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Leituras de nós – ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural

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percurso <strong>de</strong> disseminação dos textos orais (basta pensarmos na ativida<strong>de</strong> dos segréis medievais, em oposição<br />

aos menestréis). Todavia, no hipertexto, há que se levar em conta a velocida<strong>de</strong> e a amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse processo,<br />

que superam qualitativa e quantitativamente o fenômeno da transmissão oral, sobretudo no que se refere<br />

ao papel ativo do público consumidor. Este é levado obrigatoriamente a interferir nas etapas e na<br />

velocida<strong>de</strong> da produção hipertextual muito mais do que o público-ouvinte fazia com as peças cantadas<br />

pelos trovadores ou improvisadas ainda hoje pelos repentistas.<br />

Com efeito, o texto eletrônico justapõe à própria tecedura, à sua materialida<strong>de</strong> manipulável pelo monitor<br />

uma trama complexa <strong>de</strong> relações em que ele é criado, lido, recriado, relido, incessantemente,<br />

recursivamente. Isso significa que o hipertexto torna paralelos os tempos <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> circulação (ou<br />

<strong>de</strong> recepção, se preferirem). Mais uma vez, temos uma encenação do tempo em que a temporalida<strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>ixa surpreen<strong>de</strong>r como espacialização. Mas, ao contrário da poesia <strong>de</strong> Alberto Caeiro, em que apenas se<br />

tenta insinuar ou apresentar a percepção <strong>de</strong> um tempo topologizado, o texto eletrônico não é nada sutil:<br />

ele impõe, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a superfície <strong>de</strong> seus significantes, sobre a tela on<strong>de</strong> ele se abre ao leitor, uma circularida<strong>de</strong><br />

inebriante, célere, em que os instantes <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> navegação parece quase se confundirem, dando<br />

origem a um único trabalho <strong>de</strong> produção.<br />

Em suma, na superfície da tela e na profundida<strong>de</strong> das ligações hipertextuais, os diferentes tempos da escrita<br />

(que na tradição impressa correspon<strong>de</strong>riam ao início, ao meio e ao fim dos movimentos do escritor sobre o<br />

papel) encenam uma ubiqüida<strong>de</strong> do impulso criador. É como se o hipertexto fosse surgindo, todo ele, ao mesmo<br />

tempo, originário <strong>de</strong> um único movimento <strong>de</strong> escrita, não mais como queima um rastilho <strong>de</strong> pólvora, linear e<br />

progressivamente, mas, sobretudo, como crescem cristais em solução saturada, em vários pontos do espaço,<br />

simultaneamente. Não se trata <strong>de</strong> uma presentificação absoluta, como se o tempo fosse freado até a<br />

imobilida<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong> o hipertexto se organizar <strong>de</strong> forma a submeter o tempo à pluralida<strong>de</strong> do<br />

espaço dos significantes. Daí essa impressão <strong>de</strong> que os tempos <strong>de</strong> concepção e <strong>de</strong> consumo se confun<strong>de</strong>m no<br />

clicar do mouse, como se criador e fruidor se confundissem inevitavelmente. Todavia, trata-se <strong>de</strong> uma<br />

encenação do hipertexto, pois, <strong>de</strong> fato, essa circularida<strong>de</strong>, essa equiparação entre ambos não vai além da<br />

materialida<strong>de</strong> dos significantes concretamente disponíveis na tela. A partir do momento em que ele é<br />

percorrido pela leitura <strong>de</strong> alguém, em que se torna parte <strong>de</strong> um espetáculo (aquele em que o leitor se dá um<br />

texto e, mais importante, se dá em texto), a materialida<strong>de</strong> do hipertexto ce<strong>de</strong> lugar àquilo que Roman<br />

Ingar<strong>de</strong>n, com relação ao meio impresso, chamava <strong>de</strong> objeto intencional. E é justamente nessa intencionalida<strong>de</strong><br />

que se po<strong>de</strong> retomar a relação entre instância <strong>de</strong> criação e instância <strong>de</strong> fruição, ou <strong>de</strong> leitura. De fato, o<br />

hipertexto parece confundir os trabalhos <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> fruição, no que diz respeito à materialida<strong>de</strong> dos<br />

significantes que disponibiliza na tela, encenando essa ubiqüida<strong>de</strong> análoga à auto-suficiência da escrita<br />

impressa. No entanto, a navegação hipertextual não precisa se submeter necessariamente às mesmas condições<br />

<strong>de</strong> contorno <strong>de</strong> sua encenação. Em conseqüência, o leitor po<strong>de</strong> escolher outras posições para exercer seu olhar,<br />

buscando não sobrepor-se ao criador, confundindo-se com ele, mas propondo um diálogo em que as diferenças<br />

entre as duas posições possam ser reconstruídas com base nos vestígios <strong>de</strong> autoria que ainda (e sempre) restam<br />

nos significantes e nos processos <strong>de</strong> significações que lhe são dados manipular.<br />

* * *<br />

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