Leituras de nós â ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural
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modo como essas práticas vêm sendo <strong>de</strong>scritas e entendidas nas últimas décadas. Para muitos, elas se<br />
aproximariam da <strong>de</strong>finição dada por Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> ao conto. 35 Como afirma Philippe Castelin:<br />
Une ‘pratique d’art’, pour dire vite les choses, serait ainsi une activité créative non adressée<br />
socialement mais réservée à un usage privé, et, en tout cas, délestée du souci <strong>de</strong> l’Art et <strong>de</strong> son<br />
Histoire. Je puis faire <strong>de</strong> la cuisine avec un art et un raffinement infinis, si je n’invite que moi même<br />
et quelques amis à goûter le résultat, ceci <strong>de</strong>meure une ‘pratique d’art’. Pour que je <strong>de</strong>vienne<br />
(hypothèse...) un artiste en ce domaine il faut que j’accepte <strong>de</strong> m’inscrire dans la compétition <strong>de</strong>s<br />
étoiles et <strong>de</strong>s toques, que j’entre dans le circuit, que je m’adresse, potentiellement, aux juges,<br />
arbitres et concurrents. Si la fin <strong>de</strong> l’Art a sonné <strong>de</strong>puis longtemps, il est possible que le web ouvre<br />
une vaste perspective à pareilles ‘pratiques d’art’ et s’offre comme refuge pour tous ceux qui ont<br />
décidé <strong>de</strong> ‘laisser tomber’... 36<br />
Tal <strong>de</strong>finição teria duas <strong>de</strong>svantagens e, a rigor, nenhuma vantagem <strong>de</strong> monta. A primeira <strong>de</strong>svantagem seria<br />
tornar o relativismo a única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abordagem estética do objeto artístico; parente próxima da<br />
primeira, a segunda correspon<strong>de</strong>ria à ilusão <strong>de</strong> que não há proveito em inserir a apreciação <strong>de</strong> tais objetos<br />
em qualquer perspectiva histórica. No caso, nunca é <strong>de</strong>mais lembrar Marx: “Hegel fait quelque part cette<br />
remarque que tous les grands événements et personnages historiques se répètent pour ainsi dire <strong>de</strong>ux fois.<br />
Il a oublié d’ajouter la première fois comme tragédie, la secon<strong>de</strong> fois comme farce”. 37 Esquecer, então, a<br />
perspectiva histórica é arriscar-se a repetir como farsa – e não como paródia ou pastiche – o que já foi antes<br />
produzido, sem que esse tom farsesco faça, ao menos, parte da estratégia <strong>de</strong> produção do objeto. As práticas<br />
<strong>de</strong> arte <strong>de</strong>vem, por isso, escapar a tal exercício <strong>de</strong> singularização progressiva e fechada, abrindo-se para a<br />
construção <strong>de</strong> campos e estratégias <strong>de</strong> disseminação e sedimentação em que seu objeto <strong>de</strong>ixe, ao menos,<br />
traços e rastros <strong>de</strong> uma fugaz presença. Com isso, evita-se o relativismo, tanto daquilo que se fecha para a<br />
alterida<strong>de</strong> (objetiva e subjetiva) quanto <strong>de</strong>sses processos que se instalam na ilusão <strong>de</strong> um eterno presente.<br />
Assim, nossas práticas <strong>de</strong> arte contemporânea realizam-se não apenas como produção <strong>de</strong> materialida<strong>de</strong>s<br />
(como é o caso das artes plásticas tradicionais), mas sobretudo como produção <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
produção <strong>de</strong> materialida<strong>de</strong>s. Nesse caso, estas últimas se tornam cada vez mais tênues, efêmeras, <strong>de</strong>ixando,<br />
como já foi dito, apenas traços à semelhança das partículas elementares cuja presença, sempre indireta, fica<br />
rapidamente esboçada por linhas nas câmaras <strong>de</strong> bolhas. Mas a expressão acima carrega algo <strong>de</strong> obscuro.<br />
Em termos mais diretos, o que seria essa “produção <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> materialida<strong>de</strong>s”? Ela<br />
está, por exemplo, nos sítios que à semelhança daqueles que dão à leitura os Cent Milles Milliards <strong>de</strong><br />
Poèmes, <strong>de</strong> Raymond Queneau, geram os instrumentos informáticos, os meios telemáticos e os processos<br />
lógico-combinatórios para que o leitor venha, por sua vez, gerar as sucessivas combinações dos diferentes<br />
sonetos. Aí, pelos aparatos e processos digitais, produzem-se não materialida<strong>de</strong>s diretas, mas condições <strong>de</strong><br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> materialida<strong>de</strong>s; ao leitor, em seguida, competirá a criação <strong>de</strong>ssas materialida<strong>de</strong>s<br />
transitórias que são as diversas e praticamente nunca repetidas versões do soneto. Estabelecem-se, então, e<br />
sobretudo, contextos e situações <strong>de</strong> criação aberta e/ou coletiva: no caso dos Cent Milles Milliards <strong>de</strong> Poèmes,<br />
a produção <strong>de</strong> uma dada combinação <strong>de</strong> versos (que, enfatize-se, praticamente nunca mais será repetida) só<br />
se torna possível graças a uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> causa e efeito que começam com o planejamento <strong>de</strong>ssa<br />
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