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Leituras de nós – ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural

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Trata-se, aí, <strong>de</strong> escolher um mapeamento, uma escrita <strong>de</strong> certa linguagem, em vez <strong>de</strong> mergulhar numa<br />

improvável, interminável e mesmo impossível leitura da língua, colocando em relevo o texto como fenômeno e<br />

não como objeto. Mas isso tudo po<strong>de</strong> estar ficando hermético <strong>de</strong>mais. Examinemos melhor essas afirmações.<br />

Esquecer que o texto segundo (como todo e qualquer texto) é já um palimpsesto e, no caso do meio eletrônico,<br />

um palimpsesto concreto e imediato parece implicar uma fuga para a frente infindável, uma tentativa <strong>de</strong> chegar<br />

ao todo da língua, fazendo avançar essa ilusão <strong>de</strong> que somos capazes <strong>de</strong> enunciar uma torá laica e eletrônica e<br />

que teria a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar ao término <strong>de</strong> um périplo não mais assimptótico. Em outras palavras, tratase<br />

da ilusão <strong>de</strong> que teríamos em nós a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir e, portanto, <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r a totalida<strong>de</strong> da língua,<br />

<strong>de</strong> tê-la à mão, como um objeto que se possui completamente, exposto inteiro ao olhar. É a ilusão que<br />

compromete uma série <strong>de</strong> comentários exageradamente otimistas sobre a tecnologia eletrônica aplicada à<br />

edição ou à escrita. Alguns, como Dierk Hoffmann, apregoam as vantagens do meio eletrônico, único capaz <strong>de</strong><br />

uma verda<strong>de</strong>ira “edição-rizoma”, que tornaria “imediatamente acessíveis todos os testemunhos textuais,<br />

manuscritos, datiloscritos e impressões”, assim como “suas transcrições e interpretações”. 18 Esse acesso imediato<br />

à totalida<strong>de</strong> parece resultar mais <strong>de</strong> uma profissão <strong>de</strong> fé que <strong>de</strong> um ato <strong>de</strong> leitura (seja ela eletrônica ou não). E<br />

mesmo as interpretações que o leitor po<strong>de</strong> associar a um elemento ou outro da obra, mesmo elas nunca estarão<br />

todas à disposição <strong>de</strong> outros leitores, o que vale dizer que nunca se apaga a diferença entre informação e<br />

interpretação. A<strong>de</strong>mais, uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comentários, assumindo o estatuto <strong>de</strong> textos no mesmo<br />

nível daquele primeiro texto, ao contrário do que afirma Hoffmann, 19 é sempre o resultado <strong>de</strong> escolhas e recortes,<br />

e não um encaminhamento à totalida<strong>de</strong> dos sentidos e da língua. E, ainda, esse alargamento constante dos<br />

limites do texto lido, sendo sempre acrescido <strong>de</strong> outros e mais outros textos, esse pulular <strong>de</strong> significantes não nos<br />

dá mais do que uma progressiva ilegibilida<strong>de</strong> (a hiperinflação informativa acima mencionada).<br />

Assim, tomar um caminho oposto a esse “melhor dos mundos” advindo da tecnologia implica a escrita <strong>de</strong> uma<br />

linguagem que elege certos caminhos <strong>de</strong> significação e não outros, perscruta os limites, as superfícies e os veios<br />

do texto dado à leitura, indaga a ele o que ainda resta e o que po<strong>de</strong> ser inserto nele dos que o prece<strong>de</strong>ram.<br />

Daí a utilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se tomar o texto como produtivida<strong>de</strong> e não meramente como significação a ser proposta e<br />

percorrida. Como já se percebia, por exemplo, nos poemas do cultismo barroco, o primeiro papel do leitor é<br />

dotar-se <strong>de</strong> um texto a ler, não interpretá-lo: quando um poeta como Góngora, por exemplo, em um dado<br />

poema usa a palavra neve em distintas situações, cumpre mapear essa multiplicação <strong>de</strong> imagens que po<strong>de</strong><br />

estar apontando para uma outra e única imagem (e que não é mais a neve), em vez <strong>de</strong> partir apressadamente<br />

para a interpretação a/<strong>de</strong> cada caso. Trata-se, em outras palavras, <strong>de</strong> mapear a vizinhança <strong>de</strong> um estranho<br />

atrator 20 <strong>de</strong> significados, aproximar-se e afastar-se <strong>de</strong>le assimptoticamente, mais do que chegar diretamente<br />

até ele para, <strong>de</strong>pois, ir além. Resi<strong>de</strong> aí a diferença entre tematização e produção textual, entre o texto lido<br />

como referência e objetivida<strong>de</strong> externa, e o texto visto como fenômeno, esse que se faz aparecer pela atenção<br />

com que ele é lido. 21 Em resumo, compete ao leitor dar traços e lineamentos da fisionomia que o texto assume<br />

com sua leitura, operação que só é plausível se damos <strong>de</strong>staque à espessura fenomênica do texto lido.<br />

Outro exemplo interessante <strong>de</strong>ssas dinâmicas entre autor e leitor, ainda na tradição impressa, está num soneto<br />

<strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Antônio <strong>de</strong> Oliveira, escritor do barroco brasileiro, da Aca<strong>de</strong>mia dos Esquecidos. Para compor esse<br />

poema, Oliveira buscou 14 <strong>de</strong>cassílabos em Os Lusíadas, cuidando em dar-lhes coesão sintática e semântica,<br />

além <strong>de</strong> chegar a um esquema <strong>de</strong> rimas tradicional dos sonetos barrocos (no caso, ABBAABBACDECDE).<br />

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