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Leituras de nós – ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural

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manipulação que associam o espontâneo do escritor aos automáticos iterativos do sistema informático. Daí<br />

a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que um programador venha a criar as condições <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existência e <strong>de</strong><br />

funcionamento do dispositivo produtor <strong>de</strong> significantes. Num primeiro olhar, essa relação entre o<br />

programador e o escritor não seria nada diferente da que se dá, por exemplo, entre o pintor e o artesão<br />

construtor <strong>de</strong> telas, ou o químico produtor <strong>de</strong> tintas especialmente requeridas pelo próprio pintor. Sem os<br />

dois, não haveria pintura. Mas é importante notar que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, a tela sempre fez parte do dispositivo<br />

<strong>de</strong> pintura, ou melhor, ela sempre sustentou a maneira como o pintor dispôs e exibiu as possibilida<strong>de</strong>s do<br />

visível e da visibilida<strong>de</strong>, até a exploração <strong>de</strong> todas as suas características como dispositivo óptico no século<br />

XX. Se, <strong>de</strong> um lado, era construída materialmente pelos artesãos, <strong>de</strong> outro, ela estava completamente<br />

compreendida ou insinuada antes, na maneira como os pintores buscavam explorar o visível e a visibilida<strong>de</strong>.<br />

Assim, os artesãos acabavam apenas realizando o projeto <strong>de</strong> um suporte já previsto pelas lógicas expressivas<br />

da pintura. Porém, algo completamente distinto ocorre na ciber<strong>literatura</strong> (e, claro, em toda a ciberarte). As<br />

ferramentas <strong>de</strong> programação não são a simples materialização <strong>de</strong> um dispositivo <strong>de</strong> expressão previamente<br />

elaborado ou i<strong>de</strong>alizado que já faça parte das lógicas expressivas da <strong>literatura</strong> eletrônica. A bem da<br />

verda<strong>de</strong>, essas ferramentas <strong>de</strong> programação dialogam com as várias linguagens (verbal, visual, gestual etc.),<br />

<strong>de</strong> modo que não haja uma antecedência fechada <strong>de</strong> umas com relação às outras. Dito <strong>de</strong> outra maneira, a<br />

conjunção das linguagens <strong>de</strong> programação com a linguagem verbal, por exemplo, po<strong>de</strong> fazer surgir uma<br />

outra linguagem, um terceiro espaço expressivo, que, além <strong>de</strong> ser informático e verbal, é também<br />

informático-verbal. E se falamos <strong>de</strong> uma prepon<strong>de</strong>rância do escritor com relação ao programador, isso<br />

correspon<strong>de</strong> apenas e tão-somente ao fato <strong>de</strong> que buscamos ler no objeto artístico não os <strong>de</strong>talhes e as<br />

peculiarida<strong>de</strong>s da programação, mas seus (d)efeitos, entendidos agora como significantes inseridos não<br />

mais em lógicas <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> lógica e tecnológica, porém recortados sobre um pano <strong>de</strong> fundo estético.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma questão <strong>de</strong> foco.<br />

Num segundo momento, esse dispositivo criado e concebido por escritor e programador é passado a um<br />

leitor que po<strong>de</strong>, por exemplo, ser solicitado a manipular o dispositivo, para que este entregue na tela, como<br />

resultado, uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> palavras ou expressões. Nesse caso, alguns vêem uma in<strong>de</strong>pendência absoluta do<br />

leitor; afirma-se comumente que se trata <strong>de</strong> uma leitura que é escrita e, mais, que é escrita absolutamente<br />

<strong>de</strong>svinculada <strong>de</strong> qualquer escrita do criador do sistema. Com o que se <strong>de</strong>creta luto oficial pela morte do<br />

autor tradicional, solapado em seu papel <strong>de</strong> criador por esse novo leitor – alforriado da submissão ao<br />

escritor graças às tecnologias telemáticas, po<strong>de</strong>ndo então escrever e criar por sua própria conta e risco. Nada<br />

mais enganoso, pois se esquece, em tal raciocínio, <strong>de</strong> levar em conta que essa escrita do leitor é na verda<strong>de</strong><br />

e sempre uma escrita segunda, que só pô<strong>de</strong> ocorrer graças às muitas interferências entre as linguagens do<br />

programador e as linguagens várias do escritor. Então há ainda uma relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência entre a escrita<br />

<strong>de</strong>ste e a escrita do leitor. Po<strong>de</strong>mos dizer que a primeira é solidária da programação (quer dizer, que<br />

estabelece um diálogo com esta). Já a segunda – a escrita do leitor –, mais do que solidária, é o resultado<br />

da programação; ela é o próprio programado. Em outras palavras, essa escrita do leitor não po<strong>de</strong><br />

estabelecer nenhum diálogo com os resultados da programação, pois ela já é esses resultados. Todavia, não<br />

se confunda programado com previamente <strong>de</strong>terminado. Quando falamos que a escrita do leitor é aquilo<br />

que foi programado, isso não significa que ela já esteja totalmente tramada antes <strong>de</strong> ser materializada; que<br />

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