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Leituras de nós – ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural

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Porque ela exige uma negação <strong>de</strong> sua própria singularida<strong>de</strong>, com a conseqüente aceitação <strong>de</strong> uma<br />

exteriorida<strong>de</strong> absoluta e inelutável. Assim, o sentido do humano não estaria mais na maneira como nos<br />

dotamos <strong>de</strong> um mundo que existe antes <strong>de</strong> nós (ou seja, no modo como habitamos essa reversibilida<strong>de</strong><br />

entre corpo e mundo), mas em como <strong>de</strong>ixamos ferramentas e processos nos conduzir e nos instalar como<br />

seres <strong>de</strong>les <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. É como se o preexistente, o já dado, fosse não o mundo ele próprio, mas certas<br />

regiões dos objetos culturais, no caso, uma parte do espaço tecnológico. Ora, a falha <strong>de</strong>ssa percepção<br />

encontra-se exatamente em tomar o tecnológico como exteriorida<strong>de</strong> absoluta a que somos –<br />

paradoxalmente – convidados a entrar e a estar e a ser, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la. Não seria absurdo afirmar que se trata<br />

<strong>de</strong> uma retomada falha e esvaziada do mítico e do religioso: o re-ligare das religiões tradicionais funda-se<br />

numa experiência em que se busca justamente uma dualida<strong>de</strong> (o sagrado e o profano) em que esses dois<br />

campos extremos (o aquém, pelo ser humano, e o além, através do divino) se encontrariam e se dariam a<br />

ver. No caso <strong>de</strong>sse misticismo tecnificante, temos uma apenas aparente dualida<strong>de</strong>, uma dualida<strong>de</strong> que não<br />

resiste às primeiras investidas dos processos automatizantes, já que eles acabam sempre reduzindo essa<br />

duplicida<strong>de</strong> à simplicida<strong>de</strong> e à exteriorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um mesmo campo (submetendo, no caso, o profano, o<br />

humano a lógicas e movimentos e ritmos exclusivamente externos).<br />

Como conseqüência, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> si (ou um arremedo <strong>de</strong>la) passaria forçosamente por uma i<strong>de</strong>ntificação<br />

com instrumentos e com os processos <strong>de</strong> que se dispõe, abrindo mão <strong>de</strong> qualquer autonomia ou<br />

espontaneida<strong>de</strong> próprias ao humano. Em suma, teríamos nada além da i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> si próprio com uma<br />

eficácia externa, o que seria, no máximo, simulacro ou ilusão <strong>de</strong> eficácia (assim como <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>), pois a<br />

performance do instrumento tecnológico não tem como ser totalmente assimilada a expressões ou gestos<br />

humanos. A conseqüência direta <strong>de</strong>ssa busca <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, através do além do tecnológico, não traz como<br />

resultado senão exteriorida<strong>de</strong> e platitu<strong>de</strong> (ou, dito <strong>de</strong> outro modo, nada além <strong>de</strong> uma tecnomelancolia). Bem<br />

diferente, em todo caso, <strong>de</strong> experiências místicas como as dos quietistas espanhóis do século XVII ou <strong>de</strong> San Juan<br />

<strong>de</strong> la Cruz, que, <strong>de</strong> uma aniquilação <strong>de</strong> si próprios, insinuavam chegar a uma interiorização radical do sagrado.<br />

O segundo tipo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que se po<strong>de</strong> propor com base no ciberespaço é aquela que caracterizamos<br />

como relativizada e aquém do sujeito. Ela está ligada diretamente à hiperinflação informativa, processo<br />

em que, <strong>de</strong>vido a um transbordamento <strong>de</strong> significantes, toda informação, todo dado, todo significado<br />

inevitavelmente se transformam em ruído. Isso ocorre quando as informações <strong>de</strong>sfilam e se <strong>de</strong>sfiam na tela<br />

do computador, <strong>de</strong>masiadamente rápido diante <strong>de</strong> nós, sem <strong>de</strong>ixar nenhuma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esboçarmos<br />

certa fisionomia <strong>de</strong> organização, algum esforço <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>, mesmo provisório e localizado, que<br />

pudéssemos associar aos objetos significantes <strong>de</strong>sfilando pela tela. É o caso em que o excesso <strong>de</strong> informação<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser informação para tornar-se ruído, per<strong>de</strong>ndo totalmente qualquer conteúdo informativo. Mas<br />

isso não é tudo. Esse ruído parece propiciar, inicialmente, uma paradoxal hipertrofia do sujeito, dando-lhe<br />

a ilusão (ou é ele próprio quem assim se ilu<strong>de</strong>) <strong>de</strong> que é ele quem está por trás <strong>de</strong> toda construção <strong>de</strong><br />

objetos significantes, que todo percurso <strong>de</strong> significação se submete ao arbitrário e ao relativo <strong>de</strong> suas<br />

posições e gostos e disposições e gestos.<br />

Assim, esse sujeito instala-se num ponto <strong>de</strong> enunciação falto <strong>de</strong> sentidos e sem horizonte <strong>de</strong> significações<br />

possíveis tendo a impressão <strong>de</strong> que a ele compete ocupar todos esses espaços e ocupar-se <strong>de</strong> todos esses<br />

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