Cooperifa : antropofagia periférica / Sérgio Vaz
Cooperifa : antropofagia periférica / Sérgio Vaz
Cooperifa : antropofagia periférica / Sérgio Vaz
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<strong>Cooperifa</strong>
<strong>Cooperifa</strong><br />
Antropofagia periférica<br />
Sérgio <strong>Vaz</strong><br />
Patrocínio
Copyright © 2008 Sérgio <strong>Vaz</strong><br />
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS<br />
curadoria<br />
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA<br />
consultoria<br />
ECIO SALLES<br />
projeto gráfico<br />
CUBÍCULO<br />
COOPERIFA – ANTROPOFAGIA PERIFÉRICA<br />
produção editorial<br />
ROBSON CÂMARA<br />
revisão<br />
JULIANA WERNECK<br />
revisão tipográfica<br />
ROBSON CÂMARA<br />
V497c<br />
<strong>Vaz</strong>, Sérgio<br />
<strong>Cooperifa</strong> : <strong>antropofagia</strong> periférica / Sérgio <strong>Vaz</strong>.<br />
-Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.<br />
(Tramas urbanas; 8)<br />
ISBN 978-85-7820-006-0<br />
1.<strong>Vaz</strong>, Sérgio. 2.Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong>.<br />
3.Poesia popular – História e crítica.<br />
4.Cultura popular - Brasil.<br />
5.Literatura popular – História e crítica.<br />
I.Título. II.Série.<br />
08-2822. CDD: 928.699<br />
CDU: 929:821.134.3(81)<br />
09.07.08 10.07.08 007568<br />
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS<br />
AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA<br />
Av. Ataulfo de Paiva, 658 / sala 401<br />
Leblon – Rio de Janeiro – RJ<br />
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TEL: 21 2529 6974<br />
Telefax: 21 2239 7399<br />
aeroplano@aeroplanoeditora.com.br<br />
www.aeroplanoeditora.com.br
Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, periferia<br />
social – se reforçam cada vez mais movimentos<br />
culturais de todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam<br />
os de alguns segmentos específicos: grupos musicais,<br />
grupos cênicos, grupos dedicados às artes visuais. Mas<br />
de idêntica importância, embora com menos visibilidade,<br />
é a produção intelectual que cuida, além de questões<br />
artísticas, de temas históricos, sociais ou políticos.<br />
A coleção Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes,<br />
um consistente e instigante apanhado dessa produção<br />
amplificada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende<br />
pontes, para um diálogo com artistas e intelectuais que<br />
não são originários de favelas ou regiões periféricas dos<br />
grandes centros urbanos. Seus organizadores se propõem<br />
a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades<br />
e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a<br />
partir de um ponto de vista local, alguns consensos questionáveis<br />
das elites intelectuais”.<br />
A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora<br />
das artes e da cultura em nosso país, apóia essa<br />
coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsabilidade<br />
social contribuir para a inclusão cultural e o fortalecimento<br />
da cidadania que esse debate pode propiciar.<br />
Desde a nossa criação, há pouco mais de meio século,<br />
cumprimos rigorosamente nossa missão primordial, que<br />
é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar<br />
para diminuir as distâncias sociais é um esforço imprescindível<br />
a qualquer país que se pretenda desenvolvido.
Para Para Augusto, Brói, Rose Dorea (Musa da<br />
<strong>Cooperifa</strong>), Márcio Batista, Marco Pezão,<br />
Cocão, Jairo (Periafricania), Lu Souza,<br />
Sales (O evolucionário), Mavotsirc,<br />
e o guerreiro Preto Jota (in memorian).<br />
Agradecimentos especiais<br />
Marco Pezão, João Wainer (fotografia), Edu Toledo<br />
(fotografias), Eleilson (Ação Educativa), DGT Filmes, Edson<br />
Natale, Eduardo Saron, Claudinei Ferreira, Marisa Zambrani,<br />
Ademir Valente, Ali Sati e Eliane Brum.
Sumário<br />
11 Prefácio<br />
12 Apresentação: Poesia das ruas<br />
14 Cap.01 O nascimento da poesia<br />
O bar<br />
Ruas perigosas<br />
Música Popular Brasileira<br />
Primeiros passos<br />
Da ponte pra lá<br />
Da ponte pra cá<br />
Os anjos de A margem do vento e Pensamentos vadios<br />
Mendigo cultural<br />
Taboão da Serra<br />
Pensamentos vadios, 2ª edição<br />
Cartões postais<br />
Hip-hop e sabedoria de vida<br />
66 Cap.02 <strong>Cooperifa</strong><br />
Poeta da periferia<br />
<strong>Cooperifa</strong><br />
O manifesto<br />
Marco Pezão e a Quinta Maldita<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong><br />
O primeiro sarau<br />
Mano Brown<br />
Marcelo Rubens Paiva<br />
112 Cap.03 Literatura, pão e poesia<br />
Literatura, pão e poesia<br />
O fim do Garajão<br />
Bar do Zé Batidão (de volta pro começo)<br />
O Sarau<br />
Jornal Farol Urbano<br />
134 Cap.04 A poesia dos deuses inferiores<br />
A biografia poética da periferia
144 Cap.05 O Rastilho da pólvora<br />
164 Cap.06 Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />
CD de Poesia da <strong>Cooperifa</strong><br />
182 Cap.07 1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong><br />
192 Cap.08 O bonde da <strong>Cooperifa</strong><br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong> em Suzano<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong> na Casa das Rosas<br />
198 Cap.09 Colecionador de pedras<br />
Livro Colecionador de pedras<br />
Café Literário em Taboão da Serra<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong> nas escolas<br />
Ajoelhaço<br />
Sarau rap- Poesia das ruas<br />
218 Cap.10 Poesia no ar<br />
Coleção Literatura Periférica<br />
As guerreiras da <strong>Cooperifa</strong><br />
232 Cap.11 Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
A semana<br />
274 Cap.12 Coopeirfa – Quilombo da poesia<br />
278 Imagens: índice e créditos<br />
282 Sobre o autor
A Poesia<br />
É o esconderijo<br />
Do açúcar<br />
E da pólvora.<br />
Um doce<br />
Uma bomba<br />
Depende<br />
De quem devora.
Prefácio<br />
Ao avistar os arredores íngrimes do Piraporinha e a grande<br />
subida sinuosa que me aguardava, não pude deixar de lembrar<br />
da Serra da Barriga, e veio o pensamento...<br />
Ambas palco de grandes de acontecimentos.<br />
Após subir a serra e chegar ao meu destino, percebi outras felizes<br />
coincidências:<br />
A Rose, musa do recital, com sua força e verdade me recordou<br />
Dandara, negra guerreira, que jamais se rendeu ao comodismo.<br />
Foi olhar para o lado, percorrer com os olhos atentos e observar<br />
o Márcio Batista, para me deslumbrar com sua paciência e cordialidade,<br />
marcas registradas de Ganga-Zumba.<br />
Dos versos que ecoavam ao microfone, após serem escritos em sua<br />
caneta – uma ponta de lança africana – contemplei Sérgio <strong>Vaz</strong>.<br />
Sua estratégia, firmeza, amor e principalmente o sorriso, me<br />
transmitiram confiança e certeza na história.<br />
Não teve jeito, veio à mente o meu líder maior!<br />
E todos que me cercavam, e eram centenas, estavam em casa:<br />
na <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Maior Resistência Cultural Brasileira.<br />
Eu? Bem acomodado, com os parceiros, respirava abundantemente<br />
o oxigênio de que tanto preciso: O Quilombo continua vivo!<br />
GOG
Apresentação: Poesia das ruas<br />
A literatura é a dama triste que atravessa a rua sem olhar para<br />
os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas<br />
calçadas frias da senzala moderna chamada periferia. Freqüenta<br />
os casarões, bibliotecas inacessíveis a olho nu, e prateleiras de<br />
livrarias que crianças não alcançam com os pés descalços.<br />
Dentro do livro ou sob o cárcere do privilégio, ela se deita com<br />
Victor Hugo, mas não com os miseráveis. Beija a boca de Dante,<br />
mas não desce até o inferno. Faz sexo com Cervantes e ri da<br />
cara do Quixote. É triste, mas a rosa do povo não floresce no<br />
jardim plantado por Drummond.<br />
Quanto a nós, capitães de Areia e amados por Jorge, não restou<br />
outra alternativa a não ser criar o nosso próprio espaço para a<br />
morada da poesia. Assim nasceu o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Nasceu<br />
da mesma emergência de Mário Quintana e antes que todos<br />
fossem embora pra Pasárgada, transformamos o boteco do Zé<br />
Batidão num grande centro cultural.<br />
Agora, todas as quartas-feiras, guerreiros e guerreiras de todos<br />
os lados e de todas as quebradas vêm comungar o pão da sabedoria<br />
que é repartido em partes iguais, entre velhos e novos<br />
poetas sob a bênção da comunidade.
Professores, metalúrgicos, donas de casa, taxistas, vigilantes,<br />
bancários, desempregados, aposentados, mecânicos, estudantes,<br />
jornalistas, advogados, entre outros, exercem a sua cidadania<br />
através da poesia.<br />
Muita gente que nunca havia lido um livro, nunca tinha assistido<br />
a uma peça de teatro, ou que nunca tinha feito um poema, começou,<br />
a partir desse instante, a se interessar por arte e cultura.<br />
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> é nosso quilombo cultural. A bússola que<br />
guia a nossa nau pela selva escura da mediocridade. Somos o<br />
grito de um povo que se recusa a andar de cabeça baixa e de<br />
joelhos. Somos o poema sujo de Ferreira Gullar. Somos o rastilho<br />
da pólvora. Somos um punhado de ossos, de Ivan Junqueira,<br />
tecendo a manhã de João Cabral de Melo Neto.<br />
Neste instante, nós somos a poesia.<br />
É tudo nosso!<br />
Sérgio <strong>Vaz</strong><br />
Poeta da periferia
mento
Cap.01<br />
O nascimento da poesia<br />
Cap.01<br />
O nascimento da poesia
Não é possível contar a história da <strong>Cooperifa</strong> e sobre toda essa<br />
efervescência cultural do atual momento em que vivemos, 2008,<br />
sem contar o que era a periferia antes de tudo isso acontecer<br />
em nossas vidas, e na vida de outras pessoas.<br />
Cresci no bairro de Piraporinha, região de Santo Amaro, Zona<br />
Sul, a uns 30 km do centro de São Paulo, e como todo moleque<br />
que vivia no bairro, também queria ser jogador de futebol.<br />
Muitos, apesar dos quarenta, ainda sonham com isso.<br />
A nossa infância era só jogar futebol nos campos de terra, e como<br />
quase não tínhamos brinquedos, a vida se resumia também às<br />
brincadeiras de rua: bolinha de gude, pião, pipa, esconde-esconde,<br />
pega-pega, carrinho de rolimã, caçar passarinho, bandido<br />
e mocinho, jogo de futebol de botão, bater figurinha etc.<br />
E apesar de todas as dificuldades da maioria das pessoas, e<br />
não sei se por desconhecimento da dor, vivíamos como príncipes<br />
e princesas, como num conto de fadas. Nos anos 1970, o<br />
Brasil afundado na mais bruta ditadura, e nós ali, nas ruas sem<br />
asfalto, vivendo como Alice, no país das maravilhas.<br />
Naquela época os bairros da região em que a gente morava<br />
– Jardim Guarujá, Chácara Santana, Parque Santo Antônio,<br />
Jardim Letícia, Jardim Neide, Parque Europa, Figueira Grande,<br />
Lídia, <strong>Vaz</strong> de Lima, entre outros – eram bairros novos, por isso<br />
não ofereciam a menor infra-estrutura para se viver dignamente,<br />
16
O nascimento da poesia<br />
17<br />
pelo menos para os adultos. Como todo mundo que um dia foi<br />
criança já sabe, a infância não dói no presente, só no futuro.<br />
Sou de uma época em que quando se fazia a 4ª série primária,<br />
tínhamos que ir para outros bairros, mais ao centro de Santo<br />
Amaro, fazer o ginasial. O colegial só chegou quase nos anos 1980.<br />
Os nossos pais tinham muita coisa em comum: a maioria deles<br />
tinha vindo de outros estados tentar a sorte por aqui. Muitos<br />
construíram essa metrópole. Os meus pais, por exemplo, vieram<br />
de Minas Gerais. Eles se separaram quando eu e meus irmãos<br />
éramos muito pequeninos.<br />
Minha irmã foi morar com a minha mãe e eu e meu irmão ficamos<br />
com o meu pai. Só mais tarde iria reencontrar a minha mãe,<br />
o que mudaria novamente o destino da minha poesia.<br />
Nesse tempo a TV era a nossa única referência cultural. E pela<br />
tela em preto e branco é que sabíamos que não estávamos<br />
sozinhos neste planeta chamado periferia. Assistíamos de tudo<br />
um pouco, mas principalmente desenhos como Speed Racer,<br />
Savamu, Fantomas, Super-dínamo, A Princesa e o cavaleiro<br />
etc. Não faltavam os super-heróis japoneses: Ultra-man, Ultraseven,<br />
Ultra-Q, Robô gigante, e claro, os enlatados americanos,<br />
Swat, Daniel Boone, James West, A feiticeira, Jeannie é um<br />
gênio, Bonanza, e assim seguia o lixo tóxico cultural destruindo<br />
nossas mentes. Muitos estão doentes até hoje.<br />
Outra rara diversão era quando o circo chegava na Piraporinha.<br />
O bairro ficava agitado por conta dos artistas que se apresentavam,<br />
a maioria deles vinham de programas de televisão como<br />
o dos Barros de Alencar, Bolinha, Raul Gil, Chacrinha, entre<br />
outros. Para se ter uma idéia do que representava isso, uma vez<br />
o Sidney Magal, no auge, veio ao circo cantar e rebolar; a mulherada<br />
quase pôs a lona abaixo.<br />
A molecada só tinha duas maneiras de ir ao circo ver o palhaço.<br />
Uma era se a gente furasse a lona; a outra, a minha preferida,<br />
era vender chocolate para os poucos privilegiados que podiam
18 <strong>Cooperifa</strong>
O nascimento da poesia<br />
19<br />
entrar pela porta da frente. De minha parte, achava divertido<br />
trabalhar sob a risada alheia.<br />
Quase no fim dessa época ganhei do meu pai meu primeiro livro:<br />
Ali Babá e os quarenta ladrões. Sem que eu percebesse, a literatura,<br />
nesse dia, iria mudar minha vida para sempre.<br />
A adolescência chegou para nós no ritmo do velho e bom soul/<br />
funk do papa James Brown, e nas melodias românticas de Betty<br />
Wrigth e Marvin Gaye.<br />
Tudo naquele tempo se resumia aos bailes. Era baile na escola,<br />
baile na Sedinha (quase todo bairro tinha uma sedinha de associação<br />
amigos de bairro), baile nos fundos de quintais, e nos<br />
salões de festas como o Palácio, Yoga (minha domingueira preferida),<br />
Palmeiras, Astro, Cartola, entre tantos outros.<br />
O tempo seguia dançando ao som de Jimmy Bo Horne.<br />
Hoje em dia quase todo jovem de periferia quer ter ou tem um<br />
grupo de pagode ou de rap, mas naquele tempo a maioria queria<br />
ter uma equipe de baile.<br />
Futebol também era outra coisa que se fazia muito. Como os campos<br />
de várzea eram fartos, às vezes num único bairro era possível<br />
ter de três a quatro times. E muitos desses times eram verdadeiros<br />
esquadrões, e arrastavam muitas pessoas para torcer em<br />
seus jogos. O Piraporinha, time da região, era um desses times.<br />
Apesar de gostar de futebol de campo, a minha praia era futebol<br />
de salão, que era pouco difundido naquela época. O Guarujá<br />
F.S., em que eu joguei muito tempo, também era muito respeitado<br />
na Zona Sul.<br />
Naquele tempo só uma coisa era certa para nós: as brincadeiras<br />
tinham ficado para trás, já não vivíamos um conto de fadas, e o<br />
algodão já não era tão doce.
20 <strong>Cooperifa</strong>
O nascimento da poesia<br />
21
O bar<br />
Meu pai saiu da empresa em que ele trabalhou por dez anos e<br />
entrou no ramo do comércio. Quando eu tinha apenas 12 anos ele<br />
comprou o Bar e Empório Guarujá, uma espécie de mercadinho<br />
daqueles tempos. Lugar onde eu iria passar toda a minha adolescência<br />
trabalhando, e nem sequer desconfiava que a minha senzala,<br />
durante mais de dez anos, iria se transformar um dia num<br />
dos maiores Quilombos Culturais do país: o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Sim, o velho Empório se transformou hoje no que é o bar do<br />
Zé Batidão.<br />
Naqueles tempos não tinha tantos bares como temos hoje, então<br />
os poucos que tinham acabavam virando o ponto de encontro de<br />
todas as pessoas da rua e do bairro.<br />
Durante o dia o Empório era freqüentado pelas mulheres, esposas<br />
e crianças. Nesse horário só se vendia doces e refrigerantes,<br />
arroz e feijão, farinha e miudezas em geral.<br />
À noite era somente para os homens. E eles chegavam cada qual<br />
em seu horário, vindos do trabalho, e como todos freqüentavam<br />
o bar todos os dias, era comum recebê-los com a sua dose de<br />
aperitivo predileto assim que punham os pés no recinto. Todo<br />
bar daquela época era sede de algum time de várzea, e quase<br />
todos eram decorados com troféus.<br />
22
O nascimento da poesia<br />
23
24 <strong>Cooperifa</strong><br />
O Clube do bolinha vivia lotado; como homem naquele tempo<br />
não assistia àa novela, era uma boa desculpa para não chegar<br />
cedo em casa.<br />
Lá se falava de tudo e de todos, mas o assunto predileto sempre<br />
foi o futebol. Mas também se discutia muito sobre as notícias<br />
do jornal Notícias populares – a história do nenê-diabo era<br />
acompanhada como novela – ou sobre o caso contado por Gil<br />
Gomes pela manhã, e coisas do dia-a-dia, mas quase não se<br />
ouvia falar de política de uma forma mais ampla.<br />
Quando se falava nisso, era sobre uma rua que ainda não estava<br />
asfaltada, um trator para tirar o barraco de alguém, um abaixoassinado<br />
para isso ou para aquilo, enfim. A maioria das pessoas<br />
dali eram de direita, quer soubessem ou não.<br />
A periferia, por suas necessidades básicas e ainda em formação<br />
geográfica, sempre foi reduto de velhas raposas políticas.<br />
Os poucos que eram de esquerda falavam em códigos; então,<br />
sempre passaram batidos.<br />
O boteco é onde a gente aprende a ser psicólogo. Foi lá que eu<br />
aprendi que todas as pessoas são iguais, mesmo bebendo bebidas<br />
diferentes.<br />
Atrás do balcão eu via a vida passar sobre mim. Minha vida se<br />
resumia a trabalhar no bar e ir à escola, e eu não gostava de<br />
nenhum dos dois.<br />
Com pouco tempo para a rua, passei a freqüentar um outro<br />
tipo de lugar: os livros. Lia de tudo um pouco, principalmente<br />
livros de adultos, coisas que mais tarde viria a entender, relendo<br />
novamente. Gostava também de jornais e revistas.<br />
Li Eram os deuses astronautas?, Pantaleão e as visitadoras,<br />
O cortiço, A mãe, Os Miseráveis, A Insustentável Leveza do Ser,<br />
Capitães de Areia, Drummond, Ferreira Gullar, Pablo Neruda,<br />
Agatha Christie, Dom Casmurro etc. Devorava e era devorado por<br />
tudo o que caía em minhas mãos.
Ruas<br />
perigosas<br />
Um outro tipo de personagem real que também era muito<br />
comum nos anos 1980 eram os temidos justiceiros, também<br />
conhecidos como “pés-de-pato”. Eram a prova verdadeira que<br />
as ruas tinham perdido a delicadeza dos contos de fadas.<br />
A simples menção do nome de alguns deles era o suficiente<br />
para desfazer as rodinhas em volta das fogueiras, que eram<br />
muito comuns nesse tempo. O nome do cabo Bruno, um dos<br />
assassinos mais temidos da região, era sempre citado em lugares<br />
onde havia algum tipo de aglomeração. Coisas do tipo: “Tem<br />
um opala preto [carro preferido dos assassinos], circulando na<br />
quebrada”. Pronto, era a senha para que todos fossem embora<br />
de onde estavam.<br />
Durante um bom tempo as chacinas eram as únicas notícias<br />
que saíam sobre a periferia nos jornais. Um tempo sem poesia<br />
alguma, nem sei se valia a pena lembrar, mas...<br />
Quando terminei o ginásio fui estudar em Santo Amaro, no<br />
Colégio Radial, Processamento de dados. Foi duro admitir que<br />
existiam outros lugares além das ruas do Jardim Guarujá e<br />
Chácara Santana.<br />
A maioria dos jovens da periferia não pensavam em cursar uma<br />
universidade e sim cursos profissionalizantes: Ferramentaria,<br />
Tornearia, Calderaria etc. O SENAI, por exemplo, era tão disputado,<br />
senão mais, do que a USP.<br />
25
Música Popular<br />
Brasileira<br />
Desde os tempos de baile, em que ensaiávamos os passos de<br />
dança em casa para não fazer feio no salão, o Márcio Batista<br />
sempre fora meu amigo, e não sei bem se por influência de<br />
alguém, ou se pelo pouco tempo de lazer que eu tinha, ou talvez<br />
pelas letras de protesto que para mim ainda não faziam tanto<br />
sentido, espiritualmente falando, começamos a nos interessar,<br />
timidamente, por Música Popular Brasileira.<br />
Marvin Gaye, Kool and Gang, Earth, Wind and Fire, Brass<br />
Construcion, Roberta Flack, Sister’s is Lad, Commodors, The<br />
Jacksons, entre tantos outros que me acompanhavam no início<br />
da fase de espinhas, agora davam lugar para Chico, Elis,<br />
Caetano, Gil, Gal, Bethânia, Milton e toda a turma do Clube da<br />
Esquina que acabara de chegar em nossos corações.<br />
Se já não bastasse ser estranho gostar de literatura naquela<br />
época, aos 15 ou 16 anos, para piorar comecei a gostar de um<br />
tipo de música que quase não se conhecia na periferia.<br />
... há soldados armados, amados ou não, quase todos perdidos<br />
de armas na mão.<br />
Vandré<br />
Aos 17 anos, em 1982, como todo bom garoto, alistei-me, obrigatoriamente,<br />
no Exército Brasileiro. O Brasil passava por uma<br />
crise monstruosa, e as fábricas viviam abarrotadas de gente à<br />
procura de emprego. Nesse ano, como forma de amenizar um<br />
26
O nascimento da poesia<br />
27
28 <strong>Cooperifa</strong><br />
pouco essa crise, o governo resolveu convocar cem mil jovens<br />
para servir as Forças Armadas. Eu, infelizmente, fui um deles.<br />
Prestei durante um ano o serviço militar, em 1983, como soldado<br />
no C.P.O.R. (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva)<br />
no bairro de Santana, Zona Norte de São Paulo. Os soldados<br />
eram, na maioria, jovens da periferia de São Paulo, enquanto a<br />
maioria dos alunos era de classe média alta e saíam de lá como<br />
aspirantes a tenentes.<br />
De acordo com o regime militar, todo mundo que servia o Exército<br />
aprendia a virar homem, além de aprender a dizer sim, senhor e<br />
não, senhor! Apesar de conviver com mais de cem praças, foi<br />
uma época de muita solidão. Como todo tímido que se preza,<br />
demorei muito para fazer novos amigos.<br />
No quartel eu trabalhei no rancho, era cozinheiro, pé-de-banha,<br />
como diziam na gíria dos praças. Foi trabalhando na cozinha,<br />
num final de semana em que não ficava muita gente, que eu<br />
descobri que de fato vivíamos em uma ditadura militar. Nunca<br />
tinha ouvido falar sobre isso na rua, na escola. Os jornais e<br />
revistas falavam vagamente.<br />
Nesse dia estava ouvindo uma fita da cantora Simone, gravada<br />
se não me engano em 1979, ao vivo num desses shows do Dia do<br />
Trabalho em algum estádio de futebol de São Paulo. Acho que o<br />
show se chamava Canta Brasil.<br />
Estava ouvindo a música “Pra não dizer que não falei das flores”,<br />
do Vandré, na voz dela, quando um sargento entra correndo aos<br />
gritos:<br />
— Soldado <strong>Vaz</strong>, que porra é essa que você está ouvindo?<br />
Pensei que o sargento ia voar na minha jugular.<br />
— Ué sargento!? É a cantora Simone.<br />
Falei na mais pura inocência.
O nascimento da poesia<br />
29<br />
— Seu mocorongo, não pode ouvir essa porra dentro do quartel.<br />
Está querendo me foder?<br />
E já foi desligando o rádio, como quem estivesse desativando<br />
uma bomba.<br />
Fiquei ali meio que sem entender o porquê da reação explosiva<br />
do milico superior. Para falar a verdade eu ouvia a música e não<br />
entendia o que queria dizer. Ele continuou irritado.<br />
— Isso é música de subversivo, de terrorista. Quer ser expulso, é?<br />
Falou mais um monte de coisas e foi explicando a gravidade da<br />
situação. Que os artistas eram os porta-vozes do comunismo,<br />
traidores da pátria, maconheiros, ateus desgraçados e que<br />
eram os verdadeiros inimigos da nação. E que aquela música<br />
representava tudo que o Exército abominava.<br />
Disse mais um monte de coisas, mas acho que percebendo a<br />
minha cara de surpresa e um tanto quanto inocente, sem mais<br />
nem menos devolveu-me a fita, e pediu que não a ouvisse mais<br />
no quartel.<br />
Depois dessa dura, comecei a ouvir todas as fitas que eu tinha<br />
de MPB novamente, e só então, depois de prestar muita atenção<br />
nas letras, é que eu pude entender o que realmente tinha me feito<br />
abandonar temporariamente a black music: as letras de protesto.<br />
Foi como se um raio tivesse caído em minha cabeça, e aberto<br />
um buraco do tamanho do mundo. Com a cabeça cheia de fendas,<br />
aproveitei e reli alguns livros de poesia, e o protesto também<br />
estava lá, só eu não havia visto.<br />
Eu, que vivia escrevendo sobre tristeza e solidão, e coisas sem<br />
sentido que fazem parte da alma, me apaixonei pelas metáforas,<br />
assim como Mário Ruoppolo (Massimo Troisi) no filme que<br />
conta uma pequena passagem da vida do poeta Pablo Neruda.<br />
Eu, que muitas vezes tinha vergonha de dizer que escrevia poesia,<br />
desse momento em diante queria ser poeta, e ainda por<br />
cima libertar o mundo da opressão dos tiranos de plantão.
Primeiros<br />
passos<br />
Quando saí do exército, em 1984, o Brasil começava a sua abertura<br />
política, a arte vinha com tudo e chegava de todos os lados;<br />
não na periferia, mas nas regiões mais centrais na cidade.<br />
Em Piraporinha, timidamente a Casa Popular de Cultura M’Boi<br />
Mirim 1 começava as suas atividades nas mãos de Izilda e mestre<br />
Jonas. Formávamos um time musical, eu, Ceará, Márcio, Cleone,<br />
José Neto, e mais alguns que gravitavam esporadicamente<br />
na nossa órbita, que adoravam MPB e discutir sobre política.<br />
Quase todo dia a gente ia na casa do Cléo tocar violão e tomar<br />
vinho natal, quando se tinha algum dinheiro.<br />
Na região de Santo Amaro algumas escolas promoviam festivais<br />
de música. Aliás, os festivais eram a grande novidade e pipocavam<br />
na região e nas cidades do interior. Fora da periferia, a MPB<br />
era um grande sucesso em São Paulo.<br />
De tanto gostar de música a gente achou que também sabia<br />
fazer. No nosso grupo só o Ceará sabia tocar; os demais, assim<br />
como eu, não tocavam nem campainha. Sem nos darmos conta<br />
1 A Casa popular de Cultura do M’Boi Mirim & Guarapiranga foi fundada em 10 de<br />
março de 1984 por uma rede de entidades com o objetivo de ser um espaço de<br />
discussão, troca de experiência e de participação popular. Transformou-se no 1º<br />
Pólo Cultural da Região de Piraporinha, mantida e administrada pela comunidade<br />
através de uma diretoria eleita (Associação). Hoje em dia, a Casa é sede de um dos<br />
maiores eventos culturais do país: o Panelafro.<br />
30
O nascimento da poesia<br />
31<br />
da nossa pobreza musical, começamos a nos preparar, precariamente,<br />
para participar dos festivais.<br />
Quando conseguíamos juntar dinheiro para pagar as inscrições,<br />
quando conseguíamos verba para comprar a fita cassete,<br />
quando conseguíamos um gravador emprestado, a gente se inscrevia<br />
e sonhava em um dia poder participar.<br />
O nosso processo de criação das letras também era muito<br />
pobre. Era simples: cada um queria fazer uma estrofe. O único<br />
problema é que apesar de gostarmos da mesma música, todos<br />
nós achávamos que tínhamos um estilo diferente.<br />
Vai vendo: eu achava que escrevia igual ao Chico Buarque, então<br />
só queria fazer música revolucionária. José Neto só queria falar<br />
de boi na estrada. O Cleone era meio Zé Ramalho, e o Márcio se<br />
sentia o Djavan.<br />
Os organizadores dos festivais não viam nem ouviam assim, por<br />
isso só chegavam cartas de agradecimento pela nossa iniciativa,<br />
e notas de recusa para as nossas músicas.<br />
Lembro das primeiras músicas que enviamos e nunca tivemos<br />
resposta:<br />
Trem de Maria<br />
Vamos viajar<br />
Nesse trem do tempo<br />
Se perder nas lembranças<br />
Do pensamento<br />
Em cada estação<br />
Vamos relembrar<br />
De tempos bons<br />
Que não vão voltar<br />
Maria Fumaça<br />
Que cortou as terras de Minas Gerais<br />
Foi por onde passou<br />
Meu avô e meu pai
32 <strong>Cooperifa</strong><br />
Era fim de tarde<br />
Ela vinha apitando<br />
Só não volta a Maria<br />
Que eu vivo sonhando.<br />
Um trago da vida<br />
Tenho vontade de falar de amor<br />
Assim como diriam os poetas<br />
Com suas cabeças geniais<br />
Falar do amor da forma mais completa<br />
Sentimento mais puro que pesa sobre os mortais.<br />
É preciso cantar<br />
No mais alto silêncio<br />
Todas as dores do mundo<br />
Abraçar todas as vozes de todos os tempos<br />
E nesse momento viver um segundo.<br />
Sentir com amigos<br />
A embriaguez eterna<br />
Perambular por entre as primaveras<br />
Tragar o lume das estrelas<br />
Onde não chegam nossas pernas<br />
E num suspiro conformado de cansaço<br />
Cair no chão e beijar nossa terra.<br />
Sentir na lembrança o tempo que passou<br />
No suor de cada lágrima rolada<br />
Juntar os pedaços da vida<br />
Para viver o tempo que sobrou<br />
Trazer de volta a esperança perdida<br />
E num toque de magia<br />
Encharcar o peito de amor<br />
Para derramar o copo e tomar<br />
Um trago da vida.<br />
Por discordar do nosso método de compor em grupo e ter o<br />
agravante de não saber tocar nem cantar, acabei fazendo a<br />
minha primeira letra sem parcerias, e que por coincidência foi<br />
nossa primeira participação em festivais, no Teatro Paulo Eiró,<br />
em Santo Amaro.
O nascimento da poesia<br />
33<br />
Vida<br />
Quero tempo pra pensar<br />
No homem que vai para o espaço<br />
E que não aprendeu com os pássaros<br />
O segredo livre de voar<br />
Não quero olhos para ver<br />
A decadência que trazem consigo<br />
E o que não podem mais deter<br />
O encontro com seu inimigo<br />
Não quero braços para abraçar<br />
O homem que cai, quando outro levanta<br />
Nem tampouco ajudar<br />
O que cai, na sua vingança<br />
Não quero pernas para correr<br />
Do ódio do homem que se aproxima<br />
E nem coragem de prever<br />
O homem a caminho de Hiroshima<br />
Não quero a vida pra viver<br />
Correndo atrás da sorte<br />
E nem com medo de se perder<br />
Perto dos olhos da morte<br />
Não quero a vida pra morrer<br />
Nem o sonho pra sonhar<br />
Eu quero a vida só pra crer<br />
No sonho que pode vingar<br />
Quero braços para abraçar<br />
O homem que quero crer<br />
E a coragem pra ajudar<br />
O homem que quer viver<br />
Depois disso, participamos de outros pequenos festivais. Nosso<br />
grupo musical nunca ganhou nada, nem menção honrosa ou<br />
diploma de participação; por isso, apesar de sempre estarmos<br />
juntos, a nossa carreira tinha chegado ao fim. Para a sorte de<br />
todos que gostam de música popular brasileira.
34 <strong>Cooperifa</strong><br />
Quanto a mim, além da experiência ficava a minha primeira<br />
letra, meu primeiro poema registrado, e o desejo de um dia me<br />
tornar um poeta.
O nascimento da poesia<br />
35
Da ponte<br />
pra lá<br />
Depois de algumas letras e alguns poemas guardados, pela<br />
primeira vez eu tinha pensado em escrever um livro, só que eu<br />
não fazia a mínima idéia de como faria isso. Naquele tempo não<br />
conhecia ninguém que já tinha publicado um livro, ou que sabia<br />
quais os caminhos a percorrer, ou sequer pensado em escrever.<br />
Nau sem rumo, comecei a fazer um curso de teatro, “Emílio<br />
Fontana”, no bairro de Santa Cecília, Centro de São Paulo. Não<br />
sei se queria ser ator, mas tinha idéia de escrever peças teatrais,<br />
e achei que era melhor aprender um pouco sobre a coisa.<br />
E aprendi bem pouco mesmo. O curso era basicamente teoria.<br />
O curso era freqüentado por muitos jovens, a maioria de classe<br />
média; da periferia podia-se notar poucas pessoas, além de<br />
mim e o Cleone, que também participou do curso.<br />
Note-se que tudo que a gente queria fazer sobre arte e cultura<br />
ficava depois da ponte do Socorro ou da avenida João Dias (pontes<br />
que dão acesso aos bairros mais ao centro).<br />
36
O nascimento da poesia<br />
37<br />
Durante o curso eu escrevi uma peça, “Amanhã talvez”, e montamos<br />
um grupo com os alunos para podermos representá-la,<br />
o ANGÉLICA 387. Como não gostava de atuar, aproveitei que a<br />
peça era minha e também dirigi.<br />
Fizemos duas apresentações no espaço Aonde Bar, que ficava<br />
na avenida Santo Amaro e que era comandado por uma turma<br />
de teatro de quem nós ficamos amigos. As duas sessões foram<br />
lotadas de amigos e parentes, sem contar que o lugar também<br />
não era muito grande.<br />
O grupo não vingou e aos poucos as pessoas que eram grandes<br />
amigas foram se dispersando, e a minha verve teatral também.<br />
Fiz muitos amigos nessa época, mas uma amiga em especial<br />
iria me ajudar no pontapé inicial da minha carreira poética:<br />
Adrianne Mucciolo.<br />
Fui apresentada a Adrianne Mucciolo pelo meu amigo Marcelo<br />
Carioca, que hoje é o marido dela. Na época ele namorava uma<br />
menina do bairro e que trabalhava no banco comigo. Quando<br />
esse amigo nos apresentou, disse-me que ela era poeta e estava<br />
afim de fazer um livro, e sugeriu que a gente escrevesse juntos.<br />
Eu e Adrianne ficamos amigos e começamos a escrever em parceria.<br />
Ela já tinha algumas poesias e eu também, e dividimos a<br />
autoria de outras.<br />
Com tudo pronto, descobrimos uma editora no bairro de Pinheiros<br />
que editava livros em pequenas quantidades. Funcionava<br />
como uma gráfica: você pagava e recebia os livros.<br />
Como eu não tinha dinheiro, ficou combinado que a Adrianne<br />
dava a metade e depois eu dava a outra metade no dia do lançamento.<br />
Fizemos quinhentos livros.<br />
Assim foi feito, no dia 10 de dezembro de 1988, numa galeria<br />
onde ficava a editora, eu lancei o meu primeiro livro: Subindo<br />
a ladeira mora a noite. Para minha surpresa o lançamento foi
38 <strong>Cooperifa</strong><br />
muito bom, e muita gente compareceu, tanto de minha parte,<br />
como da parte dela.<br />
A minha família, pessoas do bairro e amigos da empresa Filtros<br />
Logam, onde eu trabalhava como auxiliar de escritório, foram me<br />
prestigiar. No final do lançamento paguei a minha parte à editora<br />
e fui embora com os livros embaixo do braço batizá-los na<br />
periferia.<br />
Depois do lançamento, eu e Adrianne nos vimos mais algumas<br />
vezes, mas aos poucos fomos perdendo o contato. Só sei que<br />
ela foi uma grande amiga e esteve presente num dos dias mais<br />
felizes da minha vida.
O nascimento da poesia<br />
39
Da ponte<br />
pra cá<br />
O lançamento na galeria de Pinheiros tinha sido bom e coisa e<br />
tal, mas faltava lançá-lo na periferia. O Zé Batidão ainda não era<br />
no endereço atual, uma rua abaixo para ser mais exato, e era lá<br />
que nós naquele tempo começamos a vida boêmia no bairro.<br />
Como eu e mais ninguém sabia muito bem como era o lançamento<br />
de um livro na periferia, o Zé fez frango frito, com uma<br />
forma cheia de salada de maionese, em que no meio estava<br />
escrito o nome do livro, para servir para os amigos.<br />
Eu ainda não sabia o quanto era difícil vender um livro, e também<br />
não havia descoberto que o mundo não o estava esperando<br />
para a vida dar seguimento, nem sequer sabia que ia passar<br />
vergonha nos campos de várzea quando dizia que tinha escrito<br />
um livro de poesia. Não era fácil ser boleiro e poeta ao mesmo<br />
tempo, num lugar que dia após dia ia perdendo o romantismo.<br />
A única coisa que eu sei é que foi uma noite memorável. Como<br />
poucas nessa vida. E para poucos, também dessa vida.<br />
Boa parte das minhas poesias já era sobre temas sociais. Leiam<br />
algumas que já completaram mais de vinte anos, pois foram<br />
escritas bem antes de o livro ser publicado:<br />
40
O nascimento da poesia<br />
41<br />
Palco<br />
Segue o menino<br />
Deslizando na avenida<br />
Vende drops na caixinha de papel<br />
Tentando um papel<br />
No palco dessa vida.<br />
Em cada esquina<br />
Uma platéia diferente<br />
Batem palmas<br />
E não sente<br />
Que este ato não termina.<br />
No palco do asfalto<br />
Cenas fortes<br />
No frágil nu do corpo<br />
Ele veste as lágrimas<br />
Maquiadas de sorrisos<br />
Que desbotam na luz fria da noite,<br />
Bastidores da verdade.<br />
Segue o menino<br />
No palco desta vida<br />
Representando seu verdadeiro<br />
papel.<br />
Asas da quimera<br />
para Nelson Mandela<br />
Desenho de um sol no teu peito<br />
Apaga o não da memória<br />
Brilha o sim do seu jeito<br />
E faz mudar sua história<br />
O cárcere que vigia tuas lágrimas<br />
Afoga no teu Éden imaginário<br />
Das cores juntas na sina<br />
Em todos os dias do calendário<br />
Liberdade te espera<br />
O perpétuo não espera um<br />
segundo<br />
Semeie as asas da quimera<br />
Para voar deste mundo<br />
Quando houver frutos no<br />
pensamento<br />
A árvore que sombreia os campos<br />
Vai buscar para junto do seu<br />
manto<br />
As folhas que caem ao vento<br />
África dos navios de inverno<br />
Que o poeta criou<br />
Aquarela do pai eterno<br />
Que sem licença o homem<br />
assinou
Os anjos de<br />
A margem do vento<br />
e Pensamentos<br />
vadios<br />
A experiência do primeiro livro não fora somente flores; aos<br />
poucos eu fui descobrindo a dificuldade de ser poeta no país.<br />
Com o livro nas mãos, descobri que depois dos parentes e amigos<br />
mais próximos, poucos estavam interessados em poesia,<br />
e principalmente na minha.<br />
No início dos anos 1990 meu pai já tinha vendido o bar para um<br />
outro amigo da família e já não estávamos vivendo na ditadura<br />
militar. Na minha opinião, o Brasil entrou em gozolândia total,<br />
e no sentido literal da palavra.<br />
O Brasil continuava pobre e o racismo cada vez mais forte,<br />
a favelização em ritmo acelerado, o ensino precário, desemprego,<br />
mas o povo brasileiro vivia numa constante festa.<br />
A música pela qual eu havia me apaixonado estava chegando ao<br />
fim, e só mais tarde iria encontrar novamente um novo tipo de<br />
música de protesto que daria sentido à minha poesia: o rap.<br />
42
O nascimento da poesia<br />
43<br />
A minha poesia, conforme alguns, tinha ficado fora de moda, pois<br />
ninguém lutava mais contra o sistema, e o grande consenso era<br />
que não tínhamos mais inimigos, e a poesia engajada era coisa<br />
do passado. A palavra tesão era a grande moda do momento.<br />
Quanto a mim, só sabia que a poesia não podia parar.<br />
No ano de 1991 eu trabalhava de auxiliar de cobrança em um escritório<br />
de Materiais de Construção que ficava na Vila Olímpia, e a<br />
matriz em Joinville-SC. Estava com material para o meu segundo<br />
livro, A margem do vento – que era uma poesia mais reflexiva do<br />
que engajada, não sabia por que, mas tinha assimilado a pressão<br />
–, e não tinha um centavo qualquer para editá-lo.<br />
Não sei por que me ocorreu a idéia de pedir apoio cultural para o<br />
presidente da empresa, sr. Erédia, e movido por este desejo quase<br />
impossível de se realizar consegui que a Cida, secretária, marcasse<br />
uma hora com ele, o que não demorou muito a acontecer.<br />
No dia da reunião até que eu não estava muito nervoso, acho<br />
que era porque eu sabia que a idéia era muito louca para dar<br />
certo, então fui curto e grosso. Disse a ele que era poeta e queria<br />
editar mil livros e precisava do apoio da empresa, e em troca<br />
daria quinhentos livros para a empresa presentear os clientes e<br />
mais o logotipo da empresa na contracapa do livro.<br />
Ele ouviu atentamente o meu pedido, e fazia uma cara de “mais<br />
ou menos” o tempo inteiro. Disse, como sempre, que a empresa<br />
não passava por bons momentos, e todas aquelas coisas que os<br />
chefes dizem quando pedimos aumento. Anotou algumas coisas<br />
e disse que não era prática da firma e coisa e tal, mas que<br />
em breve me dava uma resposta.<br />
Um dia, quando menos esperava, ele mandou me chamar pois<br />
queria falar comigo. Cheguei lá esperando a choradeira de sempre,<br />
qual não foi minha surpresa quando ele disse que tinha<br />
uma outra proposta e que talvez fosse até melhor para mim.
44 <strong>Cooperifa</strong>
O nascimento da poesia<br />
45<br />
Ele disse que como estava perto do fim do ano, queria que o livro<br />
fosse uma espécie de presente de natal, mas que só aceitaria<br />
fazer se aceitasse editar dois mil livros e doar mil à empresa.<br />
Será que eu aceitei?<br />
Diante disso, convidei o amigo e professor Carlos Giannazi,<br />
que hoje é deputado Estadual pelo PSOL, para fazer a orelha<br />
do livro; o artista plástico Carlos Roberto Hippólito para fazer a<br />
capa, e as ilustrações ficaram por conta do desenhista Ivan de<br />
Oliveira Pesso.<br />
O lançamento foi num bar chamado Café in Concert, que ficava<br />
no Ibirapuera, zona nobre de São Paulo, e que era do mesmo<br />
dono do Vinicius Bar, onde eu tomava chopes com a turma da<br />
empresa às sextas-feiras (note-se aí que até para tomar chope<br />
era preciso sair da periferia).<br />
No dia do lançamento o bar ficou lotado. Amigos do bairro, família<br />
e muita gente da empresa em que trabalhava. Para se ter<br />
uma idéia, naquele dia eu vendi mais de 150 livros, que é o meu<br />
recorde até hoje. O duro foi vender os 850 livros restantes, e<br />
mais quinhentos com que o presidente me presenteou.<br />
Depois desse dia só dava eu em barzinho, porta de teatros,<br />
shows, porta de faculdade e tudo quanto é lugar que poeta<br />
podia e não podia entrar. Sem contar com a concorrência, que<br />
naquele tempo era muito acirrada, devido à quantidade enorme<br />
de poetas que tinha no Centro da cidade.
Mendigo<br />
cultural<br />
Encharcado de poesia e coragem neste ano, sem ser convidado<br />
participei, em trapos, da Bienal do Livro, que ainda era no Parque<br />
do Ibirapuera, vestido de mendigo e com os livros dentro de uma<br />
bolsa feita de saco de estopa e uma placa escrita “mendigo culturall”,<br />
com os dois eles da era Collor, distribuindo marcadores<br />
de páginas gratuitamente com as minhas poesias – foi nesse<br />
dia que eu também conheci o cantor Milton Nascimento e o presidente<br />
do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio da Silva.<br />
Os seguranças não entenderam muito bem o meu protesto<br />
e passaram a me seguir. Foi quando fui resgatado por uma<br />
mulher, Rosemay Zarif, que era dona da antiga livraria Antes do<br />
baile verde e que estava expondo lá. Depois desse episódio, May<br />
ainda continuou por muito tempo dando força para o meu trabalho.<br />
Nesse dia duas crianças me ofereceram moedas.<br />
Cheio de sonhos e de livros, o anjo-presidente da empresa ainda<br />
ia ser muito importante na minha vida. Poucos meses depois<br />
pedi que ele me mandasse embora, pois queria seguir pelo<br />
mundo vendendo e vivendo de poesia.<br />
Não só me demitiu como me desejou boa sorte.<br />
Outro dia eu o vi numa entrevista na televisão e fiquei muito<br />
emocionado; abracei-o com os olhos cheios de lágrimas e boas<br />
lembranças.<br />
46
O nascimento da poesia<br />
47
48 <strong>Cooperifa</strong><br />
Saí da empresa e montei um bar no bairro do Guarapiranga, o<br />
Etílicos bar, com o Branco e o Edson Franco. Não foram boas<br />
lembranças: durou apenas um ano, e saí de lá sem rumo e sem<br />
um tostão no bolso.<br />
Mas também foi nessa época que eu conheci um outro anjo<br />
em minha vida, Marisa Zambrani, que morava no bairro do<br />
Carandiru, e que também tem muita importância na minha<br />
vida e na minha trajetória poética. Foi ela que nos momentos<br />
mais duros da minha caminhada conseguiu patrocínio para a<br />
segunda edição do livro A margem do vento e para o livro que<br />
logo em seguida eu iria lançar: Pensamentos vadios.<br />
A primeira edição do livro Pensamentos vadios lancei também<br />
no Café in Concert, no Ibirapuera, em abril de 1994. A capa dessa<br />
vez foi feita pelo Ivan Pesso, e entreguei a orelha novamente ao<br />
meu amigo professor Carlos Gianazzi.<br />
Foi uma época muito turbulenta na minha vida. Havia conflitos<br />
onde quer que eu tocasse, onde quer que eu pisasse. Por isso,<br />
no final do ano de 1994 eu fui morar em Taboão da Serra (Grande<br />
São Paulo), onde minha vida fez sentido novamente, e onde, por<br />
incrível que pareça, tudo ia recomeçar, só que bem mais forte,<br />
e para sempre.
O nascimento da poesia<br />
49
Taboão<br />
da Serra<br />
Fugindo de mim e a convite de minha mãe, vim morar em de<br />
Taboão da Serra, grande São Paulo, por volta de 1995. Taboão<br />
faz fronteira com São Paulo por vários lados; eu vim morar na<br />
divisa com o bairro de Campo Limpo.<br />
Cheguei à cidade sem rumo e sem destino, desempregado, sem<br />
um tostão qualquer. Fui morar num quartinho em que apenas<br />
cabiam uma estante com meus livros, uma cama e uma garrafa<br />
PET de guaraná vazia, onde eu urinava. Reli quase todos os<br />
livros que tinha, que não eram poucos, enquanto a solidão me<br />
consumia como ferrugem.<br />
Com o vento soprando ao contrário, fazia apenas alguns bicos<br />
numa rádio Comunitária no Jardim Brasil/ZN, como locutor de<br />
um programa chamado “Ressaca Brasileira”, e como vendedor<br />
de livros numa distribuidora que fazia eventos em escolas e<br />
universidades. Depois de alguns anos, por prazer, eu e o Márcio<br />
Batista herdamos um programa de MPB na Rádio Atividade<br />
(comunitária) em Taboão da Serra.<br />
Nesse tempo os donos da distribuidora, Paula e Marco Chavão,<br />
ficaram meus amigos, e em boa parte das feiras nas escolas<br />
que a gente fazia eles arrumavam um jeito para que eu fizesse<br />
umas palestras e recitais, o que alavancava um pouco a venda<br />
dos meus livros nas feiras.<br />
50
O nascimento da poesia<br />
51<br />
Foram os tempos mais duros de minha vida, literalmente falando.<br />
Quando tinha dinheiro para condução, passava o dia andando<br />
sem rumo no centro de São Paulo, e só parava na hora do almoço<br />
para comer um churrasquinho grego com suco grátis.<br />
Enquanto a vida me maltratava sem dó nem piedade, quase que<br />
por acidente consegui um emprego de vendedor de vídeo-game<br />
na empresa Tec-Toy, na Lapa. Como para trabalhar de vendedor<br />
precisava de terno e gravata, coisa que eu nunca tive, pedi<br />
emprestado para um amigo, Cláudio Argentoni, que trabalhava<br />
na Caixa Econômica Federal, que além dos sapatos também me<br />
emprestou uma maleta. Grande amigo.<br />
Ser vendedor de porta-em-porta foi uma das melhores e iluminadas<br />
experiências da minha vida. Primeiro porque eu só<br />
andava de ônibus, metrô e trem, o que me permitia continuar<br />
lendo os meus livros à vontade. E segundo porque tive a oportunidade<br />
de conhecer quase todas as quebradas de São Paulo<br />
durante esse um ano e meio que estive lá.<br />
E quase todas as quebradas se pareciam com a minha. Estava<br />
sempre em casa.<br />
Saí de lá, só que agora tinha um pouco de grana, e já morava<br />
com a minha irmã, porque também não era isso que eu estava<br />
procurando. Minha mãe, Maria Mineira, como era conhecida<br />
aqui no Pirajuçara, era muito conhecida de alguns políticos da<br />
cidade, e um dia me apresentou a um que iria se candidatar e<br />
que estava precisando de ajuda. Lá fui eu fazer campanha para<br />
o candidato sem conhecer direito a cidade, só na aba da popularidade<br />
de minha mãe.<br />
Por sorte o candidato se elegeu a vereador e eu fui trabalhar de<br />
assessor de Gabinete na Câmara Municipal de Taboão da Serra,<br />
o que fez com que eu conhecesse profundamente a cidade, e<br />
que me apaixonasse incondicionalmente por ela. Nesse clima<br />
de amor, foi aqui que eu também conheci uma outra paixão,<br />
minha esposa Sônia e minha filha Mariana.
52 <strong>Cooperifa</strong>
O nascimento da poesia<br />
53
Pensamentos vadios,<br />
2ª edição<br />
Por aqui todos me conheciam por poeta, mas a não ser por<br />
publicações de meus poemas nos jornais da região, poucos<br />
conheciam o meu trabalho. Como os anos de dureza não foram<br />
poucos, não tinha sobrado livros nem para arquivo.<br />
Um dia estava conversando com um amigo, Carlão (in memorian),<br />
e ele disse que conseguiria alguns outdoors de presente<br />
para eu divulgar a minha poesia com o patrão dele, sr. José de<br />
Almeida, da Klimes, que na oportunidade me presenteou com<br />
cinco outdoors espalhados pela cidade.<br />
Na época os cartazes foram produzidos pelo Brói, artista plástico<br />
que fazia alguns free-lances publicitários para alguns vereadores<br />
e que mais tarde também iria ser muito importante para<br />
a minha caminhada cultural.<br />
Aproveitando esse clima de cordialidade com a cultura tão<br />
rara no meio empresarial, aproveitei e fiz uma proposta para a<br />
2ª edição do meu livro Pensamentos vadios para o sr. José de<br />
Almeida.<br />
Para minha surpresa, o homem aceitou na hora e disse que queria<br />
ficar com trezentos livros, dos mil que ele havia patrocinado,<br />
para presentear os amigos e clientes. Mais tarde ele ainda me<br />
presenteou com mais de cem livros.<br />
54
O nascimento da poesia<br />
55<br />
Com o apoio mais que cultural, lancei o livro no dia 23 de novembro<br />
de 1999.<br />
Algumas de suas poesias me acompanham até hoje.<br />
Vingança<br />
A vingança<br />
Tem seu lado bom se usada como convém.<br />
Por exemplo:<br />
Se alguém disser que te ama<br />
Vingue-se dele<br />
Ame-o também.<br />
Ninguém tem o direito<br />
de aprisionar um pensamento<br />
por mais vadio que ele seja.<br />
Enquanto eles capitalizam a realidade<br />
Eu socializo meus sonhos.<br />
Eu planto o trigo<br />
Para colher o pão,<br />
Sou pássaro que recusa migalhas.<br />
A produção e ilustrações do livro ficaram por conta do meu<br />
amigo Eduardo Toledo; a revisão, Márcio Amêndola, colaboração<br />
do Brói; e a orelha do livro ficou por conta de um amigo que na<br />
época escrevia na revista Caros amigos, Marco Frenette, que fez<br />
um dos textos – apesar de feito pra mim – mais bonitos sobre<br />
poesia que eu já li na minha vida.<br />
Se liga no texto:<br />
Mais de um poeta ou crítico já afirmou que a poesia é o pão dos<br />
elegidos. E isso não chega a ser mentira, porque ela já foi apenas<br />
isso um dia.<br />
Mas a poesia já tomou tantas formas diferentes, já entrou em<br />
tantos lugares onde era considerada inimiga e já chegou em tantos<br />
corações que sequer suspeitavam de sua existência, que essa<br />
definição elitista tornou-se incompleta.
56 <strong>Cooperifa</strong><br />
Faz tempo que a poesia é democrática. Basta lembrar do bom e<br />
velho samba do morro e dos repentes urbanos do bom e jovem rap<br />
brasileiro. E é justamente nessa democracia cultural que entra<br />
Sérgio <strong>Vaz</strong>, poeta da periferia que atinge o centro de todas as coisas<br />
com sua poesia, num generoso esforço de distribuição mais<br />
igualitária desse importante alimento espiritual.<br />
Ele vive em Taboão da Serra, em São Paulo. Terra de gente simples<br />
que luta por uma vida mais digna apesar de ter o descaso do<br />
Estado contra ela. A mesma história de qualquer periferia, enfim.<br />
Pensando nessa gente – sua gente –, Sérgio <strong>Vaz</strong> produz versos<br />
carregados de toques e sensações tentando aproximar-se de<br />
todos que gastam boa parte de suas vidas correndo atrás do pão<br />
real que não contém poesia, mas fermento para o corpo cansado<br />
de adorar um deus chamado trabalho.<br />
Esse admirável poeta sabe que suas emoções refletem as angústias<br />
e alegrais comuns a todos, e que ninguém pode ser excluído<br />
da dose de magia necessária para suportar a secura da vida que<br />
caracteriza o cotidiano de todos nós.<br />
É crença naquela velha e boa máxima de que “o artista tem de ir<br />
aonde o povo está”. E por acreditar nisso, o autor de Pensamentos<br />
vadios estende sua vadiagem poética até as escolas da periferia<br />
de São Paulo, aonde vai de bom grado declamar seus poemas e<br />
bater um papo com a rapaziada, para mostrar que há coisas mais<br />
importantes na vida do que droga e violência.<br />
Por fim, vale ressaltar que Sérgio <strong>Vaz</strong> – por ter consciência da<br />
importância da simplicidade – é inimigo declarado das complexidades<br />
desnecessárias. Mas não é o caso de interpretar mal seu<br />
trabalho: sua poesia é simples sem ser simplória, é acessível sem<br />
ser leviana.<br />
Ele apura a linguagem até a medida necessária para a sua poesia<br />
poder fluir rumo à sensibilidade do leitor.<br />
Em outras palavras, ele mata a pretensão para a emoção poder<br />
nascer livremente. E nessa luta do poeta contra a arrogância,<br />
quem sai ganhando é você, que tem este livro nas mãos.
O nascimento da poesia<br />
57<br />
No dia do lançamento, o CEMUR – teatro que fica no centro de<br />
Taboão – estava lotado, fisicamente só faltava a minha mãe,<br />
que faleceu em fevereiro daquele ano, mas que de alguma forma<br />
devia estar ali me abençoando, e finalmente tinha me apresentado<br />
como poeta para a minha cidade.
Cartões<br />
postais<br />
Sempre achei que a poesia tem que ganhar as ruas, as praças,<br />
os bares, as escolas, e nunca aceitei que o livro é o único abrigo<br />
do poema. Outra coisa que também me incomodava era essa<br />
coisa do poeta estar sempre no casulo à espera dos poucos que<br />
gostam de poesia.<br />
Pensando nisso, conversei com o Brói e pedi que ele criasse a<br />
arte, e em maio de 1999 lancei uma série de cartões postais poéticos<br />
para divulgar a poesia do meu livro Pensamentos vadios.<br />
Como não tinha muita grana, fiz apenas quatro modelos no início<br />
e três mil cartões para cada poema e saí por aí distribuindo<br />
poesia gratuitamente para quem quisesse receber.<br />
Depois, já com a ajuda de alguns amigos como Ademir Valente<br />
e o Ali Sati, fiz mais nove modelos de cartões, e durante mais<br />
de dois anos devo ter feito mais de cem mil cartões postais, e<br />
na esteira do sucesso dos cartões também fiz marcadores de<br />
páginas. Só na primeira remessa fiz 72 mil marcadores.<br />
Saía pela noite distribuindo em porta de teatro, shows de rap,<br />
barzinhos, e nas palestras nas escolas públicas de São Paulo e<br />
Grande São Paulo. Na época foi uma tremenda febre os cartões.<br />
Até hoje encontro pessoas na rua que dizem que colecionavam<br />
e ainda guardam consigo os postais e os marcadores. Nunca<br />
minha poesia tinha chegado a tantas mãos e sido apreciada, ou<br />
não, por tantas pessoas ao mesmo tempo.<br />
58
O nascimento da poesia<br />
59<br />
Uma vez, num show de rap dos Racionais, no Anhembi, levei<br />
uma bolsa com cartões que pesava mais de dez quilos, o que<br />
dava mais de quatro mil cartões. Eu e o Big Richards, que me<br />
deu uma força na época, distribuímos todos, um a um, desde a<br />
fila da entrada até na saída no final do show. Outro amigo que<br />
ajudou muito a distribuir em bares e shows foi o Didio, guerreiro<br />
do grupo Luance, e que mais tarde iria contribuir muito para o<br />
nascimento da <strong>Cooperifa</strong>.
Hip-hop<br />
e sabedoria de vida<br />
Trabalhava na Câmara Municipal ainda, lá pelos idos de 1998<br />
ou 1999, não me lembro direito, quando conheci o grupo de rap<br />
Sabedoria de vida, apresentado por um amigo chamado Levi.<br />
Quando o Levi os apresentou a mim, eles estavam com um<br />
problema na prefeitura para legalizar um evento na praça Luiz<br />
Gonzaga, aqui em Taboão, e pediu que eu intercedesse a favor<br />
deles. Logo em seguida apresentou Preto Jota e o Jhay, que<br />
estavam na organização do evento. Até então eu era apenas um<br />
admirador da cultura hip- hop, mas por conta deles, não sabia<br />
ainda, ia ficar para sempre envolvido com o movimento.<br />
O evento iria contar com a nata do rap naquele momento. Acho<br />
que era um show pela paz, com a participação do Mano Brown<br />
e tudo o mais. Como sempre as autoridades estavam temerosas<br />
quanto ao evento, mas depois de muita conversa tudo foi liberado,<br />
e o show transcorreu sem um transtorno sequer. Gente pra<br />
caralho. Um sucesso.<br />
Depois do show sobrou a amizade que iria durar, infelizmente,<br />
até o fim da vida deles. O grupo Sabedoria já vinha de uma longa<br />
caminhada de respeito no rap e já tinham aberto vários shows<br />
dos Racionais.<br />
Jhay era o mais extrovertido, por isso logo de cara fomos nos<br />
dando bem; já o Preto Jota era mais bicudo, fazia o tipo que não<br />
60
62 <strong>Cooperifa</strong><br />
gostava de ninguém – mais tarde a máscara iria cair, descobrimos<br />
que ele gostava de todo mundo.<br />
A esta altura eu já estava percorrendo as escolas públicas da<br />
periferia com um projeto chamado “Poesia contra a violência”,<br />
e eles eram os meus convidados mais freqüentes. O projeto<br />
era simples: eu chegava em uma escola, geralmente onde eu<br />
conhecia os professores ou diretores, e me oferecia para falar<br />
e recitar poesia, além de oferecer cartões e marcadores de presente<br />
para os alunos, e sorteios de livros. Tudo gratuitamente.<br />
A convite do meu amigo e professor Edson Lima, comecei o<br />
projeto numa escola chamada Alessandra Bassit, no Jardim<br />
Ângela, Zona Sul, que na época era considerado um dos bairros<br />
mais violentos de São Paulo.<br />
No começo falava sozinho, apenas com a companhia do documentarista<br />
Paco ou do jornalista Edu Toledo. Ambos ajudavam<br />
na divulgação, o que ajudava muito para abrir as portas de<br />
outras escolas. Visitamos mais de trinta.<br />
Às vezes também iam outros integrantes do grupo, como o Tico<br />
e o Fred, mas os alunos piravam mesmo é nos repentes improvisados<br />
do Jhay e nas letras fortes do Preto Jota. Por muitas<br />
vezes passei despercebido com meus poemas.<br />
O bate-papo era sempre sobre a quebrada, respeito e a importância<br />
da informação na vida das pessoas. Falávamos sobre<br />
cidadania e problemas próprios da juventude e do país. As conversas<br />
eram diretas e sem frescuras. Alguns professores estranhavam,<br />
outros simplesmente deliravam com esse encontro da<br />
educação da rua com a da escola. União perfeita.<br />
Daí fui percebendo a força dos artistas da comunidade no fortalecimento<br />
da cidadania da periferia, e que a gente precisava<br />
mudar a, e não mudar da periferia.<br />
Essa força não podia e não devia ser desperdiçada. Então comecei<br />
a chamar mais e mais representantes culturais para esses
O nascimento da poesia<br />
63<br />
encontros nas salas de aula. Uma vez fomos numa escola e<br />
tinha quase vinte artistas para falar com os jovens. O Xis, Diney<br />
do Gueto, Márcio Batista, Brói, entre outros, deram as caras<br />
nesses encontros.<br />
Mas as escolas estavam pequenas para a minha poesia; queria<br />
mais. Como já disse anteriormente, o livro é apenas um lugar<br />
de descanso para a poesia, e quando o poema não está repousando<br />
nas mãos das pessoas ele precisa estar nas ruas, à procura<br />
dos desavisados.<br />
Como já distribuía cartões postais em shows de rap, não custava<br />
nada eles me deixarem subir aos palcos para recitar<br />
minhas poesias. Assim foi feito.<br />
Chegava no show e falava com os organizadores do evento ou<br />
com alguém de algum grupo conhecido – a esta altura, por conta<br />
do Jhay e o Jota, eu já conhecia algumas pessoas – que eu era<br />
poeta, e se podia, nos intervalos dos grupos, recitar uma poesia.<br />
No começo alguns estranhavam essa coisa de poesia sem ritmo<br />
no show, mas a gentileza deles sempre imperava e acabavam<br />
deixando. O público no início também achava estranho, e assim<br />
eu fui peregrinando de show em show nas periferias do Brasil.<br />
Com o tempo era comum nos shows alguém comentar: “o tiozinho<br />
da poesia está aí, deixa ele falar uma poesia”, ou então na<br />
fila distribuindo os cartões alguém falava “recita tal poesia”, ou<br />
“esse cartão eu já tenho, me arruma outro”.<br />
Quando tudo parecia perfeito chega a notícia que Jhay havia<br />
sido assassinado. Até hoje ninguém sabe por quem ou por quê.<br />
Sua morte abalou toda a comunidade do rap e as pessoas do<br />
bairro, onde ele era muito querido.<br />
Vivendo nesse clima de poesia durante todo esse tempo, quase<br />
tinha me esquecido como a periferia também sabe ser cruel<br />
quando quer. E assim, de forma bruta e misteriosa, Jhay partiu,<br />
como num dos seus versos improvisados, só que sem rima e<br />
sem poesia. Saudades.
64 <strong>Cooperifa</strong><br />
Antes de partir ele ainda me presenteou com uma outra amizade:<br />
Mano Brown.<br />
Sem nada para oferecer, fiz uma poesia em sua homenagem no<br />
livro A poesia dos deuses inferiores.<br />
Jhay<br />
Jhay<br />
Nasceu Jaílson<br />
Primeiro filho do seu Roque<br />
Com dona Margarida.<br />
Preto, pobre<br />
Tinha tudo para ser ladrão,<br />
Mas teve Sabedoria de vida<br />
E fez do hip- hop a sua razão.<br />
Como todo pobre que se preza<br />
Também viveu livre,<br />
Apesar de ter a liberdade<br />
provisória<br />
Decretada.<br />
Fora do esquema,<br />
Não podia ter carro<br />
Não podia ter moto<br />
Não podia ter nada,<br />
Com suspeita de ser feliz.<br />
Negro de atitude<br />
Recusou-se a ser escravo<br />
A usar algemas.<br />
Então se transformou em rei<br />
Rei da rima<br />
Rei das ruas<br />
Rei das minas<br />
E construiu seu castelo<br />
Na brecha do sistema.<br />
Quando lhe assaltaram,<br />
Numa dessas vielas<br />
Onde os corvos fazem ninhos,<br />
Deve ter dito:<br />
“...vem, pode vir que tem<br />
mano que é mano não tira<br />
ninguém.” 1<br />
Aí levaram sua moto<br />
Levaram seu sorriso<br />
Tiraram sua vida.<br />
Levaram tudo que ele tinha<br />
E tudo que era nosso.<br />
O Céu?<br />
“Quem procura acha.”<br />
1 Não tira sarro de ninguém.
O nascimento da poesia<br />
65
Cap.02<br />
<strong>Cooperifa</strong>
Cap.02<br />
<strong>Cooperifa</strong>
Poeta<br />
da periferia<br />
O rap tinha entrado de vez na minha vida e a poesia de protesto<br />
novamente fazia sentido em meu trabalho. E vários rappers<br />
que eu tanto admirava já eram meus amigos, e também já era<br />
convidado pessoalmente por eles para recitar em seus shows<br />
e eventos culturais.<br />
Conheci o GOG aqui em Taboão numa rádio comunitária. Presenteei-o<br />
com um livro meu e prometemos ficarmos amigos no<br />
futuro. Assim aconteceu.<br />
Um dia, ouvindo no rádio sua nova música, “Fogo no pavio”, me<br />
emocionei com a homenagem que ele faz a mim e ao Ferréz.<br />
Logo em seguida me convidou para participar, poeticamente<br />
falando, de uma coletânea chamada “Fábrica da vida” com<br />
grupos novos de rap. Daí em diante fiz mais outras participações<br />
em outros grupo: Sabedoria de vida, 509-E, Inquérito,<br />
Periafricania, Versão popular, Di Função, entre outros.<br />
Foi nessa época que eu recebi um convite do empresário do<br />
509-E para fazer uns poemas no presídio de Franco da Rocha<br />
no dia das mães. Além de mim, vários grupos, inclusive os<br />
Racionais, iriam participar do evento. Levei quinhentos cartões<br />
postais, patrocinados pelo jornal Independente, com uma poesia<br />
escrita especialmente para o dia, e que foram distribuídos<br />
de cela em cela para todas as mães presentes.<br />
68
<strong>Cooperifa</strong><br />
69<br />
O rap tinha entrado de vez na minha vida – e eu querendo que a<br />
literatura entrasse de vez na vida dele –, e para se ter uma idéia do<br />
que estou falando já recitei poemas em shows com mais de dez mil<br />
pessoas e já tive o meu próprio camarim. Rsrsrs. Bons tempos!<br />
O rap tinha dado novo gás à minha poesia, e a MPB já não<br />
fazia tanto sentido em minha vida. A poesia só queria saber de<br />
becos e vielas, nada mais. O gás no talo, um dia assisti a uma<br />
entrevista sobre a rádio Rocinha, no Rio de Janeiro, e liguei pra<br />
lá falando do meu trabalho e de conhecer o trabalho deles. O<br />
Jocelino, que era o dono da rádio, topou a idéia e então partimos<br />
pra lá, a maior favela do país.<br />
Chamei o Edu Toledo e o João do Said e partimos pra lá de carro.<br />
Levei uns dois mil cartões e marcadores mais cinqüenta camisetas<br />
com minhas poesias para presentear os amigos do morro.<br />
Não sei como está agora, mas quando eu fui a rádio era a voz da<br />
favela, então o que batia na emissora ecoava nos becos. Quando<br />
o Carlinhos falou que estava sorteando camisetas, o bagulho<br />
ferveu de gente.<br />
Ficamos amigos do Carlinhos Costa, do Gato e do Soca, e na<br />
entrevista prometi que a próxima vez que eu fosse ao Rio iria lançar<br />
meu livro na Rocinha. Logo em seguida, depois de lançar o<br />
livro Pensamentos em Taboão e São Paulo, fui à Rocinha cumprir<br />
a minha palavra.<br />
Dessa vez fui só. Chegando lá, eu e o Jocelino armamos uma<br />
mesa com os livros e estendemos umas camisetas ao lado de<br />
uma banca de jornal, bem no meio do morro, e ficamos ali distribuindo<br />
cartões e oferecendo poesia. A Amélia Nascimento,<br />
que era minha amiga e editora da revista Raça, mandou uma<br />
repórter cobrir o evento.<br />
De repente pára um enorme jipe cheio de turistas italianos bem<br />
em frente à nossa mesa exposta e começa a tirar foto e a perguntar<br />
o que era aquilo de lançar livro na favela. Porra, eles salvaram
70 <strong>Cooperifa</strong><br />
o dia, compraram quase tudo. As camisetas que sobraram dei de<br />
presente para alguns amigos que fiz na hora.<br />
Com dinheiro no bolso, fomos para a antiga praça do Skate<br />
comer peixe e tomar umas cervejas pra comemorar. Dos becos<br />
surgiam pessoas com camisetas com meus poemas escritos;<br />
no bar penduramos alguns cartões, e assim nascia uma amizade<br />
que ia durar para sempre com a Rocinha.<br />
Na revista Raça a matéria saiu com o título “Poeta da periferia”.<br />
O tiozinho da poesia também tinha ficado para trás.
<strong>Cooperifa</strong><br />
71
<strong>Cooperifa</strong><br />
Seguindo na trilha dos cartões postais, as camisetas com poesias,<br />
desenhadas pelo Brói, ajudavam a divulgar mais o meu<br />
trabalho e acabavam com a pouca grana que ganhava. Cheguei<br />
a expor algumas vezes na feira de artesanatos que acontece em<br />
Embu das Artes aos domingos, mas não fui bem sucedido; mas<br />
ainda seguia sustentando a poesia.<br />
Nessas correrias do dia a dia, por acaso encontrei um amigo que<br />
era candidato a vereador na cidade e estava estampando suas<br />
próprias camisetas num determinado lugar e me convidou para<br />
ir até o local onde ele estava locado, uma fábrica desocupada<br />
na BR-116, em Taboão da Serra.<br />
Quando cheguei na fábrica fiquei chapado na hora, com o tamanho<br />
e a estrutura do lugar. O galpão, não sei por que, estava<br />
desocupado mas ainda estava com seus maquinários todos lá,<br />
dando uma atmosfera de guerrilha urbana ao local, que também<br />
era dividido por vários grandes espaços, e milhares de metros<br />
quadrados arborizados pelo lado de fora.<br />
A entrada ficava bem em frente a BR-116, com um enorme portão,<br />
e para chegar até ela era preciso andar quase cem metros por<br />
uma rua de paralelepípedo cercada de árvores que eram sopradas<br />
por um vento tranqüilo, como eu nunca tinha sentido antes.<br />
72
<strong>Cooperifa</strong><br />
73<br />
Nem sei bem o que eu senti na hora; só sei que quase não consegui<br />
prestar atenção na estamparia que ocupava uma parte onde<br />
era o escritório, que se localizava bem na entrada da Rodovia.<br />
Saí de lá diferente de quando tinha entrado, mas o mais estranho<br />
era que eu ainda não sabia o porquê dessa reação, só sabia<br />
que era uma energia positiva. À noite, encontrei o Brói, o Big<br />
Richards e o Gigio, e comentei sobre o lugar e tudo que eu tinha<br />
visto e sentido e que se a gente desse uma trabalhada daria<br />
para fazer um grande evento cultural.<br />
Todos ficaram empolgados e no outro dia o Brói foi lá para<br />
conhecer a fábrica de que eu tanto falava. E é lógico que o baixinho<br />
também pirou no lugar. Meu amigo Luiz, que havia me convidado<br />
para conhecer o lugar, não estava entendendo nada com<br />
a nossa empolgação. Na verdade nem nós mesmos estávamos<br />
entendendo direito, só mais tarde é que a ficha iria cair.<br />
Na segunda visita disse ao Brói:<br />
— Aqui dá para a gente fazer tipo a semana de arte moderna.<br />
— Como assim? – respondeu o baixinho.<br />
— Porra malandro, um evento multi-cultural, usando todos os<br />
espaços ao mesmo tempo. Vamos encher isso aqui de artistas<br />
de tudo quanto é quebrada.<br />
E fui explicando minha idéia passo a passo, já viajando nas possibilidades<br />
de juntar todos os artistas sem-palco da região num<br />
único evento, num único dia. Bom, a gente estava cheio de planos,<br />
mas quase íamos esquecendo de pedir autorização ao Luiz,<br />
que estava responsável pela fábrica. Nosso camarada entendeu<br />
na hora a nossa idéia e disse que estava liberado para o que<br />
a gente queria fazer.<br />
Tínhamos um tremendo lugar para divulgar os trabalhos de<br />
artistas da periferia em nossas mãos e nenhum tostão em nossos<br />
bolsos. Não ia ser nada fácil.
74 <strong>Cooperifa</strong>
<strong>Cooperifa</strong><br />
75<br />
À noite nos encontramos no bar do Portuga, eu, Brói, Big, Gigio<br />
e a Viviane – se não me falha a memória –, para discutir o que<br />
a gente iria fazer e como iria ser feito. E ficou decidido que ia<br />
ser um evento num domingo com uma programação para o dia<br />
inteiro com poesia, música (rap, MPB, reggae e samba), teatro,<br />
exposições, capoeira, lançamento de livros, dança (teve até<br />
desfile de cabelos afros no dia). Por conta principalmente do<br />
hip-hop, já estavam acontecendo na periferia vários eventos; a<br />
gente só queria fazer um que reunisse todo mundo.<br />
Conseguimos arrumar o som na prefeitura, o que vamos e convenhamos<br />
era o mais importante no momento, e começamos a<br />
convidar todo mundo que a gente conhecia ligado a algum grupo<br />
ou movimento cultural para participar e colaborar com o evento,<br />
que não teria cachê porque a entrada seria grátis também.<br />
Corre dali, corre daqui, e a gente fazendo tudo com o dinheiro<br />
do nosso próprio bolso, colocamos só duas faixas falando do<br />
evento e não tínhamos verba nem para flyers ou cartazes; aliás,<br />
não tínhamos nem nome para o evento.<br />
— Peraí, e o nome do bagulho? – alguém perguntou.<br />
Lembro que estava conversando com o Big sobre isso, a importância<br />
de um nome bem legal, e que marcasse para sempre esse<br />
dia (não sabíamos que teriam outros). O Big é carioca, e quando<br />
ele se referia à quebrada ele falava que “a perifa isso”, “a perifa”<br />
aquilo, e eu sempre falando essa coisa de um artista cooperar<br />
com o outro, e coisa e tal. De repente:<br />
— <strong>Cooperifa</strong>! – gritei.<br />
Nome dado, o Eduardo Toledo, que é jornalista e ia expor fotografias<br />
no dia, conseguiu colocar o anúncio do evento em alguns<br />
jornais locais e uma pequena chamada no jornal Folha de São<br />
Paulo, caderno Folha teen.<br />
Estava tudo pronto para o grande dia, mas faltava só uma coisa<br />
que eu achei que era muito importante: um manifesto! Escrevi
76 <strong>Cooperifa</strong>
<strong>Cooperifa</strong><br />
77
78 <strong>Cooperifa</strong>
<strong>Cooperifa</strong><br />
79
80 <strong>Cooperifa</strong><br />
um manifesto e escrevi um texto especialmente para os jornais<br />
convocando todos para o grande dia.<br />
Convidamos gente pra caramba, e como não tinha bar por perto,<br />
a Bia e o Claudião se encarregaram de uma lanchonete improvisada<br />
com cachorro-quente, refrigerante e cerveja, que abasteceu<br />
toda a rapaziada presente.<br />
Tudo pronto. A ansiedade tomou conta da gente e se eu não<br />
esqueci ninguém os guerreiros da fábrica que se apresentaram<br />
no dia ajudando a criar a <strong>Cooperifa</strong> foram: eu que lancei o livro<br />
Pensamentos vadios, o Brói que expôs suas telas, Big com seus<br />
discos e livros, Edu com fotografias, e os grupos de teatro Tesol<br />
e a UTT (União Teatral Taboanense).<br />
Convidamos o Ferréz, que tinha acabado de lançar o livro e<br />
estava fazendo um baita sucesso nas livrarias e nas quebradas,<br />
e ele aceitou de pronto lançar o livro no dia.<br />
O jornalista Marco Frenette da revista Caros amigos também<br />
lançou o livro A importância da cor da pele, além do escritor<br />
Antônio Carlos e o poeta Élmantos, entre outros.<br />
A música ficou por conta dos grupos Herros Umanos, Sabedoria<br />
de vida, Diagnóstico, Marco Zero, Luance e banda Varal.<br />
A cabeleireira Luci fez um desfile de cabelos afros; a capoeira<br />
ficou a cargo do grupo Irmãos Guerreiros de Angola; Alan Leão<br />
e Paulo Brito fizeram Clow; Carozzi, Ed e Joselito fizeram uns<br />
esquetes teatrais.<br />
Os grafites ficaram por conta do Cobra, e a dança foi representada<br />
pelo grupo Espírito de Zumbi.<br />
Para falar bem a verdade, com a divulgação mínima, tinha mais<br />
gente se apresentando do que assistindo e o público não foi bem<br />
o esperado, e conforme nós mesmos, por ali passaram umas mil<br />
pessoas, mas ficou a impressão de um milhão.
<strong>Cooperifa</strong><br />
81<br />
Para se ter uma idéia, no segundo evento na fábrica encerramos<br />
com o rapper GOG, de Brasília, que foi apresentado pelo Paulo<br />
Brown, e ao final não tinha mais do que quarenta pessoas assistindo<br />
um dos melhores shows de rap que a gente já viu.<br />
Depois fizemos um terceiro encontro no estacionamento no<br />
Centro da cidade, no dia que caiu uma tremenda chuva, e pôs um<br />
fim, por ora, nos nossos sonhos. Meu amigo Luiz já não estava<br />
mais na fábrica e perdemos o espaço que havíamos cobiçado<br />
como se fosse nosso.<br />
Ao final das três batalhas estávamos todos exaustos e felizes,<br />
com a certeza que uma semente tinha sido plantada, para o<br />
resto de nossas vidas. Ficou também a certeza que teria que ser<br />
juntos, e não separados como queriam alguns, que a gente ia<br />
atingir algum objetivo na construção de uma cultura que identificasse<br />
e representasse a periferia.<br />
Ficou claro para todos nós que os inimigos responsáveis pela<br />
nossa fome cultural tinham que ser combatidos, só que agora em<br />
bando, como gafanhotos na lavoura. E que a culpa dessa nossa<br />
pobreza de arte e cultura era do sistema, e do marasmo que todos<br />
nós, até então, éramos cúmplices, e fingíamos não saber.<br />
Na fábrica onde nasceu a <strong>Cooperifa</strong> e onde eu também renasci,<br />
descobri uma outra coisa muito importante na minha vida: que<br />
se a gente quisesse realmente alguma coisa, era só pegar, porque<br />
tudo era nosso.<br />
O centro, ainda que discretamente, começava a mudar de lugar.
O<br />
man<br />
festo<br />
82
<strong>Cooperifa</strong><br />
83<br />
i<br />
É PRECISO SUGAR DA ARTE<br />
UM NOVO TIPO DE ARTISTA: O ARTISTA CIDADÃO.<br />
AQUELE QUE NA SUA ARTE<br />
NÃO REVOLUCIONA O MUNDO,<br />
MAS TAMBÉM NÃO COMPACTUA COM<br />
A MEDIOCRIDADE<br />
QUE IMBECILIZA UM POVO<br />
DESPROVIDO DE OPORTUNIDADES.<br />
UM ARTISTA A SERVIÇO DA COMUNIDADE, DO PAÍS.<br />
QUE ARMADO DA VERDADE, POR SI SÓ,<br />
EXERCITA A REVOLUÇÃO.
Marco Pezão<br />
e a Quinta Maldita<br />
Quando conheci o poeta Marco Pezão em uma rádio comunitária<br />
aqui em Taboão, a convite do David da Silva, que tinha um<br />
programa de esportes e notícias da região, mal sabia que eu já<br />
o conhecia.<br />
Meses antes havia sido convidado para ser jurado em um concurso<br />
de poesia do mapa cultural da cidade e lembro que fiquei<br />
muito emocionado com um poema chamado “Mina da periferia”,<br />
defendido por um cara com nome italiano de Marco Iadoccico.<br />
Votei no poema assim que acabei de ler, o que gerou muita discussão<br />
com os outros três jurados que também gostaram muito,<br />
mas que defendiam outros títulos.<br />
O poeta Marco Iadoccico venceu o concurso, e no programa de<br />
rádio é que eu descobri que este poeta também respondia pelo<br />
nome de Marco Pezão, o poeta da bola. Ganhou esse nome por<br />
conta do seu trabalho jornalístico com o futebol de várzea, e<br />
também era boleiro das antigas.<br />
Enquanto eu dava a entrevista, o Pezão, que era seu assistente<br />
na rádio, fazia uma leitura dos meus poemas. Lembro de ter<br />
ficado impressionado com a sua voz firme e bem postada, o que<br />
fazia com que os poemas ficassem muito melhor do que pareciam<br />
ser.<br />
84
<strong>Cooperifa</strong><br />
85<br />
O repórter Pezão também tem formação teatral, por isso no dia<br />
que nós o ouvimos recitar, a poesia ficou ainda mais bonita, e<br />
então tivemos a certeza que votamos na pessoa certa para o<br />
primeiro lugar.<br />
Passada a entrevista, começamos a nos reunir, despretensiosamente,<br />
às quintas-feiras, com uma turma de amigos que na<br />
maioria era de poetas e a turma do teatro, no bar do Portuga,<br />
que fica ao lado do CEMUR, espaço cultural da cidade.<br />
Entre uma cerveja e outra não sei quem teve a idéia de pedir<br />
que alguém recitasse uma poesia, e depois outro e depois mais<br />
outro, e acabou que foi virando um hábito a gente se reunir às<br />
quintas-feiras para beber, e depois recitar poesia. Não era um<br />
sarau, a gente ia mesmo para beber e discutir cultura, e sem<br />
que ninguém dissesse nada, estava criada assim, sem direitos<br />
e deveres, a quinta maldita.<br />
Aos poucos algumas pessoas foram aparecendo às quintas-feiras<br />
no bar, uns para beber, outros para recitar, e outros para ouvir.<br />
A maioria dos textos lidos eram de autores consagrados, acho<br />
que somente eu e o Pezão que tínhamos poemas próprios.<br />
Lembro até uma pré-estréia que o grupo Artmanha fez numa<br />
quinta dessas com a peça que depois seria um grande sucesso<br />
no estado de São Paulo, “Soltando o verbo”, apresentada pelos<br />
atores Sérgio Carozzi, Ed Ferraz e Joselito Gazza.<br />
A quinta maldita seguia sem nenhuma pretensão de ser nada,<br />
apenas um simples encontro de amigos, por isso era muito gostoso<br />
freqüentar e por isso também não durou muito tempo.<br />
Não sei bem por que, e como acabou a nossa primavera etílica e<br />
poética, mas eu e o Pezão descobrimos que aquela quinta-feira<br />
maldita estava grávida de um outro movimento, e esse embrião<br />
ia dar à luz a qualquer momento, só que desta vez, num outro<br />
berço e numa quarta-feira.
86 <strong>Cooperifa</strong>
<strong>Cooperifa</strong><br />
87<br />
Trechos do poema “Mina da periferia”, de Marco Pezão<br />
É noite...<br />
Noite que dá arrepio,<br />
Só de olhar a cara do tempo.<br />
A Saudade é água’ardente.<br />
Cachaça’alma no espaço me acalenta...<br />
A fantasia e o real que tua presença traz.<br />
Eu sinto o frio da solidão,<br />
E é por isso que o pensamento goteja,<br />
Como pingos de chuva,<br />
No caminho que me leva à tua morada.<br />
(...)<br />
(...)<br />
Chora minha cuíca<br />
Quando meu sonho invade teu cobertor...<br />
E teu corpo por mim amado<br />
Se enrola feito caracol,<br />
E meus braços se tornam cachecol<br />
O vento frio passa por entre brechas e vãos...<br />
É úmido o ar, tomo os teus lábios,<br />
E penso apenas em te beijar.<br />
(...)<br />
Mina explode atômica em consciências mil...<br />
Dança parceira da noite:<br />
Samba, rap, pagode, rock...<br />
No balanço do teu corpo, me ligo na idéia;<br />
Mina do Brasil.<br />
Mina que não é ouro nem prata;<br />
De gente, minha gente! Mina de muita gente<br />
Que ainda não se tocou o que a mina é.<br />
(...)<br />
(...)<br />
Você, minha mina da periferia!
Sarau da<br />
<strong>Cooperifa</strong><br />
Quando a Quinta Maldita deixou de acontecer, ficou a certeza de<br />
que era necessário criarmos um espaço para os nossos encontros.<br />
Um local onde poetas e não-poetas pudessem comungar a<br />
palavra como quem reparte o pão entre os necessitados, e nós<br />
éramos esses necessitados.<br />
Com uma idéia de local, o poeta Marco Pezão conheceu o Bodão,<br />
que era sócio da Doriana e do Renatinho num bar no Jardim<br />
Maria Rosa, e explicou que a gente estava afim de um local para<br />
realizar um sarau de poesia. Como ele tinha uma experiência<br />
com teatro, achou interessante a idéia e o Pé marcou uma hora<br />
pra gente conversar sobre o dia.<br />
Por conta da sua experiência anterior com teatro, o dono do<br />
bar aceitou na hora e decidimos que os encontros seriam às<br />
quartas-feiras porque era um dia morto na semana e só iria<br />
mesmo quem realmente estivesse interessado em poesia; outra<br />
coisa que ficou firmado entre nós é que o recital aconteceria de<br />
quinze em 15 dias.<br />
Enquanto discutíamos sobre o assunto surgiu a palavra sarau,<br />
e ninguém sabe por que, até porque a palavra era estranha a<br />
todos nós. Acho que todos já tinham ouvido esta palavra, mas<br />
conhecer o significado a fundo, acho que ninguém conhecia.<br />
Outro dia eu li que no Brasil, entre o final do século XIX e no início<br />
do século XX, o sarau era o evento mais elegante da sociedade e<br />
88
<strong>Cooperifa</strong><br />
89<br />
só os seres iluminados que tinham gosto por música e literatura<br />
e que não precisavam se preocupar com dinheiro, podiam se dar<br />
ao luxo de promovê-lo em seus amplos e belos salões.<br />
Li também que um sarau que se prezasse tinha muito champanhe<br />
importado, quitutes caprichados que saíam quentinhos da<br />
cozinha trazidos por vários serviçais, um belo piano de cauda e<br />
músicos e poetas consagrados, prontos para exibir sua arte.<br />
Esses eventos eram chamados de “salões” – muito provavelmente<br />
pelo ambiente que ocupavam. Chegaram como tradição<br />
importada da Família Real, em 1808, e imediatamente ganharam<br />
terreno no Rio de Janeiro. Era o local onde se reunia a Corte,<br />
e onde também deveriam acontecer os encontros para regar o<br />
cérebro da aristocracia e dos nativos que sonhavam ganhar um<br />
certo ar europeu.<br />
São Paulo só entrou no circuito mais tarde, quando perdeu os<br />
ares provincianos e seus ricos fazendeiros de café começaram<br />
a fazer de tudo para afrancesarem-se. Outros salões menos<br />
ricos (ou esnobes), mas sempre elitistas, também apareceram<br />
na cidade naquele período.<br />
A partir dos anos 1940, a dinâmica da “elite culta” mudou e<br />
os ricos saraus foram escasseando. A organização desse tipo<br />
de evento mudou de mãos e coube aos intelectuais universitários<br />
realizá-los – em bares, porões, praças, teatros, geralmente<br />
espaços underground esfumaçados e com convidados<br />
com o copo cheio de bebida. As drogas também aumentavam a<br />
viagem literária.<br />
Sem saber de nada disso, eu e o Pezão, numa fria noite de outubro<br />
de 2001, criamos na senzala moderna chamada periferia o Sarau<br />
da <strong>Cooperifa</strong>, movimento que anos mais tarde iria se tornar um<br />
dos maiores e mais respeitados quilombos culturais deste país.
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<strong>Cooperifa</strong><br />
91
O primeiro<br />
sarau<br />
O primeiro sarau aconteceu mais ou menos com as pessoas que<br />
andavam com a gente no momento. Lembro de ligar para várias<br />
pessoas e elas não toparem, primeiro porque não entendiam<br />
muito bem o que a gente queria, e segundo porque era numa<br />
quarta-feira, dia morto para as baladas.<br />
Então só apareceram os amigos e poetas mais próximos: eu,<br />
Pezão, Élmantos, um poeta de Embu, Rose (musa da <strong>Cooperifa</strong>),<br />
Helena, Régis, Paulo Brito, Sérgio Carozzi, Erton de Morais,<br />
Sônia e Mariana (esposa e filha), Otília, Giba, Aladim, Tavinho<br />
e Rafael do Cavaco. Não tinha quase ninguém, nem para ouvir<br />
nem para falar; lembro que cada poeta leu mais de dez poesias<br />
durante o Sarau.<br />
Começou uma 20:00h e nós levamos bravamente até mais ou<br />
menos umas 21:30h, quando a maioria, já cheia de alegria artificial,<br />
pedia pelo fim do evento. Como o Sarau ia ser quinzenal<br />
e naquele quase não tinha ido ninguém, só pra contrariar dissemos<br />
que o Sarau tinha de acontecer todas às quartas-feiras,<br />
acontecesse o que acontecesse. Assim é até hoje.<br />
Com o bar quase vazio, lembro que não ficamos muito tristes,<br />
mas muito decepcionados com os que não puderam aparecer<br />
e dar a força que precisávamos, já que tantos tinham achado<br />
ótima a nossa idéia do encontro de poetas.<br />
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<strong>Cooperifa</strong><br />
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<strong>Cooperifa</strong><br />
95<br />
Depois do Sarau ficamos ali, tentando um encher a bola do<br />
outro, e a única coisa que conseguimos encher foi as nossas<br />
caras. A gente também não tinha muito tempo pra chorar; se<br />
a gente tinha se apossado de um movimento aristocrático e<br />
levado para a quebrada, nós tínhamos que dar a nossa cara pra<br />
ele, então começamos a dar a cara pra bater.<br />
O Pezão divulgava nos jornais da região, eu ligava para todo<br />
mundo que eu conhecia e os intimava para comparecerem, e<br />
rogava praga naqueles que não podiam ir. E assim foi indo.<br />
Um dia aparecia um, depois outro, mais dois, e o Pezão no jornal,<br />
eu no telefone, as meninas divulgando entre os amigos,<br />
poetas e mais poetas aparecendo, gente da quebrada, amigos<br />
atendendo os meus pedidos, gente que passava na rua e via o<br />
movimento e entrava para conhecer, o amigo do amigo, o bocaa-boca,<br />
e quando a gente menos esperava, o Bar do Garajão já<br />
tinha quase cem pessoas freqüentando o Sarau.<br />
Por ser o Garajão um bar pequeno, essas quase cem pessoas<br />
para nós eram uma multidão, que se espalhava em três pequenos<br />
ambientes: as mesas em frente ao microfone, o bar que<br />
ficava ao lado, e em frente ao bar, onde muitas vezes a muvuca<br />
se formava.<br />
O Sarau foi se firmando como movimento na quebrada, e sem<br />
que a gente exigisse as poesias românticas foram aos poucos<br />
sendo substituídas pelos poemas com a temática social. E os<br />
novos poetas iam chegando, e aos poucos assimilando a pegada<br />
forte das quartas-feiras poéticas na <strong>Cooperifa</strong>.<br />
O Kennya, que hoje faz parte de um grupo de rap e foi um dos primeiros<br />
a chegar no Sarau, quando apareceu lá no Garajão quase<br />
não falava nada, a tal ponto de quando Pezão ouviu seu nome<br />
achou que ele era queniano mesmo, lá da África. Aos poucos ele<br />
foi se soltando e liberando da caneta uma poesia linda e cheia<br />
de força. Hoje fala mais que todo mundo ao mesmo tempo.
96 <strong>Cooperifa</strong><br />
As pessoas iam chegando de mansinho só para olhar e quando<br />
menos esperavam eram seduzidas pela poesia. Foi assim com a<br />
Samantha, a Pilar. O Helber Ladislau, que a princípio só assistia<br />
e um dia pediu para recitar “Paulo César Pinheiro” – se não me<br />
engano –, e não faltou mais aos Saraus.<br />
A Rose (musa) não recitava, só participava e dava uma força,<br />
mas ainda nem sequer pensava em ser poeta. O Márcio Batista,<br />
amigo de mais trinta anos, nunca havia recitado. Ele era subdiretor<br />
de uma escola noturna, e me lembro que ele chegou no<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong> uns três meses depois que a gente já estava<br />
lá; pediu para ler uma poesia, e tremia que quase nem conseguia<br />
ler o que estava no papel. Hoje em dia é um poeta completo.<br />
Como esquecer os acordes do grupo de samba Papo de família,<br />
que nos acompanharam por tanto tempo? O Preto Jota,<br />
do Sabedoria de vida, que foi um dos grandes guerreiros da<br />
<strong>Cooperifa</strong>, chegou cheio de marra com o seu rap, mas aos poucos<br />
suas letras foram ganhando a poesia necessária para uma<br />
música forte, e ao mesmo tempo bela e cheia de revolta.<br />
O poeta Allan da Rosa, que nos conhecemos lá no bar do Portuga,<br />
viu anunciado na faixa quando a gente fez um Sarau, e ele trocou<br />
uma idéia com o Pezão para poder participar. Nem sequer<br />
sonhava escrever seu próprio livro, chegou lá de mansinho e até<br />
hoje ele faz parte do movimento. Fiquei feliz quando ele escreveu<br />
seu primeiro livro, Vão,e me convidou para fazer a orelha.<br />
O pessoal do grupo 2hO (Isaac, Nenê e Milton), o grupo Fatos,<br />
Ridson Dugueto, Gato Preto e uma rapaziada boa que hoje está<br />
por aí vivendo de arte e poesia. E sem contar aqueles que iam e<br />
vinham o tempo todo.<br />
O Garajão fervia e a gente tinha descoberto uma coisa tão ou<br />
mais importante quanto que o livro: a palavra. Por conta dessa<br />
palavra as pessoas foram seduzidas pelo livro.
<strong>Cooperifa</strong><br />
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101
Mano<br />
Brown<br />
Toda vez que eu encontrava o Mano Brown dos Racionais MCs,<br />
eu o convidava para ir ao sarau. Cheio de compromissos, nunca<br />
dava certo para ele aparecer. Ele me convidou para assistir ao<br />
show de lançamento do CD “Nada como um dia após o outro<br />
dia”, que aconteceu lá no Brás, Centro de São Paulo. Aceitei o<br />
convite mas disse que só ia se ele fosse no sarau da <strong>Cooperifa</strong>,<br />
e assim ficou combinado.<br />
No dia do show o galpão estava lotado de gente para ver o novo<br />
CD dos Racionais, sucesso total. Milhares de pessoas. Ao término<br />
do show entrei no camarim que estava lotado de convidados<br />
e os cumprimentei pelo belo show, e lembrei ao Brown que<br />
agora era ele quem estava devendo a visita.<br />
Falamos durante a semana e ficou certo a sua visita ao Sarau,<br />
mas só que eu não disse para todo mundo, até porque eu não tinha<br />
muita certeza de que ele iria, não queria fazer papel de tolo.<br />
Mas aí o Sarau está rolando e de repente alguém diz que o Brown<br />
havia chegado. Agitação total no Sarau, e os telefones celulares<br />
começaram a ser acionados com as pessoas convidando outras<br />
para ver o líder dos Racionais no Sarau. Lembro que no dia e na<br />
hora que ele chegou tinha em média umas sessenta pessoas, e<br />
depois de meia hora já tinha mais de cem disputando cadeiras<br />
vazias.<br />
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<strong>Cooperifa</strong><br />
103<br />
Discreto como sempre, chegou com a turma do Rosana Bronx,<br />
o Cascão e o Véio do Trilha Sonora do Gueto. Depois o poeta do<br />
Gueto também foi ao microfone e também deu uma idéia sobre<br />
a importância dos nossos encontros.<br />
Nesse dia ficamos até a madrugada debatendo assuntos pertinentes<br />
à periferia, à poesia e à música. Brown voltou outras<br />
vezes e ajudou a divulgar e dar credibilidade ao nosso movimento,<br />
que não parava de crescer.<br />
Daria um filme.
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105
Marcelo<br />
Rubens Paiva<br />
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> já estava bem conhecido na região por<br />
conta de várias pessoas que passavam por lá e saíam propagando<br />
nossas palavras. O GOG, rapper de Brasília que já vinha<br />
desde a fábrica; Afro-X, que acabara de sair do Carandiru e foi lá<br />
com a sua ex-esposa Simony; Gaspar do Záfrica que agora é um<br />
Cooperiférico total, entre tantos outros.<br />
Mas um que também ficou marcado foi a presença do escritor e<br />
jornalista Marcelo Rubens Paiva, que um dia apareceu por lá para<br />
assistir e fazer uma matéria para o jornal Folha de São Paulo.<br />
Quando falei com ele ao telefone quase nem acreditei que ele<br />
viria, já que ele era um cara bem conhecido e tal, e principalmente<br />
porque não era ligado à periferia. Lembro que ele chegou<br />
no horário combinado, em sua van toda adaptada, o que deixou<br />
frustradas algumas pessoas que queriam ajudá-lo.<br />
Quando chegou, fizemos uma roda em torno dele e começamos<br />
um bate-papo sobre o Sarau, sobre a gente, poesia e tudo o<br />
mais; ele foi anotando e se dizia ansioso para assistir ao sarau.<br />
Nesta quarta não tinha muita gente porque estava acontecendo<br />
um jogo do Corinthias e River Plate pela Copa Libertadores,<br />
inclusive ele, corinthiano roxo, saiu correndo para ver o jogo.<br />
Antes de ir, assistiu um dos saraus mais bacanas que a gente<br />
fez; estava todo mundo inspirado e a poesia saía com uma luminosidade<br />
indescritível.<br />
106
<strong>Cooperifa</strong><br />
107<br />
Ele, escritor, soube captar esse momento, e fez uma matéria de<br />
quase meia página na Folha de São Paulo que ajudou a construir<br />
ainda mais a nossa imagem de Movimento Cultural que a gente<br />
precisava, e dando uma moral danada para o nosso Quilombo.<br />
Se liga na matéria:
108 <strong>Cooperifa</strong><br />
Sarau transforma boteco da periferia de SP em centro cultural<br />
Marcelo Rubens Paiva, da Folha de S. Paulo / 11.12.2002<br />
“O boteco é o centro cultural da periferia”, diz o poeta Sérgio <strong>Vaz</strong>.<br />
A bússola aponta para a Zona Sul.<br />
E é num deles, o Garajão, no Jardim Maria Rosa, que nas noites de<br />
quarta juntam-se poetas experientes, iniciantes e uma média de<br />
cem pessoas de várias quebradas.<br />
O público senta em torno de mesas regadas à cerveja, para ouvir<br />
o grito semântico da perifa: poemas de denúncia social, exaltação<br />
à consciência negra e, claro, amor. Mano Brown, dos Racionais, é<br />
presença constante. Afro-X e Simony já apareceram por lá.<br />
Organizados por <strong>Vaz</strong>, da <strong>Cooperifa</strong> (Cooperativa dos Artistas da<br />
Periferia), os saraus atraem expoentes da antiga comunidade e<br />
novos poetas, como os adolescentes Kennya e Pelezinho.<br />
Os dois pequenos trutas apareceram como ouvintes, descobriram<br />
um dom, e, semanalmente, lêem um novo trabalho, escrito à mão<br />
em folhas de caderno. Ambos são tímidos, mas não relutam ao<br />
serem chamados para declamar.<br />
“Invadimos o galpão de uma fábrica, mas tomaram ele da gente,<br />
e começamos a fazer saraus num boteco lá em cima. Até fizemos<br />
uma peça, os caras bebendo cachaça, e a peça rolando”, diz <strong>Vaz</strong>.<br />
“Os artistas da periferia sabem: ou você cava o espaço ou fica<br />
sem nada. Já fui em saraus em outras quebradas e saquei que<br />
precisávamos fazer o mesmo”, explica.<br />
A balada dura até meia-noite. Como os saraus têm atraído muita<br />
gente, os organizadores levam poemas de poetas consagrados,<br />
de Maiakovski a Leminski, para os que aparecem de mãos vazias.<br />
“Isto aqui está virando um aparelho cultural, cada um fala de seu<br />
trabalho. Virou um foco de resistência dentro da periferia. Não<br />
adianta agitar sexta e sábado e, na segunda, voltar a ser medíocre.<br />
Temos que atacar”, diz <strong>Vaz</strong>.
<strong>Cooperifa</strong><br />
109<br />
Aqui, o silêncio é uma prece. No primeiro dia, foi um choque, acharam<br />
que era pagodão, mas viram o silêncio. Hoje, há uma repercussão<br />
dentro da cidade”, diz Bodão, um dos sócios do bar.<br />
Não se trata de mais um braço do movimento hip-hop, que faz<br />
parte tanto quanto o samba.<br />
“Não queremos o rótulo do hip-hop. Isto aqui é uma confraria<br />
de artistas. Teve dia em que a entrada era um livro usado. Aqui,<br />
somos todos independentes. O boteco dá combustível para a<br />
criação”, conta <strong>Vaz</strong>, autor de Pensamentos vadios e criador de<br />
uma biblioteca comunitária.<br />
Ao ler um dos manuscritos de Pelezinho, estranho a frase: “Quando<br />
um VL aperta o gatilho, o Lúcifer te conduz”. Perguntei ao pequeno<br />
poeta o que significa “VL”. Ele me olha como se eu tivesse perguntado<br />
a um playboy o que é açaí. “VL é vida louca”, respondeu. E o que<br />
é vida louca? Ele não respondeu.<br />
“Tem gente que escreve em casa, para desabafar as mágoas. Viu o<br />
espaço aberto, pediu licença, declamou um poema, e, na semana<br />
seguinte, foi convocado para vir. Estamos resgatando-os para<br />
outro caminho”, explica o poeta e artista plástico Binho, que tem<br />
um bar em Campo Limpo.<br />
Binho faz intervenções em postes pela cidade, o que chama de<br />
“Postesia”. São placas com pequenos poemas, como: “O tiro é no<br />
nariz, mas é no peito que dói”. “Minha idéia era fazer poesia em<br />
postes, reciclando material de campanha política. Depois, passei<br />
a pintar e colocar nos postes, com tinta doada. Não sei ainda o<br />
que é meu trabalho. Vêm idéias na cabeça, a gente põe.”<br />
A prefeitura é o principal obstáculo. Ele as coloca à noite, e ela as<br />
recolhe de dia. “A revolução tem que começar praticando, exercitando,<br />
sem muita conversa”, diz.<br />
Ele que abriu o sarau na última quarta, declamando: “No lugar<br />
em que nasci, brincava que era tudo nosso, tinham o campinho<br />
e os terrenos baldios, era o nosso território. Já foi interior, hoje,<br />
periferia, com as casas cruas. A cerca virou muro, óbvio. A cidade<br />
cresce, o muro cresce. Vieram os prédios, as delegacias.
110 <strong>Cooperifa</strong>
<strong>Cooperifa</strong><br />
111<br />
Hoje, pago imposto dos impostores. Também cresci, fiquei grande,<br />
não caibo dentro de mim. E tão solitário, sou meu próprio vizinho”.<br />
Élmantos, 37, faz performances, como “Os Milionários Malditos,<br />
Fome e os Pobres Mendigos”.<br />
“Nasci na Bahia, na Fazenda Cabaceiras, onde nasceu Castro<br />
Alves. Tenho trabalho inspirado na cultura afro, na fome, miséria,<br />
pobreza. Meus trabalhos são mais ligados à arte social”, explica.<br />
“É na periferia que existem os melhores artistas. Não é porque<br />
somos pobres, humildes, largados e jogados que somos miseráveis.<br />
Aqui tem arte, lazer”, conta.<br />
Pezão é fotógrafo do jornal local, O Independente. Ele cobre futebol<br />
de várzea. É poeta há muitos anos, com muita coisa guardada.<br />
Não tem livro publicado.<br />
“Gosto de ler outros artistas, como Castro Alves. Não necessariamente<br />
tem a ver com os dramas da periferia. Nesta noite, vou ler<br />
Solano Trindade, poeta pernambucano que veio morar aqui, em<br />
Embu, na década de 1960”, diz.<br />
Em seguida, ele sobe e declama “Bolinha de Gude”, de Trindade.<br />
Escrito há mais de três décadas, o poema fala de moleques que<br />
viram assaltantes. Hoje, poderiam estar declamando.
Cap.03<br />
Literatura, pão e poesia
Cap.03<br />
Literatura, pão e poesia
O sarau andava a mil, e sem que percebêssemos a poesia fazia<br />
parte do cotidiano de muita gente, que antes sequer sabia o<br />
seu nome. Àquela altura não fazia o menor sentido guardar os<br />
poemas nas gavetas; as pessoas devagarzinho foram descobrindo<br />
isso e a cada dia chegava mais e mais gente com poemas<br />
nas mãos.<br />
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> foi se transformando no movimento dos<br />
sem-palco, e todo aquele ou aquela que se sentia injustiçado<br />
pelo pão da literatura, nos procuravam – fugindo do marasmo<br />
– às quartas-feiras para se juntar ao nosso quilombo: poetas<br />
amadores, funcionários públicos, desempregados, aposentados,<br />
donas de casa, advogados, comerciantes, enfermeiras, crianças<br />
etc. Principalmente as pessoas simples, a nossa gente.<br />
Essa gente que durante muito tempo foi e é moída dentro dos<br />
ônibus lotados ao ir e voltar do trabalho e cuja única dose de<br />
lazer e cultura eram as pílulas anestésicas da televisão, agora<br />
tinha um dia para comungar a palavra, uma palavra que a gente<br />
não tinha e que agora era a nossa voz.<br />
No Garajão as palavras “guerreiros” e “guerreiras” a cada dia<br />
ganhavam mais força, e a gente que não havia inventado a poesia,<br />
estava inventando um novo jeito de amar a literatura, o nosso<br />
jeito. E a gente que não tinha inventado a paz, estava querendo<br />
114
Literatura, pão e poesia<br />
115<br />
guerra. E a gente que não tinha inventado o revólver que mata a<br />
nossa gente também inventou um novo tipo de arma, a caneta.<br />
O nome da <strong>Cooperifa</strong> começou a percorrer as quebradas e à<br />
boca pequena dizia-se que havia um lugar onde qualquer um<br />
podia chegar para ouvir e falar poesia e que só tinha apenas<br />
uma regra: o silêncio é uma prece!<br />
A periferia, que sempre foi lugar de gente trabalhadora e supostamente<br />
ninho da violência, como querem as autoridades nos<br />
fazer acreditar, ganhava, às custas de sua própria dor e da sua<br />
própria geografia, uma nova poesia, a poesia das ruas.<br />
Uma poesia única, que nasce do mesmo barraco de Carolina de<br />
Jesus, que brota da panela vazia, do salário mínimo, do desemprego,<br />
das escolas analfabetas, do baculejo na madrugada, da<br />
violência que ninguém vê, da corrupção e das casas de alvenaria<br />
fincadas nos becos e vielas nas favelas das periferias da Zona<br />
Sul de São Paulo.<br />
Uma poesia dura, seca, sem papas na língua, ora sem crase, ora<br />
sem vírgula, mas ainda assim poesia, com cheiro de pólvora,<br />
com gosto de sangue, com o pus da doença sem remédio, com<br />
o pé descalço, com medo, com coragem, com arregaço, com<br />
melaço da cana, com o cachimbo maldito, mas que caminha<br />
com endereço certo: o coração alheio.<br />
A poesia tinha ganhado as ruas e nunca mais seria a mesma.<br />
A Academia? Que comam brioches!
Literatura,<br />
pão e poesia<br />
A literatura na periferia não tem descanso, a cada dia chegam<br />
mais livros. A cada dia chegam mais escritores, e, por conseqüência<br />
disso, mais leitores. Só os cegos não querem enxergar<br />
este movimento que cresce a olho nu, neste início de século. Só<br />
os surdos não querem ouvir o coração deste povo lindo e inteligente<br />
zabumbando de amor pela poesia. Só os mudos, sempre<br />
eles, não dizem nada. Esses custam a acreditar.<br />
Não quero nem falar dos saraus que estão acontecendo aos<br />
montes, pelas quebradas de São Paulo. Isto me tomaria muito<br />
tempo. Haja vista as dezenas de encontros literários pipocando<br />
nas noites paulistanas. Cada qual do seu jeito, cada qual com<br />
seu tema, cada qual à sua maneira de cortejar as palavras.<br />
Mas eu quero falar mesmo é da poesia que se espalhou feito<br />
um vírus no cérebro dos homens e mulheres da periferia. Pois<br />
é, essa mesma poesia que há tempos era tratada como uma<br />
dama pelos intelectuais hoje vive se esfregando pelos cantos<br />
dos subúrbios à procura de novas emoções.<br />
O tal poema, que desfilava pela Academia, de terno e gravata,<br />
proferindo palavras de alto calão para platéias desanimadas,<br />
hoje anda sem camisa, feito moleque pelos terreiros, comendo<br />
miudinho na mão da mulherada.<br />
Vocês, por acaso, já ouviram falar do tal poema concreto? Pois<br />
é, os trabalhadores e desempregados estão construindo biblio-<br />
116
Literatura, pão e poesia<br />
117<br />
tecas com eles, nas favelas. E o lobo mau pode assoprar que<br />
não derruba. Apesar da pouca roupa que lhe deram, está se<br />
sentindo todo importante com sua nova utilidade.<br />
A periferia nunca esteve tão violenta, pelas manhãs é comum ver,<br />
nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até quatrocentas<br />
páginas. Jovens traficando contos; adultos, romances.<br />
Os mais desesperados cheirando crônicas sem parar. Outro dia<br />
um cara enrolou um soneto bem na frente da minha filha. Deilhe<br />
um acróstico bem forte na cara. Ficou com a rima quebrada<br />
por uma semana.<br />
A criançada está muito louca de história infantil. Umas já estão<br />
tão viciadas que, apesar de tudo e de todos, querem ir para as<br />
universidades. Viu, quem mandou esconder ela da gente? Agora<br />
a gente quer tudo de uma vez!<br />
Dizem por aí que alguns sábios não estão gostando nada de ver a<br />
palavra bonita beijando gente feia. Mas neste país de pele e osso,<br />
quem é o sábio? Quem é o feio? E olha que a gente nem queria o<br />
café da manhã, só um pedaço de pão. Que comam brioches!<br />
Não, não é Alice no país das maravilhas, mas também não é o<br />
inferno de Dante. É só o milagre da poesia.<br />
Quem odeia ler agora?
O fim do<br />
Garajão<br />
Quando a gente ainda estava no Garajão, o Tavinho, que mora no<br />
Jardim Guarujá e que freqüentava o Sarau em Taboão da Serra,<br />
vivia insistindo para a gente fazer um Sarau no bar do Zé Batidão.<br />
Então fizemos uma ou duas vezes nas segundas-feiras. A gente<br />
nem sequer sabia o que estava por vir.<br />
O Sarau rolava a mil no Garajão, mas já se ouvia um boato que os<br />
sócios queriam vender o bar; chegaram até a oferecer para eu<br />
comprar, mas naquela época tinha acabado de ficar desempregado<br />
– na verdade havia largado o emprego novamente para me<br />
dedicar à poesia, mais tempos difíceis pela frente. Bom, como<br />
boato era boato, fomos seguindo a vida, ninguém nunca poderia<br />
acreditar que um dia isso iria acontecer. Mas aconteceu.<br />
O Bar do Garajão fica na ladeira do Jardim Maria Rosa, então quem<br />
vinha do Pirajussara, como eu, tinha uma visão ampla do lugar<br />
antes mesmo de chegar. Nesse dia estava vindo para o Sarau com<br />
a minha esposa Sônia, que na época era apenas minha namorada,<br />
e de longe vi o bar escuro e uma multidão em frente; caralho,<br />
parece que eu já estava sentindo um bagulho ruim no coração.<br />
Lembro de avistar o Giba, do grupo Papo de Família, sentado na<br />
frente e chorando; putz, já tinha pensado no pior; aliás, o que<br />
poderia ser pior do que fechar o bar e acabar com o Sarau? Ninguém<br />
podia acreditar, o bar tinha sido vendido, e pelo que a gente<br />
118
Literatura, pão e poesia<br />
119<br />
sabia o novo dono não queria saber de Sarau no local por que ia<br />
virar point de rock.<br />
Ficamos ali sentados por muito tempo como viúvos e viúvas consolando<br />
um ao outro, e avisando as pessoas que chegavam sobre<br />
o falecimento do lugar. Entre lágrimas, lembro que foi um dos dias<br />
mais tristes da minha vida, e quando olhei para aquele bar como<br />
um amigo que acabara de morrer, também pensei que morreria.<br />
Mas como de dor a gente entende, antes mesmo que o cadáver<br />
apodrecesse enterramos nossas lágrimas, juntamos nossas<br />
memórias com as nossas roupas de batalha e encarnamos num<br />
outro corpo, o bar do Zé Batidão.
Bar<br />
do Zé Batidão<br />
(de volta pro começo)<br />
Quando ficamos sem lugar para fazer o Sarau em Taboão da<br />
Serra, não pensei duas vezes, fui falar com o Zé Batidão. O Zé é um<br />
irmão, o conheço há mais de vinte anos (lembram do lançamento<br />
do meu primeiro livro?), sua história também daria um livro.<br />
Aos 57 anos esse mineiro chegou a ser criado como um escravo<br />
numa fazenda em Minas Gerais onde os patrões apenas lhe serviam<br />
restos de comida e o proibiam de estudar. Mas guerreiro<br />
que é, veio para São Paulo e trabalhou de pedreiro e garçom, até<br />
conseguir seu próprio boteco.<br />
Por aqui nós o conhecemos desde quando ele era dono de um<br />
bar na rua de baixo, onde eu, o Márcio, Samuca, Miltinho, Cleone,<br />
Ceará, Chuca, Marcão, Bom, entre tantos íamos tomar cerveja,<br />
principalmente às segundas-feiras.<br />
Guerreiro bom, perambulou com seu sonho por outros lugares<br />
até chegar ao bar que era do meu pai, onde eu fui criado, hoje o<br />
Bar do Zé Batidão.<br />
Chegamos no Zé por volta de março de 2003 e fomos acolhidos<br />
por pouca gente, mas principalmente a família Retrão. A família<br />
Retrão foi uma das primeiras famílias a chegar na região do<br />
Jardim Guarujá; fomos criados todos juntos na infância e adolescência,<br />
então quando o Sarau chegou timidamente no bar,<br />
fomos acolhidos principalmente por eles.<br />
120
Literatura, pão e poesia<br />
121<br />
A vida novamente se mostrava irônica: o lugar em que eu passava<br />
toda minha juventude querendo estar fora de lá era justamente<br />
o lugar que abrigava o quilombo que eu ajudei a criar.<br />
Chegamos no Batidão bem devagarzinho, e sem fazer barulho.<br />
Como nossa base estava toda em Taboão da Serra, às quartasfeiras<br />
o Zé mandava (até hoje o Ricardo busca) uma van trazer o<br />
pessoal de lá, que se encontrava na praça do Campo Limpo, em<br />
frente à casa do Pezão, para o nosso novo aparelho.<br />
A minha amizade com o Zé já rendeu outros eventos no passado.<br />
Uma vez, há uns dez anos levei o cantor Lobão pra comer<br />
uma feijoada e participar de um samba com a gente. Naquela<br />
época ele já planejava lançar o disco independente nas bancas<br />
de jornais. Ele acabou falando sobre o nosso encontro na<br />
revista Caros amigos.<br />
Tinha feito um evento com a 105FM, Gleides Xavier, que acho<br />
que foi o maior evento, em termos de público, que aquele bairro<br />
já viu. Até os bares da redondeza venderam cerveja.<br />
Outra vez foi o Big Richards, que na época da fábrica tinha um<br />
quadro no “Fantástico” chamado “Nóis na fita” e foi lá gravar.<br />
Fizemos um samba com poesia, mas não sei por que não foi ao<br />
ar. O Big disse, por brincadeira, que depois dessa gravação o<br />
programa tinha sido extinto.<br />
Outro dia levei a Amélia Nascimento, que era editora da revista<br />
Raça e que tinha feito uma matéria comigo na Rocinha. A feijoada<br />
do Zé sempre foi de primeira, por isso sempre quis levar as<br />
pessoas lá para conhecer a nossa periferia gastronômica.<br />
Estava quase tudo certo da Cássia Eller um dia aparecer por lá;<br />
não deu certo porque na produção tinha muita gente...<br />
Enfim, o bar já tinha uma certa tradição, por isso quando o Sarau<br />
chegou por lá já estava meio que esperando a gente chegar.
122 <strong>Cooperifa</strong>
Literatura, pão e poesia<br />
123
124 <strong>Cooperifa</strong>
Literatura, pão e poesia<br />
125
O Sarau<br />
Quando chegamos no Jardim Guarujá já tínhamos uma base<br />
bem montada com poetas já experimentados no Garajão, como<br />
Pezão, Márcio Batista, Kennya, Helber Ladislau, Samantha,<br />
Pilar, Allan da Rosa, Rose Dórea, Binho, Preto Jota, Vilma (nega<br />
drama), Issac (2hO), Tavinho, Pedro Lucas, o que facilitou e<br />
muito a implantação do Sarau.<br />
Aí foi só se juntar ao Carlos Silva, Prof. Lili, Lu Souza, Mavotsirc,<br />
Beso, Harumi, Roberto Ferreira, Periafricania, Sales, Rosy Eloy,<br />
Dinho Love, Elizandra, José Neto, Casulo, Fabio CRJ, Timbó, PH<br />
Boné, Augusto, Valmir Vieira, seu Lourival, Euller do Instituto<br />
UMOJA, Rodrigo Ciríaco, Robson Canto, Andréia, Bárbara e<br />
Lilá, Fanti, Ricarda, Dugueto, Akins Kinte, Fuzzil, B Valente,<br />
João Santos, Carlos Giannazi, prof. Toninho, Valter, Roberto<br />
QT, Brava Companhia, Régis do Ação e Arte, Arákúrin, Gaspar<br />
Záfrica Brasil, GOG, Rua 7, Asduba, César, Jair Guilherme,<br />
Samba da Hora, Samba da quinta, Marcio e Sandra do grupo<br />
Cavalo de Pau, grupo Versão Popular, Serginho Poeta, Adilson<br />
Lopes, Giba, Sandra Leia, Marinho, Zé Pompeu, Wésley Nóog,<br />
Beth Dentista, Dona Edite, Marcelo Ribeiro, Silvio Diogo, O<br />
gringo que fala, Magrela’s Bike, Tadeu Lopes, Vicente, Fernanda,<br />
Natália, Toni C., Bloco do beco, Ali Sati, P.A, Cláudio Laureart,<br />
Danilo, Zinhi Trindade, Lobão, Jorge Esteves, Tadeu Zuco,<br />
Renato Vital, Gastão e Ewald, De Lourdes, Renata Dias, Cine<br />
Becos, DGT Filmes, Daniel Alexandrino, Mamba Negra, Sônia,<br />
126
Literatura, pão e poesia<br />
127<br />
Juliana, Paula Preto, Tereza, Dinha, Diane Padial, Lygia, Antônio<br />
OHL e mais alguns que não lembro o nome agora, para que o<br />
Sarau sempre fosse o grande movimento de poesia que é.<br />
Não estavam sempre na mesma noite, nem no mesmo tempo,<br />
mas sempre na mesma sintonia.<br />
O funcionamento do Sarau é muito simples: começa pontualmente<br />
às 21:00h e também acaba pontualmente às 23:00h<br />
(às vezes acaba mais cedo) porque o bar fica na pracinha do<br />
Guarujá e tem muitas casas em volta. Procuramos colaborar<br />
com a vizinhança.<br />
Lógico que um dia ou outro sempre há excessos das pessoas<br />
que ficam em frente ao bar (tipo gente que estaciona o carro<br />
na garagem de alguém) ou que acabam falando mais alto, mais<br />
sem maiores ocorrências. É que tem dias que o Sarau está tão<br />
cheio que muita gente não consegue entrar. Falando nisso, a<br />
média de público por quarta-feira gira em torno de duzentas a<br />
250 pessoas, mas em saraus especiais já tivemos mais de quinhentas<br />
pessoas.<br />
Pra que todos possam falar nesse espaço de duas horas recomenda-se<br />
que as pessoas leiam poemas de no máximo duas<br />
laudas e evitem usar o microfone como palanque para discurso,<br />
assim a gente ganha tempo e mais pessoas podem falar. As<br />
poesias recitadas não sofrem qualquer tipo de censura prévia,<br />
e cada um fala o quer, seja texto de sua autoria ou de alguém<br />
consagrado, ou não.<br />
Durante o Sarau evitamos instrumentos musicais, ou incentivamos<br />
a cantoria de alguém, mas porque o movimento é estritamente<br />
literário. No passado tivemos problemas com as pessoas<br />
que chegavam de violão em punho querendo cantar (já teve<br />
noite com quase dez violeiros pedindo pra tocar). A gente também<br />
sabe que se a poesia concorrer com a música, com certeza<br />
vai tomar de goleada.
128 <strong>Cooperifa</strong><br />
Mas isso nunca impediu que antes de começar o Sarau alguém,<br />
devidamente conversado, possa dar uma canja. O Wésley Nóog<br />
fez isso durante muito tempo. O GOG, rapper de Brasília, o<br />
Versão Popular, o Periafricania, Carlos Silva e o Sabedoria de<br />
Vida já fizeram pequenos shows lá.<br />
O tempo que antecede o Sarau é o espaço que a gente usa<br />
como centro cultural do bar, para que outras expressões artísticas<br />
tenham acesso ao nosso público e vice-versa. É sempre<br />
às 20:00h que apresentamos um esquete de teatro de grupos<br />
como a Brava Companhia, Aço e Arte, Irmãos Carozzi, Cavalo de<br />
Pau, entre outros.<br />
Diga-se de passagem uma das mais belas histórias do Sarau<br />
aconteceu justamente por conta do teatro. Quando teve uma<br />
peça, não me lembro qual foi, um senhor da comunidade, uns 55<br />
a sessenta anos de idade, que tomava um aperitivo no balcão do<br />
bar me chamou e disse:<br />
— O que vai ter aqui?<br />
— Uma peça de teatro – respondi.<br />
— Como assim, o teatro vai vir aqui? – perguntou estupefato.<br />
Demorei para entender o porquê da surpresa, mas enquanto ele<br />
me falava pude perceber que ele estava achando que o Teatro,<br />
o prédio, iria na <strong>Cooperifa</strong>. Expliquei que era um grupo de atores<br />
da região que ia encenar uma peça, que era uma comédia e<br />
coisa e tal.<br />
Enquanto eu falava pude perceber em seus olhos uma dor que<br />
vinha acompanhada de um brilho cansado, mas ainda assim brilhava<br />
intensamente. Ele segurou no meu b raço, e quase suplicando<br />
me pediu:<br />
— Por favor, pede para esperar mais dez minutos que eu vou<br />
buscar minha esposa para ver isso também. – E saiu descendo<br />
à esquerda do bar para buscar sua convidada. Descendo bar à<br />
esquerda, não onde ele foi, mas mais para frente, fica o cemi-
Literatura, pão e poesia<br />
129<br />
tério do Jardim São Luiz. Pra quem não sabe, esse cemitério<br />
é onde estão enterrados a maioria dos jovens assassinados<br />
na Zona Sul de São Paulo – tem muito chumbo debaixo dessa<br />
terra.<br />
Pensei que ele não viria, por isso só os percebi quando o espetáculo<br />
já tinha começado. Notei ele acompanhado de sua esposa,<br />
que vestia um vestido simples e quase nenhuma maquiagem,<br />
trazia no rosto um riso triste, talvez por não estar entendendo<br />
nada, ou quem sabe por ter sido arrancada de frente à TV, na<br />
marra. Vai saber.<br />
Ao vê-los, procurei ficar numa posição em que eu pudesse percebê-los<br />
sem que eles me reparassem. Como não tinha mais<br />
lugar para sentar, ficaram no balcão, do lado esquerdo do bar.<br />
Estavam ali, quase abraçados, ele com um copo que devia ser<br />
um rabo de galo, ela segurando um copo de refrigerante tentando<br />
entender o que estava acontecendo, enquanto passeava<br />
com os olhos pelo local.<br />
Como a peça era uma comédia, a risada tomou conta da<br />
<strong>Cooperifa</strong> e do casal que assistia a tudo, ora com um riso destrambelhado<br />
no rosto, ora com uma ponta de aflição pelo esfregar<br />
das mãos.<br />
Ele ria com discrição, um certo machismo talvez, mas ria, e ria o<br />
tempo todo. Ela não ria, tinha orgasmos nos lábios, devia estar<br />
rindo tudo que ainda não tinha sorrido nesta vida. Ri também,<br />
baixinho, por solidariedade. Não assisti à peça. Assisti a eles.<br />
Ao final da peça, como diz a regra da nossa elegância e gratidão,<br />
todos aplaudiram de pé. Fui em direção ao casal e pude notar<br />
que eles ainda não tinham se refeito da alegria súbita que os<br />
tomara, e perguntei:<br />
— E aí, gostaram?<br />
— Gente, isso é muito legal! – disse-me ela.
130 <strong>Cooperifa</strong>
Literatura, pão e poesia<br />
131<br />
Ele me olhou profundamente – e ainda com um riso atrasado<br />
nos lábios – e me abraçou com as palavras mais doces que eu<br />
ouvi na minha vida:<br />
— Obrigado – disse-me ele. – Sabia que eu podia morrer sem<br />
nunca ter visto isso?<br />
Sim, eu sabia. Não respondi pra ele, mas eu sabia que o que ele<br />
disse era verdade.<br />
Assim como eu sabia que a maioria daqueles jovens que estavam<br />
enterrados no cemitério São Luiz também morreram sem<br />
ter visto uma peça de teatro, um filme no cinema, um show, um<br />
livro e um futuro.<br />
Na hora só me veio um pensamento: “se depender da gente, ninguém<br />
vai para lá, mas se for, antes tem que passar no Sarau da<br />
<strong>Cooperifa</strong>”.<br />
Lá também passamos diversos filmes e documentários, exposições<br />
de fotografias, artes plásticas. Mas como o nosso projeto<br />
é de literatura, lá no Sarau já teve lançamento de mais de quarenta<br />
livros e revistas.<br />
Mas antes de citar quem são esses novos autores que hoje<br />
estão por aí divulgando a literatura periférica, vou contar onde<br />
a maioria estreou.
Jornal<br />
Farol Urbano<br />
A <strong>Cooperifa</strong> sempre pensou em várias maneiras para divulgar a<br />
poesia produzida no Sarau. E, pensando nisso, em abril de 2004<br />
nós lançamos o jornal Farol Urbano.<br />
Era um jornal de poesia e cada poeta recebia sua cota em jornal<br />
e o vendia a um preço de R$ 1,00 cada exemplar. A idéia não era<br />
só pela grana, mas também fazer com ele circulasse através da<br />
distribuição de cada um. Cada poeta pegava uma parte e ia vender<br />
em algum lugar da comunidade, ou distribuía gratuitamente<br />
para amigos e parentes.<br />
O jornal também contava com uma agenda cultural, “Vai rolar”,<br />
que agitava as pessoas do Sarau, e já anunciava a entrega do 1º<br />
Prêmio <strong>Cooperifa</strong>. Também tinha textos de convidados, como o<br />
“É isso que me dão”, de Toni C.<br />
O professor Carlos Giannazi, hoje Deputado Estadual/PSOL,<br />
também escreveu lá. Assuntos internacionais ficou por conta<br />
do Ali Sati, que naquela época falava sobre os perigos da ALCA.<br />
Eu era o editor e o Brói era o diagramador.<br />
Já naquele tempo a gente convocava para a luta da cultura<br />
contra o marasmo. A manchete do primeiro e único jornal Farol<br />
Urbano foi: “<strong>Cooperifa</strong> declara guerra contra o imobilismo”.<br />
Por conta da falta de grana o jornal ficou apenas na primeira<br />
edição, mas foi o suficiente para agitar a comunidade. Foram<br />
três mil exemplares editados. Em 2008 está previsto o lançamento<br />
de uma revista.<br />
132
Literatura, pão e poesia<br />
133
Cap. 04<br />
A poesia dos deuses inferiores
Cap.04<br />
A poesia dos deus
A biografia poética<br />
da periferia<br />
Este quarto livro de poesia é um álbum de fotografias da minha<br />
memória. Uma biografia não autorizada, mas necessária, de um<br />
povo que cresce à margem de um país sem alvará de funcionamento,<br />
e sem licença para ser pátria. São fotografias de uma<br />
gente simples que vi crescer neste chão árido e escuro da senzala<br />
moderna chamada periferia. Uma homenagem a pessoas, que<br />
no curto tempo de uma vida, tiveram apenas o CIC e o RG como<br />
registro de passagem pelo planeta. É o 3x4 da minha infância.<br />
Um clique na dor alheia. É a raiva que escarra da lente dos meus<br />
olhos... são fotos de pretos e brancos governados por uma minoria<br />
colorida (esta íngua que dói na alma), arrogante e racista, que<br />
patenteou o arco-íris e guardou os negativos em algum banco<br />
estrangeiro. A beleza fica por conta de quem lê; não tive tempo<br />
para amenidades, a poesia só registrou a verdade.<br />
Assim começa a apresentação do meu quarto livro, A Poesia<br />
dos deuses inferiores, a biografia poética da periferia, lançado<br />
no dia 15 de julho de 2004.<br />
Na verdade o livro era para ser uma revista sobre história de<br />
pessoas que cruzaram meu caminho ao longo dessa vida.<br />
Histórias de gente simples da periferia. Uma revista poética<br />
com ilustrações e com letras bem grandes para facilitar a leitura<br />
da molecada. Quem me sugeriu essa idéia foi a garotada<br />
que eu conheci nas escolas públicas enquanto eu fazia o projeto<br />
“Poesia contra a violência”.<br />
136
A poedia dos deuses inferiores<br />
137
138 <strong>Cooperifa</strong><br />
A maioria dos alunos com quem eu conversava sempre davam<br />
as mesmas desculpas por não gostarem de livros, mas a mais<br />
citada foi que as letras eram muito pequenas e que cansavam<br />
as vistas. Pedi novamente ao Brói que fizesse a diagramação e<br />
que bolasse umas letras bem transadas, tipo grafite, mas sem<br />
perder as características do livro, para que a molecada não<br />
tivesse mais desculpas quando pegassem o meu livro para ler.<br />
Acontece que as histórias foram aumentando e os poemas também,<br />
então a saída foi editar o livro. A revista ia ficar para uma<br />
outra ocasião.<br />
Cheguei com o projeto do livro até o diretor da Faculdade de<br />
Taboão da Serra, Joel Garcia, e ele aceitou que a faculdade<br />
patrocinasse a edição de mil livros.<br />
A capa era uma foto do Eduardo Toledo que nós tiramos da laje<br />
do Paulão, no Jardim Guarujá, e que pega toda a quebrada da<br />
região, incluindo o Jardim Letícia, Morro do Piolho e Jardim<br />
Neide, quebradas onde eu cresci jogando futebol.<br />
O livro foi uma retomada na minha poesia de protesto. Era muito<br />
mais agressiva e bem alinhada com o rap, com quem, há muito<br />
tempo, vivia flertando. Também era um livro de homenagens<br />
às pessoas em quem eu sempre acreditei: Lamarca, Zequinha,<br />
Dona Ana, Miltinho, Sabotage, Mano Brown, minha mãe etc.<br />
Pessoas que, conhecidas ou não, sempre fizeram parte da<br />
minha vida.<br />
O lançamento foi em um prédio onde hoje é o banco Nossa<br />
Caixa, num coquetel que nós preparamos para os quatrocentos<br />
convidados que apareceram. O lançamento foi muito bem divulgado,<br />
e tanto minha família, <strong>Vaz</strong>, quanto da Sônia, Gramacho,<br />
deram a maior força no dia. Quer dizer, na noite.<br />
Livro na mão, percorri várias escolas por onde eu já havia passado,<br />
corri os shows, galeria, palestras, favelas, presídios, rádios<br />
comunitárias, sebos e livrarias, divulgando a minha poesia, ou<br />
revelando a Biografia poética da periferia.
A poedia dos deuses inferiores<br />
139<br />
Umas poesias do livro A Poesia dos deuses inferiores:<br />
Lamarca<br />
O Capitão Lamarca<br />
Morreu como fruta madura:<br />
Descansando em baixo da árvore.<br />
Só que ele foi arrancado do pé<br />
Pelo coração de mármore<br />
Da bruta ditadura.<br />
Sabotage (o invasor)<br />
Mauro<br />
Era um negro de asas.<br />
Um pássaro<br />
Com os pés no chão.<br />
Som de ébano<br />
Com pele de couro,<br />
O mouro fez ninho no canão.<br />
O passado,<br />
Que o futuro queria<br />
Escrito em carvão,<br />
Deixou de ser pó<br />
Pra ser pão,<br />
Ao se viciar em poesia.<br />
O poeta<br />
De plumas negras<br />
E voz de pedra<br />
Cravou teu canto<br />
Preto e branco<br />
Nas vidraças<br />
Do mundo colorido.<br />
Filho banto<br />
Em carne e carcaça<br />
Serviu a taça<br />
Com vidro moído<br />
Aos traidores da raça.<br />
Navegante<br />
De mares insolentes<br />
Sua bússola<br />
Apontava sempre para a periferia.<br />
A rima era o rumo<br />
O remo da sina.<br />
No ar,<br />
Como fumaça de fumo<br />
E vermelha retina,<br />
Era frio<br />
Era quente,<br />
Mas nunca banho-maria.<br />
Um dia<br />
Num vôo curto<br />
Depois de uma longa metragem<br />
Um disparo sem rosto<br />
Uma bala sem gosto<br />
Calou o personagem.<br />
Diante disso<br />
E sem nos esperar<br />
Desfez o compromisso<br />
Seguiu de viagem<br />
E foi cantar em outro lugar,<br />
Num bom lugar.
140 <strong>Cooperifa</strong><br />
Renilda de seu Francisco<br />
Renilda<br />
já nasceu mulher.<br />
Ainda menina<br />
era prostituída<br />
para matar a fome,<br />
pra não ser lixo, sina?<br />
Não tinha registro<br />
não tinha nome,<br />
era a filha de seu Francisco.<br />
Um dia,<br />
desses sem dores,<br />
sonhou ser artista de televisão:<br />
Glória, Fernanda ou Regina,<br />
ser estrela.<br />
Mas,<br />
de volta às dores<br />
podia ser vista<br />
maltratando a vagina,<br />
longe das telas,<br />
ao vivo e a cores<br />
em todas as vielas<br />
que tivesse um colchão.<br />
Doente,<br />
morreu virgem,<br />
sem nunca ter amado.<br />
Morreu seca,<br />
sem nunca ter gozado.<br />
Foda-se.<br />
Bengalas e muletas<br />
Um cego<br />
Com o polegar sujo<br />
Recebe o R.G.<br />
Vê a letra A<br />
E não entende nada.<br />
Olha a letra N<br />
Com desconfiança<br />
E esbarra novamente<br />
Na letra A.<br />
Indignado<br />
Tateia a letra L<br />
Triste,<br />
Como é F<br />
Não enxergar.<br />
Sem óculos,<br />
Tropeça de novo<br />
Na letra A<br />
No dorso da letra B<br />
E pensou em se matar<br />
Na letra T<br />
Com o nó da letra O.<br />
Aleijados,<br />
Tiramos de letra,<br />
Ao darmos as costas.<br />
Coisas da vida (terra em transe)<br />
Hoje<br />
eu vi uma criança acordada<br />
comendo pão dormido.<br />
Um homem desempregado<br />
empregando uma arma.<br />
Uma mulher vestida em trapos<br />
lavando roupa cara.<br />
Um policial desalmado<br />
separando um corpo da alma.<br />
Uma menina desnutrida<br />
com a barriga cheia.<br />
Uma bala perdida<br />
procurando uma veia.<br />
Senhoras de joelhos<br />
andando sem destino.<br />
Velhos com olhos vermelhos<br />
chorando como menino.<br />
Poetas loucos<br />
cuspindo razão.
A poedia dos deuses inferiores<br />
141<br />
Anjos e demônios<br />
na mesma religião.<br />
A miséria na coleira da fartura<br />
a vida fácil<br />
às custas da vida dura.<br />
Gente sorrindo<br />
com o coração em pranto<br />
surdos ouvindo<br />
a canção dos falsos santos.<br />
Vi mãos calejadas<br />
beijando mãos macias<br />
José nas enxadas<br />
no cabo delas, Maria.<br />
Com mansos olhos de fel<br />
E a boca dura de fera<br />
vi um país no céu<br />
E o inferno na terra.<br />
Cal Max<br />
Max nasceu pobre,<br />
Na verdade<br />
Nasceu Maximiliano<br />
Da Silva Nobre.<br />
Curtido na pedra<br />
Criou-se vidraça.<br />
Como o pai<br />
Também era pintor,<br />
Mas nada de Picasso,<br />
Van Gogh ou Portinari.<br />
Pintava parede, mansão,<br />
Muro e pé de árvore.<br />
Não tinha sonhos,<br />
Mas se sonhasse<br />
Seriam pretos<br />
Seriam brancos<br />
Cinzas de fato.<br />
Morava em bairro comunista<br />
Os vizinhos tinham em comum<br />
A mesma miséria.<br />
As mãos grossas<br />
Nunca fizeram carinho,<br />
Pra ele? Frescura.<br />
No enterro<br />
Depois que caiu do andaime,<br />
Pouca gente<br />
Pouco choro,<br />
Nenhuma madame.<br />
Lembranças?<br />
Só a última pá de cal.<br />
Jaz.<br />
Maria das Dores<br />
Filha de Saturnina<br />
Maria nasceu em Ladainha,<br />
No intestino de Minas,<br />
Quase Bahia.<br />
O nome Maria<br />
Quem deu foi o pai,<br />
Seu Firmino.<br />
Das Dores,<br />
Sobrenome da agonia,<br />
Quem lhe deu<br />
Foi o destino.<br />
Na cidade grande<br />
Vendeu cosméticos,<br />
Roupas e sapatos.<br />
Varreu chão, lavou pratos,<br />
Mas nunca foi domesticada.<br />
Sorria<br />
Por desobediência<br />
Por falta de instrução.<br />
Por alegria?<br />
Só se fosse descuido do coração.<br />
Sob o disfarce<br />
De mulher maravilha<br />
Morreu sem avisar.
142 <strong>Cooperifa</strong><br />
Frágil,<br />
Mas sem implorar.<br />
Feito flor que rasteja,<br />
Mas que a primavera<br />
Não pode humilhar.<br />
Náufrago<br />
Sebastião<br />
Nasceu longe do mar<br />
Distante das ondas.<br />
Seco,<br />
Não tinha nem água<br />
Pra chorar.<br />
Cresceu<br />
Nau sem rumo<br />
Sem sair do lugar.<br />
Sem prumo,<br />
E com areia nos olhos,<br />
Saiu por aí<br />
Sem saber navegar.<br />
Hoje<br />
Mora embaixo da ponte<br />
Num barquinho de papel<br />
Sem remo<br />
Sem saber nadar.
A poedia dos deuses inferiores<br />
143
as<br />
Cap.05<br />
O Rastilho da pólvora
ti<br />
pólvora<br />
Cap.05<br />
O Rastilho da pólvora
O Sarau caminhava tranqüilo em suas noites de quarta-feira.<br />
A poesia, a essa altura, já tinha arrebatado até os mais resistentes<br />
moradores do bairro. Por conta de algumas matérias na<br />
mídia, as pessoas não paravam de chegar para conhecer o nosso<br />
quilombo. Muitas das pessoas que chegavam eram do próprio<br />
bairro, que não acreditavam quando viam na TV que aquilo que<br />
estava acontecendo era perto das suas casas.<br />
Aliás, o Sarau andava tranqüilo até demais, e já havia algum<br />
tempo vinha falando com o Pezão, com o Márcio, que a gente<br />
precisava de alguma coisa para motivar os poetas. Chegamos<br />
à conclusão que estava na hora de editar uma antologia com<br />
os poetas da <strong>Cooperifa</strong>. Só tinha um problema: dinheiro. Onde<br />
conseguir?<br />
Onde conseguir o apoio que precisávamos a gente não sabia,<br />
mas sabíamos que a gente ia fazer o livro, de qualquer maneira.<br />
Aí um dia, o Claudiney Ferreira, do Itaú Cultural, me convidou<br />
para participar da 50ª Feira do Livro de Porto Alegre, que justamente<br />
caía numa quarta-feira e um pouco antes do horário do<br />
Sarau aqui em São Paulo – acho que foi a primeira vez que eu<br />
faltei a <strong>Cooperifa</strong> nesses quase três anos.<br />
Já saí daqui pensando em pedir o apoio para o Itaú Cultural, e<br />
na primeira oportunidade eu iria dar uma idéia no Claudiney a<br />
respeito do nosso sonho. Avisei para o Pezão deixar o celular<br />
146
O Rastilho da pólvora<br />
147<br />
ligado, porque qualquer novidade eu ligaria de imediato para<br />
avisar a todos sobre qualquer notícia positiva. O Pezão criou um<br />
clima dizendo ao microfone que eu estava no Sul e que estaria<br />
representando a <strong>Cooperifa</strong> e também tentando conseguir apoio<br />
para o nosso livro.<br />
Bom, segui para a gravação do programa “Jogo de idéias”, que<br />
aconteceu no Centro Cultural Mário Quintana e contou com a<br />
participação do poeta Fabrício Carpinejar e o Grupo PoETs,<br />
ambos de Porto Alegre. O programa acabou por volta de 20:00h<br />
ou 20:30h, acho que é isso, e de lá fomos jantar no Mercadão, no<br />
Centro. Pensei comigo: é a hora.<br />
Conversa vai, conversa vem, uma cerveja aqui, um bolinho de<br />
bacalhau ali, entrei de sola no assunto.<br />
Disse que a <strong>Cooperifa</strong> queria lançar uma coletânea com os poetas<br />
da comunidade. Falei da importância do livro em nossas<br />
vidas. Disse-lhe o quanto era primordial para o nosso movimento<br />
ter um livro nosso nas mãos. Putz, falei pra caralho. O Claudiney<br />
ouviu atentamente e senti que ele vibrou com a idéia, mas disse<br />
que não era ele quem decidia sobre isso, mas num gesto súbito<br />
e nobre pegou o telefone e ligou para o Eduardo Saron, superintendente<br />
de atividades culturais do IC para falar sobre o projeto.<br />
Ligou bem na minha frente, só por isso acreditei.<br />
Ele explicou mais ou menos o que a gente queria e o porquê, o<br />
que deveria ser feito, e como. Eu ali tentando ouvir o que o Saron<br />
falava do outro lado, e de repente o Claudiney fecha o telefone<br />
e diz:<br />
— Está fechado, vamos apoiar o livro.<br />
Porra, na hora nem acreditei de tão louca que foi a cena, e ainda<br />
brinquei com ele:<br />
— Mano, não mente pra mim não, mentir pra pobre dá azar. – E ri<br />
por dentro e por fora.
148 <strong>Cooperifa</strong><br />
Na hora liguei para o celular do Pezão ou do Márcio, não me lembro,<br />
e já eram umas 22:00h, hora de pico no Sarau, e dei a notícia<br />
que os guerreiros e guerreiras podiam pegar seus poemas que a<br />
gente ia fazer o nosso livro. Eu não vi, mas dizem que quando a<br />
notícia chegou no sarau o boteco do Zé quase veio abaixo e que<br />
foi uma das noites mais emocionantes do nosso quilombo.<br />
Quem deu o nome do livro de Rastilho da pólvora foi o Pezão; ele<br />
dizia que o nosso movimento estava se alastrando pela cidade.<br />
E realmente estava, muitos saraus já estavam acontecendo por<br />
conta da iniciativa da <strong>Cooperifa</strong>. A poesia da periferia estava começando<br />
a ganhar força, tanto espiritual como geográfica, nesse<br />
exato momento que antecedia a antologia poética do sarau.<br />
Para contar com o apoio do Itaú Cultural a gente teria que promover<br />
um seminário sobre periferia, no bar do Zé Batidão. Então<br />
nós fizemos. Fizemos três debates no bar com pessoas que participavam<br />
ativamente na cultura da periferia.<br />
No primeiro encontro trouxemos o rapper Thaíde e o jornalista<br />
Adunias da Luz (Estação Hip Hop) para falar sobre “A influência<br />
do rap como arte e denúncia”. E para falar sobre “Literatura de<br />
periferia” trouxemos o Sacolinha (graduado em marginalidade)<br />
e o Alessandro Buzo (suburbano convicto). E o cinema ficou por<br />
conta do Zagatti, catador de papelão que mantém o Mini Cine<br />
Tupy, um cinema para crianças carentes em Taboão da Serra,<br />
que falou sobre seu trabalho e passou um documentário sobre<br />
a sua história.<br />
A <strong>Cooperifa</strong> estava agitadíssima, todo mundo queria mandar<br />
poesias, até quem nunca tinha ido lá. A seleção não foi muito<br />
rigorosa, por isso tem algumas pessoas que participaram do<br />
livro e nunca mais foram lá. Tivemos algumas dificuldades na<br />
edição, por isso tivemos a colaboração do Felipe Lindoso, que<br />
deu a maior força para nós. A Karina Nóbrega fez a correção,<br />
sempre respeitando o nosso dialeto. Assim como nenhuma poesia<br />
foi desrespeitada para que pudesse ser publicada, cada um<br />
escreveu o que quis, e sobre aquilo que desejou.
O Rastilho da pólvora<br />
149<br />
Quase tudo pronto, conseguimos – depois de muita conversa<br />
– reunir 43 autores e um livro com 61 poesias exprimidas em<br />
103 páginas de poemas extraídos dos becos, vielas e ruas que<br />
formam o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. E para que ficasse ainda mais<br />
democrático, cada um recebeu sua parte em livros, sem nenhum<br />
ônus, e cada um poderia fazer o que quisesse com ele (nós recomendamos<br />
que vendessem a R$ 15,00). Uns presentearam os<br />
amigos, outros fizeram a feira com ele.<br />
Assim, no dia 22 de dezembro de 2004 era lançada uma antologia<br />
poética que iria ajudar a construir um novo momento da<br />
literatura brasileira e fazer coro com uma nova literatura que<br />
surgia da periferia: O Rastilho da Pólvora. Antologia poética do<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Se liga em alguns poemas do livro:<br />
Luta de libertação (Arákúrim) 1<br />
Pensam vocês que esta luta acabou.<br />
Estão muito enganados.<br />
Olhem ao redor e verão,<br />
Ouvirão, sentirão, que o racismo existe.<br />
Sim! Agora negros e brancos<br />
Sobrevivem em condições desumanas...<br />
A escravidão de forma generalizada<br />
Prende a todos em um sistema.<br />
Não, não abaixem a cabeça, Lutem,<br />
Lutem pelos seus direitos.<br />
Façam como Zumbi dos Palmares,<br />
Exija respeito, dignidade, igualdade.<br />
Liberdade. Liberdade. Liberdade.<br />
1 Arákúrim, Mestre Jonas, é um dos fundadores da Casa Popular de Cultura do<br />
M’Boi Mirim, coordenador do grupo Espírito de Zumbi e agitador cultural, que entre<br />
outras coisas produz o Panelafro, evento que acontece toda última sexta-feira do<br />
mês na Casa de Cultura.
150 <strong>Cooperifa</strong><br />
A asa e o ninho (Allan Santos da Rosa) 2<br />
Ô! Ninguém nasceu pra ser<br />
Encarcerado, fechado, preso,<br />
Calado o verso na garganta,<br />
Corrente no peso aceso.<br />
Ninguém nasceu pra ser...<br />
Vem rachar as pedras no muro,<br />
Se ainda não sabes voar,<br />
E a nossa pouca liberdade,<br />
Inteira, inteirinha, a desfrutar.<br />
Vem rachar as pedras do muro...<br />
Pra uma criança quilombola<br />
Se defender é inventar<br />
Nunca é cedo, nunca é tarde,<br />
É um eterno agora.<br />
E no meu verso eu bebo do suco mais puro<br />
Eu misturo, eu curo.<br />
Provo o mel da cicatriz, artimanho a beberage.<br />
No verso eu traço uma fogueira no escuro<br />
Uma tempestade no futuro.<br />
No verso eu brinco.<br />
Eu entrelaço<br />
Um brinco<br />
No pedaço<br />
Mais fofo da orelha<br />
Daquela guerreira.<br />
No Verso o aço, a forja, a centelha.<br />
No verso eu acaricio o sol<br />
A carne no cio.<br />
Cristalizo o rio.<br />
Me esparramo no ninho.<br />
No meu verso o versus.<br />
2 Allan da Rosa é escritor, poeta da <strong>Cooperifa</strong>, teatrólogo e fundador da editora<br />
Toró, que vem dando força e voz a novos autores da periferia. É autor dos livros<br />
Vão, Da Cabula, entre outros, e faz parte da coleção Literatura periférica da Global<br />
Editora.
O Rastilho da pólvora<br />
151<br />
No verso eu risco...<br />
Um fósforo na gasolina!<br />
Eu sonho a revolta na esquina.|<br />
No meu verso a corregedoria pra Rota assassina.<br />
No verso a melodia, a vitamina.<br />
Ô, menina...<br />
Tão bonita<br />
Que me fez arrepiar,<br />
O teu sopro é ventania<br />
Bota o mundo pra girar<br />
Na febre da tua ginga<br />
Eu vi tudo congelar.<br />
Solidão é uma ciência<br />
Que não é fácil desvendar<br />
Desespero uma vidência<br />
Pra onde a asa vai voar<br />
Paixão é malemolência<br />
É mocinha e é velha<br />
É oração é reverência<br />
Mas que pode até matar<br />
Na magia da cadência<br />
Do azul pro vermelho<br />
É braseiro é paciência<br />
Cama pronta pra deitar<br />
É o pé na consciência<br />
É mentira e é verdá.<br />
Lições urbanas (Augusto) 3<br />
A Cidade esteriliza meus sonhos,<br />
Mostrando o que de mais medonho<br />
Habita nosso ser.<br />
Oprime meus anseios de pai de família,<br />
Empurrando-me para sinuosa trilha,<br />
Que vejo muitos percorrer.<br />
3 Augusto Cerqueira Neto começou lendo gibi; letrou-se, para gostar de ler. Na<br />
coleção Vagalume achou sua vertente: leitura. É poeta da <strong>Cooperifa</strong>.
152 <strong>Cooperifa</strong><br />
A ausência dos meus filhos é um mal necessário,<br />
Quinze horas por dia servindo, em troca de um salário<br />
Que me faz enrubescer.<br />
Na condução do trabalho, fico pensando na sina<br />
Dos miseráveis que pelas esquinas<br />
Dobram para sobreviver.<br />
Nessa linha de pensamento me pego horrorizado,<br />
Se o fundamental eu não tivesse cursado,<br />
Em que porta iria bater?<br />
Só sobraria a informalidade<br />
Talvez, quem sabe, a criminalidade,<br />
Até onde iria descer.<br />
Meu pai me ensinou hombridade,<br />
Somada a natural sagacidade,<br />
Comecei as coisas entender.<br />
É pelos meus filhos que leio,<br />
Nas histórias do próximo me espelho,<br />
O que faz a minha mente crescer.<br />
Não cursei faculdade,<br />
Mas me formei na cidade,<br />
Que enrijeceu meu ser.<br />
Um dia mando o patrão<br />
Se pendurar no busão,<br />
E vou com meus filhos correr...<br />
Saudades de você (Dinho Love) 4<br />
Há quanto tempo<br />
Você não aparece<br />
Estou com saudades<br />
Todo mundo percebe.<br />
A sua partida<br />
Me deixou muito abalado,<br />
Mas graças a Deus<br />
4 Edinaldo Gomes da Silva, confeiteiro, começou a escrever poesias no bar do Zé<br />
Batidão, inspirado pela <strong>Cooperifa</strong>.
O Rastilho da pólvora<br />
153<br />
Tenho amigos do meu lado.<br />
Os nossos filhos<br />
Estão sendo criados<br />
Com a mesma alegria<br />
Que você tinha passado.<br />
Fico sem forças<br />
Até para trabalhar.<br />
É muito pouca<br />
A vontade de sonhar.<br />
Só quero ter um sonho,<br />
O de um dia você poder voltar.<br />
Estou à sua espera,<br />
Não me canso de esperar.<br />
Não vejo a hora<br />
Que esse dia vai chegar.<br />
Pra você voltar<br />
E matar a minha saudade.<br />
Iremos juntos<br />
Para toda a eternidade.<br />
Vida cantada (grupo Versão Popular, 5 Cocão e Leandro)<br />
I é assim aonde só, comunidade a malandragem é sadia,<br />
Tem quem não quer aceitar a palavra que salva.<br />
Aqui os loco aceitou, deus é por nós, porém a voz<br />
Não só dos manos, então por que não?<br />
Um brinde a elas, exemplo de mulher que sempre age<br />
Com fé, pelo que der e vier,<br />
Representando até umas horas.<br />
É isso que é da hora,<br />
Junção, opinião, crítico não, pois cada um na sua então.<br />
Quem curte um beck, nóis aqui, quem canta um rap,<br />
5 O grupo Versão Popular nasceu em 1999, analisando a vida do povo da periferia.<br />
Em 2004, Cocão é convidado a conhecer o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> e muitos dos seus<br />
planos começam a mudar. Além de compositor e rapper, passou a ser um membro<br />
atuante da comunidade. Por influência de Cocão, os outros integrantes conheceram<br />
e se identificaram com o movimento poético. Para ele, a <strong>Cooperifa</strong> é a escola e uma<br />
extensão do trabalho do grupo.
154 <strong>Cooperifa</strong><br />
Outros lá, cabelo é black, é da raiz que fortalece,<br />
A cada dia cresce, é forte o fundamento, importante,<br />
Trouxe a nós conhecimento, firmou respeito.<br />
Aqui eu tô suave e observador,<br />
Sangue do meu sangue é o pai criador,<br />
Professor mostrou lição,<br />
Eu por ele, ele por nóis, seja qual for a questão.<br />
Humilde no fuscão, caranga não é do ano,<br />
Mesmo assim tá feliz,<br />
Por um triz, a humildade faltou pro irmão.<br />
Deixou uma deixa, deixou a mãe falando só pra se montar<br />
Nos pano, como é meu chapa,<br />
Falou, pagou de humilde, mas nem colou na aula.<br />
Sou mais comunidade, humildade, vida cantada.<br />
Vida cantada aqui, realidade.<br />
É de verdade humildade, não tem disfarce,<br />
Não tem dublê, se liga aí, sou mais comunidade.<br />
Eu boto fé nos irmãos.<br />
De coração, meu sentimento é sincero, o bem eu quero, venero,<br />
Emocionante tal sorriso de criança, inocente esperança,<br />
Participante do rap da dança,<br />
Igual a filha de Gabi, linda quando sorri,<br />
O Junim pequininim, já sabe o estopim que é,<br />
É aprendiz, muito me diz, respeita tio,<br />
Tá lado a lado, vejo o Douglas afilhado,<br />
Já esteve presente nos palcos,<br />
Momentos positivos me dão mais força pra cantar.<br />
Pode crer aí Cocão, representou grandão.<br />
Tô contigo nas idéias, irmão,<br />
Não abro mão de ser humilde ou não,<br />
Essa é a questão, que Deus abençoe a todos de bom coração.<br />
Pilantra no mundão, eu sei, tem de montão.<br />
São vários no veneno, pode crer, não é fácil não.<br />
Ser humano traidor, até hoje eu sinto a dor,<br />
Jesus a salvação, teve até quem duvidou.<br />
Humilde que nem ele, nunca mais você vai ver,<br />
Realidade sem disfarce, verdadeiro até morrer.
O Rastilho da pólvora<br />
155<br />
Vida cantada aqui, realidade,<br />
É de verdade, humildade não tem disfarce,<br />
Não tem dublê, se liga aí, sou mais comunidade,<br />
Eu boto fé nos irmãos.<br />
Pra mim foi bom demais registrar e cantar,<br />
Manifesto da favela faz os manos dançar e pensar,<br />
Se tá com nóis, vem que vem,<br />
Se é contra nóis, vem também, o que é que tem.<br />
Há males que traz o bem.<br />
Sofrimento estampado no rosto de alguém.<br />
Sorriso vazio felicidade não tem.<br />
O que você quer dizer, diz pra mim.<br />
Quem não quer ter uma casinha à pampa, um carrinho, um lazer,<br />
Pode crer, fazer o quê se a cena da novela<br />
É que comove o mundão.<br />
Se a falta de opção é que desanda os irmão.<br />
É desse jeito que é,<br />
Só vaidade, ambição, se errou, perdão.<br />
Bateu com a cara no chão,<br />
Então levanta pra missão, dá a volta por cima.<br />
Vamos lá, você vai ver, sofrimento não é sina,<br />
A vida nos ensina, abrace essa chance, amanhã pode não ter.<br />
A cena perigosa quem faz é você, sem dublê,<br />
Sucesso ou fracasso só depende de você.<br />
A vida é cantada do jeito que tem que ser.<br />
Povo (José Neto) 6<br />
Eu posso. Sou possível.<br />
Rasgo o verbo,<br />
Vivo a vida no improviso.<br />
Eu posso. Sou possível.<br />
Sou um pedaço da história<br />
Que já foi lido.<br />
6 José Neto é poeta e nasceu em Lins, interior de São Paulo. Começou como letrista<br />
em festivais de música na região e freqüenta há três anos o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.
156 <strong>Cooperifa</strong><br />
Uma corrente quebrada<br />
Cunhada no grito.<br />
Eu posso. Eu sou possível.<br />
Assumo o rumo sem rumo.<br />
Sem terra, sem lar...<br />
Do tempo, nenhuma lágrima...<br />
De tudo só tenho a ganhar,<br />
A luta mal começa<br />
E já vem outra batalha pra ganhar...<br />
Eu posso. Eu sou possível.<br />
Divido meu sorriso, meu pranto,<br />
É tanto e tão pouco.<br />
Eu posso. Sou possível.<br />
Começo tudo de novo.<br />
Sou pele. Sou raça.<br />
Sou povo.<br />
O vaso (Kennya) 7<br />
Estive lá presenciando vários fatos.<br />
Sempre ali na mesa da sala, em cima da toalha.<br />
Às vezes cheio de água,<br />
Minha companheira que dava vida às rosas;<br />
Que com o passar dos dias secavam<br />
E junto com a água velha iam embora.<br />
Estive sozinho na madrugada<br />
E cercado de pessoas durante o dia.<br />
Presenciei brigas, intrigas, risos e tristezas;<br />
Dando abrigo às flores recebidas nos teus aniversários.<br />
Estive lá com medo das festas, das ondas sonoras,<br />
Que abalavam meu corpo de porcelana.<br />
Fui tocado por crianças.<br />
Esquecido por ladrões.<br />
Admirado pelas visitas...<br />
7 Kennya é poeta da <strong>Cooperifa</strong> e faz parte do grupo de rap Denegrir. Kennya chegou<br />
na <strong>Cooperifa</strong> quando ainda era no Garajão. Era tão tímido que o Pezão achava que<br />
ele não falava porque era nascido no Quênia, país africano.
O Rastilho da pólvora<br />
157<br />
O tempo foi passando e fui ficando velho,<br />
Até que um dia...<br />
Perdi meu espaço por um outro novo vaso,<br />
Assim fui parar no teu quarto.<br />
Onde descobri os segredos de tuas confissões.<br />
Os mais profundos sentimentos.<br />
Me tornei porta-caneta,<br />
Todo sujo de tinta,<br />
Sobra de teus poemas.<br />
Estive lá quando você brigou com o namorado<br />
E na parede fui lançado num ato de desabafo.<br />
Todo quebrado me jogou no cesto de lixo.<br />
E naquela tarde de domingo<br />
Escutei os muitos risos, estalo de beijos;<br />
Você voltou com seu amor!<br />
Mais calma e arrependida me procurou na lixeira.<br />
Juntou-me em pedaços e emendou meus cacos<br />
Com a cola fedida, química nojenta...<br />
Tornei-me então um cinzeiro.<br />
Sem a beleza que encantou tantos olhos.<br />
Sinto a falta dos perfumes das rosas<br />
Toda vez que recebo o calor em brasa<br />
Das bitucas de cigarros...<br />
Eu continuo, eu estou lá.<br />
Coração de guerreiro (Preto Jota) 8<br />
Só os guerreiros vencem e permanecem na arena,<br />
Firmes e fortes, quebrando as algemas.<br />
Vêem a luz na escuridão, caminham na contramão.<br />
Com coragem e lealdade não desistem da missão.<br />
A vida é um desafio, só vence quem tem raça.<br />
8 Infelizmente, três meses após o lançamento do livro Preto Jota morreu assassinado,<br />
também como Jhay, misteriosamente, e em cima de uma moto. Preto Jota<br />
era um dos guerreiros mais combativos da <strong>Cooperifa</strong> e um grande incentivador de<br />
novos grupos de rap que nasceram ali no Sarau. Sua morte trouxe-nos a certeza que<br />
a luta contra a violência na periferia não podia parar. Além de uma profunda tristeza<br />
que se abateu por muito tempo no nosso movimento.
158 <strong>Cooperifa</strong><br />
O Gladiador sobe no pódio e ergue a taça.<br />
Mesmo no inferno, entre a rosa e a espada,<br />
O sol nasce todo dia e fortalece a caminhada.<br />
Disposto a subir, se tiver que ser assim.<br />
Eu não nasci pra semente, eu vou até o fim.<br />
Acreditando no sonho, criando a realidade.<br />
Não é o Jardim do Éden, mas procuro a felicidade.<br />
Retirando a pedra, me esquivando da maldade.<br />
O cospe fogo não abate quem corre pela verdade.<br />
Encarando a tempestade, nas ruas selvagens,<br />
Batendo de frente com a pilantragem.<br />
Eu quero a paz, mas vivo na guerra.<br />
O sofrimento lhe ensina a ser leão na selva.<br />
Discípulo sou um, não temerei mal algum.<br />
Anjo quarenta e cinco, guerreiro do lado sul.<br />
Propinolândia (Roberto Ferreira) 9<br />
Não é obrigatório,<br />
É apenas uma contribuição<br />
Pura agilização!<br />
Tudo pode ser não visto,<br />
Tudo pode ser mais rápido,<br />
Tudo pode ser mais tranqüilo,<br />
Tudo pode ser mais barato.<br />
Mas,<br />
Se não for possível<br />
Não tem problemas...<br />
A contribuição passa a ser oficial,<br />
Com direito a papel e carimbo.<br />
Tudo passa a ser visto,<br />
Tudo passa a ser mais lento,<br />
Tudo passa a ser cansativo,<br />
Tudo passa a ser mais caro!<br />
Você decide!<br />
9 Professor Roberto Ferreira é poeta e freqüentador assíduo do Sarau. Paranaense,<br />
47 anos, professor de geografia. Gosta de escrever poesias inspirado no cotidiano.
O Rastilho da pólvora<br />
159<br />
De copo em copo (Valmir Vieira) 10<br />
Se hoje eu choro, é por ti,<br />
Que um dia te foste<br />
Sem de mim se despedir.<br />
Suportei a sua falta,<br />
Ignorei a mim mesmo,<br />
Terminando-me de copo em copo.<br />
A saudade era tamanha,<br />
Com tristeza e sem vergonha,<br />
Me empurrava por aí.<br />
O tempo ia passando<br />
A saudade ia roendo,<br />
E a gente ia tentando<br />
Esquecer quem amou.<br />
Mas esquecer não é só falar,<br />
Precisa se fortalecer<br />
Para a vida continuar.<br />
É, seu moço, falar de amor<br />
É tão difícil, e ele tem altos e baixos,<br />
Coisas difíceis de explicar.<br />
Nego ativo (Márcio Batista) 11<br />
Quem me nega trabalho, negô<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Negro é homem trabalhador<br />
Todos sabem, ninguém pode negar.<br />
Quem me nega salário, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Meu suor tem valor, meu senhor<br />
Senhor ainda se nega a pagar.<br />
10 Valmir Vieira é poeta criado na <strong>Cooperifa</strong>, nasceu ali, junto com o Sarau no bar<br />
do Zé Batidão. Guerreiro inconteste do movimento.<br />
11 Márcio Batista é professor de Educação Física e poeta e um dos coordenadores<br />
da <strong>Cooperifa</strong> e está prestes a publicar seu primeiro livro.
160 <strong>Cooperifa</strong><br />
Quem me nega saber, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Negro hoje é professor<br />
Sabedor não se nega a ensinar.<br />
Quem me nega cultura, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Cultura é quilombo pro negro<br />
Ignorância é a sua senzala.<br />
Quem me nega batuque, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Samba, funk, rap, rock, reggae, pop<br />
Som pro Negro se expressar.<br />
Quem me nega a palavra, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Vou zumbir palavras pelo mundo<br />
De versos negros todo mundo falará.
O Rastilho da pólvora<br />
161<br />
Quem me nega oração, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Negro reza pra teus orixás,<br />
Pra Ogum, pra Xangô e Oxalá.<br />
Quem me nega a paz, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Nego-ativo livro o mundo sim senhor<br />
Zumbizando pro mundo se libertar.<br />
Quem nega a luta, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Capoeira é atitude do negro<br />
Atitude é a força pra lutar.<br />
Quem me nega a raça, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Preto é cor, negro é raça<br />
Sou negro e com raça não vou sonegar.<br />
Quem me nega justiça, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Justiça se faz com amor<br />
Negraz, a humanidade é incapaz ao julgar.<br />
Quem me nega amor, nego<br />
Não terá outra chance de negar<br />
Nega ama teu nego em nagô<br />
Negritude pro mundo amar.<br />
Me negaram de tudo<br />
Nesta terra de negro sem lar<br />
Sei que não me negas, senhor,<br />
Sou teu filho, ninguém pode negar.
162 <strong>Cooperifa</strong><br />
Motivos pra sonhar (Sales, o evolucionário) 12<br />
Meu Deus era milagre, estava tudo mudado<br />
Dentro da mesma igreja todos ajoelhados<br />
Pedindo perdão a Deus por tanto sangue derramado<br />
Bush, Bin Laden, Saddam e Arafat<br />
Tony Blair, Sharon não podiam faltar<br />
Mulçumanos e Católicos, Israelense e Palestinos<br />
Todos unidos cantando o mesmo hino<br />
Subindo ao altar o povo se emocionou<br />
Era o Fidel para rezar<br />
Pai nosso que estais no céu<br />
A partir daquele momento foi anunciado<br />
Que todo pranto do homem havia acabado<br />
A Aids e o câncer não assustavam mais<br />
Não existia adultério entre os casais<br />
Era tudo perfeito, não dava para imaginar<br />
Eu vi o Sabotage cantando Um bom lugar<br />
O Run DMC estava completo<br />
Big e 2Pac não saíram de perto.<br />
E os rappers todos juntos fizeram uma composição<br />
Eram trechos da Bíblia numa evangelização<br />
A igreja não era comércio, não explorava o fiel<br />
Ninguém dava dinheiro em troca de céu<br />
Eu vi um nordestino pulando e cantando<br />
Era eu, que pena...<br />
Eu estava sonhando<br />
Eis que você me pede<br />
Me dê motivos pra sonhar<br />
Meu mano, o mundo nunca foi e nunca será assim<br />
Grécia antiga, Jerusalém, Sodoma e Gomorra<br />
Nós pegamos este filme quase no fim<br />
O que podia ser feito não foi feito<br />
12 José Sales Azevedo Filho é poeta e um dos coordenadores da <strong>Cooperifa</strong>. Lembro<br />
quando ele chegou no Sarau indicado por amigos falando de paz, mas com um boné<br />
que tinha um fuzil estampado. Perguntei o motivo da contradição. Na outra semana<br />
ele apareceu com o boné, mas sem o fuzil estampado. Tínhamos ganhado mais um<br />
guerreiro pra nossa batalha. Eu, particularmente falando, ganhei mais um filho.
O Rastilho da pólvora<br />
163<br />
Com a desculpa que só Deus é perfeito<br />
E o homem é cheio de defeitos<br />
Ninguém tenta, ninguém quer se modificar<br />
É a única coisa que não nos cobram<br />
Me deixem sonhar.
Cap.06<br />
Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />
Centro<br />
Cultural<br />
Cap.06<br />
Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong>
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> sempre teve como filosofia o incentivo à<br />
leitura e a criação poética, e sempre foi um projeto de cidadania<br />
através da literatura. Quer dizer, essa idéia foi se formando ao<br />
longo dos dias, através de resultados que foram aparecendo.<br />
Muita gente começou a ler livros por conta do Sarau, seduzidos<br />
ali, no chão duro de um boteco, e sem que ninguém o obrigasse.<br />
A revista Caros amigos tem um papel muito importante nisso<br />
tudo, pois desde o começo de nossas atividades íamos buscar<br />
livros e revistas para distribuí-las gratuitamente para os participantes.<br />
Pelo menos uma vez por mês a gente estava lá na<br />
redação da Editora Casa Amarela enchendo o saco do Sérgio de<br />
Souza (in memorian) para descolar um pouco de conhecimento.<br />
Além disso, usamos várias datas comemorativas para distribuir<br />
livros como presentes que chegaram como doação ou de presente<br />
para a <strong>Cooperifa</strong>. Hoje o Zé mantém uma biblioteca dentro<br />
do bar, mas naquele tempo a gente presenteava as pessoas<br />
com tudo que chegava, para que elas não só lessem o livro, mas<br />
também o possuíssem.<br />
Certa vez o projeto do LEIA LIVRO que o Juliano comandava<br />
conseguiu uns cem livros novos e legais de ler para que a gente<br />
fizesse um dia das mães diferente na comunidade: toda mãe que<br />
fosse ao Sarau naquela semana ganhava uma rosa e um livro.<br />
Por ironia, hoje muitos deles estão lendo seus próprios livros.<br />
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Um dos nossos maiores orgulhos não é a formação de novos<br />
poetas e escritores, mas a formação de novos leitores escritores.<br />
Gente que se apegue ao livro pelo prazer da leitura e ao<br />
fortalecimento do senso crítico, não como um meio de vida. E<br />
através desse conhecimento adquirir coragem e humildade<br />
para voltar à escola, ou ingressar nas universidades, como muitos<br />
fizeram na <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Só para ficar em dois exemplos, o Dinho Love – ele ganhou esse<br />
apelido por conta de suas poesias românticas – disse que voltou<br />
a estudar porque queria escrever melhor; encarou o supletivo<br />
e agora só aparece quando não tem aula.<br />
No começo ele faltava às aulas na quarta-feira porque dizia<br />
que o Sarau era mais importante que tudo na vida dele, que ali<br />
sim ele aprendia alguma coisa. Mas aí ele começou a faltar no<br />
Sarau e um dia eu perguntei a ele por que ele não estava vindo<br />
mais; ele me respondeu que, apesar de todo amor que ele tinha<br />
pela <strong>Cooperifa</strong>, a escola era mais importante. Disse a ele que<br />
naquela hora ele realmente estava aprendendo alguma coisa.<br />
O Régis faz parte do grupo de teatro Ação e Arte e há muito freqüenta<br />
o Sarau.<br />
Depois de um tempo ele sumiu porque estava cursando jornalismo<br />
e não tinha mais tempo para a poesia. Pois não é que passados<br />
alguns anos ele volta e diz que para agradecer à <strong>Cooperifa</strong><br />
por todo incentivo para que ele voltasse a estudar, seu TCC seria<br />
sobre o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>? Pois é, assim foi. Hoje, formado, ele<br />
está de volta ao grupo.<br />
Mas como eu estava falando sobre o apego à leitura, os lançamento<br />
de livros também foram nossa grande arma para atingir<br />
esses objetivos: leitura e criação poética. Eis alguns nomes<br />
que lançaram livro no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>: Toni C., Alessandro<br />
Buzo, Ferréz, Sacolinha, Allan da Rosa, Fuzzil, Robson Canto,<br />
Tereza, Dinha, Ridson Dugueto, Elizandra, Akins Kinte, Binho,<br />
Serginho Poeta, Cidinha Silva, Eliane Brum, Ertom Morais,
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Adilson Lopes, Big Richards, Maurício Pestana, Edson Gabriel e<br />
Cadernos Negros. Só para ficar em alguns nomes mais conhecidos<br />
do Sarau.<br />
Também não foi diferente com o cinema. Como já tem muita<br />
gente produzindo, também levamos muitos documentários para<br />
que a comunidade pudesse ter acesso ao cinema de qualidade<br />
ao lado de casa, no Sarau. Se liga nos filmes:<br />
Solano Trindade – Intensidade de uma vida simples, Cia.<br />
Sansocrama e Núcleo de Comunicação Alternativa, 2 meses<br />
e 23 minutos; de Rogério Pixote e Fábio Ranzani; Zumbi somos<br />
nós, de Frente 3 de fevereiro; Balé no chão, de Lílian Santiago e<br />
Marianna Monteiro; Direitos esquecidos: moradia na periferia, do<br />
MTST – Acampamento Chico Mendes, Vaguei os livros e sujei com<br />
a merda toda, de Akin Kinte, Allan da Rosa e Mateus Subverso;<br />
Panorama: Arte na periferia, de Peu Pereira, David Vidad, Anabela<br />
Gonçalves e Daniela Embóm; Carolina de Jesus, de Jéferson De;<br />
O espetáculo democrático, de Guilherme César.<br />
Também só para ficar em alguns nomes conhecidos da gente.<br />
Em junho de 2008, será apresentado o documentário Povo lindo,<br />
povo inteligente, que conta a história da <strong>Cooperifa</strong>, produzido<br />
pela DGT Filmes. Não é o primeiro; em 2006 uma mulherada da<br />
PUC-Campinas fez um vídeo-documentário para conclusão de<br />
curso de jornalismo.<br />
As meninas Andréia Lédio, Carolina Lasca, Isabella Haddad e a<br />
Luana Dalmolin ficaram uns três meses curtindo o Sarau com a<br />
gente e fizeram um belo trabalho sobre ele.<br />
Já que estamos falando nisso, o professor Nilton Ferreira Franco<br />
fez uma tese de mestrado sobre o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>: O Sarau<br />
paulistano na contemporaneidade – <strong>Cooperifa</strong> Zona Sul, 1980-<br />
2006.<br />
Dissertação apresentada ao programa de mestrado da Universidade<br />
Presbiteriana Mackenzie como parte das exigências
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para a obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e História<br />
da Cultura.<br />
Eu e o Márcio Batista fomos assistir à defesa da tese lá no<br />
Mackenzie. Foi emocionante. Aliás, essa tese também serviu<br />
como pesquisa para escrever esse livro. Ah, só pra constar, ele foi<br />
aprovado com a nota 10, com louvor.<br />
Foram TCCs e documentários e trabalhos de faculdades sobre o<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong> e a literatura periférica.
CD de poesia<br />
da <strong>Cooperifa</strong><br />
O Sarau é um movimento que não pode parar, e em 2006 nós<br />
estávamos afim de fazer um CD com poesias para registro de<br />
áudio, já que o nosso trabalho tem tudo a ver com a oralidade.<br />
Para conseguir o apoio do Itaú Cultural usamos o mesmo expediente<br />
com o Edson Natale do departamento de música. Já<br />
vinha falando com ele sobre a possibilidade do projeto, e ele<br />
com o Eduardo Saron, até que um dia demos um xeque-mate<br />
lá no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. E mais uma vez eles aceitaram ser<br />
nossos parceiros.<br />
Aliás, uma vez, no programa “Provocações”, do Antônio Abujamra,<br />
na TV Cultura – SP, ele me perguntou:<br />
— Como uma idéia anárquica consegue apoio de um banco?<br />
Respondi a mesma coisa que havia falado para a revista Época<br />
numa matéria da Eliane Brum, e que gerou muita polêmica.<br />
— A periferia está aprendendo a tirar dinheiro dos bancos sem<br />
ter que usar um revólver na mão.<br />
Polêmicas à parte, escolhemos 26 poetas, os mais assíduos,<br />
para participar da produção do CD. Nossa única exigência era<br />
que não houvesse nenhum som, só a poesia, e que se preservasse<br />
a poesia: sua forma, o dialeto, a gíria e a simplicidade de<br />
cada um. A gravação do CD foi muito louca, porque todo mundo<br />
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queria ir ouvir a gravação do outro, por isso o estúdio vivia sempre<br />
cheio de gente e poetas.<br />
A exemplo do livro, todos os poetas iriam receber suas cotas em<br />
discos e cada um faria o que quiser com a sua parte, recebida<br />
sem ônus nenhum para cada participante. De mais a mais, a<br />
emoção foi a mesma do livro, só que agora a gente já era conhecido<br />
da rapaziada de lá.<br />
O Edson Natale ficou responsável pela produção geral e Juliana<br />
Sonoe pela produção fonográfica. Escrevi um texto no meu blog<br />
sobre o CD e pedi que o Natale também escrevesse alguma<br />
coisa sobre isso.<br />
CD da <strong>Cooperifa</strong><br />
Salve, salve, licença pra chegar,<br />
Acabei de pegar o CD do Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, é simplesmente<br />
maravilhoso.<br />
Só o encarte do CD tem mais de 30 páginas, vixe, o negócio é de<br />
outro mundo, o nosso mundo.<br />
Estou dando este toque pra que ninguém diga que eu não avisei,<br />
é dinamite pura.<br />
É a periferia em versos, nas vozes de seus reais representantes,<br />
sem cortes, sem censura e sem massagem.<br />
Não é aconselhável às pessoas alienadas, nem para aqueles que<br />
apreciam coisas pequenas, mesquinharias de supermercado,<br />
entendeu?<br />
Aconselho este CD para as pessoas que amam sua causa, não importa<br />
qual, mas aqueles que trazem no coração a grandeza da luta.<br />
Também não é aconselhável para os falsos super-heróis, que se<br />
destacam na multidão pelo marketing dos superpoderes.<br />
Este CD é a vitória do amor. Só isso. Nada mais.<br />
A todos que nos que nos amam, sintam-se abraçados.<br />
Mais feliz do que de costume, Sérgio <strong>Vaz</strong>
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Perto<br />
Tudo começou na quarta-feira<br />
A única certeza é que minha primeira visita aconteceu em uma<br />
quarta-feira, mas não me lembro o mês ou se estava calor ou frio,<br />
garoando, chovendo ou serenando. Além dessa informação óbvia,<br />
já que o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> acontece toda quarta-feira, sempre<br />
às 20:00h, o que ficou na memória foi o fato de que, ao entregar o<br />
pequeno papel ao motorista de táxi com a indicação do caminho<br />
(algo como “vá até a Estrada do M’Boi Mirim, na altura da Igreja<br />
de Piraporinha, vire à direita e suba até o fim, vire à direita novamente<br />
até chegar ao bar do Zé Batidão”) a reação foi imediata:<br />
“Não te aconselho a chegar até lá neste horário, e se eu fosse<br />
você iria durante o dia. Até lá, nesta hora, o senhor me desculpe:<br />
levo não...”.<br />
Eu também estava com medo e aquela era a deixa perfeita para<br />
desistir (nem o taxista quis me levar!), mas amigos próximos me<br />
falaram com tanto entusiasmo daquele sarau que eu cheguei a<br />
falar com outro motorista. Combinamos o preço e um adicional<br />
para que ele ficasse comigo durante algum tempo, pois considerei<br />
a possibilidade de não conseguir um táxi de volta para casa.<br />
Fomos, chegamos e ficamos. Fui apresentado pelo Sérgio <strong>Vaz</strong> ao<br />
Zé Batidão, o dono do local. Rapidamente eu e o taxista, Francisco,<br />
nos sentamos à mesa; havia uma garrafa de cerveja bem gelada e<br />
carne-de-sol com mandioca. O bar estava lotado; no lado oposto<br />
à nossa mesa, pendurada entre as grades, uma faixa: “o silêncio<br />
é uma prece”. Fiquei ali pensando: “será que essa idéia de gravar<br />
um CD com as poesias desse pessoal faz sentido?”.<br />
No bar, crianças e pessoas de todas as idades conversando e<br />
brincando. De repente (pelo menos pra mim), todos começaram<br />
a bater as mãos na mesa em uma dinâmica crescente, dizendo<br />
em coro: “Nós é ponte e atravessa qualquer rio, nós é ponte e<br />
atravessa qualquer rio, nós é ponte e atravessa qualquer rio, nós<br />
é ponte e atravessa qualquer rio!”. Comentei com Francisco, o<br />
taxista (ou ele comigo, já não me lembro): “E a gente estava com<br />
medo de vir pra cá!”.
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Os poetas foram chamados, um por um ao microfone, e diziam<br />
seus poemas − uns estáticos, outros andando entre as mesas,<br />
uns sem muita musicalidade, outros entoando seus versos como<br />
se fossem samba, rap etc.<br />
O CD com as poesias já fazia todo o sentido. No dia seguinte,<br />
começou a fazer sentido também para o Itaú Cultural, quando<br />
Eduardo Saron, superintendente de atividades culturais do instituto,<br />
visitou o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Outro fato que ficou marcado para mim foi a primeira conversa de<br />
trabalho a respeito da produção do CD. Eu disse ao Sérgio <strong>Vaz</strong> que<br />
poderíamos colocar algumas intervenções sonoras, pensadas<br />
poema por poema: uma sanfona em um poema, um clarinete em<br />
outro, um pandeiro aqui ou um sampler acolá...<br />
É preciso dizer que, depois, aprendi a ler o olhar do Sérgio <strong>Vaz</strong>. Ele<br />
ouve as pessoas com a maior atenção, mas, depois de um tempo<br />
de convivência, você percebe que ele só não corta logo a conversa<br />
por puro respeito, paciência ou comiseração mesmo: “Bem legal,<br />
Natale! Mas olha só: o pessoal prefere só os poemas mesmo, sem<br />
maquiagem, sem frescuras. A nossa paixão é a palavra, purinha,<br />
purinha. Vamos deixar esse negócio de música pra lá...”.<br />
Marcamos o estúdio e gastamos cerca de 50 horas para as gravações,<br />
em seis ou sete sessões. Sugeri que eles se dividissem em<br />
blocos: já que não conseguiríamos gravar todos no mesmo dia,<br />
poderiam ser organizados grupos, assim não precisariam sofrer<br />
com o trânsito de São Paulo do final da tarde, já que do bar do<br />
Zé Batidão, que fica perto do Capão Redondo, até o estúdio, no<br />
Butantã, era uma boa caminhada. Além disso, seria mais “produtivo”<br />
se trabalhássemos com menos pessoas de cada vez. Acho<br />
que essa minha sugestão foi feita em uma conversa com o Sérgio<br />
<strong>Vaz</strong>, o Marco Pezão e o Jairão (Jairo Barbosa), músico do grupo<br />
PeriAfricania. Dessa vez foram três os olhares, que podem, em<br />
palavras, ser traduzidos para: “Esse cara não tá entendendo...”. E<br />
foi do jeito deles: logo no primeiro dia (e em todos os outros) praticamente<br />
todos estiveram ali. Quem não gravava ficava proseando,<br />
torcendo, participando... Bingo! Finalmente eu havia aprendido o<br />
significado da palavra comunidade...
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Conheci todos os que participaram do disco. Naqueles momentos<br />
que antecedem a gravação, embaixo da jaqueira (acreditam<br />
que tem estúdio em São Paulo com jaqueira?!) a conversa corria<br />
solta. Os poetas e poetisas eram (são) fotógrafos, professores,<br />
motoristas, vigilantes, metalúrgicos, desempregados, donas de<br />
casa, músicos, poetas, donos de bares, funcionários públicos,<br />
feirantes, taxistas, babás, padeiros etc. Quando começamos a<br />
discutir como seria a capa, eu, já escolado, primeiro perguntei o<br />
que imaginavam. Foi consenso: “Queremos só um microfone na<br />
capa, em uma foto lá no Zé Batidão. Nada mais...”.<br />
O libreto do CD traz um texto do Sérgio <strong>Vaz</strong>. Parte dele diz: “...O<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong> é nosso quilombo cultural. A bússola que guia<br />
a nossa nau pela selva escura da mediocridade. Somos o grito de<br />
um povo que se recusa a andar de cabeça baixa ou de joelhos...”.<br />
Pessoalmente essa experiência foi uma espécie de bússola que<br />
ganhei para estreitar as distâncias entre o que penso e falo e o<br />
que penso e faço (acredito que também tenha sido assim para o<br />
Itaú Cultural). Foi bacana quando saímos em caravana para o lançamento<br />
do CD. Estávamos ali, parte da equipe do Itaú Cultural,<br />
comemorando no Zé Batidão uma conquista coletiva com a<br />
<strong>Cooperifa</strong> e seus poetas. Cerveja, mandioca e carne-seca e muito<br />
riso e pouco siso. Acho que isso também é poesia...<br />
Edson Natale<br />
Gerente do Núcleo de Música do Itaú Cultural<br />
A realização deste que é o primeiro CD do <strong>Cooperifa</strong> só foi possível<br />
graças à parceria do grupo com o Itaú Cultural. Em 2004,<br />
a instituição, em conjunto com a Associação Basílio da Gama,<br />
também incentivou e ajudou a divulgar a poesia urbana da periferia<br />
com a edição do livro Rastilho da Pólvora, com a obra de<br />
53 poetas.<br />
Para o lançamento do CD foi preciso duas festas, uma no Sarau<br />
da <strong>Cooperifa</strong> e outra no Itaú Cultural. As duas foram loucas. Na<br />
<strong>Cooperifa</strong> o bagulho endoidou de tanta gente e tanta emoção.
Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />
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Leia o que pensam Marco Pezão e Márcio Batista sobre a parceria<br />
do Itaú Cultural com a <strong>Cooperifa</strong> no CD de poesia.<br />
Marco Pezão:<br />
As poesias, no Sarau, sempre se orientam para a obtenção de um<br />
viés crítico em relação às questões sociais. Sobre isto, não resta<br />
dúvida. Mas há uma realidade prática que demanda ações que<br />
temos que desempenhar para a manutenção da própria vida.<br />
Hoje, tudo está dentro do capitalismo, não há quase atitudes que<br />
possam escapar dessa lógica econômica que envolve a todos.<br />
Carrego a opinião que se o Estado não cumpre suas obrigações<br />
como bem o deveria, então o setor privado deve fazê-lo.<br />
Alguém tem que fazer alguma coisa diante da urgência e de toda<br />
carência social que existe atualmente.<br />
Márcio Batista:<br />
Trabalhar uma poesia crítica voltada para a melhoria cultural da<br />
comunidade é uma das metas da <strong>Cooperifa</strong>; mas há uma situação<br />
real a se enfrentar, que é a falta de dinheiro na comunidade.<br />
Nesse sentido, o Itaú Cultural nos ajudou muito e somos muito<br />
gratos a ele.<br />
É importante, hoje, a <strong>Cooperifa</strong> aproveitar esta oportunidade que<br />
apareceu com a parceria para promover a arte na quebrada e<br />
fazer com que esse modelo de ação positiva saia do gueto e possa<br />
ser visto de modo mais amplo por outras pessoas. Lutar para que<br />
as nossas atividades não caiam no isolamento, no abandono e no<br />
esquecimento é fundamental para projetos culturais.<br />
Leia também o pronunciamento do Eduardo Saron (Superintendente<br />
do IC) no lançamento do CD da <strong>Cooperifa</strong>, lá no bar do<br />
Zé Batidão.<br />
Eduardo Saron:<br />
Primeiramente compramos um sonho: não apostamos no que<br />
vai ser pesadelo. Quando o Claudiney Ferreira me ligou de Porto<br />
Alegre, do Programa “Jogo de idéias”, em 2004, para falar sobre o
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projeto de se fazer um livro com a <strong>Cooperifa</strong>, acabamos optando<br />
pelo apoio, porque entendemos que a turma do movimento era<br />
do bem.<br />
Quanto à oportunidade de lançarmos o CD, nós tínhamos duas<br />
opções: ou lançar no Itaú Cultural ou aqui na <strong>Cooperifa</strong>. E mais<br />
uma vez preservamos esta relação que estabelecemos entre as<br />
partes – nós apostamos em lançar aqui, porque é essa identidade<br />
que, num bom sentido, queremos roubar para nós.<br />
Queremos ver o que está acontecendo.<br />
A atitude de virmos até aqui é justamente para dividir uma coisa<br />
que está nítida no olho de cada um, na manifestação de cada um,<br />
que é um pouco desta felicidade. Apostamos nesse projeto, estamos<br />
juntos. Não com a intenção de amanhã ter um Banco Itaú<br />
abrindo aqui para vocês abrirem conta. Não é com esta relação. A<br />
intenção é dividir com vocês um pouco desta felicidade que vocês<br />
têm aqui às quartas-feiras. Não sou eu que estou dizendo, é a<br />
revista Época, onde o próprio Sérgio <strong>Vaz</strong> foi noticiado.<br />
Esta não é primeira parceria, é a segunda vez que estamos aqui<br />
juntos exercendo um trabalho. A primeira foi o livro, agora o CD.<br />
Não sei quantas vezes mais estaremos, só sei que estamos afim<br />
de dividir um pouco mais de felicidades com vocês.<br />
Fazer cultura não é somente ficar lá no alto da avenida Paulista<br />
pensando e imaginando o que o Brasil está pensando. Fazer cultura<br />
é vir aqui, pisar um pouco com vocês, sentir um pouco com<br />
vocês, e isto nós estamos fazendo – muitíssimo obrigado.<br />
Depois de tudo isso, cada poeta recebeu sua cota de disco<br />
pela sua participação e o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> rolou solto no bar<br />
do Zé Batidão, e a nossa poesia, do jeitinho que a gente faz,<br />
estava registrada para sempre, em 26 poemas: “Mina da periferia”,<br />
de Marco Pezão; “Palavras com P de alma”, da Professora<br />
Lili; “Antônio”, de Helber Ladislau; “Cibernético”, de Carlos<br />
Silva; “Um sonho”, de Sérgio <strong>Vaz</strong>; “Campo Limpo Taboão”, de<br />
Binho; “Pobreza”, de Mavotsirc; “Precisão”, de Allan da Rosa;<br />
“Andarilho”, de Célia Harumi; “Ratos, ratos, ratos”, de Marcelo<br />
Beso; “Tudo bacana”, de Roberto Ferreira; “Um rolê”, do Grupo
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PeriAfricania; “Motivos pra sonhar”, de Sales; “Ritual”, de Rosy<br />
Eloy; “Inspiração de amor”, de Dinho Love; “Povo”, de José Neto;<br />
“O pecado”, de Casulo; “Alienação”, de Fábio C.R.J.; “Liberdade”,<br />
de Timbó; “Uniosversos”, de PH Boné; “Amor composto”, de<br />
Augusto; “Nêgo Ativo”, de Márcio Batista; “A vida é cantada”,<br />
do Grupo Versão Popular; “De copo em copo”, de Valmir Vieira;<br />
“Menina pretinha”, de Elizandra Souza e “O homem necessita se<br />
casar”, de Seu Lourival.
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Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />
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Cap.07<br />
1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong>
Quando o Sarau ainda era no Garajão, no final de 2002, queríamos<br />
agradecer aos freqüentadores com um presente pela<br />
participação daquele ano em nossos encontros. Nós pensamos<br />
numa medalha como prêmio.<br />
O Pezão falou com o Daniel e a Claudia Funari, que deram uma<br />
força, e eu falei com o amigo e professor Said, que ajudou na<br />
aquisição de cem medalhas que nós distribuímos como lembranças<br />
para os poetas e freqüentadores. Mas a idéia de um<br />
prêmio para fortalecer os ideais da <strong>Cooperifa</strong> só estava começando.<br />
Assistindo à entrega do Oscar um dia desses, eu pensei:<br />
Por que não?<br />
Falei com o Pezão que deveríamos criar um prêmio, principalmente<br />
para os poetas, mas que a gente se estendesse para pessoas<br />
da comunidade e para todos aqueles que direta ou indiretamente<br />
ajudassem a periferia a se tornar um lugar melhor<br />
para viver.<br />
Com a idéia do prêmio na cabeça, outro dia eu estava passeando<br />
com a Sônia na feira de artesanato que acontece em Embu das<br />
Artes, e vi um Dom Quixote de bronze em uma banca de um artesão.<br />
Mano, fiquei louco com a peça, mas ao perguntar quanto<br />
custava, fiquei mais louco ainda: “impossível”, pensei.<br />
A gente tinha pouca grana, só um cachê de um evento que a<br />
gente tinha feito com a Brava Cia., mas o evento teria que ser<br />
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O Bonde da <strong>Cooperifa</strong><br />
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1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong><br />
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louco. Descobrimos um cara que fazia troféus para times de<br />
futebol e fomos conhecê-lo em Santo Amaro, eu e o Pezão.<br />
Chegamos lá, falamos com o cara, cujo nome infelizmente não<br />
lembro, sobre o nosso objetivo e coisa e tal. O cara ficou todo<br />
entusiasmado com o projeto e até nos mostrou um livro que ele<br />
tinha escrito sobre ética e cidadania, e que ele apreciava muito<br />
a nossa iniciativa.<br />
Vimos vários modelos e cores até chegar em um com o qual a<br />
gente simpatizou e que dava para a gente pagar. Ele era todo<br />
de vidro, marrom, e com o logotipo da <strong>Cooperifa</strong> no alto do troféu.<br />
Bonito. Encomendamos 110 troféus. A gente queria premiar<br />
todas as pessoas que a gente achava que representavam<br />
de alguma forma a periferia, não ia haver votação nenhuma: a<br />
gente ia escolher quem a gente quisesse, não cabendo recurso<br />
ou choradeira.<br />
A festa de entrega tinha que ser no bar do Zé Batidão e nós estávamos<br />
afim de reunir o maior números de guerreiros e guerreiras<br />
da periferia possíveis nesse dia. De mais a mais, a entrega<br />
do prêmio também ia encerrar as atividades do ano de 2005,<br />
então a perifa precisava estar em grande estilo para esse dia.<br />
Como a gente tinha poucos troféus, a escolha não foi muito<br />
fácil. O mais engraçado foi que no dia que receberíamos o troféu,<br />
o cara que tinha escrito o livro sobre ética e cidadania não<br />
entregou o produto combinado, e sim um inferior, alegando falta<br />
do material, só que ele queria cobrar o mesmo preço.<br />
Lembro que eu e a Sônia tínhamos ido buscar o dinheiro para pagar<br />
o cara, e o Pezão ligou dizendo para a gente ir rápido para casa que<br />
havia algum problema com os troféus. Resumindo: eu queria que<br />
ele engolisse o troféu, e a Otília, esposa do Pé, queria bater nele,<br />
mas aí ele fez um desconto e ficou por isso mesmo. Como disse a<br />
Otília, nada poderia estragar nossa festa, e assim foi.<br />
Leia abaixo quem foram os primeiros agraciados com o 1º<br />
Prêmio <strong>Cooperifa</strong>:
188 <strong>Cooperifa</strong><br />
Literatura<br />
Marco Pezão<br />
Márcio Batista<br />
Adilson Lopes<br />
Sérgio <strong>Vaz</strong><br />
A poesia dos deuses inferiores<br />
Alessandro Buzo Suburbano<br />
Convicto<br />
Allan Da Rosa – Vão<br />
Augusto<br />
Big Richards<br />
Hip Hop conciência e atitude<br />
Binho<br />
Dinho Love<br />
Helber Ladislau<br />
Erton De Morais<br />
José Neto<br />
Kennya<br />
Sandra Alves<br />
Pillar<br />
Samanta Pillar<br />
Roberto Ferreira<br />
Sacolinha – Graduado em<br />
marginalidade<br />
Valmir Vieira<br />
Professora Lu<br />
Professora Lili<br />
Tereza<br />
Paula Preta<br />
Rose – Espírito de Zumbi<br />
Mavortisirc<br />
Marcelo Beso<br />
Harumi<br />
Seu Lourival<br />
Natália<br />
Cazulo<br />
Marinh<br />
Elizandra<br />
Toni – Hip Hop a lápis<br />
Euller Alves<br />
Mauricio Marques<br />
Sônia Pereira<br />
Personalidades Importantes<br />
Asduba<br />
Marcelo Ribeiro<br />
Rose – musa da <strong>Cooperifa</strong><br />
Família Retrão<br />
Dra. Elizabeth Takase<br />
Paco Produções<br />
Paulo Magrão – Capão Redondo<br />
Projetos<br />
Samba da Hora<br />
Samba da Vela<br />
Rastilho da Pólvora – Itaú Cultural<br />
CD da <strong>Cooperifa</strong> – Itaú Cultural<br />
Ferréz – Literatura Marginal<br />
Magrela´S Bike<br />
Rainha da Paz<br />
Monte Azul<br />
Bloco do Beco<br />
Casa dos Meninos<br />
Zé Batidão<br />
Ricardo – perueiro<br />
Prof. Carlos Giannazi –Universidade<br />
pública<br />
Jeferson De – Produtora<br />
Barraco Forte<br />
Mario Bibiano – Artes plásticas<br />
Ali Sati – Empresa Amiga<br />
Prof. Nilton Franco<br />
Itapoesia<br />
O autor na praça<br />
Movimento Negro Unificado–<br />
Milton Barbosa<br />
Biblioteca Zumaluma<br />
Favela do Inferninho
1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong><br />
189<br />
Eventos<br />
Ponte Preta – festa do dia das<br />
crianças<br />
PANELAFRO – Casa de Cultura<br />
M’Boi Mirim<br />
Leia Livro<br />
Casa das Rosas<br />
Teatro<br />
Grupo Cavalo de Pau<br />
Manicômicos<br />
Ação e Arte<br />
Zezé Mota – atriz<br />
Música<br />
Carlos Silva<br />
Versão Popular<br />
Záfrica Brasil<br />
Grupo 2hO<br />
PeriAfricania<br />
PH Boné<br />
Sabedoria de Vida<br />
Diney do Gueto<br />
Banda Varal<br />
Fábio<br />
Sales<br />
Wesley Nóog<br />
Thaíde<br />
Mano Brown – Racionais MCs<br />
Leandro Lehart – Art Popular<br />
Grupo Papo de Família<br />
Gog<br />
Afro-X<br />
Dexter<br />
A Família<br />
Jornalismo<br />
Becos e Vielas<br />
Revista Caros amigos<br />
Gazeta de Taboão<br />
Jornal Hoje – Taboão<br />
Revista Rap Brasil<br />
Programa “Provocações” – TV<br />
Cultura<br />
“SP Comunidade” –SPTV<br />
Estação Hip Hop<br />
Site Real Hip Hop<br />
Site Bocada Forte<br />
Fotografia<br />
Eduardo Toledo<br />
Educação<br />
Escola Mauro Faccio Zacaria<br />
teve a coragem de levar os alunos<br />
no Sarau<br />
Comunicação<br />
Espaço Rap
190 <strong>Cooperifa</strong><br />
Leia o texto que escrevi sobre o dia no meu blog 1 no dia 22 de<br />
dezembro de 2005:<br />
A FESTA DE ENTREGA DO 1º PRÊMIO COOPERIFA FOI UMA<br />
NOITE INESQUECÍVEL PARA A PERIFERIA.<br />
A festa de entrega do Troféu <strong>Cooperifa</strong> acabou se transformando<br />
numa noite inesquecível para as quase seiscentas pessoas que<br />
compareceram no bar do Zé Batidão. Já prevendo a lotação do<br />
bar, foi instalado um enorme telão na praça em frente, para que<br />
aqueles que não conseguissem entrar não perdessem nada do<br />
que rolava da festa.<br />
Num clima de extrema amizade e alegria, as pessoas foram sendo<br />
tomadas pela emoção que ocupava até os corações desavisados<br />
dos que passaram por lá. As pessoas foram chegando aos montes,<br />
e de todas as quebradas. À pé, de carro e de ônibus. Vans, peruas<br />
(automotivas, é claro!) e ônibus fretados traziam guerreiros e<br />
guerreiras para a grande noite dos heróis que travam batalhas<br />
nas sombras.<br />
Nada mais revolucionário que evoluir.<br />
O bar foi todo decorado com pipas, símbolo da <strong>Cooperifa</strong>, pelos<br />
organizadores do evento, que trabalharam até minutos antes para<br />
que nada desse errado. É difícil citar nomes sem cometer injustiças,<br />
mas... foda-se. Valeu Pezão e Otília, Márcio Batista e Danilo,<br />
Versão Popular, Sales, Jú e Jairo, Marcelo, Sônia e Mariana, Ali<br />
Sati, Zé, Magda, Tiana, Grupo Espírito de Zumbi, Mesa Redonda,<br />
Mavortisic e Lu, Cleide, Rose Negona, Rose, poetas da <strong>Cooperifa</strong><br />
que trabalharam para que tudo desse certo, Valmir Vieira, José<br />
Neto, Paco Produções, quem mais...? Buzo, Sacolinha, Ferréz,<br />
Toni C., Becos e Vielas, Casa de Cultura M’Boi Mirim, Magrela’s<br />
Bike, Brown, Afro-X, a Família, Jeferson De, Manicômicos, Carlos<br />
Giannazi, Toninho, Valter,Big Richard... assim que for lembrando a<br />
gente vai nomeando. Muita gente maravilhosa que foge à memória,<br />
mas está guardada no coração.<br />
1 www.colecionadordepedras.blogspot.com
1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong><br />
191<br />
Muitas pessoas atestam que até agora ainda não entenderam<br />
muito o que aconteceu nesta noite mágica. Muitos ainda estão<br />
chapados pela emoção que se abateu sobre todos.<br />
Não há nada para entender, era apenas uma noite repleta de<br />
seres humanos brasileiros contemplando a vida como ela deveria<br />
ser: viva!<br />
“Desculpem as lágrimas da felicidade, é que quando o coração<br />
tem um orgasmo ejacula pelos olhos”.
o<br />
oop
nde<br />
er<br />
Cap.08<br />
O Bonde da <strong>Cooperifa</strong>
Sarau da<br />
<strong>Cooperifa</strong> em Suzano<br />
194
O Bonde da <strong>Cooperifa</strong><br />
195<br />
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> é um movimento de poesia da periferia,<br />
e assim tem sido durante esses seis anos de atividades, mas<br />
isso não significa que a gente nunca saiu do bar. Saímos poucas<br />
vezes, mas essas vezes foram de grande impacto para nós e<br />
para as pessoas que nos convidaram.<br />
Só para se ter uma idéia, quando nós fomos à cidade de Suzano<br />
a convite do escritor Sacolinha, nós fomos em mais de sessenta<br />
pessoas, entre poetas e nossos convidados. Depois fomos mais<br />
umas duas vezes.
Sarau da <strong>Cooperifa</strong><br />
na Casa das Rosas<br />
Um outro lugar em que o Sarau gosta muito de se apresentar é<br />
na Casa das Rosas, presidida pelo poeta Frederico Barbosa, que<br />
é um grande amigo da <strong>Cooperifa</strong>. Sempre que há um evento de<br />
poesia ele nos recomenda. Entre essas várias vezes teve uma que<br />
foi especial para a gente e para o público da Casa das Rosas.<br />
No aniversário de São Paulo de 2006 a Casa das Rosas programou<br />
um evento intitulado “SAMPOEMAS” e eu fui convidado<br />
para comandar o sarau da Paulista, só que caiu numa quartafeira,<br />
e quase no mesmo horário do Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Por isso<br />
só foi o Pezão representando os poetas da <strong>Cooperifa</strong>, e eu apresentando<br />
os poetas da Paulista e região.<br />
Na Casa das Rosas o público lotou o espaço, mais de cem pessoas,<br />
e quase quarenta para recitar poemas para a mega Sampa.<br />
Na <strong>Cooperifa</strong> duzentas pessoas lotavam o bar do Zé Batidão na<br />
periferia da Zona Sul de São Paulo. Ou seja, no aniversário de<br />
Sampa tinha mais de trezentas pessoas comungando a poesia.<br />
A certa altura liguei para o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, ao vivo da Casa<br />
das Rosas, e coloquei o celular no microfone e pudemos ouvir a<br />
poesia rolando direto da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
196
O Bonde da <strong>Cooperifa</strong><br />
197<br />
Depois invertemos o processo e colocaram o celular no microfone<br />
da <strong>Cooperifa</strong>. Na Casa das Rosas todos aplaudiram o Sarau<br />
da <strong>Cooperifa</strong>, e depois todos da <strong>Cooperifa</strong> aplaudiram o público<br />
da Casa das Rosas. Loucura total.<br />
Ambos os lados entraram em êxtase nesta noite memorável<br />
onde todos puderam transformar tempo e espaço a favor da<br />
humanidade.
Colecio<br />
Cap.09<br />
Colecionador de pedras
Livro<br />
Colecionador<br />
de pedras<br />
Na esteira do barulho que a literatura da periferia estava fazendo<br />
em dezembro de 2006 eu lanço meu quarto livro, Colecionador<br />
de pedras, que é um resumo dos meus vinte anos de poesias.<br />
Como era um livro comemorativo e com poucas poesias inéditas,<br />
apesar de ser independente, ele teria que ficar bem produzido.<br />
Sem grana novamente, consegui apoio da Eutotur Turismo,<br />
do bom e velho amigo de sempre, Ali Sati.<br />
Tinha pensado em uma capa com a imagem de um estilingue, e<br />
por isso encomendei um desenho ao South, do estúdio INCA, no<br />
Capão Redondo, mas como eu não conseguia terminar o livro o<br />
estilingue foi perdendo o sentido. O South fez uma capa muito<br />
bonita para mim e eu acabei não aproveitando; aproveito aqui<br />
para agradecê-lo e desculpar-me pela deselegância.<br />
Estava com uma idéia de pipas na capa, e tinha visto um com o<br />
Bne (Vadiagi) que faz uns grafites bem locos e que é do Jardim<br />
Leme, aqui em Taboão da Serra. Mano, quando eu vi o desenho<br />
pirei na hora: é esse mesmo!<br />
200
Colecionador de pedras<br />
201<br />
O livro ainda contava com textos de apresentação do Toni C. (Hip<br />
Hop a Lápis) e o Nelson Maca (Blackitude/BA). O Eduardo Toledo<br />
fez a produção da capa; a fotografia é do Jefferson Dias; editoração<br />
Célia Harumi Seki; revisão Marcelo Beso Veronese; e aí, no<br />
dia 6 de dezembro, no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, eu lancei o livro que<br />
celebrava meus vinte anos de poesia.<br />
Mais tarde este mesmo livro iria abrir a coleção Literatura periférica,<br />
da Global Editora.
Café Literário em<br />
Taboão da Serra<br />
A poesia estava pulsando em todos os lugares da periferia do<br />
Estado de São Paulo, faltava na minha cidade. Não estava afim<br />
de fazer um outro sarau nos moldes da <strong>Cooperifa</strong>, mas também<br />
não sabia o que eu queria fazer.<br />
Certo dia, quando trocou o prefeito na cidade, Dr. Fernando,<br />
pelo atual Dr. Evilásio, eu conheci a assessora do secretário da<br />
Educação e Cultura, Celso Callegari, Marta de Betânia, e falei<br />
das minhas intenções poéticas.<br />
Ela, que vinha da Casa de Cultura de Santo André e conhecia<br />
o pessoal da Casa de Hip Hop de Diadema, se empolgou muito<br />
com a idéia, e sugeriu que a gente fizesse um sarau, mas com<br />
um outro nome, para desvincular um pouco da <strong>Cooperifa</strong>, e<br />
assim surgiu o Café Literário em Taboão da Serra.<br />
Coordenei este projeto por mais de um ano e ele sempre acontecia<br />
na segunda segunda-feira de cada mês. O Café não tinha<br />
muito a ver com o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, mas a maioria dos poetas<br />
era de lá.<br />
A poesia não podia parar e a cada Café Literário a gente convidava<br />
uma escola para assistir. Sem perceber, a poesia estava<br />
novamente voltando para casa.<br />
202
Colecionador de pedras<br />
203
Sarau<br />
da Coopeirfa<br />
nas escolas<br />
O Café Literário era realizado somente uma vez por mês, por isso<br />
eu achava que a poesia precisava de mais tempo para sobreviver,<br />
mas, por falta de oxigênio, o Café foi acabando aos poucos.<br />
Porém, uma coisa tinha ficado na minha cabeça: a poesia tinha<br />
que freqüentar a sala de aula novamente.<br />
Por isso decidimos que se os professores e alunos não podiam<br />
freqüentar o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> iria até<br />
eles, e no ano de 2007 começamos a visitar as escolas da região.<br />
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> era composto mais ou menos de 15 a vinte<br />
poetas e era realizado todas as terças-feiras. Como a <strong>Cooperifa</strong> é<br />
muito conhecida na região, foi fácil programar esses encontros;<br />
aliás, as diretoras e professoras estavam sempre cobrando as<br />
nossas visitas. Novamente foi muito bom ter o contato com os<br />
alunos, pois, como já disse anteriormente, na periferia a palavra<br />
poesia, ou poeta, parece coisa de estrangeiro, ou extra-terrestre:<br />
as pessoas já ouviram falar, mas não sabem se existe.<br />
A luta pela divulgação da poesia não podia parar, por isso visitamos<br />
mais ou menos umas vinte escolas, e com média de cem a<br />
204
Colecionador de pedras<br />
205<br />
150 alunos por Sarau, e em cada lugar que a gente chegava era<br />
possível perceber a alegria e o orgulho que a <strong>Cooperifa</strong> levava<br />
às pessoas, e não só pela palavra, mas eles sentiam força na<br />
nossa postura de levar cidadania através da literatura.<br />
E em todo lugar que a gente ia tinha sempre alguém que tinha<br />
algum escrito que tirava da gaveta ou da memória e participava<br />
com a gente de forma livre e espontânea. Muitos nem acreditavam<br />
que a gente era da comunidade, e muitos ficavam admirados<br />
que a maioria dos escritores que estavam assistindo se<br />
pareciam com eles. E o que é melhor, falando no mesmo idioma:<br />
a língua do povo.<br />
Nesse curto período de Sarau nas escolas nós falamos poesia<br />
para mais ou menos umas quatro mil pessoas de várias comunidades<br />
da periferia, e boa parte delas viraram freqüentadores do<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, mas o que mais marcou a gente foi a alegria<br />
dos professores nesses encontros.<br />
E a gente pode perceber que apesar de todo esforço do Estado<br />
em destruir a educação, ainda tem muitas guerreiras e guerreiros<br />
entrincheirados nas salas de aulas tentando impedir que<br />
isso aconteça. Descobrimos uma outra coisa nesses encontros:<br />
escola + poesia = conhecimento.
206 <strong>Cooperifa</strong>
Colecionador de pedras<br />
207
Ajoelhaço<br />
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> todo ano comemorava o Dia Internacional<br />
das Mulheres com poesias dedicadas às guerreiras da comunidade.<br />
Mas aí, com o tempo, a gente achou que era chover no<br />
molhado. Pois todo mundo fazia isso, e em todos os lugares.<br />
Outra coisa que a gente rechaçou logo de cara foi presenteálas<br />
com rosas, bombons ou qualquer outra coisa que alguém já<br />
tivesse feito.<br />
Mas mal os homens sabiam que elas tinham planejado, produzido<br />
e realizado um Sarau totalmente diferente para nós. Para<br />
nós, não por nós. Vai vendo a ironia. O Sarau neste dia começou<br />
com as guerreiras nos presenteando com botões de rosa. E<br />
logo em seguida assumiram o Sarau completamente, e nenhum<br />
homem foi convidado para falar. Nenhum.<br />
Todas as mulheres falaram poesia e textos que relatavam a covardia<br />
e o machismo que impera no Brasil. Recitaram sobre a violência,<br />
o descaso, a sobra de sexo e a falta de orgasmo. Ficamos ali,<br />
uns duzentos caras tomando um tremendo esculacho pelas nossas<br />
grosserias ao longo de toda a existência da humanidade.<br />
Enquanto éramos colocados no nosso devido lugar, já tínhamos<br />
combinado que ao final do Sarau todos os poetas e convidados<br />
iriam à frente, de joelhos, implorar pelo perdão feminino.<br />
Enquanto o Sarau ia acabando, a gente ia combinando. Alguns,<br />
ou a metade, já começava a afinar, e dizer que ajoelhar já era<br />
208
Colecionador de pedras<br />
209<br />
demais, e coisa e tal. Sabíamos que não ia ser fácil fazer o<br />
machismo se curvar, mas tínhamos que tentar.<br />
Ao final fomos para a frente e começamos a nos posicionar para<br />
o ajoelhaço, como ficou conhecido esse evento, enquanto as<br />
mulheres gritavam: Ajoelha! Ajoelha! Ajoelha! A gente foi chamando<br />
a galera. Uns vinham meio desconfiados, outros fugiam<br />
para o banheiro ou para o lado de fora do bar; sei que só a<br />
metade se curvou. Lembro que quando nos ajoelhamos gritamos<br />
bem alto:<br />
— Perdoem-nos mulheres! Perdão! Perdão! Perdão!<br />
As mulheres foram à loucura, não imaginavam que seríamos<br />
capazes; para falar a verdade nem nós mesmo podíamos<br />
acreditar no nosso gesto, em março de 2006. No ano seguinte<br />
novamente o ajoelhaço aconteceu, e uns 80% aderiram ao ato.<br />
Apesar da maioria, a gente ainda não estava satisfeito.<br />
Em março de 2008 nós comemoramos o Dia Internacional<br />
das Mulheres do mesmo jeito e chamamos este dia de “Noite<br />
da poesia e do perdão”. Neste dia mais de trezentas pessoas<br />
apareceram no Sarau e muitos já vieram prontos para ajoelhar.<br />
E assim aconteceu.<br />
Ao final do Sarau, uns 150, entre poetas e freqüentadores, foram<br />
à frente suplicar o perdão das divinas.<br />
E aos gritos de: “Ajoelha! Ajoelha! Ajoelha!<br />
Todos nós ajoelhamos. Todos.<br />
Foi uma das noite mais lindas que a periferia já presenciou.<br />
Se você quiser ver o vídeo do ajoelhaço no youtube, acesse:<br />
http://www.youtube.com/watch?v=YfAJWR5YLsM<br />
Fiz até um texto sobre esse dia e publiquei no meu blog, e queria<br />
dividir com vocês:
210 <strong>Cooperifa</strong>
Colecionador de pedras<br />
211<br />
DIA INTERNACIONAL DAS MULHERES<br />
Ninguém sabe ao certo quando e como surgiu a data em que se<br />
comemora o Dia Internacional da Mulher. Um dos seus maiores<br />
mitos é a versão capitalista americana que diz sobre a morte de<br />
129 costureiras queimadas vivas em Nova York no ano de 1857,<br />
originando e ratificando assim o dia 8 de março como data comemorativa<br />
do Dia Internacional da Mulher.<br />
Mas uma breve pesquisa pode revelar que a história não foi bem<br />
assim, e que pode ser apenas “mais um besteirol americano” (vale<br />
pesquisar).<br />
O fato não invalida a luta das mulheres em busca da igualdade ao<br />
longo da história da humanidade. Nem suas personagens, suas<br />
heroínas, seus feitos, suas derrotas e suas glórias, mas é que a<br />
verdade combina muito melhor com a história feminina. Poderia<br />
citar milhares de nomes dessas infantes, e ainda assim não estaria<br />
cometendo justiça.<br />
Eu, particularmente, acho que tirando a beleza, a força, a cultura e<br />
o caráter, as mulheres e os homens são iguais. Apesar de não imaginar<br />
a Camila Pitanga de bigode e o Ronaldinho Gaúcho matando<br />
a bola nos seios. Fisicamente, está bom do jeito que está. Mas<br />
espiritualmente... está muito longe do ideal.<br />
Aqui no Brasil foi preciso a Lei “Maria da Penha” (nº11340 de agosto<br />
de 2006), que conforme o que está escrito, cria mecanismos para<br />
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, para conter<br />
a fúria assassina do sistema machista que impera na sociedade<br />
brasileira. Avança o direito feminino, num país em que há lugares<br />
em que um simples apito pode salvar a vida de uma mulher.<br />
De olho em tudo isso, nesta quarta-feira, no dia 5 de março de<br />
2008, sob uma lua linda e propícia ao perdão, aconteceu uma<br />
das noites mais lindas da periferia de São Paulo, e no centro do<br />
coração de muita gente: o ajoelhaço no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Uma<br />
noite de poesia e perdão. Como já é tradição, sempre nesta época<br />
do Dia Internacional das Mulheres os poetas promovem um Sarau<br />
dedicado às guerreiras presentes, e, mais ou menos umas 22:30h,<br />
o recital é interrompido para que os poetas e presentes venham<br />
à frente, e de joelhos peçam perdão por tudo de ruim e covarde
212 <strong>Cooperifa</strong>
Colecionador de pedras<br />
213
214 <strong>Cooperifa</strong><br />
que nós já proporcionamos a elas, ao longo da nossa existência.<br />
Uma noite linda! Para se ter uma idéia, havia mais ou menos umas<br />
quatrocentas pessoas nesta quarta-feira, mais de cem mulheres, e<br />
todas gritando ao mesmo tempo: AJOELHA! AJOELHA! AJOELHA!<br />
Ajoelhamos.<br />
Muitos de nós poderíamos passar a vida inteira ali, ajoelhados, em<br />
busca do perdão, que não seríamos perdoados. E por tudo... e por<br />
todos. O mais importante é que nós estávamos ali, de joelhos, uns<br />
por diversão, outros por oração, aprendendo com a dor alheia o peso<br />
de nossas mãos. Lógico que não será isso que vai mudar a condição<br />
feminina, e nem vai apagar todas as injustiças e os crimes cometidos<br />
pelos homens, longe disso. Mas é tratar a nossa mente e o coração<br />
machista da quebrada, e não só com palavras, com atitudes.<br />
Pois às vezes pequenos gestos que acolhem a sutileza revelam ensinamentos<br />
profundos.<br />
Um discurso na mão e a prática na outra. Sem maquiagem. Encarar<br />
o problema de frente já é um grande aprendizado. Humildade é<br />
muito mais do que uma palavra, é um sentimento.<br />
Se por acaso vão presentear alguma mulher com buquê de rosas,<br />
vejam se não deixaram nenhuma violeta estampada no rosto dela.<br />
Nunca esqueçam: “...espinhos e pétalas fazem parte da primavera.”
Colecionador de pedras<br />
215
Sarau Rap<br />
Poesia nas ruas<br />
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> foi ao longo dos anos se tornando um<br />
grande refúgio de poetas, e a poesia da periferia que sofreu<br />
tanta influência do rap, agora via seu quartel general tomado<br />
por pessoas ligadas ao hip-hop.<br />
Aí, conversei com o Eleilson, da Ação Educativa, que precisávamos<br />
fazer uma parceira em um projeto que abrigasse somente<br />
os rappers e somente a poesia. A idéia foi criar um Sarau para<br />
o rap, que significa ritmo e poesia, mas que eles não cantassem<br />
sobre a batida, somente recitassem as letras, à capela. Um<br />
Sarau dedicado somente a rimadores e rimadoras e que estimulasse<br />
ainda mais a criação poética dos envolvidos.<br />
O Sarau RAP foi inspirado nos movimentos culturais americanos<br />
slam e spoken word. O Sarau acontece sempre na última quintafeira<br />
de cada mês, desde abril de 2007. A Ação Educativa fica no<br />
centro de São Paulo, por isso o público, estimado sempre entre<br />
cinqüenta ou mais pessoas, são de todas as partes da cidade<br />
(leste, oeste, sul e norte). Por isso o Centro é um lugar ideal para<br />
o evento. E para o fim de 2008 nós estamos selecionando letras<br />
para um livro do Sarau RAP. O Eleilson da Ação Educativa seria<br />
mais tarde parceiro num outro projeto literário.<br />
216
Colecionador de pedras<br />
217<br />
Saiba um pouco mais sobre o slam e o spoken word:<br />
Poesia das Ruas pretende se inserir no movimento poético social<br />
que nos Estados Unidos se denomina slam ou spoken words.<br />
Surgido em Chicago em 1985 por iniciativa do escritor Marc<br />
Smith, que organizava competições de poesia no Bar Green Mill, o<br />
slam ganhou popularidade com o filme homônimo de Marc Levin<br />
no final da década de 1990. O sucesso deste filme na Europa<br />
propagou o slam no velho continente, principalmente na França,<br />
fazendo de Paris a capital mundial dos slameurs, como se define<br />
por lá, os poetas urbanos adeptos do slam.<br />
Em São Paulo há uma cena forte de saraus, mas não há registro<br />
de um evento que enalteça a poesia do rap com declamação, sem<br />
música. Há importantes eventos como a rinha de MCs promovida<br />
pelo rapper Crioulo Doido no Grajaú, Zona Sul de São Paulo, mas<br />
um sarau só para rapper recitar suas letras, talvez o Poesia das<br />
Ruas seja o primeiro.<br />
No Brasil a polêmica em torno do estatuto poético da letra de<br />
canção é antiga. Este debate, porém, se restringe às hostes da<br />
MPB e dos poetas. Acreditamos que o rap foge a essa polêmica,<br />
já que é na própria essência uma poesia, como o próprio nome<br />
sugere: ritmo e poesia.
Cap.10<br />
Poesia no ar
Outro dia estava conversando com o amigo e jornalista Eduardo<br />
Toledo e ele havia me dito que tinha passado o revéillon de 2006<br />
em uma cidade do interior. Na cidade, a maioria dos turistas,<br />
assim como ele, passava a meia-noite nos bares. Só que tinha<br />
uma curiosidade: as pessoas eram convidadas a escreverem<br />
mensagens de paz ou coisas assim, e depois elas seriam enviadas<br />
em balões de gás, e assim era feito em outros bares, sempre<br />
no mesmo horário.<br />
Na hora eu pensei: vamos fazer isso lá no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Reuni-me com a turma e todos piraram na idéia. Falei com o Ali<br />
Sati, da Eurotur, que arrumou as bexigas. Eu e o Celsinho fomos<br />
atrás do gás hélio e todos nós realizamos o evento.<br />
O 1º Poesia no Ar aconteceu em abril de 2007 e contou com trezentas<br />
bexigas. O Sarau aconteceu normalmente até às 22:30h,<br />
mas depois uma pequena multidão de mais de trezentas pessoas<br />
se aglomeraram em frente ao Bar do Zé Batidão, e às<br />
23:00h em ponto nossa poesia foi lançada no céu de São Paulo.<br />
Por falta de experiência e na correria esquecemos de colocar o<br />
endereço do remetente, para que as pessoas que fossem abordadas<br />
pela nossa poesia soubessem da sua origem. Só tivemos<br />
um retorno de uma pessoa que recebeu a bexiga, no bairro de<br />
Pinheiros, bem distante de onde ela foi lançada. O evento foi tão<br />
220
Poesia no ar<br />
221
222 <strong>Cooperifa</strong>
Poesia no ar<br />
223<br />
bonito que não podíamos deixar de realizar. Aliás, o Poesia no Ar<br />
já faz parte do calendário da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Neste ano preparamos um Poesia no Ar bem mais planejado.<br />
Pra começar foram confeccionados pelo artista plástico Brói,<br />
com fotos do João Wainer, dois mil convites em forma de cartão<br />
postal para a distribuição aos nossos amigos. O convite,<br />
de tão bonito, já era uma lembrança do evento. Com apoio da<br />
<strong>Cooperifa</strong>, Zé Batidão e Ali Sati, nós fizemos quinhentas bexigas<br />
com o logotipo da <strong>Cooperifa</strong> impresso. A Rose e a Lu mandaram<br />
fazer papéis timbrados com o nome da <strong>Cooperifa</strong> e com o endereço<br />
do bar para que todos pudessem escrever seus poemas<br />
e suas mensagens, e para que todos aqueles que recebessem<br />
via aérea tivessem oportunidade de responder, se quisessem,<br />
é claro.<br />
Neste último Poesia no Ar uma pequena multidão de mais de<br />
quinhentas pessoas se aglomeraram em frente ao bar do Zé, e<br />
ao final da contagem regressiva lançaram suas poesias e suas<br />
mensagens de paz ao povo paulistano. Conforme o retorno que<br />
tivemos, vários quintais foram visitados pela nossa poesia. E<br />
de vários bairros distantes da Piraporinha, onde estamos. Cada<br />
um, a seu modo, recebeu um pedaço do Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Escrevi um texto para sintetizar este dia:<br />
Batalha de abril (Poesia no ar)<br />
Não há palavras para descrever o que foi a noite de ontem<br />
(30/04/2008) no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Quem sabe talvez “catarse”<br />
seja a palavra para defini-la. Na noite mais fria de São Paulo a periferia<br />
teve uma das noites mais lindas de sua vida. Uma das noites<br />
mais gentis e belas de nossas vidas. Uma noite em louvor à amizade,<br />
à palavra e à poesia. Uma noite para sempre, em nossas retinas.<br />
Só para se ter uma idéia, nesta quarta-feira fria de véspera de<br />
feriado, onde boa parte dos paulistanos estava entrincheirada<br />
e mau-humorada na imensidão do trânsito em busca de dias<br />
de paz, onde a torcida do Palmeiras, Corinthians e São Paulo<br />
estavam em casa ou no Morumbi assistindo aos jogos, mais de
224 <strong>Cooperifa</strong>
Poesia no ar<br />
225
226 <strong>Cooperifa</strong><br />
quinhentas pessoas vindas da comunidade, de outras quebradas,<br />
outras cidades, de outros estados e até de outros países, compareceram<br />
ao Sarau da <strong>Cooperifa</strong> para participar do 2º Poesia no Ar,<br />
que para sempre, devido às dificuldades, será lembrado como a<br />
batalha de abril.<br />
Duas escolas, Zacarias e Antônio Agio, enviaram seus alunos<br />
para prestigiarem o evento. Os professores dessas duas escolas<br />
acreditam que o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> é uma extensão da sala de<br />
aula; por conta disso, da proximidade do conhecimento, muitos<br />
de nós estamos perdendo o medo das notas vermelhas e estamos<br />
voltando a estudar. A gente achando que estava seduzindo<br />
a escola, e a escola, dos nossos parceiros professores, nos seduzindo<br />
descaradamente. Sem os muros entre nós, que bela aula<br />
nós tivemos – muita gente já voltou a estudar por conta dessa<br />
irmandade. Escola + comunidade = Futuro.<br />
Bom, mas voltando à noite mágica, o Sarau transcorreu normalmente<br />
até às 22:30h, e vale lembrar que tinha mais ou menos uns<br />
cinqüenta poetas para declamar, e todos recitaram normalmente.<br />
Quer dizer, foram normalmente fantásticos!<br />
Uma poesia mais bela do que a outra, se é que isso é possível, e<br />
uma noite de literatura pura, como há muito não se via, como há<br />
muito não se produzia. Mesmo por aqueles que ordenam, quem<br />
deve escrever e quem deve ler nesta metrópole cinza e analfabeta,<br />
comandada por uma elite de intelectuais arrogantes que<br />
nos odeiam por amar os livros e a criação poética. Que comam<br />
brioches!<br />
A esta altura, quase quinhentos balões, portando poesia e mensagens<br />
do Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, devem estar chegando nos quintais<br />
do povo paulistano, com um pouco do que aconteceu na noite<br />
de quarta-feira. Dê uma olhada no seu quintal, quem sabe...<br />
Se você não esteve lá, perdeu, porque não vai passar em nenhum<br />
órgão da imprensa, que tem muito mais apreço à bala perdida do<br />
que poesia. Ora, então por que será que eles tanto pedem paz?<br />
Em frente à praça uma pequena multidão portando balões com<br />
munição poética aguardava em posição de combate a contagem<br />
regressiva, para o atacar a cidade enquanto ela dormia, quase
Poesia no ar<br />
227<br />
que inocentemente, com uma chuva de poemas contendo um gás<br />
extremamente venenoso: a resistência.<br />
Não banquem os tolos: estamos em guerra, e a nossa poesia iletrada,<br />
dura e com cheiro de pólvora é apenas um artifício para confundir<br />
os tais sábios e os que fingem que não sabem de nada. A poesia no<br />
ar é só aviso que o nosso pequeno exército marcha corajosamente<br />
sobre a terra, contra tudo e contra todos, mas sem esquecer o sorriso<br />
no rosto e os punhos cerrados. Somos nós por nós!<br />
Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.
Coleção<br />
Literatura Periférica<br />
“Ser independente ou não, eis a questão.”<br />
Passei toda a vida editando meus livros independentes, todos<br />
os cinco, e quando já nem imaginava mais uma grande editora<br />
na minha vida, surge a Global Editora no meu caminho.<br />
O Eleilson, da Ação Educativa, que a essa altura já se tornara<br />
um grande amigo, tinha pensado em uma idéia de criar uma<br />
coleção com vários autores da periferia, uma coleção intitulada<br />
Literatura Periférica. Pegou a idéia e conversou com o Luiz e o<br />
Jéferson, da Global, que resolveram investir na coleção.<br />
Para a primeira coleção foram convidados eu, Sacolinha,<br />
Alessandro Buzo, Allan da Rosa e a Dinha, e mais para frente<br />
se juntaram à coleção o rapper GOG e o poeta baiano Nelson<br />
Maca, da Blackitude.<br />
Fomos para a primeira reunião da editora, intermediada pelo<br />
Eleilson, cheios de desconfiança, mas aos poucos fomos percebendo<br />
que a editora nos queria exatamente como a gente era e<br />
como a gente escrevia. O que para nós já era uma grande coisa,<br />
já que estávamos trocando o certo pelo duvidoso.<br />
De minha parte, com mais de cinco mil livros vendidos de mão<br />
em mão ao longo desses vinte anos, achei que já estava na hora<br />
de tentar uma nova experiência. Aliás, uma experiência que eu<br />
228
Poesia no ar<br />
229<br />
aguardava há mais de vinte anos. Hoje, por exemplo, o livro pode<br />
ser encontrado em todas as livrarias do Brasil.<br />
A editora resolveu lançar todos os livros que nós já havíamos<br />
lançado de forma independente, ou o livro que o autor escolhesse.<br />
Eu relancei o Colecionador de pedras, que é o meu livro<br />
que comemora os meus vinte anos de poesia. O livro ganhou<br />
uma nova capa, mas continuou exatamente com eu o havia<br />
concebido. Para a apresentação do livro eu convidei o escritor<br />
Ferréz, que fez um bonito texto. E para a contracapa continuei<br />
com o texto do Nelson Maca, que já tinha escrito no livro<br />
independente.<br />
Como ia ser um livro com uma grande editora, eu precisava<br />
fazer um grande lançamento, e com a cara da periferia. Escolhi<br />
um espaço chamado CEMUR, que tem aqui em Taboão da Serra,<br />
e preparei um grande evento para receber o livro da Global.<br />
Na mesma noite contei com a ajuda da família e os amigos de<br />
sempre, e realizamos um grande evento, com sarau de poesia,<br />
rap, MPB, dança, cinema, teatro e apresentações de artistas<br />
gerais. Foi uma noite totalmente atípica para o lançamento de<br />
um livro. Mas foi uma noite com a minha cara, com a cara da<br />
<strong>Cooperifa</strong>. Inesquecível.<br />
Conforme alguns, tinha mais de quinhentas pessoas no lançamento.<br />
Eu lembro de um por um. Novos vôos, mas com os pés<br />
sempre grudados no chão.
As guerreiras<br />
da <strong>Cooperifa</strong><br />
Desde o início do Sarau poucas mulheres apareciam para recitar;<br />
uma coisa que eu não sei explicar até hoje, já que desde os<br />
meus primeiros livros eu ouvia alguns dizerem que o livro que<br />
estavam comprando ou era para esposa ou para a filha. Como<br />
se fosse uma vergonha o cara da periferia gostar de poesia. O<br />
rap ajudou muito a mudar essa opinião.<br />
Ora, então se são as mulheres que gostam de poesia, por que<br />
demoraram tanto para recitar no Sarau? Mistério. Bom, mas<br />
isso não quer dizer que elas nunca estiveram presentes. Sim,<br />
desde sempre.<br />
Já nos primeiros dias as mulheres é que seguram todas as ações<br />
da <strong>Cooperifa</strong>. Hoje nada acontece sem a presença e a força da<br />
Rose, musa da <strong>Cooperifa</strong>, e da guerreira Lu Souza, que sempre<br />
estão à frente do movimento. A Rose todo mundo conhece,<br />
é pau para toda obra, <strong>Cooperifa</strong> até a medula e está desde o<br />
começo com a gente, só parou de vir quando voltou a estudar;<br />
hoje escreve e recita. A Lu é professora e chegou com o Sarau em<br />
movimento e nunca mais faltou aos nossos encontros. Hoje, além<br />
de falar muito bem ela tem se tornado uma grande poetisa<br />
Para não ficar só nelas, por lá estão e já passaram grandes<br />
guerreiras que dão a luz necessária para que o movimento<br />
nunca caia em qualidade. Mulheres fortes e inteligentes como<br />
Otília, Sônia, Juliana, Bárbara e Lila, Tiana, Andréa, Ricarda,<br />
230
Poesia no ar<br />
231<br />
De Lourdes, Lea, As irmãs Retrão, Eliane Brum, Rose Eloy,<br />
Luciana Dias, Sandra Cavalo de Pau, prof. Lili, Samantha, Pilar,<br />
Diane, Raíssa, Dona Edite, Elizandra, Sandra Lea, Dinha, Helena,<br />
Viviane, Mariana, Clarice, Cema, Ligia, Kátia (Brava), Fernanda,<br />
Vilma negra drama, dra. Elizabeth, Laide, Doca, Ju, Daniela<br />
Mercedes, Renata Dias, Izilda, Harumi, Tânia Canhadas, Neide<br />
Canto, Anabela, Cidinha Silva, Clarinda, Kely, Claudia, Paula<br />
Preto, Maria Teresa, Valéria e sem contar às inúmeras guerreiras<br />
que entram e saem das nossas vidas a todo instante e dão<br />
corda nesse relógio chamado <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Não quero nem mencionar as mulheres que freqüentam o<br />
Sarau, se não iria cometer injustiças, como já devo ter cometido<br />
na lista acima. Mas elas sabem quem são e o que representam.<br />
É tudo delas!
Mod<br />
Periferia<br />
Semana
233<br />
Periférica<br />
Antro<br />
fagia<br />
Cap.11<br />
Antropofagia Periférica<br />
Semana de Arte Moderna da Periferia<br />
erna a<br />
Cap.11<br />
Antropofagia Periférica<br />
Semana de Arte Moderna da Periferia
Como já tinha dito anteriormente, a <strong>Cooperifa</strong> foi criada e pensada<br />
na Semana de Arte Moderna de 1922, e há muito nós da<br />
<strong>Cooperifa</strong> vínhamos discutindo a possibilidade de realizar uma<br />
Semana de Artes para nós, inspirada na Semana de Artes da<br />
elite paulistana. Quer provocação maior?<br />
Tinha que ser uma semana inteira de artes na periferia, e para a<br />
periferia, nos mesmos moldes da turma de Oswald de Andrade.<br />
Lógico que o terreno estava propício; a zona sul, principalmente,<br />
estava abarrotada de gente fazendo arte e cultura por todos os<br />
lados, era só reunir as tribos e devorar o nosso Bispo Sardinha<br />
também. Estava começando a se desenhar a nossa Antropofagia<br />
Periférica.<br />
Como era um evento muito grande, a <strong>Cooperifa</strong> não ia poder realizar<br />
sozinha, por isso foram convidadas várias lideranças culturais<br />
para pensar e conceber a nossa Semana.<br />
Primeiro começamos a nos reunir às segundas-feiras no Bar do<br />
Zé Batidão, lugar que era próximo a todos. E também uma espécie<br />
de sede da <strong>Cooperifa</strong>. Para se ter uma idéia, tinha dia que<br />
havia até quarenta pessoas discutindo sobre como e quando<br />
seria a nossa Semana. Também tinha os palpiteiros culturais,<br />
gente que só ia para tumultuar o ambiente, mas aos poucos<br />
fomos enquadrando os teóricos da quebrada.<br />
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Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
235<br />
A primeira discussão foi em torno do nome, Semana de Arte<br />
Moderna da Periferia. Muitos não queriam porque era um nome<br />
usado pela elite cultural de São Paulo, e que devíamos ter um<br />
nome voltado para semana cultural da periferia, ou coisa assim.<br />
Mas quem daria bola para uma semana de artes produzida no<br />
gueto da maior e mais preconceituosa metrópole do Brasil?<br />
Ninguém.<br />
Mas o que alguns não sabiam era que nós da <strong>Cooperifa</strong> queríamos<br />
justamente era isso mesmo, comer esta arte enlatada<br />
produzida pelo mercado que nos enfiam goela abaixo, e vomitar<br />
uma nova versão dela, só que desta vez na versão da periferia.<br />
Sem exotismos, mas carregada de engajamento. Uma arte com<br />
endereço e com sua bússola apontada para o subúrbio, 85 anos<br />
depois, como previu o poeta. Conforme se viu, as massas realmente<br />
estavam afim de comer o biscoito, fino ou não.<br />
Bom, já tínhamos nos apropriado da escrita, e já tínhamos apropriado<br />
o nome sagrado da Semana, o que causou ainda mais ódio<br />
nos intelectuais que já nos odeiam o suficiente por ousar ler e<br />
escrever, imagina o que será que causou neles quando nós usamos<br />
o mesmo desenho de Di Cavalcanti para o cartaz de 2007?!<br />
O cartaz de 22 era apenas um arbusto seco com poucas folhas<br />
vermelhas e sugerindo um terreno árido. Parodiando o cartaz, o<br />
artista plástico Jair Guilherme transformou o pequeno arbusto<br />
em um enorme Baobá e cheio de frutos, o que muitos interpretaram<br />
como gotas de sangue, o qualificaram como violento; nós<br />
achamos do caralho. Isso basta.<br />
Falando assim até parece que foi fácil decidir qual seria o logotipo<br />
do nosso evento. Esse desenho demorou quase um mês para<br />
ser aceito, isso porque o Jair, que estava incumbido do desenho,<br />
a certa altura dispensou as opiniões e trouxe o cartaz já pronto,<br />
depois de inúmeras tentativas não aprovadas. A Semana aconteceu<br />
em novembro e as reuniões começaram em agosto.
236 <strong>Cooperifa</strong>
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
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238 <strong>Cooperifa</strong><br />
Outra coisa que também estava certa, e que economizou tempo<br />
e discussão, era quanto aos locais das apresentações. Todas<br />
teriam que ser na periferia, impreterivelmente. Senão, não teria<br />
a menor razão de ser. Também os grupos teriam que ser da quebrada,<br />
o que já não foi tão simples assim decidir. Quando a notícia<br />
que nós iríamos fazer uma Semana Periférica se espalhou<br />
pelos quatros cantos da cidade, centenas de pessoas queriam<br />
se inscrever para participar. Gente da Leste, da Sul, da Norte,<br />
Oeste e Centro queria fazer parte desse acontecimento.<br />
Muitos argumentaram que havia vários grupos que não eram da<br />
perifa, mas eram tão ou mais importantes que nós, o que não<br />
deixava de ser verdade. São Paulo tem muita gente importante<br />
trabalhando para a cultura, independente da geografia, mas aí<br />
uns diziam que muitos desses grupos tinham oportunidades<br />
nos espaços centrais, e que agora seria a nossa vez. O que também<br />
é uma grande verdade. O único espaço que nós temos é o<br />
bar. O que fazer?<br />
Começamos a exercitar a democracia, fizemos uma eleição.<br />
Conforme o resultado, só os artistas ligados à periferia seriam<br />
convidados, e também ficou acertado que os locais também<br />
seriam só na quebrada, e na Zona Sul de preferência. Era onde<br />
se concentrava a maioria dos envolvidos, e também por falta<br />
de grana, que foi um outro problema sério, mais para frente<br />
eu conto.<br />
Quanto mais a gente se reunia, mais gente chegava, e alguns<br />
que chegavam queriam mudar o que já estava decidido. Uns<br />
faltavam nas reuniões e depois queriam saber por que isso ou<br />
aquilo tinha sido decidido. Enquanto o tempo passava, a convivência<br />
entre alguns já estava abalada.<br />
Nós da <strong>Cooperifa</strong>, que éramos os curadores do projeto, sabíamos<br />
que não ia ser fácil reunir vários grupos, mas também<br />
sabíamos que era necessário esse tipo de reunião. Teríamos<br />
que sobreviver às diferenças em prol de um objetivo maior que<br />
era a Semana. Particularmente nunca gostei de reunião. Tem
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
239<br />
gente que se reúne até para decidir quando vai ser a reunião. Na<br />
<strong>Cooperifa</strong> a gente põe fogo, depois vê como apaga. Mas...<br />
Ficou acertado que a Semana começaria num domingo, 04 de<br />
novembro, com uma grande caminhada cultural que começaria<br />
na ponte do Socorro – ponte que separa a gente dos bairros<br />
mais centrais –, e viria pela estrada do M’Boi Mirim, que é uma<br />
avenida importante para os bairros da região da Zona Sul, e que<br />
é uma espécie de avenida Paulista para nós.<br />
A Polícia Militar e o DSV não autorizaram a caminhada, por isso<br />
viemos pela calçada, pelo menos no começo; depois invadimos<br />
uma pista pacificamente e caminhamos nós, centenas de pessoas,<br />
até a Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim.<br />
Conforme o combinado, a Semana iria começar com as artes<br />
plásticas no Sacolão das Artes no Parque Santo Antônio. A<br />
dança ficou para a terça-feira no CÉU Campo Limpo. Na quarta-feira,<br />
a literatura aconteceu no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Antes, à<br />
tarde, teve um debate na Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim.<br />
O cinema aconteceu na quinta-feira no CÉU Casablanca, na<br />
vila das Belezas. Sexta-feira o teatro tomou conta no Centro<br />
Cultural Monte Azul. Sábado a música voltou novamente ao<br />
palco da Casa de Cultura M’Boi Mirim. E como ninguém é de<br />
ferro, no domingo encerramos com um enorme churrasco com<br />
os participantes no bar do Zé Batidão.<br />
Contando assim até parece que não teve emoção nenhuma, né<br />
não? Mas após algumas páginas eu vou contar como foi cada<br />
dia da semana.<br />
Com as datas e locais na mão, as reuniões deixaram de ser centrais<br />
e enormes e passaram a ser por artes, o que facilitou e<br />
muito a nossa vida. Por exemplo: em uma mesa ficavam os grupos<br />
de teatro e na outra os grupos de música, e assim sucessivamente.<br />
E cada mesa elegia um coordenador e ele é quem<br />
levava as dúvidas e decisões para a mesa administrativa. Sim,<br />
tinha uma mesa para administrar os pepinos.
240 <strong>Cooperifa</strong><br />
A gente queria tudo, mas na tinha nada.<br />
Quase tudo decidido, a gente só tinha uma dúvida: onde iríamos<br />
arrumar dinheiro para o nosso sonho? Pois é, essa era a função<br />
da administração, de onde eu fazia parte. A <strong>Cooperifa</strong> só tinha<br />
R$3.550,00 em caixa de um evento que nós tínhamos feito na<br />
cidade de Dois Córregos, e um pouco das camisetas promocionais<br />
da semana. Diz o ditado que quem tem amigos não morre<br />
pagão. O ditado não nos deixou na mão, nem os amigos.<br />
O Eleilson da Ação Educativa foi um cara muito importante<br />
nesse processo. Ele conseguiu os papéis da divulgação do<br />
evento na Ação Educativa, o apoio da Global Editora “Literatura<br />
Periférica”, e da Maxprint. Eu fui conversar com o pessoal do<br />
SESC Santo Amaro, através do meu amigo Marco, que também<br />
deu uma força legal. O Gil Marçal conseguiu o apoio da AASAOC,<br />
e o Itaú Cultural nos ajudou com som e iluminação, o que adiantou<br />
e muito o processo de produção.<br />
Aliás, quando eu pedi o som para o Itaú Cultural, acabei conhecendo<br />
pessoalmente a Heloisa Buarque, e é por isso que estou<br />
escrevendo este livro. Estava participando, eu, Rose e Cocão,<br />
no Rio de Janeiro, do seminário ONDA CIDADÃ, a convite do<br />
Claudiney Ferreira, quando encontrei o Eduardo Saron e falei<br />
para ele sobre a Semana. Agradecimentos especiais ao Natale<br />
e ao Nuno. Também especiais são os agradecimentos a DGT<br />
Filmes e ao Coletivo Epidemia.<br />
O dinheiro deu em cima e foi o suficiente. Não houve loucuras.<br />
Foi suficiente e ainda sobrou dinheiro para patrocinar uma<br />
revista da Semana de Artes, produzida pelo Gunnar, e editar a<br />
2ª Antologia Poética do Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, que será publicada<br />
em junho/2008.<br />
A Semana de Arte Moderna da Periferia contou com a participação<br />
de centenas de artistas e foi assistida por milhares de<br />
pessoas, tanto do centro como do subúrbio. Foi pensada e produzida<br />
pelo povo simples, por artistas marginalizados pela falta
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
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Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
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Semana de arte moderna da periferia<br />
245<br />
de espaço para a produção cultural; uma semana inteira de atividades<br />
que se realizaram de baixo para cima, como profetizou<br />
o geógrafo Milton Santos. Uma semana que mobilizou várias<br />
comunidades. Gente que sequer tinha ido ao teatro ou assistido<br />
um espetáculo de dança teve esta oportunidade, sem que tivesse<br />
sido abençoado pela mão do governo. Arte de graça, dada pelo<br />
próprio povo, em troca de luz, do brilho da auto-estima.<br />
Talvez por isso, por ter sido um evento demasiadamente periférico,<br />
é que muita gente não pôde assistir o que aconteceu nesses<br />
dias. Umas não viram por conta do velho e mau preconceito<br />
arraigado na alma de uma burguesia racista e violenta que se<br />
apoderou da alma paulistana.<br />
Sabe por que afirmo isso? Porque a Semana não nos foi imposta<br />
pelo governo. Porque ela obedecia apenas a uma linguagem,<br />
a nossa. Porque esse macro-evento aconteceu durante uma<br />
semana inteira em vários bairros da periferia, e as TVs, a não ser<br />
que sejam balas perdidas, não têm o menor interesse no que<br />
acontece de interessante na periferia.<br />
Os jornais e revistas de grande circulação também ignoraram a<br />
nossa Semana (saiu só no Le Monde Brasil), e se não fosse pelas<br />
revistas e jornais, fanzines, pixações, sites e blogs comprometidos<br />
com a notícia, sequer poderíamos provar que estamos<br />
falando a verdade. Sequer poderíamos provar que um dia nós<br />
tivemos a nossa Primavera de Praga.<br />
Para não ser injusto, a revista Época, através da jornalista<br />
e escritora Eliane Brum, fez uma excelente matéria sobre a<br />
Semana, e o que estava preparando. Foram sete páginas sobre<br />
o lado interessante da periferia. A periferia não-exótica. Aquela<br />
que enfia o dedo na cara e chama pra briga. Aquela que muita<br />
gente não quer ver. Por tabela, Eliane também falou sobre o<br />
movimento literário da periferia.<br />
O Jornal do Brasil de fato acabou virando nosso porta-voz;<br />
o Danilo conseguia espaços generosos para a divulgação
246 <strong>Cooperifa</strong><br />
do evento, e acabou que o jornal virou grande parceiro da<br />
<strong>Cooperifa</strong>. A revista Caros amigos, que sempre foi parceira nas<br />
nossas empreitadas, também divulgou legal. A revista do Brasil,<br />
a revista do MST, a agenda cultural da periferia, o Agora SP, a<br />
revista Raiz, o jornal SP Imprensa, o Jornal do Bairro, o Jornal<br />
da Tarde, o Guia da Folha, os sites Bocada forte, Real Hip Hop,<br />
Rap Nacional, o Taboanense, entre tantos outros que agora me<br />
fogem da memória, também foram de suma importância para o<br />
sucesso da Semana de Arte Moderna da Periferia.<br />
Se a gente perdeu em quantidade, ganhou em qualidade. O que<br />
a gente queria mesmo era que o Brasil inteiro soubesse o que a<br />
gente estava fazendo, para que o Brasil inteiro também fizesse<br />
o que a gente estava fazendo. Sacou?<br />
A Semana só foi possível porque várias pessoas se empenharam<br />
e deixaram de lado as diferenças artísticas e pessoais. Não<br />
seria possível sem a força do Jair Guilherme, Ademir da Brava<br />
Companhia, Mário Bibiano, Roberto QT, Jairo, Ricarda, Márcio<br />
Batista, Arákúrin, Euller Alves, Wagner Felipe, Cocão, Anabela, Gil<br />
Marçal, Mavotsirc, Lu Souza, Robson Canto, Rose Dorea, Tadeu<br />
Lopes, Casulo, Lerói, Anderson, Vicente, Sales, Gunnar, Preto Will,<br />
Juliana, Pixote, Daniel, Peu, Bárbara e Lilá, e mais alguns nomes<br />
que estou esquecendo, o que vai me trazer alguns problemas.<br />
Leia o manifesto que escrevi para a Semana, inspirado no manifesto<br />
de Oswald e nas idéias da <strong>Cooperifa</strong>. E também um texto<br />
que foi publicado no jornal Brasil de fato, que era uma explicação<br />
do por que da gente realizar uma Semana de Artes na periferia:<br />
Manifesto da Antropofagia Periférica<br />
A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas<br />
há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que<br />
surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o<br />
passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
247<br />
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade<br />
para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de<br />
violinos, só depois da aula. Contra a arte patrocinada pelos que<br />
corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para<br />
destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da<br />
múltipla escolha.<br />
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.<br />
A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não<br />
quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.<br />
Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que<br />
transmite ilusão.<br />
Das Artes Plásticas, que, de concreto, querem substituir os barracos<br />
de madeira.<br />
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes. Da Música que não<br />
embala os adormecidos.<br />
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.<br />
A Periferia unida, no centro de todas as coisas.<br />
Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais<br />
a arte vigente não fala.<br />
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.<br />
É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão.<br />
Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não<br />
compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido<br />
de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do<br />
país. Que, armado da verdade, por si só exercita a revolução.<br />
Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza<br />
no colo da poltrona.<br />
Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus,<br />
teatros e espaços para o acesso à produção cultural.<br />
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
248 <strong>Cooperifa</strong>
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
249
250 <strong>Cooperifa</strong><br />
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra<br />
eles? “Me ame pra nós!”.<br />
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.<br />
Contra os covardes e eruditos de aquário.<br />
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.<br />
Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.<br />
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.<br />
Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.<br />
É TUDO NOSSO!<br />
Periferia moderna – por Sérgio <strong>Vaz</strong> 1<br />
A periferia, apesar da dura realidade e abandono dos governantes<br />
em geral, está dominada pela poesia. Prova disso são os saraus<br />
que não param de acontecer nas quebradas de São Paulo. E por<br />
conta dessa poesia e dessa literatura que se alastra pelas ruas,<br />
as pessoas mais simples têm se interessado um pouco mais em<br />
ter uma vida cultural.<br />
Um clássico exemplo é o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, que na ausência<br />
de teatros, bibliotecas, livrarias, cinemas, museus e raríssimos<br />
espaços para acesso à cultura, transformou um boteco na periferia<br />
da maior cidade do Brasil em Centro Cultural.<br />
No bar, há seis anos, todas as quartas-feiras, uma média de duzentas<br />
pessoas com picos de até quatrocentas – reúnem-se para ouvir<br />
e falar poesia. O sarau é freqüentado por toda a comunidade, e gente<br />
de várias quebradas, inclusive do Centro. Os saraus que acontecem<br />
na periferia têm se transformado num grande Quilombo cultural.<br />
Muitos até os denominam de o movimento dos sem-palco.<br />
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, por exemplo, é freqüentado por poetas,<br />
motoristas de táxis, donas-de-casa, desempregados, professores,<br />
crianças, jovens, adultos, idosos, jornalistas, mecânicos de auto,<br />
motoboys, advogados, estudantes etc., e muitos deles tinham apenas<br />
a televisão como referência cultural. E boa parte dessa gente<br />
1 Do jornal Brasil de fato.
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
251<br />
que nunca havia tocado num livro ou sequer ouvido uma poesia foi<br />
seduzida ali, na porta do bar, pela literatura. Não é de embriagar?<br />
E o que é melhor é que boa parte deste povo lindo e inteligente,<br />
hoje, já estão segurando seus próprios livros editados nas mãos.<br />
A maioria tem seus escritos registrados em CDs e antologias que<br />
se alastram pelos becos e vielas da grande metrópole paulistana.<br />
Sem contar que através da oralidade muita gente tem se tornado<br />
grandes intérpretes de poesias de autores consagrados.<br />
O livro, sempre tratado como pão do privilégio, chegou na periferia<br />
através da palavra. Literalmente no boca-a-boca.<br />
Lógico que não se trata de uma literatura melhor que a produzida<br />
pela academia; também não é menos importante como sugerem<br />
alguns. Muitos dos intelectuais nos acusam de assassinar a gramática<br />
e seqüestrar a crase, por isso é comum ver jovens poetas<br />
e escritores sendo enquadrados pelas canetas nervosas dos acadêmicos<br />
como suspeitos de abusarem da palavra alheia.<br />
Mas esconder e negar a educação por quinhentos anos também<br />
não é crime?<br />
Menos vírgulas, mais acento, mas ainda assim literatura. O mais<br />
difícil foi acordar. Aprender é um verbo que se conjuga em grupo.<br />
Falando em aprendizado, nesses seis anos de atividades do<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong> mais de trinta autores lançaram seus livros lá.<br />
Boa parte deles criados ali mesmo, no solo duro do bar. Grupo de<br />
teatro com a Brava Companhia, Ação e Arte, Cavalo de Pau, Irmãos<br />
Carozzi, entre outros, encenaram, ali, no chão duro, as suas peças.<br />
Pessoas com mais de 50 anos que nunca haviam ido a um teatro<br />
assistiram ali, tomando rabo-de-galo, à sua primeira peça.<br />
Vários documentários produzidos por jovens da região e de cineastas<br />
consagrados são freqüentemente exibidos ali também.<br />
Exposição de fotos, artes plásticas, lançamento de discos e DVDs,<br />
tudo que é e está sendo produzido pela periferia está sendo também<br />
consumido por ela.<br />
Hoje em dia na periferia de São Paulo, por onde quer que você<br />
olhe tem alguma coisa acontecendo, e para todos os gostos:<br />
Panelafro na Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim, Cine Becos e
252 <strong>Cooperifa</strong><br />
vielas, Sarau do Binho, Sarau Elo da Corrente, Sarau RAP, Favela<br />
toma conta no Itaim Paulista, Quilombagem, Samba da vela,<br />
Samba da Hora, Poesia das ruas, Saraus nas escolas, Bibliotecas<br />
nas favelas, 1 da sul, saraus nos acampamentos do MST, o rap, o<br />
reggae etc. A gente no centro de tudo e nem se dava conta disso.<br />
Estamos vivendo a nossa Primavera de Praga.<br />
Baseado neste momento de luz, a <strong>Cooperifa</strong> e um grupo de artistas<br />
propõe, 85 anos depois, uma nova Semana de Artes, só que<br />
agora oriunda da periferia. Uma nova história escrita e contada<br />
por quem realmente vive por ela e para ela. Uma nova versão<br />
daquela Semana, contada não de fora para dentro, mas de dentro<br />
para fora. Construída com as mesmas mãos calejadas que construíram<br />
a cidade de São Paulo.<br />
Uma Semana cultural criada e produzida com o mesmo suor<br />
desse povo que tanto luta por um Brasil melhor.<br />
A idéia da Semana não é somente propor um outro tipo de linguagem,<br />
mas também um outro tipo de artista. Um artista mais<br />
humano e solidário e uma arte que preze pela estética, mas que<br />
também ofereça conteúdo.<br />
Um artista formado pelo caráter da sua obra, não forjado em<br />
pranchetas de publicitários, onde a mesma música lançada nas<br />
rádios pela manhã é a que vende xampu, carro, miojo e cerveja no<br />
final da tarde. E de quebra, jingle para campanhas políticas.<br />
A <strong>Cooperifa</strong>, ao produzir a Semana, deseja estimular o interesse<br />
pela leitura, a criação poética, o gosto pelo teatro, cinema, e<br />
aliar-se à escola e à universidade para que a cultura seja um elemento<br />
primordial para a construção de seres humanos melhores<br />
e mais conscientes.<br />
Moderno por aqui tem sido ousar e encarar novos desafios:<br />
o medo ficou no período Barroco.<br />
Veja aqui como foi a programação e logo depois eu conto como<br />
foi cada dia da Semana.
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
253<br />
Semana de Arte Moderna da Periferia<br />
programação:<br />
DOMINGO: 04/11 – CAMINHADA CULTURAL<br />
Trajeto entre o Largo do Socorro e Casa de Cultura M’Boi Mirim<br />
(Largo de Piraporinha)<br />
SEGUNDA: 05/11 – ARTES PLÁSTICAS<br />
11h Oficinas de artes plásticas<br />
19h Exposição coletiva com artistas da periferia.<br />
Expositores: Ricardo Akemi, Boicote, Ganu, Jair Guilherme Filho,<br />
Marcus Vinicius, Michel Onguer. A trajetória vivida na periferia.<br />
Local: Sacolão das Artes – Parque Santo Antonio<br />
TERÇA:<br />
14h<br />
14h30<br />
15h30<br />
18h<br />
18h30<br />
19h30<br />
20h00<br />
20h30<br />
Local:<br />
06/11 – DANÇA<br />
Mostra de vídeo<br />
Palestra /debate<br />
Workshop /danças-intervenções poéticas<br />
Marana capoeira – roda de capoeira: angola/regional.<br />
Flor de Lis (grupo da melhor idade) coreografia: dança indígena<br />
Projeto Diversidança coreografia: danças da peneira (flor de lis)<br />
Cia. Sansacroma (afro contemporâneo)<br />
Espírito de Zumbi (afro brasileiro)<br />
CEU Campo Limpo<br />
QUARTA: 07/11 – LITERATURA<br />
17h DEBATE: “A produção literária na periferia”,<br />
Debatedores: Alessandro Buzo – Sacolinha, Elizandra Souza –<br />
Antonio Eleilson. Mediação: Sérgio <strong>Vaz</strong><br />
Local: Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim – Piraporinha<br />
20h SARAU DA COOPERIFA<br />
Local: BAR DO ZÉ BATIDÃO – Chácara Santana<br />
QUINTA: 08/11 – CINEMA<br />
16h Dança das Cabaças – Exu no Brasil - 54´<br />
17h15 Poeira - 5 ‘O Último da Fila - 10’ A Viagem<br />
12’Paralelo: Espasmos de Realidade - 16’<br />
18h15 Defina-se - 4’Nhanhoma Paulista - 2’Cosmolho - 3’<br />
19h15 Onomatomania - 2’2 Meses e 23 Minutos
254 <strong>Cooperifa</strong><br />
20h30<br />
19h<br />
Local:<br />
23’ Panorama: Arte na Periferia - 50´<br />
Conversa entre convidados e público<br />
Exibição de vídeos no Terminal Capelinha<br />
CEU Casablanca – Vila das Belezas<br />
SEXTA:<br />
8h30<br />
11h<br />
14h<br />
16h<br />
17h30<br />
18h<br />
19h30<br />
Local:<br />
09/11 – TEATRO<br />
Café da manhã e colóquio com coletivos teatrais<br />
Band’doido apresenta “... Não é contar piada!”.<br />
Cia. Diarte Teatral apresenta “Fragmentos de um poeta”<br />
UMOJA apresenta demonstração de processo do<br />
espetáculo “Quem me pariu?”<br />
Capulanas apresenta performance “Negra Poesia”<br />
Ação e Arte apresenta performance com trecho d<br />
seu novo espetáculo “X”<br />
Brava Companhia apresenta “A BRAVA”<br />
Centro Cultural Monte Azul – Jardim Monte Azul<br />
SÁBADO: 10/11 – MÚSICA<br />
16h Show com os grupos Trio Porão<br />
16h45 Chapinha do Samba da Vela e Pagode da 27<br />
17h30 Wesley Noóg<br />
18h10 B Valente<br />
18h55 Os Mamelucos<br />
19h50 Banda A<br />
20h40 Periafricania<br />
21h35 Preto Soul<br />
11h05 Versão Popular<br />
Local: Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim – Piraporinha
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
255
A Semana<br />
A abertura da Semana de Arte Moderna da Periferia aconteceu<br />
em grande estilo. As irmãs Lila e Bárbara fizeram a leitura do<br />
manifesto, e daí por diante o público pôde saborear o melhor<br />
das artes plásticas e grafites que são produzidos na periferia.<br />
O Jair e Mario Bibiano fizeram um trabalho de dar inveja a qualquer<br />
exposição internacional; ficou simplesmente lindo. Várias<br />
obras e painéis foram expostos para o deleite dos convidados.<br />
As bicicletas penduradas no teto davam o clima de que a gente<br />
estava pedalando rumo ao futuro.<br />
Todo mundo ficou abismado com a beleza do Sacolão transformado<br />
em galeria de arte pelos artistas da comunidade.<br />
Lembrei-me do Paulo Magrão que quando me viu disse: “Carái,<br />
estou todo arrepiado com a beleza do evento”, mostrando o<br />
braço com os pêlos eriçados. A emoção tomou conta de todos.<br />
As crianças, sempre elas, fizeram a festa nas oficinas.<br />
O Alan Leão fez um mosaico com o logotipo da Semana todo em<br />
pedrinhas de azulejo que durou dez horas para produzi-lo, por<br />
ele e uma dúzia de garotos.<br />
A imprensa grande não veio por conta do avião, perdemos espaço<br />
para a desgraça novamente; em compensação não faltou os<br />
nossos parceiros de jornais locais, blogs, sites, rádio, revistas<br />
etc. E amigos e mais amigos, gente e mais gente, irmãos e irmãs<br />
de tudo quanto é lado. Festa linda!<br />
256
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
257
258 <strong>Cooperifa</strong>
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
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Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
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Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
263<br />
Para quem não veio, ainda há chance de saber como foi, quando<br />
sair nas enciclopédias no futuro, ou nos livros escolares. Quem<br />
foi uma das centenas ou milhares de pessoas de pessoas que<br />
testemunharam esse maravilhoso encontro da arte com a periferia<br />
diz que parecia o Louvre da França, ou qualquer galeria de<br />
Milão na Itália, mesmo sem nunca ter pisado o pé no exterior.<br />
Ué, não dizem que a arte é uma viagem?<br />
Terça-feira – Dança<br />
O Mestre Arákúrin comandou a noite da dança com os grupos<br />
Espíritos de Zumbi, Flor de lis, Diversidança e Cia. Sacrossanta.<br />
Foi simplesmente maravilhoso!<br />
Teve gente que chorou diante de tanta beleza e dedicação dos<br />
bailarinos da periferia, pergunte ao Jairo e ao Buzo que choraram<br />
no dia. Sim, foi de chorar, mas de alegria, de esperança pela<br />
nossa molecada cheia de talento, vencendo os preconceitos e<br />
as velhas dificuldades.<br />
O CÉU parecia o Céu, se é que ele existe, e se é que você me<br />
entende.<br />
A Semana realmente estava sendo grande: cheia de arte!<br />
E tudo feito por nós, para nós; quem é que é o fraco agora,<br />
hein?<br />
Moral da história: quer queiram ou não, o lago dos cisnes estava<br />
cheio de patinho feio aprendendo a nadar, e se jogassem óleo na<br />
água, a gente afogava o ganso.
264 <strong>Cooperifa</strong><br />
Quarta-feira – Literatura (600 pessoas no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>)<br />
A periferia de São Paulo parou para acompanhar o dia da literatura<br />
na nossa Semana de Arte, gente de todas as quebradas, de<br />
todos os estados e até de outros países ..<br />
À tarde o auditório da Casa de Cultura M’Boi Mirim ficou lotado<br />
para acompanhar o debate sobre “Produção literária na periferia”,<br />
com os convidados Sacolinha, Alessandro Buzo, Eleilson<br />
Leite, Elizandra e eu na mediação.<br />
O debate foi muito rico e importante, quase duas horas falando<br />
e discutindo sobre a nossa literatura e sobre a nossa produção.<br />
O público bombardeou os convidados com inúmeras perguntas<br />
interessantes, foi bem louco!<br />
Só de imaginar que o debate foi promovido por nós, apresentado<br />
por nós e consumido também por nós, já foi um grande resultado.<br />
Todo mundo pirou. Estamos aprendendo a fazer! Estamos<br />
aprendendo a fazer!<br />
A palavra de ordem era união, o tempo inteiro as pessoas falavam<br />
em união. Meu, que coisa maravilhosa! Nunca achei que este dia<br />
chegaria, a gente fazendo e escrevendo a nossa história.<br />
Perguntem a quem foi, a casa estava cheia, em plena tarde de<br />
quarta-feira, para ouvir o que os representantes da literatura<br />
periférica tinham a falar, sem falar que boa parte da platéia era<br />
de poetas e escritores que, por diversas vezes, inverteram a<br />
mesa do debate.<br />
Bom, se estava bom ficou melhor: faltando dez minutos para<br />
as 20:00h saímos todos correndo pro bar do Zé Batidão para<br />
participar do Sarau da <strong>Cooperifa</strong> Especial. A noite mágica só<br />
estava começando. Ao chegar, todos fomos surpreendidos pela<br />
decoração do local, tente imaginar: os livros desciam pelo teto<br />
em linhas invisíveis até as mesas, pipas de pano flutuavam pelo<br />
ambiente, garrafas com poesias dos poetas foram decoradas<br />
e distribuídas nas mesas, cartazes com poemas forraram as<br />
paredes e o logotipo da Semana foi projetado no teto do bar,
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
265<br />
coisa do nosso mundo!Parabéns às meninas e rapazes: Lila,<br />
Bárbara, Fernanda, Cocão, Rose, Augusto, Márcio, prof. Lu, entre<br />
outros que não me lembro agora, perdão. Quem chegava já era<br />
recebido por este ambiente colorido e aconchegante que é o<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Abraços e mais abraços.<br />
O Sarau começou com uma apresentação do Grupo Espírito de<br />
Zumbi na praça em frente ao bar, que foi tomada por uma multidão<br />
que não conseguiu entrar. Nesse dia, só do lado de fora<br />
tinha mais de trezentas pessoas – eu disse do lado de fora. Do<br />
lado de dentro mais umas trezentas pessoas, catarse total.<br />
Daí por diante não tenho palavras para expressar o que realmente<br />
aconteceu, tamanha beleza e profundidade. Só para se<br />
ter uma idéia, o Sales leu sua poesia “Evolucionário” em espanhol.<br />
O Alan da Rosa leu sua poesia tocando berimbau, o Márcio<br />
Batista fez uma leitura coletiva dos seus poemas, Mavot e Lu<br />
fizeram uma apresentação cinematográfica, eu lancei meu<br />
clipe poético, e por aí a noite seguiu distribuindo sonhos de uma<br />
periferia melhor.<br />
Pergunte a quem foi, pergunte às pessoas privilegiadas que estiveram<br />
no exato momento que a história estava sendo escrita. O<br />
Sarau acabou quase meia-noite, e para terminar ganhamos um<br />
presente do Alan Leão, um mosaico com pedrinhas de azulejo<br />
formando o logo da <strong>Cooperifa</strong>, da hora. Dizem que tem gente lá<br />
até agora.<br />
Depois desta noite a poesia e a literatura da periferia nunca<br />
mais serão as mesmas, como eu disse anteriormente: “estamos<br />
aprendendo a fazer!”.<br />
Quinta-feira – Cinema<br />
O cinema foi o grande tema da Semana de Arte Moderna da<br />
Periferia, e para variar a rapaziada preparou um coleção de filmes<br />
periféricos de arrasar. Ao velho e bom estilo Glauber Rocha, “uma
266 <strong>Cooperifa</strong><br />
câmera na mão e uma idéia na cabeça”, os nossos cineastas prepararam<br />
um seleção magnífíca de filmes e documentários.<br />
Como é bom a gente se ver na telona, como a gente gosta de<br />
ser visto!<br />
O cinema talvez seja a arte mais cara e distante para nós. Por<br />
isso que é muito difícil ver filmes que retratem o povo brasileiro<br />
sem os estereótipos tão presentes nas telonas. Mas também<br />
é uma arte que cresce assustadoramente. Mais e mais jovens<br />
estão empunhando câmeras nas mãos e contando histórias da<br />
nossa gente, como elas realmente são.<br />
Sexta-feira – Teatro<br />
Na sexta-feira foi o dia do teatro na Semana de Arte Moderna<br />
da Periferia, foi simplesmente maravilhoso. O Centro Cultural<br />
Monte Azul abrigou centenas de pessoas durante o dia inteiro<br />
para presenciar a cena teatral da periferia, e quem foi não se<br />
arrependeu, foi do caralho! Foi lindo! Foi evolução total!<br />
Para se ter uma idéia, as apresentações começaram às 8:00h<br />
da manhã com um café-debate com os artistas envolvidos na<br />
Semana... e durante o dia inteiro o que se viu foi o talento da<br />
nossa juventude; atores e atrizes desfilarem seus talentos nos<br />
palcos da periferia.<br />
Cada peça mais louca que a outra, mais interessante, mais profunda.<br />
Nossas raízes representadas da forma fecunda possível.<br />
Estou com inveja da gente também. A Semana foi uma das<br />
maiores experiências das nossas vidas e o teatro também faz<br />
parte do nosso dia a dia. E que venham novos palcos!<br />
“Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor...”.<br />
Tinha tudo para dar errado, mas deu certo, não posso fazer nada.
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
267<br />
Sábado –Encerramento – Música<br />
A Semana de Arte Moderna da Periferia, contra a nossa vontade,<br />
teve encerramento no sábado com um dos melhores<br />
shows musicais que São Paulo já curtiu. Simplesmente um dos<br />
melhores que eu já fui, e olha que já fui a bastantes. Só para se<br />
ter uma idéia, o som foi de primeiríssima qualidade, todos os<br />
grupos elogiaram.<br />
Outra coisa que contribuiu para o brilho do evento foi o profissionalismo<br />
dos grupos, nenhum deles se atrasou, nenhum.<br />
Começou no horário previsto e acabou no horário combinado.<br />
A vaidade não imperou.<br />
A seleção dos grupos também foi muito importante, pois vários<br />
ritmos foram se revezando num mega palco da Casa de M’boi<br />
Mirim: rap, samba, rock e MPB, teve para todos os gostos e todas<br />
as pessoas da comunidade foram contempladas. O palco tinha<br />
uma decoração louca também: telão, as bikes do Magrela’s,<br />
mosaicos, a faixa da <strong>Cooperifa</strong>, sem contar que São Pedro tomou<br />
olé de São Jorge, e não caiu uma gota de água sequer.<br />
Os músicos envolvidos preparam uma música coletiva, no<br />
estilo “ We are the World”, lembram? Putz, a porra da música<br />
ficou impregnada nos nossos ouvidos: “...Lá ....lálálá ....lá...”, foi<br />
demais! Ninguém parava de cantar.<br />
No final, todos que estiveram envolvidos nestes três meses de<br />
produção da Semana, subiram ao palco para cantar e extravasar<br />
a alegria de ver e curtir um dos maiores eventos de São Paulo, a<br />
Semana de Arte Moderna da Periferia.<br />
Muita gente chorou de emoção, o público ficou hipnotizado<br />
do começo ao fim. E para terminar em grande estilo, todos<br />
numa só voz, gritaram: UH, COOPERIFA! UH, COOPERIFA! UH,<br />
COOPERIFA!<br />
Não posso fazer nada, o evento foi um sucesso! Também, mais<br />
de trinta grupos envolvidos, quase trezentos artistas na programação,<br />
você quer o quê? Não tinha como dar errado, a gente
268 <strong>Cooperifa</strong><br />
estava super-unido, centrado, cheio de garra e afim de dar o<br />
nosso melhor para o povo da periferia.<br />
Sim, eu disse dar, não tirar.<br />
Desculpaí pelos que torceram contra, a vontade de dar certo<br />
foi muito maior. Aos que nos amam, sintam-se abraçados.<br />
Aos demais, sintam-se abraçados também, não chutamos<br />
cachorro morto. “Por uma periferia que nos une pelo amor,<br />
pela cor e pela dor”. Aos Quixotes que lutaram contra os moinhos<br />
de ventos, nunca esqueçam: “A Arte que liberta não vem<br />
da mão que escraviza”.<br />
Em 2008 tem mais.
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
269<br />
Depoi<br />
mentos
270 <strong>Cooperifa</strong><br />
Ninguém entra no boteco do Zé Batidão impunemente. Sai de lá<br />
transformado pelo que viveu – ou melhor, sai de lá transtornado.<br />
O que acontece no boteco do Zé Batidão toda quarta-feira muda<br />
cada um de nós – e muda o Brasil. Centenas de pessoas, identificadas<br />
por algo que vai muito além de uma referência geográfica,<br />
a periferia, reunidas depois de um dia de trabalho duro para ouvir<br />
e fazer poesia. Simples assim: e uma revolução sem um tiro.<br />
Não é sempre que a gente testemunha a história em curso, percebe<br />
o instante exato em que o mundo balança. A <strong>Cooperifa</strong> é<br />
isso, um abalo sísmico a partir de uma esquina de quebrada,<br />
enquanto os carros passam velozes pelo asfalto, lá no outro lado<br />
do rio, indo e vindo do mesmo lugar. Mas com uma pressa...<br />
Na <strong>Cooperifa</strong>, toda quarta-feira, o tempo pára. E quando a<br />
gente vê, meio no susto, já passam das 23:00h. Quando alguém<br />
pega o microfone para declamar uma poesia que escreveu, é<br />
seu destino que recria, é seu lugar no mundo que reinventa.<br />
Quando "o povo lindo, o povo inteligente" da periferia se apropria<br />
das palavras, é da História que passa a tomar conta.<br />
Naquele palco sem degrau, cada um bagunça a ordem das coisas<br />
– e bagunça com um instrumento que por 500 anos anos<br />
foi privilégio da elite do país. Bagunça pela palavra escrita.<br />
A ponto de a periferia virar centro sem deixar de ser periferia.<br />
E quem diria, depois de tanta bala perdida, que seria pela<br />
poesia que a ordem das coisas seria ferida de morte?<br />
Pela primeira vez, há uma geração de escritores identificados<br />
pela origem periférica no Brasil e que se definem como "peri<br />
féricos". Parte deles começou a escrever na <strong>Cooperifa</strong>, lançou<br />
seu primeiro livro no boteco do Zé Batidão. A <strong>Cooperifa</strong> escre<br />
veu/ escreve vários capítulos dessa história. Inspirou dezenas<br />
de saraus de poesia Brasil afora, sua pipa no céu virou farol.<br />
Mas a <strong>Cooperifa</strong> é isso e é mais. É um espaço para todos, sem<br />
hierarquias nem julgamentos. Pega o microfone quem tiver<br />
algo a dizer.
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
271<br />
E o que deixou de dizer será uma falta no mundo. Ao garantir<br />
um lugar no microfone, a <strong>Cooperifa</strong> desmente os que tentam<br />
nos fazer acreditar todo dia, que somos substituíveis, descartáveis,<br />
comuns. A cada quarta-feira, no boteco do Zé Batidão,<br />
é reeditada a garantia de que cada um é insubstituível, único,<br />
extraordinário. Lá dentro há palmas de verdade, do tipo que<br />
deixa as mãos ruborizadas, há assobios entusiasmados, mas<br />
nenhuma vaia. Não há cochichos ridicularizando um e outro,<br />
sussurros pelas costas. Lá há choro, há riso, mas não há exclusão.<br />
Por isso a <strong>Cooperifa</strong> é quente mesmo quando faz frio.<br />
E é por isso que na <strong>Cooperifa</strong> se fala da violência, da desigualdade,<br />
mas também se fala de amor. E ao falar de amor entre<br />
becos e vielas de concreto, esgoto escorrendo pelas rachaduras,<br />
a <strong>Cooperifa</strong> é ainda mais insubordinada. Porque ninguém<br />
esperava que periféricos escrevessem – e se tivessem<br />
essa ousadia, muitos apostariam apenas na dor. E assim um<br />
pedaço da vida continuaria exilada, roubada. Fora.<br />
Na <strong>Cooperifa</strong> não se censura a vida. Nem as palavras, os<br />
temas. Não se espera do poeta que faça apenas denúncias,<br />
dispare frases engajadas, lance versos encharcados de ideologia.<br />
Na <strong>Cooperifa</strong> há quem fale de dor de corno e de moça<br />
bonita. Há quem fale de corpos úmidos, de gozo, nudez e sexo.<br />
De saudade e de desencontro. E há quem fale de ódio, de rancor,<br />
de vingança. E há quem fale de tudo isso junto, porque a<br />
vida tem um pouco de tudo. E há quem pegue o microfone só<br />
para recitar Fernando Pessoa.<br />
Ao acolher todas as palavras, a <strong>Cooperifa</strong> garante, a cada quarta-feira,<br />
um lugar para todos os sonhadores. Simples assim. E<br />
abala as placas tectônicas do centro. Porque na <strong>Cooperifa</strong> o<br />
que cada um descobre quando entra tímido, meio desengonçado,<br />
se sentindo um tanto apartado das letras, é que pela<br />
palavra escrita – seja ela de amor, de gozo ou de fúria – "nóis é<br />
ponte e atravessa qualquer rio".<br />
Eliane Brum, jornalista
272 <strong>Cooperifa</strong><br />
Morada da poesia<br />
A poesia é o gênero literário que mais seduz corações e mentes<br />
nos becos e vielas. Não por acaso, o sarau ressurgiu nos<br />
últimos anos e tomou conta da periferia paulistana. Nesses<br />
encontros, os freqüentadores recitam poemas consagrados<br />
da literatura, mas o que mais se compartilha são versos de<br />
autoria daqueles que lá estão. O Sarau é espaço de formação<br />
de leitores e autores. Assim é o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, o mais<br />
famoso da periferia paulistana e, para mim, o melhor de toda<br />
a metrópole.<br />
Ao serem anunciados, os poetas engrandecem. Microfone na<br />
mão, olhar atento, sentimento à flor-da-pele e a alma exposta<br />
diante de uma platéia sedenta por versos como os do poeta<br />
Márcio Batista:<br />
Quem me nega cultura, nego<br />
Não terá outra chance de nega<br />
Cultura é Quilombo pro Negro<br />
Ignorância é sua senzala.<br />
Realizado em um boteco, o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> é despojado de<br />
requintes. Mas os organizadores são muito rigorosos quanto<br />
aos rituais de pertencimento e ao acolhimento. Enganam-se<br />
aqueles que vêem esses encontros como algo furtivo e desprovido<br />
de regras . "O silêncio é uma prece", diz uma inscrição<br />
logo na entrada do bar do Zé Batidão. E a frase é anunciada<br />
com determinação pelos mestres de cerimônia.<br />
Falatório lá, só se for na rua, que acaba sendo uma extensão do<br />
bar, já que este sarau, o mais famoso da periferia paulistana,<br />
reúne, todas as quartas-feiras, mais de duzentas pessoas.<br />
Aquela gente humilde da qual falavam Vinicius de Moraes<br />
e Chico Buarque, tem no Sarau da <strong>Cooperifa</strong> seu momento<br />
de glória. Tem taxistas, estudantes, funileiros, escriturários,<br />
motoboys, professores, enfermeiros. Tem gente graduada<br />
também, mas que não perdeu a humildade e nem
Antropofagia periférica<br />
Semana de arte moderna da periferia<br />
273<br />
saiu da quebrada. Allan da Rosa é um desses. Terminou<br />
o ensino médio, sabe-se lá como. Fez cursinho no Núcleo<br />
de Consciência Negra e entrou na USP. Graduou-se em<br />
História e hoje faz mestrado em Educação. Quem primeiro<br />
leu seus versos foi seu pai, a quem o jovem poeta entregava<br />
seus escritos quando o visitava na cadeia. Allan, negro,<br />
esguio, ágil, abre Vão, seu livro de poesias e tira de lá uma de<br />
suas pérolas:<br />
Solitária<br />
A aranha tece<br />
Formando quadrantes geométricos<br />
Deixando seu rastro de seda<br />
Sua teia interessa apenas a si mesma<br />
Aos poucos que optaram se emaranhar<br />
E aos perdidos que não conseguem<br />
Se desprender de suas linhas<br />
No Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, a poesia encontra sua redenção.<br />
Acostumada a freqüentar os salões das elites, ela encontrou<br />
morada em um botequim da quebrada, onde se entrega sem<br />
pudor aos encantos de quem lhe declarar amor incondicional.<br />
E na <strong>Cooperifa</strong>, são muitos seus amantes. Neste sarau, a poesia<br />
penetra tão profundamente aqueles que a declamam que<br />
eles próprios se fazem poesia. Sérgio <strong>Vaz</strong>, criador e criatura do<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong> traduziu essa magia em um maravilhoso<br />
poema de três versos:<br />
Ser Poeta<br />
Não é escrever poemas,<br />
É ser poesia.<br />
Eleilson Leite, colunista do Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique,<br />
historiador, programador cultural, coordenador editorial da Agenda<br />
Cultural da Periferia
ifa<br />
Cap.12<br />
<strong>Cooperifa</strong>, Quilombo da poesia<br />
Quilo<br />
mbo
Quando a Heloisa pediu que eu contasse um pouco da minha<br />
história e da <strong>Cooperifa</strong>, no começo eu não estava muito afim,<br />
por conta da minha memória um tanto quanto irresponsável e<br />
mentirosa. Mas também não podia me furtar o direito de dividir<br />
com você essa história de luta em prol da cidadania através<br />
da literatura.<br />
Era muito mais fácil a gente ficar reclamando que na periferia<br />
não temos bibliotecas, cinemas, teatros, museus, espaço para<br />
produção cultural, livraria, leis de incentivo que nos incentivem,<br />
mas a gente decidiu ir à luta. Não que a gente não reclame,<br />
mas a gente quis lutar e reclamar ao mesmo tempo. E no único<br />
espaço público ao qual nós temos direito, o boteco.<br />
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> já é inspiração para mais de quarenta<br />
saraus que acontecem nos botecos espalhados pelo Brasil. Na<br />
periferia de São Paulo a poesia já é uma realidade, o livro rola de<br />
mão em mão, e a palavra é a nossa arma contra a mediocridade,<br />
o preconceito e as injustiças desse país sem alvará de funcionamento,<br />
sem licença para ser pátria.<br />
A <strong>Cooperifa</strong> é um movimento que trabalha única e exclusivamente<br />
com o conhecimento. Enquanto eu escrevia esse livro, para se<br />
ter uma idéia, a gente já estava pensando na nossa 2ª Antologia<br />
Poética com quarenta autores da comunidade. Enquanto a gente<br />
estava fazendo a antologia, estávamos realizando o 2º Poesia<br />
no Ar, e enquanto a gente estava realizando o 2º Poesia no Ar, a<br />
gente estava pensando como seria o lançamento do nosso DVD,<br />
produzido pela DGT filmes. Enquanto eu escrevia o livro tudo isso<br />
276
<strong>Cooperifa</strong> – Quilombo de poesia<br />
277<br />
estava acontecendo ao mesmo tempo. Isso é a <strong>Cooperifa</strong>. Nós<br />
somos produto da irresponsabilidade. Da ousadia.<br />
O nosso sonho é ter a nossa casa, o “Espaço <strong>Cooperifa</strong>” ou a<br />
“Casa do aprender”, para que a gente possa dar vazão a planos<br />
maiores como a nossa própria biblioteca, um espaço para<br />
leitura, criação poética, debates, oficinas, um lugar não para<br />
tirar as pessoas da ruas, muito pelo contrário, um lugar onde as<br />
pessoas estejam preparadas para elas. Um lugar onde as pessoas<br />
aprendam definitivamente que a gente não quer mudar da<br />
periferia, e sim mudar a periferia. Como eu disse anteriormente,<br />
primeiro a gente põe fogo, depois nós vemos como apaga.<br />
E gente para colocar lenha na fogueira é o que não falta. A<br />
Rose (musa da <strong>Cooperifa</strong>), Lu Souza, Márcio Batista, Jairo<br />
(Periafricania), Sales (o Evolucionário), Zé Batidão, Cocão (Versão<br />
Popular), Preto Will (Versão), José Neto, Tadeu Lopes, Alan da<br />
Rosa, Valmir Vieira, João Santos, Casulo, Andréa, De Lourdes,<br />
Asduba, prof. Toninho, Walter, Augusto, Lobão, Mavotsirc, Ricarda,<br />
Vicente, Fuzzil, Seu Lourival, Robson Canto, Cláudio Laureart,<br />
Renato Vital, Bárbara e Lila, Toni C., Renata Dias, Daniela<br />
Mercedes, pessoal da Rua 7, Jair, Silvio Diogo, Timbó, Euller, Rose<br />
Eloy, Helber, Kennya, Roberto Ferreira, Wésley Noóg, Marcelo<br />
Ribeiro, Ricardo (perueiro), Dinho Love, Sônia, Seu Jorge Esteves,<br />
Dona Edite, Beso, Harumi, Mamba Negra, Magrela´s Bike, Régis<br />
Ação e Arte, DGT Filmes, Carlos Giannazi, Gaspar Záfrica Brasil,<br />
B Valente, Brava Companhia Akins Kinte, Elizandra, Maria Tereza,<br />
GOG, Juliana, Fernanda, Fábio, Zé Pompeu, PH Boné, entre tantos<br />
outros que somam com a gente, e que estão sempre a postos<br />
para incendiar o futuro.<br />
Foi assim que a <strong>Cooperifa</strong> se transformou nesse quilombo poético,<br />
que abriga guerreiros e guerreiras que estão sempre em<br />
busca do conhecimento. Que venham novos desafios!<br />
É tudo nosso!<br />
Com um sorriso no rosto e os punhos cerrados.
Imagens:<br />
índice e créditos<br />
P.18 Do tempo em que a vida era a poesia.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.20-21 Campo dos sonhos (E. C. Aliados).<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.23 Dona Maria Vieira, mãe do autor e o próprio quando trabalhava<br />
como vendedor de vídeo-games. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.27 Por dentro da ditadura (CPOR/83).<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.34-35 O Pipa, a cara da periferia, da <strong>Cooperifa</strong>. Foto: João Wainer.<br />
P.39 Lançamento do livro A Margem do vento.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.44 Lançamento do livro Pensamentos vadios na favela da Rocinha,<br />
no Rio de Janeiro. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.47 Sérgio <strong>Vaz</strong> vestido de mendigo com o Plínio Marcos na Bienal<br />
do Livro de São Paulo. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.49 acima: Sérgio <strong>Vaz</strong> e o presidente Lula.<br />
abaixo: Prof. Carlos Giannazi, Sérgio <strong>Vaz</strong> e o ministro Gilberto Gil.<br />
Fotos: arquivo pessoal do autor.<br />
P.52-53 Sérgio <strong>Vaz</strong> trabalhando como locutor na Rádio Atividade FM<br />
(Taboão da Serra). Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.59 Cartões postais poéticos. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.61 Projeto Poesia contra a violência. Foto: Eduardo Toledo.<br />
P.65 Guerreiro Jota (in memorian), sabedoria de vida.<br />
Foto:Marco Pezão.<br />
P.70 O rapper GOG e Sérgio <strong>Vaz</strong> no lançamento da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.71 Edu Toledo e Sérgio <strong>Vaz</strong> na favela da Rocinha.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.74 Vendendo camisetas poéticas. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.76 acima: Brói, artista plástico.<br />
abaixo: Diagnóstico, grupo de rap cantando na Fábrica.<br />
Fotos: Edu Toledo.<br />
P.77 acima: Lançamento da <strong>Cooperifa</strong> na Fábrica.<br />
abaixo: Grupo de capoeira Irmãos Guerreiros de Angola<br />
na fábrica. Fotos: Edu Toledo.<br />
P.78-79<br />
Artistas da região (pré-<strong>Cooperifa</strong>). Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.86 Poeta Marco Pezão. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.90-91<br />
Lançamento do CD da <strong>Cooperifa</strong>. Foto: João Wainer.<br />
P.93 Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, Rose (musa), Robson Canto e Rose (Umoja).<br />
Foto: João Wainer.<br />
P.94 Zé Batidão, mecenas da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.97 Helber Ladislau exorcisando o “Navio Negreiro” de Castro Alves.<br />
Foto: João Wainer.<br />
P.98-99<br />
O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> visto pelo lado de fora.<br />
Fotos: João Wainer.<br />
P.100 Alan da Rosa, Timbó e Augusto. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.101 Alessandro Buzo, Gaspar e Rappin’ Hood.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.103 Mano Brown recebendo o 1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Foto: Marco Pezão.<br />
P.104 Sônia, Sérgio <strong>Vaz</strong>, Mariana e Juliana. Poesia em família.<br />
Foto: Arquivo pessoal do autor.<br />
P.105 Ferréz recebendo o prêmio <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Fotos: arquivo pessoal do autor.<br />
P.107 Recortes de jornal. Arquivo pessoal do autor.<br />
P.110 Marcelo Rubens Paiva, escritor, no início do Sarau da <strong>Cooperifa</strong><br />
no Garajão. Foto: Marco Pezão.<br />
P.122-123 Guerreiros e guerreiras da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.124 Leandro Lehart. Foto: Marco Pezão.<br />
P.125 acima: Kênia, Marcio Batista, a atriz Zezé Mota, amigo<br />
e Gaspar do Záfrica Brasil. abaixo: Gaspar, Helber,<br />
Jeferson De, Isaac e 2ho. Fotos: Marco Pezão.<br />
P.130 acima: Grupo de teatro Manicômicos.<br />
abaixo: Grupo de teatro da Juliana.<br />
Fotos: Marco Pezão.<br />
P.132 Jornal da <strong>Cooperifa</strong>. Arquivo pessoal do autor.
P.137 Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Foto: João Wainer.<br />
P.143 acima: Rose Musa. abaixo: Sérgio <strong>Vaz</strong> e Cocão. Apresentação no<br />
Circo Voador, Rio de Janeiro. Foto: Arquivo pessoal do autor.<br />
P.160 Sarau da <strong>Cooperifa</strong> na Câmara Municipal de São Paulo.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.163 Sarau da <strong>Cooperifa</strong> no programa “Jogo de idéias”.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.167 Sarau da <strong>Cooperifa</strong> lotado, como sempre. Foto: João Wainer.<br />
P.170-171 Sarau da Coperifa onde o silêncio é uma prece.<br />
Foto: João Wainer.<br />
P. 179 Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Foto: João Wainer.<br />
P.180-181 Programa “Jogo de idéias”: Claudiney Ferreira, Sérgio <strong>Vaz</strong>,<br />
Helber e Marcio Batista. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.185 Jornalista Chico Pinheiro recebendo o Prêmio <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Foto: Marco Pezão.<br />
P.186 acima: Valmir Vieira, José Neto, Sandra e Márcio.<br />
abaixo: Mavotsirc e Cleide. Fotos: arquivo pessoal do autor.<br />
P.191 Lu Souza e Rose. Foto: Marco Pezão.<br />
P.194-195 Sarau da <strong>Cooperifa</strong> na cidade de Suzano, São Paulo.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.197 Prêmio Hutuz no Rio de Janeiro. acima: Recebendo o prêmio<br />
abaixo: Marcio, Rose (musa), Edy Rock e Dugueto.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.201 “Quem Lê, enxerga melhor", na Biblioteca Castro Alves<br />
Taboão da Serra . Foto: Edu Toledo.<br />
P.203 Café Literário em Taboão da Serra.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.206 acima: Sarau da <strong>Cooperifa</strong> nas escolas.<br />
abaixo: Uma pequena homenagem na Escola Neusa Demétrio.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.207 acima: Sarau nas escolas (Lobão, Jairo, Augusto, Will, Rose,<br />
Bolão, Lu Souza, Mavot e Sales). abaixo: Lu Souza, Lobão,<br />
Augusto Jairo e Mavotsirc. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.210 Ajoelhaço: poetas de joelhos, pedindo perdão às mulheres.<br />
Foto: João Wainer.<br />
P. 212-213-215<br />
Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Foto: João Wainer.<br />
P. 221-222-224-225-227<br />
Poesia no ar, a <strong>Cooperifa</strong> enchendo de poesia o céu de São Paulo.<br />
Fotos: João Wainer.
P.231 Aniversário da <strong>Cooperifa</strong>: Danilo, Rose (musa) e<br />
De Lourdes. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.236 Os novos antropófagos: Sérgio <strong>Vaz</strong>, Jairo, Salesm Gunnar,<br />
Wésley Noóg, Ademir, Cocão, Ana bela, Marcelo, Mavotsirc,<br />
Juliana, Robson Canto, Casulo, Preto Will, Ricarda, Rose Dorea,<br />
Tadeu Lopes, Euller Alves, Roberto QT, Jair Guilherme, Wagner<br />
Felipe, Marcio Batista, Lerói, Anderson e Vicente.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.237 Caminhada Cultural, prof. Toninho segurando o estandarte<br />
da <strong>Cooperifa</strong>.Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.241 Mosaico da Semana de Arte Moderna da Periferia.<br />
Fotos: arquivo pessoal do autor.<br />
P.242 Dia da Literatura na Semana de Arte Moderna da Periferia<br />
(livros despencado do teto). Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.243 Bicicletas voadoras do Magrela’s Bike na Semana.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.244 Grupo de teatro Brava companhia na Semana.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.248 Música na Semana com Jairo do Periafricania.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.249 Dança na Semana com o grupo Espírito de Zumbi.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.255 Logo da Semana de Arte Moderna da Periferia feita pelo<br />
artista P. Jair Guilherme. Arquivo pessoal do autor.<br />
P.257 Oficina de poesia. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.258–259 Dança na Semana de Arte Moderna da Periferia.<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.260 Grupo Espírito de Zumbi se apresentando em frente ao Sarau.<br />
Foto: João Wainer.<br />
P.261 Grupo de teatro Ação e Arte na Semana de Artes da Periferia.<br />
Foto: João Wainer.<br />
P.262 acima: Cinema na Semana de Arte Moderna da Periferia.<br />
abaixo: Música na semana (Cocão e Will do grupo Versão Popular).<br />
Foto: arquivo pessoal do autor.<br />
P.282 Sérgio <strong>Vaz</strong>.<br />
Foto: Eduardo Toledo.
282 <strong>Cooperifa</strong>
sobre o autor<br />
Sérgio <strong>Vaz</strong> fala que é poeta e acha que faz poesia. Formado nas<br />
ruas, aprendeu tudo que sabe nos livros e no Bar e Empório<br />
Gurarujá, atual bar do Zé batidão, onde acontecem os saraus<br />
da <strong>Cooperifa</strong>.<br />
Começou a escrever poesia em papel de pão. Excelente atacante<br />
de futebol de salão e meia-boca como médio-volante no<br />
time do Jardim Panorama. Hoje, apesar dos 44, sonha em ser<br />
jogador de futebol.<br />
Gosta de rap, cerveja, samba, música negra, MPB antiga e torce<br />
para o Palmeiras. Já trabalhou como auxiliar de escritório, vendedor<br />
de vídeo-game e assessor parlamentar.<br />
É casado com a Sônia e tem uma filha chamada Mariana.<br />
Não anda sozinho, está sempre em companhia dos poetas da<br />
<strong>Cooperifa</strong> e conhece os becos e vielas do país, por isso, é folgado<br />
e agitador cultural. Tem gente que gosta, tem gente que não.<br />
Morador de Taboão da Serra, grande São Paulo, iniciou a <strong>Cooperifa</strong><br />
com outros artistas em uma fábrica desativada em fevereiro de<br />
2001. Meses depois, o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> com o poeta Marco<br />
Pezão, que deflagrou um dos maiores movimentos literários de<br />
São Paulo: a Literatura periférica.<br />
Lançou cinco livros, entre eles Subindo a ladeira mora a noite<br />
e Colecionador de pedras, que faz parte da coleção “Literatura<br />
periférica” da Global Editora.<br />
Outro dia, ele e mais um monte de artistas, criaram a Semana<br />
de Arte Moderna da Periferia. Ninguém ficou sabendo, mas<br />
eles fizeram.<br />
Fora isso, não tem mais nada que valha a pena saber.
Este livro foi composto em Akkurat.<br />
O papel utilizado para a capa foi o cartão Suprema Alta-Alvura 250g/m 2 .<br />
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m 2<br />
A impressão e o acabamento foram feitos pela gráfica<br />
Morada do Livro, em julho de 2008, no Rio de Janeiro.<br />
Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter<br />
as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha<br />
nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro<br />
de identificação do próprio contato. A editora está à disposição<br />
para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.