Leituras de nós â ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural
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É assim então que, entre a fragmentação e a pluralida<strong>de</strong>, se joga o sentido <strong>de</strong>stes nossos tempos. Aliás, <strong>de</strong><br />
quaisquer tempos. Mas parece que estamos inseridos numa dialética <strong>de</strong> estranha fatura: escolher uma<br />
pluralida<strong>de</strong> sem fragmentação comprometeria a própria pluralida<strong>de</strong>, pois ela não saberia nem po<strong>de</strong>ria ser<br />
multíplice; conformar-se com a fragmentação significaria confortar-se com o singular e o limitado que nos<br />
cercam mas nada ensinam. Daí essa esdrúxula dialética sem síntese, em que, para que a pluralida<strong>de</strong> domine<br />
a cena, exige-se a presença e o risco da fragmentação. E, nesse caso, argumentos e silogismos talvez não<br />
convencessem ninguém, o que nos obriga a recorrer seja à covardia do exemplo empírico, seja à construção<br />
<strong>de</strong> uma mitologia contemporânea. Vamos, então, a essa mitologia!<br />
Imaginemos um oceano coalhado <strong>de</strong> ilhas, cada uma com seu náufrago habitando-a solitariamente; cada um<br />
<strong>de</strong>les largando à <strong>de</strong>riva incontáveis garrafas, todas levando mensagens <strong>de</strong>ntro. Mas seriam mensagens <strong>de</strong><br />
especial feitio, pois, tendo cada náufrago um estoque limitado <strong>de</strong> papel (ou <strong>de</strong> outro material qualquer que<br />
sirva à escrita), ele produziria uma só e única longa mensagem, rasgando-a, a seguir, em tiras e colocando<br />
cada pedaço em uma garrafa diferente. Nos anos que se seguissem, a cada ilhota chegariam velhas garrafas,<br />
fatigadas e fartas <strong>de</strong> tanto oceano, carregadas <strong>de</strong> cracas e <strong>de</strong> marcas, mas ainda trazendo no interior, mesmo<br />
precariamente, esses pedaços escritos. Como recompor, a partir disso, as mensagens inteiras que outros<br />
escreveram? Como retomar até mesmo a própria mensagem que algum náufrago <strong>de</strong> uma dada ilha enviou,<br />
ele mesmo, mas que com o passar dos dias acabou esquecendo em boa parte? E como enten<strong>de</strong>r o que os dias,<br />
os sóis, as tempesta<strong>de</strong>s, as rochas, as umida<strong>de</strong>s e os <strong>de</strong>tritos modificaram nessas mensagens? Falei, não por<br />
acaso, em Osíris (e, observem bem, não em Penteu). O <strong>de</strong>us <strong>de</strong>spedaçado, que se torna senhor do reino dos<br />
mortos, po<strong>de</strong> ser também aquele que ensina os caminhos da ressurreição. Ao ter seu corpo repartido e<br />
espalhado, mostra como ele po<strong>de</strong> ser retramado e recosturado, tornando-se diferente e maior do que era.<br />
Daí se po<strong>de</strong>r afirmar que ele aponta, nessa perspectiva <strong>de</strong> agora, não para uma fragmentação insuperável e<br />
inelutável, mas para uma pluralização <strong>de</strong> nós que nos resgata <strong>de</strong>ssa primeira e necessária fragmentação.<br />
Como se, para chegarmos à pluralida<strong>de</strong>, tivéssemos que passar obrigatoriamente por uma espécie <strong>de</strong> morte<br />
alquímica, a obra a negro que é essa fragmentação. Osíris seria então, por outro viés, como que o texto dado<br />
a tal leitor mítico, capaz <strong>de</strong> resgatar nesses pedaços esparsos e casuais um sentido que talvez (ainda) nem<br />
estivesse na inteireza da mensagem quando ela foi feita, antes <strong>de</strong> ser fragmentada.<br />
Mas há um <strong>de</strong>talhe importante a ser explorado: na tentativa <strong>de</strong> recompor alguma história, qualquer um<br />
<strong>de</strong>sses náufragos po<strong>de</strong> hesitar in<strong>de</strong>finidamente entre reescrever a própria história ou retomar a <strong>de</strong> outros.<br />
Em outras palavras, ele po<strong>de</strong> escolher retramar uma das mensagens originárias e primeiras, a sua própria ou<br />
a <strong>de</strong> outros. Nesse caso, ele só terá mesmo uma única história a contar: a <strong>de</strong> seu fracasso, pois, como já<br />
admitia Bentinho, <strong>de</strong> D. Casmurro, “não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é<br />
igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das<br />
pessoas que per<strong>de</strong>; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”. E o que falta é justamente a mensagem<br />
primeira e primordial, perdida nessa auto-expulsão <strong>de</strong> seu paraíso particular. Ou a totalida<strong>de</strong> das mensagens<br />
escritas por outros, mas que também não chegam nunca, inteiras, a sua ilha. O náufrago vai se sentir como<br />
um outro Adão, terá <strong>de</strong> admitir uma queda que nenhuma narrativa mítica consegue, nem ao menos,<br />
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