer coisa...<br />

Que vocação e talento nem sempre caminham<br />

juntos, ele sabia. A frase parecia em<br />

mantra involuntário e reverberava como um<br />

pastor evangélico em sua cabeça. George tinha<br />

certeza de que escrevia por vocação. Quanto<br />

ao talento, restavem dúvidas. E dúvidas.<br />

Em busca de aplacar a angústia, ter (talento)<br />

ou não ser (escritor), George tratou de<br />

construir o seu mundo. Comprou um apartamento<br />

de trezentos metros quadrados com<br />

vista panorâmica de cento e oitenta graus.<br />

Nele plantou a sua biblioteca de vinte mil<br />

volumes, classificados, catalogados e limpos,<br />

derrubou paredes e transformou a sala num<br />

imenso escritório-cenário onde podia se reconhecer.<br />

E aos seus.<br />

O espelho próximo à entrada, em perspectiva,<br />

permitia refletir a sua mesa de trabalho e,<br />

ao mesmo tempo em que criava, assistir a criação.<br />

Telas e esculturas contemporâneas mescladas<br />

à memorabilia e aos objetos pessoais davam<br />

um toque mais ousado ao ambiente. Tratava-se<br />

de um homem culto e vulnerável.<br />

Como a extensão do imóvel exigia manutenção<br />

George mantinha a empregada. Mas sua<br />

presença lhe era por demais eloqüente. Simplesmente<br />

avistá-la o desconcentrava e perturbava<br />

a ponto de paralisá-lo. Não conseguia escrever<br />

uma linha sequer. A solução foi inverter o fuso<br />

horário. Acordava às dezessete horas e recolhia-se<br />

por volta das cinco. Na calada da noite,<br />

sem ruídos , sem interrupções, pôde enfim alavancar<br />

sua obra: um novo romance a cada dois<br />

anos e um livro de contos a cada três.<br />

Antes de estabelecer a rotina, George vivia<br />

estressado, tenso, triste. Sentia-se diferente<br />

e julgado pelos outros. Durante anos as visitas<br />

diárias ao analista, seu único interlocutor, eram<br />

fundamentais para a criação. O fato de pagar<br />

pela conversa o eximia de culpas face à brutalidade<br />

de suas revelações. Mas com o tempo<br />

as sessões de análise ficaram rarefeitas, uma vez<br />

que a análise tem por princípio o fim das ilusões.<br />

K. sabia que era um labirinto mas tornaria-se<br />

um precipício com os dois pés no chão.<br />

Em casa nunca estava só. O sistema de iluminação<br />

sem luz no teto provocava sombras<br />

em diferentes pontos da sala. Vultos de tamanhos<br />

diferentes reproduzindo a sua imagem<br />

davam-lhe uma sensação de proteção. Ficavam<br />

em silêncio, velando seu dia-a-dia. E intimidavam<br />

de certo modo a verve ferina dos colegas<br />

estampados em encadernações vistosas nas estantes,<br />

capazes de fazer um estardalhaço em<br />

seus tímpanos.<br />

O telefone tocou. E ouviu através da secretária<br />

eletrônica o recado do editor. Gostaria<br />

de marcar uma conversa com a agente literária<br />

em Berlim, promessa de carreira no exterior.<br />

Há qualquer coisa de podre, sussurrou o<br />

provocativo bardo. Ao que George, volatilizado,<br />

vestiu a carapuça. Talvez seja apenas uma<br />

jogada marketeira da Editora. Porque ao que me<br />

consta não cabe à Editora nacional essa intermediação.<br />

O silêncio do bardo era também uma<br />

sentença. E o prenúncio de uma rebelião.<br />

Liderados por Borges e Nelson foram pouco<br />

a pouco aderindo outras vozes, Conrad, Faulkner,<br />

Machado, Proust, Dostoievski, Rosa,<br />

Stendhal, Cortazar, Shakespeare, Kafka, Sylvia,<br />

Baudelaire, Drummond, Flaubert, Virginia,<br />

Freud, Sófocles, Fante, Clarice, Beckett, Céline,<br />

Pessoa entre milhares de mestres formando<br />

um pelotão rumo à redenção pela palavra.<br />

K. pela primeira vez não teve dúvidas. Estava<br />

escrito.<br />

Abriu as janelas e caiu na real.<br />

THEREZA LESSA<br />

Escritora.<br />

Autora de Patavina.<br />

DIVULGAÇÃO<br />

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HISTÓRIAS DE<br />

A caverna dos Titãs. Ivanir<br />

Calado. Ed. Record. Coisas estranhas<br />

começam a acontecer em<br />

moderno shopping center recéminaugurado.<br />

A coisa. Stephen King. Ed.<br />

Objetiva. O atual metre do terror<br />

nos leva ao tempo em que acreditávamos<br />

em nossos pesadelos.<br />

A cristaleira. Graziela Bozano<br />

Hetzel. Ed. Ediouro. Menina<br />

amedrontada pelas brigas domésticas<br />

procura um abrigo para fugir<br />

das discussões.<br />

A maldição de Sarnath/ Dagon/<br />

Nas montanhas da loucura/<br />

O horror em Red Hook. H.P. Lovecraft.<br />

Ed. Iluminuras. Nas histórias<br />

deste grande mestre do horror<br />

o mal, o pior e o terrível aparecem<br />

de forma fantástica e perturbadora.<br />

A peste. Albert Camus. Ed.<br />

Record. Uma cidade colocada em<br />

situação limite: o pavor causado<br />

pela peste devastadora.<br />

Aí tem coisa. Graziela Bozano<br />

Hetzel. Ed. Manati. A macaca<br />

Dalila decide investigar a estranha<br />

lei que proíbe os animais de ter<br />

rabo.<br />

Aprendendo a viver. Júlio<br />

Emílio Braz. Ed. Ediouro. Claudia<br />

e Isabel descobrem que a mãe foi<br />

contaminada com o vírus do HIV<br />

pelo próprio pai. Juntas têm de<br />

enfrentar a dor, o medo e o preconceito.<br />

Arrepiando a pele/Quem tem<br />

medo fica de fora!/Segure o grito!<br />

Stella Carr. Ed. Scipione. Parte<br />

da Série Calafrio que apresenta as<br />

aventuras de Gargalo, Espirro,<br />

Carrapicho e Agulha.<br />

Artemis Fowl/ Artemis Fowl,<br />

uma aventura no Ártico. Eoun<br />

Colfer. Ed. Record. As aventuras<br />

de um anti-herói de 12 anos( genial,<br />

mas mal-humorado e pessimista)<br />

que misturam ação, a modernidade<br />

da internet e seres fantásticos.<br />

As “armas penadas”. Benita<br />

Prieto. Ed. Argos. História com<br />

toques de terror que vem sendo<br />

contada há anos por um artesão<br />

do interior paulista.<br />

(asquerosos) Bichos monstruosos.<br />

María José Valero. Ed.<br />

Record. As fantasias mais estranhas<br />

deram vida a uma variedade<br />

de monstros incríveis.<br />

Chapeuzinho Amarelo. Chico<br />

Buarque. Ed. José Olympio. Chapeuzinho<br />

Amarelo é uma menina<br />

que não sai, não brinca nem vai à<br />

festa porque tem medo de tudo.<br />

Coleção Contos de espantar<br />

meninos. Regina Chamlian. Ed.<br />

Ática. Série de livros que resgata<br />

personagens fantásticos de nosso<br />

folclore e os transporta para a atualidade.<br />

Corda bamba. Lygia Bojunga.<br />

Ed. Agir. Maria é uma menina que<br />

busca dentro de si a força para<br />

vencer os medos e traumas do passado.<br />

Deuses e heróis. Zelita Seabra.<br />

Ed. Record. As figuras da mitologia<br />

grega que influenciam,<br />

até hoje, nosso imaginário.<br />

Drácula. Bram Stoker. Ed.<br />

Ediouro. O sedutor vampiro Conde<br />

Drácula quer reencontrar seu<br />

amor perdido séculos antes.<br />

Em boca fechada não entra<br />

estrela. Leo Cunha. Ed. Ediouro.<br />

Inverte um dos medos tradicionais<br />

da infância ao mostrar uma menina<br />

que adora a magia da noite.<br />

Eu morro de medo de bicho!<br />

Babette Cole. Ed. Ática. Chico<br />

tem pavor dos animais, mas precisa<br />

vencer seus medos.<br />

Frankenstein. Mary Shelley.<br />

Ed. Cia. das Letras. Adaptação de<br />

Ruy Castro. Cientista quer superar<br />

a morte e cria monstro com pedaços<br />

de cadáveres.<br />

História de fantasma. Tatiana<br />

Belinky. Ed. Ática. Tati se acha<br />

muito corajosa e zomba do medo<br />

do irmão.<br />

Histórias de bruxas (travessas).<br />

Maria Mañeru. Ed. Record.<br />

Bruxas sem complexos e trapalhonas,<br />

elas não são exatamente más.<br />

Histórias extraordinárias.<br />

Edgar Allan Poe. Ed. Martín Claret.<br />

Reunião de contos de um dos<br />

maiores escritores da literatura do<br />

sobrenatural.<br />

Histórias fantásticas. Vários<br />

autores. Ed. Ática. Histórias de<br />

autores renomados como Edgar<br />

Allan Poe e Kafka em que o sobrenatural<br />

interfere no cotidiano.<br />

Medo do escuro. Antonio Carlos<br />

Pacheco. Ed. Ática. Uma história<br />

sensível que ajuda a criança<br />

a não ter medo do escuro.<br />

Medroso! Medroso! Tatiana<br />

Belinky. Ed. Ática. Às vezes o mais<br />

medroso é quem mostra maior<br />

coragem.<br />

Meus (terríveis) fantasmas.<br />

Luis Tomás Melgar. Ed. Record.<br />

As histórias fantasmagóricas nos<br />

aterrorizam porque talvez elas possam<br />

realmente acontecer.<br />

Múmias e outros mortos<br />

(bem vivos). Maria Mañeru. Ed.<br />

Record. Múmias, vampiros e ou-


LEITURASCOMPARTILHADAS<br />

FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

TIRAR O FOLÊGO<br />

tros mortos-vivos são frutos do<br />

grande mistério que é a vida após<br />

a morte.<br />

Não olhe atrás da porta. Lia<br />

Neiva. Ed. Ao Livro Técnico.<br />

Noite na taverna. Álvares de<br />

Azevedo. Ed. Nova Alexandria.<br />

Reúne cinco contos em que o mal<br />

é personificado pela libertinagem.<br />

O abraço. Lygia Bojunga. Ed.<br />

Agir. Ao abordar o estupro de<br />

meninas e jovens a autora rompe<br />

a barreira do medo e do silêncio<br />

que mantém impune este crime<br />

covarde.<br />

O barulho fantasma. Sonia<br />

Junqueira. Ed. Ática. Mário está<br />

sozinho e escuta um estranho barulho<br />

que se aproxima.<br />

O coronel e o lobisomem.<br />

José Cândido de Carvalho. Ed.<br />

Rocco. O coronel Ponciano é cabra<br />

valente que não tem medo de<br />

nada, nem de lobisomem.<br />

O fantasma de Canterville.<br />

Oscar Wilde. Ed. Nobel. Uma história<br />

de amor e terror contada com<br />

o habitual sarcasmo do autor.<br />

O livro dos disparates. Tatiana<br />

Belinky. Ed. Saraiva. Tem uma<br />

parte dedicada aos “Medoliques”:<br />

pequenos poemas que brincam<br />

com os medos infantis.<br />

O médico e o monstro. Robert<br />

Louis Stevenson. Ed. Martin Claret.<br />

Respeitável médico liberta seu<br />

monstro interior ao ingerir fórmula<br />

secreta.<br />

O medo e a ternura. Pedro<br />

Bandeira. Ed. Moderna. Menina<br />

confundida com filha de milionário<br />

é seqüestrada e sofre no cativeiro.<br />

O menino e o tempo. Bia Hetzel.<br />

Ed. Manati. Menino toma<br />

consciência do tempo e da finitude<br />

das coisas, até dele próprio.<br />

O menino inesperado. Elisa<br />

Lucinda. Ed. Record. O medo se<br />

apresenta às crianças, e conhecendo-o<br />

é mais fácil enfrentá-lo.<br />

O mistério do relógio na parede/<br />

Um vulto na escuridão.<br />

John Bellairs. Ed. Record. Menino<br />

vai morar com o tio em uma<br />

casa antiga e cheia de mistério,<br />

onde vive uma série de aventuras.<br />

O nome da rosa. Umberto<br />

Eco. Ed. Record. Misteriosas mortes<br />

em um monastério medieval<br />

estão relacionadas a manuscrito<br />

que pode subverter as relações de<br />

poder pelo medo.<br />

O Ogro do Apagão. Tatiana<br />

Belinky. Ed. Ediouro. A força de<br />

uma comunidade para enfrentar a<br />

ameaça de blecaute.<br />

O pequeno papa-sonhos.<br />

Michael Ende. Ed. Ática. O pai<br />

da princesa Soninho encontra a<br />

solução para acabar com seus<br />

pesadelos.<br />

O retrato de Dorian Gray. Oscar<br />

Wilde. Ed. Martin Claret. Homem<br />

renuncia a moral por medo<br />

de perder sua beleza e juventude.<br />

Um estranho pacto faz com só seu<br />

retrato demonstre seu verdadeiro eu.<br />

Pedro e o lobo. Denise Crispun.<br />

Ed. Agir. Adaptação bem<br />

humorada do clássico russo sobre<br />

um menino e um assustador lobo.<br />

Pente de Vênus. Heloísa Seixas.<br />

Ed. Record. Reunião de contos<br />

perturbadores sobre nosso cotidiano.<br />

Pluft, o fantasminha. Maria<br />

Clara Machado. Ed. Cia. das Letrinhas.<br />

Fantasminha com medo<br />

de gente faz amizade com uma<br />

menina raptada por piratas.<br />

Que medo! Mary França. Ed.<br />

Ática. Lili assusta seu avô com suas<br />

histórias de animais ferozes.<br />

Quem tem medo de dentista/mar/lobo/bruxa/tempestade/<br />

escuro/dragão/extraterrestres/<br />

monstro/fantasma. Fanny Joly.<br />

Ed. Scipione. Série de livros que<br />

ajuda às crianças a enfrentar temores<br />

e aprender a rir deles.<br />

Sombras da noite. Stephen<br />

King. Francisco Alves. Como em<br />

toda sua obra, o autor parte de<br />

uma falsa tranqüilidade cotidiana<br />

para entrar em um mundo sinistro<br />

e assustador.<br />

Sonho passado a limpo. Leo<br />

Cunha. Ed. Ática. O pior pesadelo<br />

de Isabela é o fato de estar se<br />

tornando uma mulher.<br />

Tantos medos e outras coragens.<br />

Roseana Murray. Ed. FTD.<br />

O que é medo para uns é coragem<br />

para outros. Prêmio da F.N.L.I.J e<br />

Lista de Honra do I.B.B.Y.

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