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Leituras de nós – ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural

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Prolegômenos a uma Ciência do Assim Chamado<br />

Texto Literário em Meio Eletrônico<br />

Primeira cena: diante <strong>de</strong> uma tela, alguém imerso, o mais completamente que po<strong>de</strong>, em um ciberespaço<br />

imenso e falsamente reconhecível, teclando dados, apagando datas, andando em círculos <strong>de</strong> raio infinito;<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um apocalipse cotidiano e privado. Diante disso, po<strong>de</strong>mos dizer: são tempos <strong>de</strong> <strong>de</strong>riva, estes<br />

que vivemos. Vagamos à volta do próprio quarto como que percorrendo mundos e espaços e, após um dia<br />

inteiro <strong>de</strong> estafante imobilida<strong>de</strong>, retornamos ainda mais enclausurados <strong>de</strong> uma jornada aos confins do<br />

mesmo. Tempos <strong>de</strong> <strong>de</strong>riva e <strong>de</strong> vertigem. Tempos em que a vertigem do ser – aquela que nos individualiza<br />

e nos funda como sujeitos ainda não intelectualizantes – ce<strong>de</strong>u lugar e palco à vertigem <strong>de</strong> ser, essa<br />

voragem que nos multiplica e nos afunda em mero espetáculo. Tornamo-nos trama e drama <strong>de</strong> encenação<br />

que pretensamente interessa a outros por interessar apenas a nós mesmos. Paradoxo <strong>de</strong>ssa cena fechada<br />

que é o dia-a-dia fingindo ser aberto. Apenas fingindo, pois, nos chats, nos canais <strong>de</strong> discussão pela<br />

internete, nos imeios trocados e mal tocados, levemente roçados por alguma resposta mais consistente, na<br />

busca <strong>de</strong> arquivos e programas sem nomes, mas talvez com marcas registradas, nessas fímbrias <strong>de</strong> sentidos,<br />

nesses restos <strong>de</strong> significados, nesses vestígios <strong>de</strong> idéias, apenas catamos nossos pedaços espalhados pelo<br />

mundo virtual. Pedaços largados aqui e ali, mas recolhidos ao final <strong>de</strong> cada dia, sem que tragam resquícios<br />

ou interferências relevantes <strong>de</strong> outros. Passamos por cada dia, vivendo e morrendo e ressuscitando como<br />

um Osíris que pu<strong>de</strong>sse reunir suas partes que ele mesmo espalhou, mas sem apren<strong>de</strong>r nada com isso, sem<br />

avançar, nem mesmo um pouco que seja, para além <strong>de</strong>ssa nossa tragediazinha cotidiana <strong>de</strong> aparecer<strong>de</strong>saparecer-reaparecer<br />

para nós próprios. Estamos entregues ao reino da fragmentação e do <strong>de</strong>scaso.<br />

Segunda cena: diante <strong>de</strong> uma tela, alguém imerso, nunca totalmente, em um ciberespaço in<strong>de</strong>finidamente<br />

aberto, mas localmente mapeável pelo teclar seqüencial <strong>de</strong> dados, pelo elencar <strong>de</strong> datas, projetando<br />

percursos <strong>de</strong> sentido incerto, mas <strong>de</strong>finidos passos; narrativa <strong>de</strong> uma opera philosophorum dos tempos<br />

atuais. Isso nos permite dizer: são mesmo tempos <strong>de</strong> <strong>de</strong>riva estes nossos, em que temos <strong>de</strong> improvisar<br />

instrumentos com que esboçar rotas, com que evitar <strong>de</strong>masiados <strong>de</strong>svios, com que propor caminhos. Não<br />

mais serviçais da fragmentação e do <strong>de</strong>scaso, mas mestres da pluralida<strong>de</strong> e artífices do acaso. Tempos em<br />

que po<strong>de</strong>mos passear à volta <strong>de</strong> nosso quarto sem repetir o percurso <strong>de</strong> sempre, levando até mesmo esse<br />

nosso quarto a outras pessoas, resgatando um sentido plural da vida, esse que aponta sempre para o outro<br />

e que, em nós, é ausência e lacuna a suprir. Tempos em que a vertigem <strong>de</strong> ser é pretexto e motivo para<br />

resgatarmos a vertigem do ser, para buscarmos nos outros, em seus restos, confundidos e misturados aos<br />

nossos, uma alterida<strong>de</strong>, e mais uma, e ainda outra, impedindo-nos <strong>de</strong> ficar presos à rigi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> sermos<br />

in<strong>de</strong>finidamente iguais a nós mesmos. Não mais um Osíris a recompor-se obsessivamente, igual a si próprio,<br />

ao fim <strong>de</strong> cada dia, mas um Simorg reunindo em si cada vez mais presenças e ausências <strong>de</strong> outros, como<br />

essas frases epigramáticas <strong>de</strong>ixadas em rodapés <strong>de</strong> imeios, e que são retomadas e retramadas por outros, e<br />

que po<strong>de</strong>m um dia ou outro apresentar-se diante <strong>de</strong> nós, talvez até mesmo irreconhecíveis. Como um<br />

“Recado do Morro”, em muito semelhante ao <strong>de</strong> João Guimarães Rosa, mas em que cada frase fosse<br />

recolhida por uma pessoa diferente e cujo sentido total pu<strong>de</strong>sse ser vislumbrado <strong>de</strong> diferentes modos, em<br />

diferentes instâncias por cada uma das pessoas que, em algum momento, ajudaram em sua construção.<br />

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