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Cooperifa : antropofagia periférica / Sérgio Vaz

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<strong>Cooperifa</strong>


<strong>Cooperifa</strong><br />

Antropofagia periférica<br />

Sérgio <strong>Vaz</strong><br />

Patrocínio


Copyright © 2008 Sérgio <strong>Vaz</strong><br />

COLEÇÃO TRAMAS URBANAS<br />

curadoria<br />

HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA<br />

consultoria<br />

ECIO SALLES<br />

projeto gráfico<br />

CUBÍCULO<br />

COOPERIFA – ANTROPOFAGIA PERIFÉRICA<br />

produção editorial<br />

ROBSON CÂMARA<br />

revisão<br />

JULIANA WERNECK<br />

revisão tipográfica<br />

ROBSON CÂMARA<br />

V497c<br />

<strong>Vaz</strong>, Sérgio<br />

<strong>Cooperifa</strong> : <strong>antropofagia</strong> periférica / Sérgio <strong>Vaz</strong>.<br />

-Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.<br />

(Tramas urbanas; 8)<br />

ISBN 978-85-7820-006-0<br />

1.<strong>Vaz</strong>, Sérgio. 2.Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong>.<br />

3.Poesia popular – História e crítica.<br />

4.Cultura popular - Brasil.<br />

5.Literatura popular – História e crítica.<br />

I.Título. II.Série.<br />

08-2822. CDD: 928.699<br />

CDU: 929:821.134.3(81)<br />

09.07.08 10.07.08 007568<br />

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS<br />

AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA<br />

Av. Ataulfo de Paiva, 658 / sala 401<br />

Leblon – Rio de Janeiro – RJ<br />

CEP: 22440 030<br />

TEL: 21 2529 6974<br />

Telefax: 21 2239 7399<br />

aeroplano@aeroplanoeditora.com.br<br />

www.aeroplanoeditora.com.br


Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, periferia<br />

social – se reforçam cada vez mais movimentos<br />

culturais de todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam<br />

os de alguns segmentos específicos: grupos musicais,<br />

grupos cênicos, grupos dedicados às artes visuais. Mas<br />

de idêntica importância, embora com menos visibilidade,<br />

é a produção intelectual que cuida, além de questões<br />

artísticas, de temas históricos, sociais ou políticos.<br />

A coleção Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes,<br />

um consistente e instigante apanhado dessa produção<br />

amplificada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende<br />

pontes, para um diálogo com artistas e intelectuais que<br />

não são originários de favelas ou regiões periféricas dos<br />

grandes centros urbanos. Seus organizadores se propõem<br />

a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades<br />

e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a<br />

partir de um ponto de vista local, alguns consensos questionáveis<br />

das elites intelectuais”.<br />

A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora<br />

das artes e da cultura em nosso país, apóia essa<br />

coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsabilidade<br />

social contribuir para a inclusão cultural e o fortalecimento<br />

da cidadania que esse debate pode propiciar.<br />

Desde a nossa criação, há pouco mais de meio século,<br />

cumprimos rigorosamente nossa missão primordial, que<br />

é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar<br />

para diminuir as distâncias sociais é um esforço imprescindível<br />

a qualquer país que se pretenda desenvolvido.


Para Para Augusto, Brói, Rose Dorea (Musa da<br />

<strong>Cooperifa</strong>), Márcio Batista, Marco Pezão,<br />

Cocão, Jairo (Periafricania), Lu Souza,<br />

Sales (O evolucionário), Mavotsirc,<br />

e o guerreiro Preto Jota (in memorian).<br />

Agradecimentos especiais<br />

Marco Pezão, João Wainer (fotografia), Edu Toledo<br />

(fotografias), Eleilson (Ação Educativa), DGT Filmes, Edson<br />

Natale, Eduardo Saron, Claudinei Ferreira, Marisa Zambrani,<br />

Ademir Valente, Ali Sati e Eliane Brum.


Sumário<br />

11 Prefácio<br />

12 Apresentação: Poesia das ruas<br />

14 Cap.01 O nascimento da poesia<br />

O bar<br />

Ruas perigosas<br />

Música Popular Brasileira<br />

Primeiros passos<br />

Da ponte pra lá<br />

Da ponte pra cá<br />

Os anjos de A margem do vento e Pensamentos vadios<br />

Mendigo cultural<br />

Taboão da Serra<br />

Pensamentos vadios, 2ª edição<br />

Cartões postais<br />

Hip-hop e sabedoria de vida<br />

66 Cap.02 <strong>Cooperifa</strong><br />

Poeta da periferia<br />

<strong>Cooperifa</strong><br />

O manifesto<br />

Marco Pezão e a Quinta Maldita<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong><br />

O primeiro sarau<br />

Mano Brown<br />

Marcelo Rubens Paiva<br />

112 Cap.03 Literatura, pão e poesia<br />

Literatura, pão e poesia<br />

O fim do Garajão<br />

Bar do Zé Batidão (de volta pro começo)<br />

O Sarau<br />

Jornal Farol Urbano<br />

134 Cap.04 A poesia dos deuses inferiores<br />

A biografia poética da periferia


144 Cap.05 O Rastilho da pólvora<br />

164 Cap.06 Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />

CD de Poesia da <strong>Cooperifa</strong><br />

182 Cap.07 1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong><br />

192 Cap.08 O bonde da <strong>Cooperifa</strong><br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong> em Suzano<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong> na Casa das Rosas<br />

198 Cap.09 Colecionador de pedras<br />

Livro Colecionador de pedras<br />

Café Literário em Taboão da Serra<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong> nas escolas<br />

Ajoelhaço<br />

Sarau rap- Poesia das ruas<br />

218 Cap.10 Poesia no ar<br />

Coleção Literatura Periférica<br />

As guerreiras da <strong>Cooperifa</strong><br />

232 Cap.11 Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

A semana<br />

274 Cap.12 Coopeirfa – Quilombo da poesia<br />

278 Imagens: índice e créditos<br />

282 Sobre o autor


A Poesia<br />

É o esconderijo<br />

Do açúcar<br />

E da pólvora.<br />

Um doce<br />

Uma bomba<br />

Depende<br />

De quem devora.


Prefácio<br />

Ao avistar os arredores íngrimes do Piraporinha e a grande<br />

subida sinuosa que me aguardava, não pude deixar de lembrar<br />

da Serra da Barriga, e veio o pensamento...<br />

Ambas palco de grandes de acontecimentos.<br />

Após subir a serra e chegar ao meu destino, percebi outras felizes<br />

coincidências:<br />

A Rose, musa do recital, com sua força e verdade me recordou<br />

Dandara, negra guerreira, que jamais se rendeu ao comodismo.<br />

Foi olhar para o lado, percorrer com os olhos atentos e observar<br />

o Márcio Batista, para me deslumbrar com sua paciência e cordialidade,<br />

marcas registradas de Ganga-Zumba.<br />

Dos versos que ecoavam ao microfone, após serem escritos em sua<br />

caneta – uma ponta de lança africana – contemplei Sérgio <strong>Vaz</strong>.<br />

Sua estratégia, firmeza, amor e principalmente o sorriso, me<br />

transmitiram confiança e certeza na história.<br />

Não teve jeito, veio à mente o meu líder maior!<br />

E todos que me cercavam, e eram centenas, estavam em casa:<br />

na <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Maior Resistência Cultural Brasileira.<br />

Eu? Bem acomodado, com os parceiros, respirava abundantemente<br />

o oxigênio de que tanto preciso: O Quilombo continua vivo!<br />

GOG


Apresentação: Poesia das ruas<br />

A literatura é a dama triste que atravessa a rua sem olhar para<br />

os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas<br />

calçadas frias da senzala moderna chamada periferia. Freqüenta<br />

os casarões, bibliotecas inacessíveis a olho nu, e prateleiras de<br />

livrarias que crianças não alcançam com os pés descalços.<br />

Dentro do livro ou sob o cárcere do privilégio, ela se deita com<br />

Victor Hugo, mas não com os miseráveis. Beija a boca de Dante,<br />

mas não desce até o inferno. Faz sexo com Cervantes e ri da<br />

cara do Quixote. É triste, mas a rosa do povo não floresce no<br />

jardim plantado por Drummond.<br />

Quanto a nós, capitães de Areia e amados por Jorge, não restou<br />

outra alternativa a não ser criar o nosso próprio espaço para a<br />

morada da poesia. Assim nasceu o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Nasceu<br />

da mesma emergência de Mário Quintana e antes que todos<br />

fossem embora pra Pasárgada, transformamos o boteco do Zé<br />

Batidão num grande centro cultural.<br />

Agora, todas as quartas-feiras, guerreiros e guerreiras de todos<br />

os lados e de todas as quebradas vêm comungar o pão da sabedoria<br />

que é repartido em partes iguais, entre velhos e novos<br />

poetas sob a bênção da comunidade.


Professores, metalúrgicos, donas de casa, taxistas, vigilantes,<br />

bancários, desempregados, aposentados, mecânicos, estudantes,<br />

jornalistas, advogados, entre outros, exercem a sua cidadania<br />

através da poesia.<br />

Muita gente que nunca havia lido um livro, nunca tinha assistido<br />

a uma peça de teatro, ou que nunca tinha feito um poema, começou,<br />

a partir desse instante, a se interessar por arte e cultura.<br />

O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> é nosso quilombo cultural. A bússola que<br />

guia a nossa nau pela selva escura da mediocridade. Somos o<br />

grito de um povo que se recusa a andar de cabeça baixa e de<br />

joelhos. Somos o poema sujo de Ferreira Gullar. Somos o rastilho<br />

da pólvora. Somos um punhado de ossos, de Ivan Junqueira,<br />

tecendo a manhã de João Cabral de Melo Neto.<br />

Neste instante, nós somos a poesia.<br />

É tudo nosso!<br />

Sérgio <strong>Vaz</strong><br />

Poeta da periferia


mento


Cap.01<br />

O nascimento da poesia<br />

Cap.01<br />

O nascimento da poesia


Não é possível contar a história da <strong>Cooperifa</strong> e sobre toda essa<br />

efervescência cultural do atual momento em que vivemos, 2008,<br />

sem contar o que era a periferia antes de tudo isso acontecer<br />

em nossas vidas, e na vida de outras pessoas.<br />

Cresci no bairro de Piraporinha, região de Santo Amaro, Zona<br />

Sul, a uns 30 km do centro de São Paulo, e como todo moleque<br />

que vivia no bairro, também queria ser jogador de futebol.<br />

Muitos, apesar dos quarenta, ainda sonham com isso.<br />

A nossa infância era só jogar futebol nos campos de terra, e como<br />

quase não tínhamos brinquedos, a vida se resumia também às<br />

brincadeiras de rua: bolinha de gude, pião, pipa, esconde-esconde,<br />

pega-pega, carrinho de rolimã, caçar passarinho, bandido<br />

e mocinho, jogo de futebol de botão, bater figurinha etc.<br />

E apesar de todas as dificuldades da maioria das pessoas, e<br />

não sei se por desconhecimento da dor, vivíamos como príncipes<br />

e princesas, como num conto de fadas. Nos anos 1970, o<br />

Brasil afundado na mais bruta ditadura, e nós ali, nas ruas sem<br />

asfalto, vivendo como Alice, no país das maravilhas.<br />

Naquela época os bairros da região em que a gente morava<br />

– Jardim Guarujá, Chácara Santana, Parque Santo Antônio,<br />

Jardim Letícia, Jardim Neide, Parque Europa, Figueira Grande,<br />

Lídia, <strong>Vaz</strong> de Lima, entre outros – eram bairros novos, por isso<br />

não ofereciam a menor infra-estrutura para se viver dignamente,<br />

16


O nascimento da poesia<br />

17<br />

pelo menos para os adultos. Como todo mundo que um dia foi<br />

criança já sabe, a infância não dói no presente, só no futuro.<br />

Sou de uma época em que quando se fazia a 4ª série primária,<br />

tínhamos que ir para outros bairros, mais ao centro de Santo<br />

Amaro, fazer o ginasial. O colegial só chegou quase nos anos 1980.<br />

Os nossos pais tinham muita coisa em comum: a maioria deles<br />

tinha vindo de outros estados tentar a sorte por aqui. Muitos<br />

construíram essa metrópole. Os meus pais, por exemplo, vieram<br />

de Minas Gerais. Eles se separaram quando eu e meus irmãos<br />

éramos muito pequeninos.<br />

Minha irmã foi morar com a minha mãe e eu e meu irmão ficamos<br />

com o meu pai. Só mais tarde iria reencontrar a minha mãe,<br />

o que mudaria novamente o destino da minha poesia.<br />

Nesse tempo a TV era a nossa única referência cultural. E pela<br />

tela em preto e branco é que sabíamos que não estávamos<br />

sozinhos neste planeta chamado periferia. Assistíamos de tudo<br />

um pouco, mas principalmente desenhos como Speed Racer,<br />

Savamu, Fantomas, Super-dínamo, A Princesa e o cavaleiro<br />

etc. Não faltavam os super-heróis japoneses: Ultra-man, Ultraseven,<br />

Ultra-Q, Robô gigante, e claro, os enlatados americanos,<br />

Swat, Daniel Boone, James West, A feiticeira, Jeannie é um<br />

gênio, Bonanza, e assim seguia o lixo tóxico cultural destruindo<br />

nossas mentes. Muitos estão doentes até hoje.<br />

Outra rara diversão era quando o circo chegava na Piraporinha.<br />

O bairro ficava agitado por conta dos artistas que se apresentavam,<br />

a maioria deles vinham de programas de televisão como<br />

o dos Barros de Alencar, Bolinha, Raul Gil, Chacrinha, entre<br />

outros. Para se ter uma idéia do que representava isso, uma vez<br />

o Sidney Magal, no auge, veio ao circo cantar e rebolar; a mulherada<br />

quase pôs a lona abaixo.<br />

A molecada só tinha duas maneiras de ir ao circo ver o palhaço.<br />

Uma era se a gente furasse a lona; a outra, a minha preferida,<br />

era vender chocolate para os poucos privilegiados que podiam


18 <strong>Cooperifa</strong>


O nascimento da poesia<br />

19<br />

entrar pela porta da frente. De minha parte, achava divertido<br />

trabalhar sob a risada alheia.<br />

Quase no fim dessa época ganhei do meu pai meu primeiro livro:<br />

Ali Babá e os quarenta ladrões. Sem que eu percebesse, a literatura,<br />

nesse dia, iria mudar minha vida para sempre.<br />

A adolescência chegou para nós no ritmo do velho e bom soul/<br />

funk do papa James Brown, e nas melodias românticas de Betty<br />

Wrigth e Marvin Gaye.<br />

Tudo naquele tempo se resumia aos bailes. Era baile na escola,<br />

baile na Sedinha (quase todo bairro tinha uma sedinha de associação<br />

amigos de bairro), baile nos fundos de quintais, e nos<br />

salões de festas como o Palácio, Yoga (minha domingueira preferida),<br />

Palmeiras, Astro, Cartola, entre tantos outros.<br />

O tempo seguia dançando ao som de Jimmy Bo Horne.<br />

Hoje em dia quase todo jovem de periferia quer ter ou tem um<br />

grupo de pagode ou de rap, mas naquele tempo a maioria queria<br />

ter uma equipe de baile.<br />

Futebol também era outra coisa que se fazia muito. Como os campos<br />

de várzea eram fartos, às vezes num único bairro era possível<br />

ter de três a quatro times. E muitos desses times eram verdadeiros<br />

esquadrões, e arrastavam muitas pessoas para torcer em<br />

seus jogos. O Piraporinha, time da região, era um desses times.<br />

Apesar de gostar de futebol de campo, a minha praia era futebol<br />

de salão, que era pouco difundido naquela época. O Guarujá<br />

F.S., em que eu joguei muito tempo, também era muito respeitado<br />

na Zona Sul.<br />

Naquele tempo só uma coisa era certa para nós: as brincadeiras<br />

tinham ficado para trás, já não vivíamos um conto de fadas, e o<br />

algodão já não era tão doce.


20 <strong>Cooperifa</strong>


O nascimento da poesia<br />

21


O bar<br />

Meu pai saiu da empresa em que ele trabalhou por dez anos e<br />

entrou no ramo do comércio. Quando eu tinha apenas 12 anos ele<br />

comprou o Bar e Empório Guarujá, uma espécie de mercadinho<br />

daqueles tempos. Lugar onde eu iria passar toda a minha adolescência<br />

trabalhando, e nem sequer desconfiava que a minha senzala,<br />

durante mais de dez anos, iria se transformar um dia num<br />

dos maiores Quilombos Culturais do país: o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Sim, o velho Empório se transformou hoje no que é o bar do<br />

Zé Batidão.<br />

Naqueles tempos não tinha tantos bares como temos hoje, então<br />

os poucos que tinham acabavam virando o ponto de encontro de<br />

todas as pessoas da rua e do bairro.<br />

Durante o dia o Empório era freqüentado pelas mulheres, esposas<br />

e crianças. Nesse horário só se vendia doces e refrigerantes,<br />

arroz e feijão, farinha e miudezas em geral.<br />

À noite era somente para os homens. E eles chegavam cada qual<br />

em seu horário, vindos do trabalho, e como todos freqüentavam<br />

o bar todos os dias, era comum recebê-los com a sua dose de<br />

aperitivo predileto assim que punham os pés no recinto. Todo<br />

bar daquela época era sede de algum time de várzea, e quase<br />

todos eram decorados com troféus.<br />

22


O nascimento da poesia<br />

23


24 <strong>Cooperifa</strong><br />

O Clube do bolinha vivia lotado; como homem naquele tempo<br />

não assistia àa novela, era uma boa desculpa para não chegar<br />

cedo em casa.<br />

Lá se falava de tudo e de todos, mas o assunto predileto sempre<br />

foi o futebol. Mas também se discutia muito sobre as notícias<br />

do jornal Notícias populares – a história do nenê-diabo era<br />

acompanhada como novela – ou sobre o caso contado por Gil<br />

Gomes pela manhã, e coisas do dia-a-dia, mas quase não se<br />

ouvia falar de política de uma forma mais ampla.<br />

Quando se falava nisso, era sobre uma rua que ainda não estava<br />

asfaltada, um trator para tirar o barraco de alguém, um abaixoassinado<br />

para isso ou para aquilo, enfim. A maioria das pessoas<br />

dali eram de direita, quer soubessem ou não.<br />

A periferia, por suas necessidades básicas e ainda em formação<br />

geográfica, sempre foi reduto de velhas raposas políticas.<br />

Os poucos que eram de esquerda falavam em códigos; então,<br />

sempre passaram batidos.<br />

O boteco é onde a gente aprende a ser psicólogo. Foi lá que eu<br />

aprendi que todas as pessoas são iguais, mesmo bebendo bebidas<br />

diferentes.<br />

Atrás do balcão eu via a vida passar sobre mim. Minha vida se<br />

resumia a trabalhar no bar e ir à escola, e eu não gostava de<br />

nenhum dos dois.<br />

Com pouco tempo para a rua, passei a freqüentar um outro<br />

tipo de lugar: os livros. Lia de tudo um pouco, principalmente<br />

livros de adultos, coisas que mais tarde viria a entender, relendo<br />

novamente. Gostava também de jornais e revistas.<br />

Li Eram os deuses astronautas?, Pantaleão e as visitadoras,<br />

O cortiço, A mãe, Os Miseráveis, A Insustentável Leveza do Ser,<br />

Capitães de Areia, Drummond, Ferreira Gullar, Pablo Neruda,<br />

Agatha Christie, Dom Casmurro etc. Devorava e era devorado por<br />

tudo o que caía em minhas mãos.


Ruas<br />

perigosas<br />

Um outro tipo de personagem real que também era muito<br />

comum nos anos 1980 eram os temidos justiceiros, também<br />

conhecidos como “pés-de-pato”. Eram a prova verdadeira que<br />

as ruas tinham perdido a delicadeza dos contos de fadas.<br />

A simples menção do nome de alguns deles era o suficiente<br />

para desfazer as rodinhas em volta das fogueiras, que eram<br />

muito comuns nesse tempo. O nome do cabo Bruno, um dos<br />

assassinos mais temidos da região, era sempre citado em lugares<br />

onde havia algum tipo de aglomeração. Coisas do tipo: “Tem<br />

um opala preto [carro preferido dos assassinos], circulando na<br />

quebrada”. Pronto, era a senha para que todos fossem embora<br />

de onde estavam.<br />

Durante um bom tempo as chacinas eram as únicas notícias<br />

que saíam sobre a periferia nos jornais. Um tempo sem poesia<br />

alguma, nem sei se valia a pena lembrar, mas...<br />

Quando terminei o ginásio fui estudar em Santo Amaro, no<br />

Colégio Radial, Processamento de dados. Foi duro admitir que<br />

existiam outros lugares além das ruas do Jardim Guarujá e<br />

Chácara Santana.<br />

A maioria dos jovens da periferia não pensavam em cursar uma<br />

universidade e sim cursos profissionalizantes: Ferramentaria,<br />

Tornearia, Calderaria etc. O SENAI, por exemplo, era tão disputado,<br />

senão mais, do que a USP.<br />

25


Música Popular<br />

Brasileira<br />

Desde os tempos de baile, em que ensaiávamos os passos de<br />

dança em casa para não fazer feio no salão, o Márcio Batista<br />

sempre fora meu amigo, e não sei bem se por influência de<br />

alguém, ou se pelo pouco tempo de lazer que eu tinha, ou talvez<br />

pelas letras de protesto que para mim ainda não faziam tanto<br />

sentido, espiritualmente falando, começamos a nos interessar,<br />

timidamente, por Música Popular Brasileira.<br />

Marvin Gaye, Kool and Gang, Earth, Wind and Fire, Brass<br />

Construcion, Roberta Flack, Sister’s is Lad, Commodors, The<br />

Jacksons, entre tantos outros que me acompanhavam no início<br />

da fase de espinhas, agora davam lugar para Chico, Elis,<br />

Caetano, Gil, Gal, Bethânia, Milton e toda a turma do Clube da<br />

Esquina que acabara de chegar em nossos corações.<br />

Se já não bastasse ser estranho gostar de literatura naquela<br />

época, aos 15 ou 16 anos, para piorar comecei a gostar de um<br />

tipo de música que quase não se conhecia na periferia.<br />

... há soldados armados, amados ou não, quase todos perdidos<br />

de armas na mão.<br />

Vandré<br />

Aos 17 anos, em 1982, como todo bom garoto, alistei-me, obrigatoriamente,<br />

no Exército Brasileiro. O Brasil passava por uma<br />

crise monstruosa, e as fábricas viviam abarrotadas de gente à<br />

procura de emprego. Nesse ano, como forma de amenizar um<br />

26


O nascimento da poesia<br />

27


28 <strong>Cooperifa</strong><br />

pouco essa crise, o governo resolveu convocar cem mil jovens<br />

para servir as Forças Armadas. Eu, infelizmente, fui um deles.<br />

Prestei durante um ano o serviço militar, em 1983, como soldado<br />

no C.P.O.R. (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva)<br />

no bairro de Santana, Zona Norte de São Paulo. Os soldados<br />

eram, na maioria, jovens da periferia de São Paulo, enquanto a<br />

maioria dos alunos era de classe média alta e saíam de lá como<br />

aspirantes a tenentes.<br />

De acordo com o regime militar, todo mundo que servia o Exército<br />

aprendia a virar homem, além de aprender a dizer sim, senhor e<br />

não, senhor! Apesar de conviver com mais de cem praças, foi<br />

uma época de muita solidão. Como todo tímido que se preza,<br />

demorei muito para fazer novos amigos.<br />

No quartel eu trabalhei no rancho, era cozinheiro, pé-de-banha,<br />

como diziam na gíria dos praças. Foi trabalhando na cozinha,<br />

num final de semana em que não ficava muita gente, que eu<br />

descobri que de fato vivíamos em uma ditadura militar. Nunca<br />

tinha ouvido falar sobre isso na rua, na escola. Os jornais e<br />

revistas falavam vagamente.<br />

Nesse dia estava ouvindo uma fita da cantora Simone, gravada<br />

se não me engano em 1979, ao vivo num desses shows do Dia do<br />

Trabalho em algum estádio de futebol de São Paulo. Acho que o<br />

show se chamava Canta Brasil.<br />

Estava ouvindo a música “Pra não dizer que não falei das flores”,<br />

do Vandré, na voz dela, quando um sargento entra correndo aos<br />

gritos:<br />

— Soldado <strong>Vaz</strong>, que porra é essa que você está ouvindo?<br />

Pensei que o sargento ia voar na minha jugular.<br />

— Ué sargento!? É a cantora Simone.<br />

Falei na mais pura inocência.


O nascimento da poesia<br />

29<br />

— Seu mocorongo, não pode ouvir essa porra dentro do quartel.<br />

Está querendo me foder?<br />

E já foi desligando o rádio, como quem estivesse desativando<br />

uma bomba.<br />

Fiquei ali meio que sem entender o porquê da reação explosiva<br />

do milico superior. Para falar a verdade eu ouvia a música e não<br />

entendia o que queria dizer. Ele continuou irritado.<br />

— Isso é música de subversivo, de terrorista. Quer ser expulso, é?<br />

Falou mais um monte de coisas e foi explicando a gravidade da<br />

situação. Que os artistas eram os porta-vozes do comunismo,<br />

traidores da pátria, maconheiros, ateus desgraçados e que<br />

eram os verdadeiros inimigos da nação. E que aquela música<br />

representava tudo que o Exército abominava.<br />

Disse mais um monte de coisas, mas acho que percebendo a<br />

minha cara de surpresa e um tanto quanto inocente, sem mais<br />

nem menos devolveu-me a fita, e pediu que não a ouvisse mais<br />

no quartel.<br />

Depois dessa dura, comecei a ouvir todas as fitas que eu tinha<br />

de MPB novamente, e só então, depois de prestar muita atenção<br />

nas letras, é que eu pude entender o que realmente tinha me feito<br />

abandonar temporariamente a black music: as letras de protesto.<br />

Foi como se um raio tivesse caído em minha cabeça, e aberto<br />

um buraco do tamanho do mundo. Com a cabeça cheia de fendas,<br />

aproveitei e reli alguns livros de poesia, e o protesto também<br />

estava lá, só eu não havia visto.<br />

Eu, que vivia escrevendo sobre tristeza e solidão, e coisas sem<br />

sentido que fazem parte da alma, me apaixonei pelas metáforas,<br />

assim como Mário Ruoppolo (Massimo Troisi) no filme que<br />

conta uma pequena passagem da vida do poeta Pablo Neruda.<br />

Eu, que muitas vezes tinha vergonha de dizer que escrevia poesia,<br />

desse momento em diante queria ser poeta, e ainda por<br />

cima libertar o mundo da opressão dos tiranos de plantão.


Primeiros<br />

passos<br />

Quando saí do exército, em 1984, o Brasil começava a sua abertura<br />

política, a arte vinha com tudo e chegava de todos os lados;<br />

não na periferia, mas nas regiões mais centrais na cidade.<br />

Em Piraporinha, timidamente a Casa Popular de Cultura M’Boi<br />

Mirim 1 começava as suas atividades nas mãos de Izilda e mestre<br />

Jonas. Formávamos um time musical, eu, Ceará, Márcio, Cleone,<br />

José Neto, e mais alguns que gravitavam esporadicamente<br />

na nossa órbita, que adoravam MPB e discutir sobre política.<br />

Quase todo dia a gente ia na casa do Cléo tocar violão e tomar<br />

vinho natal, quando se tinha algum dinheiro.<br />

Na região de Santo Amaro algumas escolas promoviam festivais<br />

de música. Aliás, os festivais eram a grande novidade e pipocavam<br />

na região e nas cidades do interior. Fora da periferia, a MPB<br />

era um grande sucesso em São Paulo.<br />

De tanto gostar de música a gente achou que também sabia<br />

fazer. No nosso grupo só o Ceará sabia tocar; os demais, assim<br />

como eu, não tocavam nem campainha. Sem nos darmos conta<br />

1 A Casa popular de Cultura do M’Boi Mirim & Guarapiranga foi fundada em 10 de<br />

março de 1984 por uma rede de entidades com o objetivo de ser um espaço de<br />

discussão, troca de experiência e de participação popular. Transformou-se no 1º<br />

Pólo Cultural da Região de Piraporinha, mantida e administrada pela comunidade<br />

através de uma diretoria eleita (Associação). Hoje em dia, a Casa é sede de um dos<br />

maiores eventos culturais do país: o Panelafro.<br />

30


O nascimento da poesia<br />

31<br />

da nossa pobreza musical, começamos a nos preparar, precariamente,<br />

para participar dos festivais.<br />

Quando conseguíamos juntar dinheiro para pagar as inscrições,<br />

quando conseguíamos verba para comprar a fita cassete,<br />

quando conseguíamos um gravador emprestado, a gente se inscrevia<br />

e sonhava em um dia poder participar.<br />

O nosso processo de criação das letras também era muito<br />

pobre. Era simples: cada um queria fazer uma estrofe. O único<br />

problema é que apesar de gostarmos da mesma música, todos<br />

nós achávamos que tínhamos um estilo diferente.<br />

Vai vendo: eu achava que escrevia igual ao Chico Buarque, então<br />

só queria fazer música revolucionária. José Neto só queria falar<br />

de boi na estrada. O Cleone era meio Zé Ramalho, e o Márcio se<br />

sentia o Djavan.<br />

Os organizadores dos festivais não viam nem ouviam assim, por<br />

isso só chegavam cartas de agradecimento pela nossa iniciativa,<br />

e notas de recusa para as nossas músicas.<br />

Lembro das primeiras músicas que enviamos e nunca tivemos<br />

resposta:<br />

Trem de Maria<br />

Vamos viajar<br />

Nesse trem do tempo<br />

Se perder nas lembranças<br />

Do pensamento<br />

Em cada estação<br />

Vamos relembrar<br />

De tempos bons<br />

Que não vão voltar<br />

Maria Fumaça<br />

Que cortou as terras de Minas Gerais<br />

Foi por onde passou<br />

Meu avô e meu pai


32 <strong>Cooperifa</strong><br />

Era fim de tarde<br />

Ela vinha apitando<br />

Só não volta a Maria<br />

Que eu vivo sonhando.<br />

Um trago da vida<br />

Tenho vontade de falar de amor<br />

Assim como diriam os poetas<br />

Com suas cabeças geniais<br />

Falar do amor da forma mais completa<br />

Sentimento mais puro que pesa sobre os mortais.<br />

É preciso cantar<br />

No mais alto silêncio<br />

Todas as dores do mundo<br />

Abraçar todas as vozes de todos os tempos<br />

E nesse momento viver um segundo.<br />

Sentir com amigos<br />

A embriaguez eterna<br />

Perambular por entre as primaveras<br />

Tragar o lume das estrelas<br />

Onde não chegam nossas pernas<br />

E num suspiro conformado de cansaço<br />

Cair no chão e beijar nossa terra.<br />

Sentir na lembrança o tempo que passou<br />

No suor de cada lágrima rolada<br />

Juntar os pedaços da vida<br />

Para viver o tempo que sobrou<br />

Trazer de volta a esperança perdida<br />

E num toque de magia<br />

Encharcar o peito de amor<br />

Para derramar o copo e tomar<br />

Um trago da vida.<br />

Por discordar do nosso método de compor em grupo e ter o<br />

agravante de não saber tocar nem cantar, acabei fazendo a<br />

minha primeira letra sem parcerias, e que por coincidência foi<br />

nossa primeira participação em festivais, no Teatro Paulo Eiró,<br />

em Santo Amaro.


O nascimento da poesia<br />

33<br />

Vida<br />

Quero tempo pra pensar<br />

No homem que vai para o espaço<br />

E que não aprendeu com os pássaros<br />

O segredo livre de voar<br />

Não quero olhos para ver<br />

A decadência que trazem consigo<br />

E o que não podem mais deter<br />

O encontro com seu inimigo<br />

Não quero braços para abraçar<br />

O homem que cai, quando outro levanta<br />

Nem tampouco ajudar<br />

O que cai, na sua vingança<br />

Não quero pernas para correr<br />

Do ódio do homem que se aproxima<br />

E nem coragem de prever<br />

O homem a caminho de Hiroshima<br />

Não quero a vida pra viver<br />

Correndo atrás da sorte<br />

E nem com medo de se perder<br />

Perto dos olhos da morte<br />

Não quero a vida pra morrer<br />

Nem o sonho pra sonhar<br />

Eu quero a vida só pra crer<br />

No sonho que pode vingar<br />

Quero braços para abraçar<br />

O homem que quero crer<br />

E a coragem pra ajudar<br />

O homem que quer viver<br />

Depois disso, participamos de outros pequenos festivais. Nosso<br />

grupo musical nunca ganhou nada, nem menção honrosa ou<br />

diploma de participação; por isso, apesar de sempre estarmos<br />

juntos, a nossa carreira tinha chegado ao fim. Para a sorte de<br />

todos que gostam de música popular brasileira.


34 <strong>Cooperifa</strong><br />

Quanto a mim, além da experiência ficava a minha primeira<br />

letra, meu primeiro poema registrado, e o desejo de um dia me<br />

tornar um poeta.


O nascimento da poesia<br />

35


Da ponte<br />

pra lá<br />

Depois de algumas letras e alguns poemas guardados, pela<br />

primeira vez eu tinha pensado em escrever um livro, só que eu<br />

não fazia a mínima idéia de como faria isso. Naquele tempo não<br />

conhecia ninguém que já tinha publicado um livro, ou que sabia<br />

quais os caminhos a percorrer, ou sequer pensado em escrever.<br />

Nau sem rumo, comecei a fazer um curso de teatro, “Emílio<br />

Fontana”, no bairro de Santa Cecília, Centro de São Paulo. Não<br />

sei se queria ser ator, mas tinha idéia de escrever peças teatrais,<br />

e achei que era melhor aprender um pouco sobre a coisa.<br />

E aprendi bem pouco mesmo. O curso era basicamente teoria.<br />

O curso era freqüentado por muitos jovens, a maioria de classe<br />

média; da periferia podia-se notar poucas pessoas, além de<br />

mim e o Cleone, que também participou do curso.<br />

Note-se que tudo que a gente queria fazer sobre arte e cultura<br />

ficava depois da ponte do Socorro ou da avenida João Dias (pontes<br />

que dão acesso aos bairros mais ao centro).<br />

36


O nascimento da poesia<br />

37<br />

Durante o curso eu escrevi uma peça, “Amanhã talvez”, e montamos<br />

um grupo com os alunos para podermos representá-la,<br />

o ANGÉLICA 387. Como não gostava de atuar, aproveitei que a<br />

peça era minha e também dirigi.<br />

Fizemos duas apresentações no espaço Aonde Bar, que ficava<br />

na avenida Santo Amaro e que era comandado por uma turma<br />

de teatro de quem nós ficamos amigos. As duas sessões foram<br />

lotadas de amigos e parentes, sem contar que o lugar também<br />

não era muito grande.<br />

O grupo não vingou e aos poucos as pessoas que eram grandes<br />

amigas foram se dispersando, e a minha verve teatral também.<br />

Fiz muitos amigos nessa época, mas uma amiga em especial<br />

iria me ajudar no pontapé inicial da minha carreira poética:<br />

Adrianne Mucciolo.<br />

Fui apresentada a Adrianne Mucciolo pelo meu amigo Marcelo<br />

Carioca, que hoje é o marido dela. Na época ele namorava uma<br />

menina do bairro e que trabalhava no banco comigo. Quando<br />

esse amigo nos apresentou, disse-me que ela era poeta e estava<br />

afim de fazer um livro, e sugeriu que a gente escrevesse juntos.<br />

Eu e Adrianne ficamos amigos e começamos a escrever em parceria.<br />

Ela já tinha algumas poesias e eu também, e dividimos a<br />

autoria de outras.<br />

Com tudo pronto, descobrimos uma editora no bairro de Pinheiros<br />

que editava livros em pequenas quantidades. Funcionava<br />

como uma gráfica: você pagava e recebia os livros.<br />

Como eu não tinha dinheiro, ficou combinado que a Adrianne<br />

dava a metade e depois eu dava a outra metade no dia do lançamento.<br />

Fizemos quinhentos livros.<br />

Assim foi feito, no dia 10 de dezembro de 1988, numa galeria<br />

onde ficava a editora, eu lancei o meu primeiro livro: Subindo<br />

a ladeira mora a noite. Para minha surpresa o lançamento foi


38 <strong>Cooperifa</strong><br />

muito bom, e muita gente compareceu, tanto de minha parte,<br />

como da parte dela.<br />

A minha família, pessoas do bairro e amigos da empresa Filtros<br />

Logam, onde eu trabalhava como auxiliar de escritório, foram me<br />

prestigiar. No final do lançamento paguei a minha parte à editora<br />

e fui embora com os livros embaixo do braço batizá-los na<br />

periferia.<br />

Depois do lançamento, eu e Adrianne nos vimos mais algumas<br />

vezes, mas aos poucos fomos perdendo o contato. Só sei que<br />

ela foi uma grande amiga e esteve presente num dos dias mais<br />

felizes da minha vida.


O nascimento da poesia<br />

39


Da ponte<br />

pra cá<br />

O lançamento na galeria de Pinheiros tinha sido bom e coisa e<br />

tal, mas faltava lançá-lo na periferia. O Zé Batidão ainda não era<br />

no endereço atual, uma rua abaixo para ser mais exato, e era lá<br />

que nós naquele tempo começamos a vida boêmia no bairro.<br />

Como eu e mais ninguém sabia muito bem como era o lançamento<br />

de um livro na periferia, o Zé fez frango frito, com uma<br />

forma cheia de salada de maionese, em que no meio estava<br />

escrito o nome do livro, para servir para os amigos.<br />

Eu ainda não sabia o quanto era difícil vender um livro, e também<br />

não havia descoberto que o mundo não o estava esperando<br />

para a vida dar seguimento, nem sequer sabia que ia passar<br />

vergonha nos campos de várzea quando dizia que tinha escrito<br />

um livro de poesia. Não era fácil ser boleiro e poeta ao mesmo<br />

tempo, num lugar que dia após dia ia perdendo o romantismo.<br />

A única coisa que eu sei é que foi uma noite memorável. Como<br />

poucas nessa vida. E para poucos, também dessa vida.<br />

Boa parte das minhas poesias já era sobre temas sociais. Leiam<br />

algumas que já completaram mais de vinte anos, pois foram<br />

escritas bem antes de o livro ser publicado:<br />

40


O nascimento da poesia<br />

41<br />

Palco<br />

Segue o menino<br />

Deslizando na avenida<br />

Vende drops na caixinha de papel<br />

Tentando um papel<br />

No palco dessa vida.<br />

Em cada esquina<br />

Uma platéia diferente<br />

Batem palmas<br />

E não sente<br />

Que este ato não termina.<br />

No palco do asfalto<br />

Cenas fortes<br />

No frágil nu do corpo<br />

Ele veste as lágrimas<br />

Maquiadas de sorrisos<br />

Que desbotam na luz fria da noite,<br />

Bastidores da verdade.<br />

Segue o menino<br />

No palco desta vida<br />

Representando seu verdadeiro<br />

papel.<br />

Asas da quimera<br />

para Nelson Mandela<br />

Desenho de um sol no teu peito<br />

Apaga o não da memória<br />

Brilha o sim do seu jeito<br />

E faz mudar sua história<br />

O cárcere que vigia tuas lágrimas<br />

Afoga no teu Éden imaginário<br />

Das cores juntas na sina<br />

Em todos os dias do calendário<br />

Liberdade te espera<br />

O perpétuo não espera um<br />

segundo<br />

Semeie as asas da quimera<br />

Para voar deste mundo<br />

Quando houver frutos no<br />

pensamento<br />

A árvore que sombreia os campos<br />

Vai buscar para junto do seu<br />

manto<br />

As folhas que caem ao vento<br />

África dos navios de inverno<br />

Que o poeta criou<br />

Aquarela do pai eterno<br />

Que sem licença o homem<br />

assinou


Os anjos de<br />

A margem do vento<br />

e Pensamentos<br />

vadios<br />

A experiência do primeiro livro não fora somente flores; aos<br />

poucos eu fui descobrindo a dificuldade de ser poeta no país.<br />

Com o livro nas mãos, descobri que depois dos parentes e amigos<br />

mais próximos, poucos estavam interessados em poesia,<br />

e principalmente na minha.<br />

No início dos anos 1990 meu pai já tinha vendido o bar para um<br />

outro amigo da família e já não estávamos vivendo na ditadura<br />

militar. Na minha opinião, o Brasil entrou em gozolândia total,<br />

e no sentido literal da palavra.<br />

O Brasil continuava pobre e o racismo cada vez mais forte,<br />

a favelização em ritmo acelerado, o ensino precário, desemprego,<br />

mas o povo brasileiro vivia numa constante festa.<br />

A música pela qual eu havia me apaixonado estava chegando ao<br />

fim, e só mais tarde iria encontrar novamente um novo tipo de<br />

música de protesto que daria sentido à minha poesia: o rap.<br />

42


O nascimento da poesia<br />

43<br />

A minha poesia, conforme alguns, tinha ficado fora de moda, pois<br />

ninguém lutava mais contra o sistema, e o grande consenso era<br />

que não tínhamos mais inimigos, e a poesia engajada era coisa<br />

do passado. A palavra tesão era a grande moda do momento.<br />

Quanto a mim, só sabia que a poesia não podia parar.<br />

No ano de 1991 eu trabalhava de auxiliar de cobrança em um escritório<br />

de Materiais de Construção que ficava na Vila Olímpia, e a<br />

matriz em Joinville-SC. Estava com material para o meu segundo<br />

livro, A margem do vento – que era uma poesia mais reflexiva do<br />

que engajada, não sabia por que, mas tinha assimilado a pressão<br />

–, e não tinha um centavo qualquer para editá-lo.<br />

Não sei por que me ocorreu a idéia de pedir apoio cultural para o<br />

presidente da empresa, sr. Erédia, e movido por este desejo quase<br />

impossível de se realizar consegui que a Cida, secretária, marcasse<br />

uma hora com ele, o que não demorou muito a acontecer.<br />

No dia da reunião até que eu não estava muito nervoso, acho<br />

que era porque eu sabia que a idéia era muito louca para dar<br />

certo, então fui curto e grosso. Disse a ele que era poeta e queria<br />

editar mil livros e precisava do apoio da empresa, e em troca<br />

daria quinhentos livros para a empresa presentear os clientes e<br />

mais o logotipo da empresa na contracapa do livro.<br />

Ele ouviu atentamente o meu pedido, e fazia uma cara de “mais<br />

ou menos” o tempo inteiro. Disse, como sempre, que a empresa<br />

não passava por bons momentos, e todas aquelas coisas que os<br />

chefes dizem quando pedimos aumento. Anotou algumas coisas<br />

e disse que não era prática da firma e coisa e tal, mas que<br />

em breve me dava uma resposta.<br />

Um dia, quando menos esperava, ele mandou me chamar pois<br />

queria falar comigo. Cheguei lá esperando a choradeira de sempre,<br />

qual não foi minha surpresa quando ele disse que tinha<br />

uma outra proposta e que talvez fosse até melhor para mim.


44 <strong>Cooperifa</strong>


O nascimento da poesia<br />

45<br />

Ele disse que como estava perto do fim do ano, queria que o livro<br />

fosse uma espécie de presente de natal, mas que só aceitaria<br />

fazer se aceitasse editar dois mil livros e doar mil à empresa.<br />

Será que eu aceitei?<br />

Diante disso, convidei o amigo e professor Carlos Giannazi,<br />

que hoje é deputado Estadual pelo PSOL, para fazer a orelha<br />

do livro; o artista plástico Carlos Roberto Hippólito para fazer a<br />

capa, e as ilustrações ficaram por conta do desenhista Ivan de<br />

Oliveira Pesso.<br />

O lançamento foi num bar chamado Café in Concert, que ficava<br />

no Ibirapuera, zona nobre de São Paulo, e que era do mesmo<br />

dono do Vinicius Bar, onde eu tomava chopes com a turma da<br />

empresa às sextas-feiras (note-se aí que até para tomar chope<br />

era preciso sair da periferia).<br />

No dia do lançamento o bar ficou lotado. Amigos do bairro, família<br />

e muita gente da empresa em que trabalhava. Para se ter<br />

uma idéia, naquele dia eu vendi mais de 150 livros, que é o meu<br />

recorde até hoje. O duro foi vender os 850 livros restantes, e<br />

mais quinhentos com que o presidente me presenteou.<br />

Depois desse dia só dava eu em barzinho, porta de teatros,<br />

shows, porta de faculdade e tudo quanto é lugar que poeta<br />

podia e não podia entrar. Sem contar com a concorrência, que<br />

naquele tempo era muito acirrada, devido à quantidade enorme<br />

de poetas que tinha no Centro da cidade.


Mendigo<br />

cultural<br />

Encharcado de poesia e coragem neste ano, sem ser convidado<br />

participei, em trapos, da Bienal do Livro, que ainda era no Parque<br />

do Ibirapuera, vestido de mendigo e com os livros dentro de uma<br />

bolsa feita de saco de estopa e uma placa escrita “mendigo culturall”,<br />

com os dois eles da era Collor, distribuindo marcadores<br />

de páginas gratuitamente com as minhas poesias – foi nesse<br />

dia que eu também conheci o cantor Milton Nascimento e o presidente<br />

do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio da Silva.<br />

Os seguranças não entenderam muito bem o meu protesto<br />

e passaram a me seguir. Foi quando fui resgatado por uma<br />

mulher, Rosemay Zarif, que era dona da antiga livraria Antes do<br />

baile verde e que estava expondo lá. Depois desse episódio, May<br />

ainda continuou por muito tempo dando força para o meu trabalho.<br />

Nesse dia duas crianças me ofereceram moedas.<br />

Cheio de sonhos e de livros, o anjo-presidente da empresa ainda<br />

ia ser muito importante na minha vida. Poucos meses depois<br />

pedi que ele me mandasse embora, pois queria seguir pelo<br />

mundo vendendo e vivendo de poesia.<br />

Não só me demitiu como me desejou boa sorte.<br />

Outro dia eu o vi numa entrevista na televisão e fiquei muito<br />

emocionado; abracei-o com os olhos cheios de lágrimas e boas<br />

lembranças.<br />

46


O nascimento da poesia<br />

47


48 <strong>Cooperifa</strong><br />

Saí da empresa e montei um bar no bairro do Guarapiranga, o<br />

Etílicos bar, com o Branco e o Edson Franco. Não foram boas<br />

lembranças: durou apenas um ano, e saí de lá sem rumo e sem<br />

um tostão no bolso.<br />

Mas também foi nessa época que eu conheci um outro anjo<br />

em minha vida, Marisa Zambrani, que morava no bairro do<br />

Carandiru, e que também tem muita importância na minha<br />

vida e na minha trajetória poética. Foi ela que nos momentos<br />

mais duros da minha caminhada conseguiu patrocínio para a<br />

segunda edição do livro A margem do vento e para o livro que<br />

logo em seguida eu iria lançar: Pensamentos vadios.<br />

A primeira edição do livro Pensamentos vadios lancei também<br />

no Café in Concert, no Ibirapuera, em abril de 1994. A capa dessa<br />

vez foi feita pelo Ivan Pesso, e entreguei a orelha novamente ao<br />

meu amigo professor Carlos Gianazzi.<br />

Foi uma época muito turbulenta na minha vida. Havia conflitos<br />

onde quer que eu tocasse, onde quer que eu pisasse. Por isso,<br />

no final do ano de 1994 eu fui morar em Taboão da Serra (Grande<br />

São Paulo), onde minha vida fez sentido novamente, e onde, por<br />

incrível que pareça, tudo ia recomeçar, só que bem mais forte,<br />

e para sempre.


O nascimento da poesia<br />

49


Taboão<br />

da Serra<br />

Fugindo de mim e a convite de minha mãe, vim morar em de<br />

Taboão da Serra, grande São Paulo, por volta de 1995. Taboão<br />

faz fronteira com São Paulo por vários lados; eu vim morar na<br />

divisa com o bairro de Campo Limpo.<br />

Cheguei à cidade sem rumo e sem destino, desempregado, sem<br />

um tostão qualquer. Fui morar num quartinho em que apenas<br />

cabiam uma estante com meus livros, uma cama e uma garrafa<br />

PET de guaraná vazia, onde eu urinava. Reli quase todos os<br />

livros que tinha, que não eram poucos, enquanto a solidão me<br />

consumia como ferrugem.<br />

Com o vento soprando ao contrário, fazia apenas alguns bicos<br />

numa rádio Comunitária no Jardim Brasil/ZN, como locutor de<br />

um programa chamado “Ressaca Brasileira”, e como vendedor<br />

de livros numa distribuidora que fazia eventos em escolas e<br />

universidades. Depois de alguns anos, por prazer, eu e o Márcio<br />

Batista herdamos um programa de MPB na Rádio Atividade<br />

(comunitária) em Taboão da Serra.<br />

Nesse tempo os donos da distribuidora, Paula e Marco Chavão,<br />

ficaram meus amigos, e em boa parte das feiras nas escolas<br />

que a gente fazia eles arrumavam um jeito para que eu fizesse<br />

umas palestras e recitais, o que alavancava um pouco a venda<br />

dos meus livros nas feiras.<br />

50


O nascimento da poesia<br />

51<br />

Foram os tempos mais duros de minha vida, literalmente falando.<br />

Quando tinha dinheiro para condução, passava o dia andando<br />

sem rumo no centro de São Paulo, e só parava na hora do almoço<br />

para comer um churrasquinho grego com suco grátis.<br />

Enquanto a vida me maltratava sem dó nem piedade, quase que<br />

por acidente consegui um emprego de vendedor de vídeo-game<br />

na empresa Tec-Toy, na Lapa. Como para trabalhar de vendedor<br />

precisava de terno e gravata, coisa que eu nunca tive, pedi<br />

emprestado para um amigo, Cláudio Argentoni, que trabalhava<br />

na Caixa Econômica Federal, que além dos sapatos também me<br />

emprestou uma maleta. Grande amigo.<br />

Ser vendedor de porta-em-porta foi uma das melhores e iluminadas<br />

experiências da minha vida. Primeiro porque eu só<br />

andava de ônibus, metrô e trem, o que me permitia continuar<br />

lendo os meus livros à vontade. E segundo porque tive a oportunidade<br />

de conhecer quase todas as quebradas de São Paulo<br />

durante esse um ano e meio que estive lá.<br />

E quase todas as quebradas se pareciam com a minha. Estava<br />

sempre em casa.<br />

Saí de lá, só que agora tinha um pouco de grana, e já morava<br />

com a minha irmã, porque também não era isso que eu estava<br />

procurando. Minha mãe, Maria Mineira, como era conhecida<br />

aqui no Pirajuçara, era muito conhecida de alguns políticos da<br />

cidade, e um dia me apresentou a um que iria se candidatar e<br />

que estava precisando de ajuda. Lá fui eu fazer campanha para<br />

o candidato sem conhecer direito a cidade, só na aba da popularidade<br />

de minha mãe.<br />

Por sorte o candidato se elegeu a vereador e eu fui trabalhar de<br />

assessor de Gabinete na Câmara Municipal de Taboão da Serra,<br />

o que fez com que eu conhecesse profundamente a cidade, e<br />

que me apaixonasse incondicionalmente por ela. Nesse clima<br />

de amor, foi aqui que eu também conheci uma outra paixão,<br />

minha esposa Sônia e minha filha Mariana.


52 <strong>Cooperifa</strong>


O nascimento da poesia<br />

53


Pensamentos vadios,<br />

2ª edição<br />

Por aqui todos me conheciam por poeta, mas a não ser por<br />

publicações de meus poemas nos jornais da região, poucos<br />

conheciam o meu trabalho. Como os anos de dureza não foram<br />

poucos, não tinha sobrado livros nem para arquivo.<br />

Um dia estava conversando com um amigo, Carlão (in memorian),<br />

e ele disse que conseguiria alguns outdoors de presente<br />

para eu divulgar a minha poesia com o patrão dele, sr. José de<br />

Almeida, da Klimes, que na oportunidade me presenteou com<br />

cinco outdoors espalhados pela cidade.<br />

Na época os cartazes foram produzidos pelo Brói, artista plástico<br />

que fazia alguns free-lances publicitários para alguns vereadores<br />

e que mais tarde também iria ser muito importante para<br />

a minha caminhada cultural.<br />

Aproveitando esse clima de cordialidade com a cultura tão<br />

rara no meio empresarial, aproveitei e fiz uma proposta para a<br />

2ª edição do meu livro Pensamentos vadios para o sr. José de<br />

Almeida.<br />

Para minha surpresa, o homem aceitou na hora e disse que queria<br />

ficar com trezentos livros, dos mil que ele havia patrocinado,<br />

para presentear os amigos e clientes. Mais tarde ele ainda me<br />

presenteou com mais de cem livros.<br />

54


O nascimento da poesia<br />

55<br />

Com o apoio mais que cultural, lancei o livro no dia 23 de novembro<br />

de 1999.<br />

Algumas de suas poesias me acompanham até hoje.<br />

Vingança<br />

A vingança<br />

Tem seu lado bom se usada como convém.<br />

Por exemplo:<br />

Se alguém disser que te ama<br />

Vingue-se dele<br />

Ame-o também.<br />

Ninguém tem o direito<br />

de aprisionar um pensamento<br />

por mais vadio que ele seja.<br />

Enquanto eles capitalizam a realidade<br />

Eu socializo meus sonhos.<br />

Eu planto o trigo<br />

Para colher o pão,<br />

Sou pássaro que recusa migalhas.<br />

A produção e ilustrações do livro ficaram por conta do meu<br />

amigo Eduardo Toledo; a revisão, Márcio Amêndola, colaboração<br />

do Brói; e a orelha do livro ficou por conta de um amigo que na<br />

época escrevia na revista Caros amigos, Marco Frenette, que fez<br />

um dos textos – apesar de feito pra mim – mais bonitos sobre<br />

poesia que eu já li na minha vida.<br />

Se liga no texto:<br />

Mais de um poeta ou crítico já afirmou que a poesia é o pão dos<br />

elegidos. E isso não chega a ser mentira, porque ela já foi apenas<br />

isso um dia.<br />

Mas a poesia já tomou tantas formas diferentes, já entrou em<br />

tantos lugares onde era considerada inimiga e já chegou em tantos<br />

corações que sequer suspeitavam de sua existência, que essa<br />

definição elitista tornou-se incompleta.


56 <strong>Cooperifa</strong><br />

Faz tempo que a poesia é democrática. Basta lembrar do bom e<br />

velho samba do morro e dos repentes urbanos do bom e jovem rap<br />

brasileiro. E é justamente nessa democracia cultural que entra<br />

Sérgio <strong>Vaz</strong>, poeta da periferia que atinge o centro de todas as coisas<br />

com sua poesia, num generoso esforço de distribuição mais<br />

igualitária desse importante alimento espiritual.<br />

Ele vive em Taboão da Serra, em São Paulo. Terra de gente simples<br />

que luta por uma vida mais digna apesar de ter o descaso do<br />

Estado contra ela. A mesma história de qualquer periferia, enfim.<br />

Pensando nessa gente – sua gente –, Sérgio <strong>Vaz</strong> produz versos<br />

carregados de toques e sensações tentando aproximar-se de<br />

todos que gastam boa parte de suas vidas correndo atrás do pão<br />

real que não contém poesia, mas fermento para o corpo cansado<br />

de adorar um deus chamado trabalho.<br />

Esse admirável poeta sabe que suas emoções refletem as angústias<br />

e alegrais comuns a todos, e que ninguém pode ser excluído<br />

da dose de magia necessária para suportar a secura da vida que<br />

caracteriza o cotidiano de todos nós.<br />

É crença naquela velha e boa máxima de que “o artista tem de ir<br />

aonde o povo está”. E por acreditar nisso, o autor de Pensamentos<br />

vadios estende sua vadiagem poética até as escolas da periferia<br />

de São Paulo, aonde vai de bom grado declamar seus poemas e<br />

bater um papo com a rapaziada, para mostrar que há coisas mais<br />

importantes na vida do que droga e violência.<br />

Por fim, vale ressaltar que Sérgio <strong>Vaz</strong> – por ter consciência da<br />

importância da simplicidade – é inimigo declarado das complexidades<br />

desnecessárias. Mas não é o caso de interpretar mal seu<br />

trabalho: sua poesia é simples sem ser simplória, é acessível sem<br />

ser leviana.<br />

Ele apura a linguagem até a medida necessária para a sua poesia<br />

poder fluir rumo à sensibilidade do leitor.<br />

Em outras palavras, ele mata a pretensão para a emoção poder<br />

nascer livremente. E nessa luta do poeta contra a arrogância,<br />

quem sai ganhando é você, que tem este livro nas mãos.


O nascimento da poesia<br />

57<br />

No dia do lançamento, o CEMUR – teatro que fica no centro de<br />

Taboão – estava lotado, fisicamente só faltava a minha mãe,<br />

que faleceu em fevereiro daquele ano, mas que de alguma forma<br />

devia estar ali me abençoando, e finalmente tinha me apresentado<br />

como poeta para a minha cidade.


Cartões<br />

postais<br />

Sempre achei que a poesia tem que ganhar as ruas, as praças,<br />

os bares, as escolas, e nunca aceitei que o livro é o único abrigo<br />

do poema. Outra coisa que também me incomodava era essa<br />

coisa do poeta estar sempre no casulo à espera dos poucos que<br />

gostam de poesia.<br />

Pensando nisso, conversei com o Brói e pedi que ele criasse a<br />

arte, e em maio de 1999 lancei uma série de cartões postais poéticos<br />

para divulgar a poesia do meu livro Pensamentos vadios.<br />

Como não tinha muita grana, fiz apenas quatro modelos no início<br />

e três mil cartões para cada poema e saí por aí distribuindo<br />

poesia gratuitamente para quem quisesse receber.<br />

Depois, já com a ajuda de alguns amigos como Ademir Valente<br />

e o Ali Sati, fiz mais nove modelos de cartões, e durante mais<br />

de dois anos devo ter feito mais de cem mil cartões postais, e<br />

na esteira do sucesso dos cartões também fiz marcadores de<br />

páginas. Só na primeira remessa fiz 72 mil marcadores.<br />

Saía pela noite distribuindo em porta de teatro, shows de rap,<br />

barzinhos, e nas palestras nas escolas públicas de São Paulo e<br />

Grande São Paulo. Na época foi uma tremenda febre os cartões.<br />

Até hoje encontro pessoas na rua que dizem que colecionavam<br />

e ainda guardam consigo os postais e os marcadores. Nunca<br />

minha poesia tinha chegado a tantas mãos e sido apreciada, ou<br />

não, por tantas pessoas ao mesmo tempo.<br />

58


O nascimento da poesia<br />

59<br />

Uma vez, num show de rap dos Racionais, no Anhembi, levei<br />

uma bolsa com cartões que pesava mais de dez quilos, o que<br />

dava mais de quatro mil cartões. Eu e o Big Richards, que me<br />

deu uma força na época, distribuímos todos, um a um, desde a<br />

fila da entrada até na saída no final do show. Outro amigo que<br />

ajudou muito a distribuir em bares e shows foi o Didio, guerreiro<br />

do grupo Luance, e que mais tarde iria contribuir muito para o<br />

nascimento da <strong>Cooperifa</strong>.


Hip-hop<br />

e sabedoria de vida<br />

Trabalhava na Câmara Municipal ainda, lá pelos idos de 1998<br />

ou 1999, não me lembro direito, quando conheci o grupo de rap<br />

Sabedoria de vida, apresentado por um amigo chamado Levi.<br />

Quando o Levi os apresentou a mim, eles estavam com um<br />

problema na prefeitura para legalizar um evento na praça Luiz<br />

Gonzaga, aqui em Taboão, e pediu que eu intercedesse a favor<br />

deles. Logo em seguida apresentou Preto Jota e o Jhay, que<br />

estavam na organização do evento. Até então eu era apenas um<br />

admirador da cultura hip- hop, mas por conta deles, não sabia<br />

ainda, ia ficar para sempre envolvido com o movimento.<br />

O evento iria contar com a nata do rap naquele momento. Acho<br />

que era um show pela paz, com a participação do Mano Brown<br />

e tudo o mais. Como sempre as autoridades estavam temerosas<br />

quanto ao evento, mas depois de muita conversa tudo foi liberado,<br />

e o show transcorreu sem um transtorno sequer. Gente pra<br />

caralho. Um sucesso.<br />

Depois do show sobrou a amizade que iria durar, infelizmente,<br />

até o fim da vida deles. O grupo Sabedoria já vinha de uma longa<br />

caminhada de respeito no rap e já tinham aberto vários shows<br />

dos Racionais.<br />

Jhay era o mais extrovertido, por isso logo de cara fomos nos<br />

dando bem; já o Preto Jota era mais bicudo, fazia o tipo que não<br />

60


62 <strong>Cooperifa</strong><br />

gostava de ninguém – mais tarde a máscara iria cair, descobrimos<br />

que ele gostava de todo mundo.<br />

A esta altura eu já estava percorrendo as escolas públicas da<br />

periferia com um projeto chamado “Poesia contra a violência”,<br />

e eles eram os meus convidados mais freqüentes. O projeto<br />

era simples: eu chegava em uma escola, geralmente onde eu<br />

conhecia os professores ou diretores, e me oferecia para falar<br />

e recitar poesia, além de oferecer cartões e marcadores de presente<br />

para os alunos, e sorteios de livros. Tudo gratuitamente.<br />

A convite do meu amigo e professor Edson Lima, comecei o<br />

projeto numa escola chamada Alessandra Bassit, no Jardim<br />

Ângela, Zona Sul, que na época era considerado um dos bairros<br />

mais violentos de São Paulo.<br />

No começo falava sozinho, apenas com a companhia do documentarista<br />

Paco ou do jornalista Edu Toledo. Ambos ajudavam<br />

na divulgação, o que ajudava muito para abrir as portas de<br />

outras escolas. Visitamos mais de trinta.<br />

Às vezes também iam outros integrantes do grupo, como o Tico<br />

e o Fred, mas os alunos piravam mesmo é nos repentes improvisados<br />

do Jhay e nas letras fortes do Preto Jota. Por muitas<br />

vezes passei despercebido com meus poemas.<br />

O bate-papo era sempre sobre a quebrada, respeito e a importância<br />

da informação na vida das pessoas. Falávamos sobre<br />

cidadania e problemas próprios da juventude e do país. As conversas<br />

eram diretas e sem frescuras. Alguns professores estranhavam,<br />

outros simplesmente deliravam com esse encontro da<br />

educação da rua com a da escola. União perfeita.<br />

Daí fui percebendo a força dos artistas da comunidade no fortalecimento<br />

da cidadania da periferia, e que a gente precisava<br />

mudar a, e não mudar da periferia.<br />

Essa força não podia e não devia ser desperdiçada. Então comecei<br />

a chamar mais e mais representantes culturais para esses


O nascimento da poesia<br />

63<br />

encontros nas salas de aula. Uma vez fomos numa escola e<br />

tinha quase vinte artistas para falar com os jovens. O Xis, Diney<br />

do Gueto, Márcio Batista, Brói, entre outros, deram as caras<br />

nesses encontros.<br />

Mas as escolas estavam pequenas para a minha poesia; queria<br />

mais. Como já disse anteriormente, o livro é apenas um lugar<br />

de descanso para a poesia, e quando o poema não está repousando<br />

nas mãos das pessoas ele precisa estar nas ruas, à procura<br />

dos desavisados.<br />

Como já distribuía cartões postais em shows de rap, não custava<br />

nada eles me deixarem subir aos palcos para recitar<br />

minhas poesias. Assim foi feito.<br />

Chegava no show e falava com os organizadores do evento ou<br />

com alguém de algum grupo conhecido – a esta altura, por conta<br />

do Jhay e o Jota, eu já conhecia algumas pessoas – que eu era<br />

poeta, e se podia, nos intervalos dos grupos, recitar uma poesia.<br />

No começo alguns estranhavam essa coisa de poesia sem ritmo<br />

no show, mas a gentileza deles sempre imperava e acabavam<br />

deixando. O público no início também achava estranho, e assim<br />

eu fui peregrinando de show em show nas periferias do Brasil.<br />

Com o tempo era comum nos shows alguém comentar: “o tiozinho<br />

da poesia está aí, deixa ele falar uma poesia”, ou então na<br />

fila distribuindo os cartões alguém falava “recita tal poesia”, ou<br />

“esse cartão eu já tenho, me arruma outro”.<br />

Quando tudo parecia perfeito chega a notícia que Jhay havia<br />

sido assassinado. Até hoje ninguém sabe por quem ou por quê.<br />

Sua morte abalou toda a comunidade do rap e as pessoas do<br />

bairro, onde ele era muito querido.<br />

Vivendo nesse clima de poesia durante todo esse tempo, quase<br />

tinha me esquecido como a periferia também sabe ser cruel<br />

quando quer. E assim, de forma bruta e misteriosa, Jhay partiu,<br />

como num dos seus versos improvisados, só que sem rima e<br />

sem poesia. Saudades.


64 <strong>Cooperifa</strong><br />

Antes de partir ele ainda me presenteou com uma outra amizade:<br />

Mano Brown.<br />

Sem nada para oferecer, fiz uma poesia em sua homenagem no<br />

livro A poesia dos deuses inferiores.<br />

Jhay<br />

Jhay<br />

Nasceu Jaílson<br />

Primeiro filho do seu Roque<br />

Com dona Margarida.<br />

Preto, pobre<br />

Tinha tudo para ser ladrão,<br />

Mas teve Sabedoria de vida<br />

E fez do hip- hop a sua razão.<br />

Como todo pobre que se preza<br />

Também viveu livre,<br />

Apesar de ter a liberdade<br />

provisória<br />

Decretada.<br />

Fora do esquema,<br />

Não podia ter carro<br />

Não podia ter moto<br />

Não podia ter nada,<br />

Com suspeita de ser feliz.<br />

Negro de atitude<br />

Recusou-se a ser escravo<br />

A usar algemas.<br />

Então se transformou em rei<br />

Rei da rima<br />

Rei das ruas<br />

Rei das minas<br />

E construiu seu castelo<br />

Na brecha do sistema.<br />

Quando lhe assaltaram,<br />

Numa dessas vielas<br />

Onde os corvos fazem ninhos,<br />

Deve ter dito:<br />

“...vem, pode vir que tem<br />

mano que é mano não tira<br />

ninguém.” 1<br />

Aí levaram sua moto<br />

Levaram seu sorriso<br />

Tiraram sua vida.<br />

Levaram tudo que ele tinha<br />

E tudo que era nosso.<br />

O Céu?<br />

“Quem procura acha.”<br />

1 Não tira sarro de ninguém.


O nascimento da poesia<br />

65


Cap.02<br />

<strong>Cooperifa</strong>


Cap.02<br />

<strong>Cooperifa</strong>


Poeta<br />

da periferia<br />

O rap tinha entrado de vez na minha vida e a poesia de protesto<br />

novamente fazia sentido em meu trabalho. E vários rappers<br />

que eu tanto admirava já eram meus amigos, e também já era<br />

convidado pessoalmente por eles para recitar em seus shows<br />

e eventos culturais.<br />

Conheci o GOG aqui em Taboão numa rádio comunitária. Presenteei-o<br />

com um livro meu e prometemos ficarmos amigos no<br />

futuro. Assim aconteceu.<br />

Um dia, ouvindo no rádio sua nova música, “Fogo no pavio”, me<br />

emocionei com a homenagem que ele faz a mim e ao Ferréz.<br />

Logo em seguida me convidou para participar, poeticamente<br />

falando, de uma coletânea chamada “Fábrica da vida” com<br />

grupos novos de rap. Daí em diante fiz mais outras participações<br />

em outros grupo: Sabedoria de vida, 509-E, Inquérito,<br />

Periafricania, Versão popular, Di Função, entre outros.<br />

Foi nessa época que eu recebi um convite do empresário do<br />

509-E para fazer uns poemas no presídio de Franco da Rocha<br />

no dia das mães. Além de mim, vários grupos, inclusive os<br />

Racionais, iriam participar do evento. Levei quinhentos cartões<br />

postais, patrocinados pelo jornal Independente, com uma poesia<br />

escrita especialmente para o dia, e que foram distribuídos<br />

de cela em cela para todas as mães presentes.<br />

68


<strong>Cooperifa</strong><br />

69<br />

O rap tinha entrado de vez na minha vida – e eu querendo que a<br />

literatura entrasse de vez na vida dele –, e para se ter uma idéia do<br />

que estou falando já recitei poemas em shows com mais de dez mil<br />

pessoas e já tive o meu próprio camarim. Rsrsrs. Bons tempos!<br />

O rap tinha dado novo gás à minha poesia, e a MPB já não<br />

fazia tanto sentido em minha vida. A poesia só queria saber de<br />

becos e vielas, nada mais. O gás no talo, um dia assisti a uma<br />

entrevista sobre a rádio Rocinha, no Rio de Janeiro, e liguei pra<br />

lá falando do meu trabalho e de conhecer o trabalho deles. O<br />

Jocelino, que era o dono da rádio, topou a idéia e então partimos<br />

pra lá, a maior favela do país.<br />

Chamei o Edu Toledo e o João do Said e partimos pra lá de carro.<br />

Levei uns dois mil cartões e marcadores mais cinqüenta camisetas<br />

com minhas poesias para presentear os amigos do morro.<br />

Não sei como está agora, mas quando eu fui a rádio era a voz da<br />

favela, então o que batia na emissora ecoava nos becos. Quando<br />

o Carlinhos falou que estava sorteando camisetas, o bagulho<br />

ferveu de gente.<br />

Ficamos amigos do Carlinhos Costa, do Gato e do Soca, e na<br />

entrevista prometi que a próxima vez que eu fosse ao Rio iria lançar<br />

meu livro na Rocinha. Logo em seguida, depois de lançar o<br />

livro Pensamentos em Taboão e São Paulo, fui à Rocinha cumprir<br />

a minha palavra.<br />

Dessa vez fui só. Chegando lá, eu e o Jocelino armamos uma<br />

mesa com os livros e estendemos umas camisetas ao lado de<br />

uma banca de jornal, bem no meio do morro, e ficamos ali distribuindo<br />

cartões e oferecendo poesia. A Amélia Nascimento,<br />

que era minha amiga e editora da revista Raça, mandou uma<br />

repórter cobrir o evento.<br />

De repente pára um enorme jipe cheio de turistas italianos bem<br />

em frente à nossa mesa exposta e começa a tirar foto e a perguntar<br />

o que era aquilo de lançar livro na favela. Porra, eles salvaram


70 <strong>Cooperifa</strong><br />

o dia, compraram quase tudo. As camisetas que sobraram dei de<br />

presente para alguns amigos que fiz na hora.<br />

Com dinheiro no bolso, fomos para a antiga praça do Skate<br />

comer peixe e tomar umas cervejas pra comemorar. Dos becos<br />

surgiam pessoas com camisetas com meus poemas escritos;<br />

no bar penduramos alguns cartões, e assim nascia uma amizade<br />

que ia durar para sempre com a Rocinha.<br />

Na revista Raça a matéria saiu com o título “Poeta da periferia”.<br />

O tiozinho da poesia também tinha ficado para trás.


<strong>Cooperifa</strong><br />

71


<strong>Cooperifa</strong><br />

Seguindo na trilha dos cartões postais, as camisetas com poesias,<br />

desenhadas pelo Brói, ajudavam a divulgar mais o meu<br />

trabalho e acabavam com a pouca grana que ganhava. Cheguei<br />

a expor algumas vezes na feira de artesanatos que acontece em<br />

Embu das Artes aos domingos, mas não fui bem sucedido; mas<br />

ainda seguia sustentando a poesia.<br />

Nessas correrias do dia a dia, por acaso encontrei um amigo que<br />

era candidato a vereador na cidade e estava estampando suas<br />

próprias camisetas num determinado lugar e me convidou para<br />

ir até o local onde ele estava locado, uma fábrica desocupada<br />

na BR-116, em Taboão da Serra.<br />

Quando cheguei na fábrica fiquei chapado na hora, com o tamanho<br />

e a estrutura do lugar. O galpão, não sei por que, estava<br />

desocupado mas ainda estava com seus maquinários todos lá,<br />

dando uma atmosfera de guerrilha urbana ao local, que também<br />

era dividido por vários grandes espaços, e milhares de metros<br />

quadrados arborizados pelo lado de fora.<br />

A entrada ficava bem em frente a BR-116, com um enorme portão,<br />

e para chegar até ela era preciso andar quase cem metros por<br />

uma rua de paralelepípedo cercada de árvores que eram sopradas<br />

por um vento tranqüilo, como eu nunca tinha sentido antes.<br />

72


<strong>Cooperifa</strong><br />

73<br />

Nem sei bem o que eu senti na hora; só sei que quase não consegui<br />

prestar atenção na estamparia que ocupava uma parte onde<br />

era o escritório, que se localizava bem na entrada da Rodovia.<br />

Saí de lá diferente de quando tinha entrado, mas o mais estranho<br />

era que eu ainda não sabia o porquê dessa reação, só sabia<br />

que era uma energia positiva. À noite, encontrei o Brói, o Big<br />

Richards e o Gigio, e comentei sobre o lugar e tudo que eu tinha<br />

visto e sentido e que se a gente desse uma trabalhada daria<br />

para fazer um grande evento cultural.<br />

Todos ficaram empolgados e no outro dia o Brói foi lá para<br />

conhecer a fábrica de que eu tanto falava. E é lógico que o baixinho<br />

também pirou no lugar. Meu amigo Luiz, que havia me convidado<br />

para conhecer o lugar, não estava entendendo nada com<br />

a nossa empolgação. Na verdade nem nós mesmos estávamos<br />

entendendo direito, só mais tarde é que a ficha iria cair.<br />

Na segunda visita disse ao Brói:<br />

— Aqui dá para a gente fazer tipo a semana de arte moderna.<br />

— Como assim? – respondeu o baixinho.<br />

— Porra malandro, um evento multi-cultural, usando todos os<br />

espaços ao mesmo tempo. Vamos encher isso aqui de artistas<br />

de tudo quanto é quebrada.<br />

E fui explicando minha idéia passo a passo, já viajando nas possibilidades<br />

de juntar todos os artistas sem-palco da região num<br />

único evento, num único dia. Bom, a gente estava cheio de planos,<br />

mas quase íamos esquecendo de pedir autorização ao Luiz,<br />

que estava responsável pela fábrica. Nosso camarada entendeu<br />

na hora a nossa idéia e disse que estava liberado para o que<br />

a gente queria fazer.<br />

Tínhamos um tremendo lugar para divulgar os trabalhos de<br />

artistas da periferia em nossas mãos e nenhum tostão em nossos<br />

bolsos. Não ia ser nada fácil.


74 <strong>Cooperifa</strong>


<strong>Cooperifa</strong><br />

75<br />

À noite nos encontramos no bar do Portuga, eu, Brói, Big, Gigio<br />

e a Viviane – se não me falha a memória –, para discutir o que<br />

a gente iria fazer e como iria ser feito. E ficou decidido que ia<br />

ser um evento num domingo com uma programação para o dia<br />

inteiro com poesia, música (rap, MPB, reggae e samba), teatro,<br />

exposições, capoeira, lançamento de livros, dança (teve até<br />

desfile de cabelos afros no dia). Por conta principalmente do<br />

hip-hop, já estavam acontecendo na periferia vários eventos; a<br />

gente só queria fazer um que reunisse todo mundo.<br />

Conseguimos arrumar o som na prefeitura, o que vamos e convenhamos<br />

era o mais importante no momento, e começamos a<br />

convidar todo mundo que a gente conhecia ligado a algum grupo<br />

ou movimento cultural para participar e colaborar com o evento,<br />

que não teria cachê porque a entrada seria grátis também.<br />

Corre dali, corre daqui, e a gente fazendo tudo com o dinheiro<br />

do nosso próprio bolso, colocamos só duas faixas falando do<br />

evento e não tínhamos verba nem para flyers ou cartazes; aliás,<br />

não tínhamos nem nome para o evento.<br />

— Peraí, e o nome do bagulho? – alguém perguntou.<br />

Lembro que estava conversando com o Big sobre isso, a importância<br />

de um nome bem legal, e que marcasse para sempre esse<br />

dia (não sabíamos que teriam outros). O Big é carioca, e quando<br />

ele se referia à quebrada ele falava que “a perifa isso”, “a perifa”<br />

aquilo, e eu sempre falando essa coisa de um artista cooperar<br />

com o outro, e coisa e tal. De repente:<br />

— <strong>Cooperifa</strong>! – gritei.<br />

Nome dado, o Eduardo Toledo, que é jornalista e ia expor fotografias<br />

no dia, conseguiu colocar o anúncio do evento em alguns<br />

jornais locais e uma pequena chamada no jornal Folha de São<br />

Paulo, caderno Folha teen.<br />

Estava tudo pronto para o grande dia, mas faltava só uma coisa<br />

que eu achei que era muito importante: um manifesto! Escrevi


76 <strong>Cooperifa</strong>


<strong>Cooperifa</strong><br />

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78 <strong>Cooperifa</strong>


<strong>Cooperifa</strong><br />

79


80 <strong>Cooperifa</strong><br />

um manifesto e escrevi um texto especialmente para os jornais<br />

convocando todos para o grande dia.<br />

Convidamos gente pra caramba, e como não tinha bar por perto,<br />

a Bia e o Claudião se encarregaram de uma lanchonete improvisada<br />

com cachorro-quente, refrigerante e cerveja, que abasteceu<br />

toda a rapaziada presente.<br />

Tudo pronto. A ansiedade tomou conta da gente e se eu não<br />

esqueci ninguém os guerreiros da fábrica que se apresentaram<br />

no dia ajudando a criar a <strong>Cooperifa</strong> foram: eu que lancei o livro<br />

Pensamentos vadios, o Brói que expôs suas telas, Big com seus<br />

discos e livros, Edu com fotografias, e os grupos de teatro Tesol<br />

e a UTT (União Teatral Taboanense).<br />

Convidamos o Ferréz, que tinha acabado de lançar o livro e<br />

estava fazendo um baita sucesso nas livrarias e nas quebradas,<br />

e ele aceitou de pronto lançar o livro no dia.<br />

O jornalista Marco Frenette da revista Caros amigos também<br />

lançou o livro A importância da cor da pele, além do escritor<br />

Antônio Carlos e o poeta Élmantos, entre outros.<br />

A música ficou por conta dos grupos Herros Umanos, Sabedoria<br />

de vida, Diagnóstico, Marco Zero, Luance e banda Varal.<br />

A cabeleireira Luci fez um desfile de cabelos afros; a capoeira<br />

ficou a cargo do grupo Irmãos Guerreiros de Angola; Alan Leão<br />

e Paulo Brito fizeram Clow; Carozzi, Ed e Joselito fizeram uns<br />

esquetes teatrais.<br />

Os grafites ficaram por conta do Cobra, e a dança foi representada<br />

pelo grupo Espírito de Zumbi.<br />

Para falar bem a verdade, com a divulgação mínima, tinha mais<br />

gente se apresentando do que assistindo e o público não foi bem<br />

o esperado, e conforme nós mesmos, por ali passaram umas mil<br />

pessoas, mas ficou a impressão de um milhão.


<strong>Cooperifa</strong><br />

81<br />

Para se ter uma idéia, no segundo evento na fábrica encerramos<br />

com o rapper GOG, de Brasília, que foi apresentado pelo Paulo<br />

Brown, e ao final não tinha mais do que quarenta pessoas assistindo<br />

um dos melhores shows de rap que a gente já viu.<br />

Depois fizemos um terceiro encontro no estacionamento no<br />

Centro da cidade, no dia que caiu uma tremenda chuva, e pôs um<br />

fim, por ora, nos nossos sonhos. Meu amigo Luiz já não estava<br />

mais na fábrica e perdemos o espaço que havíamos cobiçado<br />

como se fosse nosso.<br />

Ao final das três batalhas estávamos todos exaustos e felizes,<br />

com a certeza que uma semente tinha sido plantada, para o<br />

resto de nossas vidas. Ficou também a certeza que teria que ser<br />

juntos, e não separados como queriam alguns, que a gente ia<br />

atingir algum objetivo na construção de uma cultura que identificasse<br />

e representasse a periferia.<br />

Ficou claro para todos nós que os inimigos responsáveis pela<br />

nossa fome cultural tinham que ser combatidos, só que agora em<br />

bando, como gafanhotos na lavoura. E que a culpa dessa nossa<br />

pobreza de arte e cultura era do sistema, e do marasmo que todos<br />

nós, até então, éramos cúmplices, e fingíamos não saber.<br />

Na fábrica onde nasceu a <strong>Cooperifa</strong> e onde eu também renasci,<br />

descobri uma outra coisa muito importante na minha vida: que<br />

se a gente quisesse realmente alguma coisa, era só pegar, porque<br />

tudo era nosso.<br />

O centro, ainda que discretamente, começava a mudar de lugar.


O<br />

man<br />

festo<br />

82


<strong>Cooperifa</strong><br />

83<br />

i<br />

É PRECISO SUGAR DA ARTE<br />

UM NOVO TIPO DE ARTISTA: O ARTISTA CIDADÃO.<br />

AQUELE QUE NA SUA ARTE<br />

NÃO REVOLUCIONA O MUNDO,<br />

MAS TAMBÉM NÃO COMPACTUA COM<br />

A MEDIOCRIDADE<br />

QUE IMBECILIZA UM POVO<br />

DESPROVIDO DE OPORTUNIDADES.<br />

UM ARTISTA A SERVIÇO DA COMUNIDADE, DO PAÍS.<br />

QUE ARMADO DA VERDADE, POR SI SÓ,<br />

EXERCITA A REVOLUÇÃO.


Marco Pezão<br />

e a Quinta Maldita<br />

Quando conheci o poeta Marco Pezão em uma rádio comunitária<br />

aqui em Taboão, a convite do David da Silva, que tinha um<br />

programa de esportes e notícias da região, mal sabia que eu já<br />

o conhecia.<br />

Meses antes havia sido convidado para ser jurado em um concurso<br />

de poesia do mapa cultural da cidade e lembro que fiquei<br />

muito emocionado com um poema chamado “Mina da periferia”,<br />

defendido por um cara com nome italiano de Marco Iadoccico.<br />

Votei no poema assim que acabei de ler, o que gerou muita discussão<br />

com os outros três jurados que também gostaram muito,<br />

mas que defendiam outros títulos.<br />

O poeta Marco Iadoccico venceu o concurso, e no programa de<br />

rádio é que eu descobri que este poeta também respondia pelo<br />

nome de Marco Pezão, o poeta da bola. Ganhou esse nome por<br />

conta do seu trabalho jornalístico com o futebol de várzea, e<br />

também era boleiro das antigas.<br />

Enquanto eu dava a entrevista, o Pezão, que era seu assistente<br />

na rádio, fazia uma leitura dos meus poemas. Lembro de ter<br />

ficado impressionado com a sua voz firme e bem postada, o que<br />

fazia com que os poemas ficassem muito melhor do que pareciam<br />

ser.<br />

84


<strong>Cooperifa</strong><br />

85<br />

O repórter Pezão também tem formação teatral, por isso no dia<br />

que nós o ouvimos recitar, a poesia ficou ainda mais bonita, e<br />

então tivemos a certeza que votamos na pessoa certa para o<br />

primeiro lugar.<br />

Passada a entrevista, começamos a nos reunir, despretensiosamente,<br />

às quintas-feiras, com uma turma de amigos que na<br />

maioria era de poetas e a turma do teatro, no bar do Portuga,<br />

que fica ao lado do CEMUR, espaço cultural da cidade.<br />

Entre uma cerveja e outra não sei quem teve a idéia de pedir<br />

que alguém recitasse uma poesia, e depois outro e depois mais<br />

outro, e acabou que foi virando um hábito a gente se reunir às<br />

quintas-feiras para beber, e depois recitar poesia. Não era um<br />

sarau, a gente ia mesmo para beber e discutir cultura, e sem<br />

que ninguém dissesse nada, estava criada assim, sem direitos<br />

e deveres, a quinta maldita.<br />

Aos poucos algumas pessoas foram aparecendo às quintas-feiras<br />

no bar, uns para beber, outros para recitar, e outros para ouvir.<br />

A maioria dos textos lidos eram de autores consagrados, acho<br />

que somente eu e o Pezão que tínhamos poemas próprios.<br />

Lembro até uma pré-estréia que o grupo Artmanha fez numa<br />

quinta dessas com a peça que depois seria um grande sucesso<br />

no estado de São Paulo, “Soltando o verbo”, apresentada pelos<br />

atores Sérgio Carozzi, Ed Ferraz e Joselito Gazza.<br />

A quinta maldita seguia sem nenhuma pretensão de ser nada,<br />

apenas um simples encontro de amigos, por isso era muito gostoso<br />

freqüentar e por isso também não durou muito tempo.<br />

Não sei bem por que, e como acabou a nossa primavera etílica e<br />

poética, mas eu e o Pezão descobrimos que aquela quinta-feira<br />

maldita estava grávida de um outro movimento, e esse embrião<br />

ia dar à luz a qualquer momento, só que desta vez, num outro<br />

berço e numa quarta-feira.


86 <strong>Cooperifa</strong>


<strong>Cooperifa</strong><br />

87<br />

Trechos do poema “Mina da periferia”, de Marco Pezão<br />

É noite...<br />

Noite que dá arrepio,<br />

Só de olhar a cara do tempo.<br />

A Saudade é água’ardente.<br />

Cachaça’alma no espaço me acalenta...<br />

A fantasia e o real que tua presença traz.<br />

Eu sinto o frio da solidão,<br />

E é por isso que o pensamento goteja,<br />

Como pingos de chuva,<br />

No caminho que me leva à tua morada.<br />

(...)<br />

(...)<br />

Chora minha cuíca<br />

Quando meu sonho invade teu cobertor...<br />

E teu corpo por mim amado<br />

Se enrola feito caracol,<br />

E meus braços se tornam cachecol<br />

O vento frio passa por entre brechas e vãos...<br />

É úmido o ar, tomo os teus lábios,<br />

E penso apenas em te beijar.<br />

(...)<br />

Mina explode atômica em consciências mil...<br />

Dança parceira da noite:<br />

Samba, rap, pagode, rock...<br />

No balanço do teu corpo, me ligo na idéia;<br />

Mina do Brasil.<br />

Mina que não é ouro nem prata;<br />

De gente, minha gente! Mina de muita gente<br />

Que ainda não se tocou o que a mina é.<br />

(...)<br />

(...)<br />

Você, minha mina da periferia!


Sarau da<br />

<strong>Cooperifa</strong><br />

Quando a Quinta Maldita deixou de acontecer, ficou a certeza de<br />

que era necessário criarmos um espaço para os nossos encontros.<br />

Um local onde poetas e não-poetas pudessem comungar a<br />

palavra como quem reparte o pão entre os necessitados, e nós<br />

éramos esses necessitados.<br />

Com uma idéia de local, o poeta Marco Pezão conheceu o Bodão,<br />

que era sócio da Doriana e do Renatinho num bar no Jardim<br />

Maria Rosa, e explicou que a gente estava afim de um local para<br />

realizar um sarau de poesia. Como ele tinha uma experiência<br />

com teatro, achou interessante a idéia e o Pé marcou uma hora<br />

pra gente conversar sobre o dia.<br />

Por conta da sua experiência anterior com teatro, o dono do<br />

bar aceitou na hora e decidimos que os encontros seriam às<br />

quartas-feiras porque era um dia morto na semana e só iria<br />

mesmo quem realmente estivesse interessado em poesia; outra<br />

coisa que ficou firmado entre nós é que o recital aconteceria de<br />

quinze em 15 dias.<br />

Enquanto discutíamos sobre o assunto surgiu a palavra sarau,<br />

e ninguém sabe por que, até porque a palavra era estranha a<br />

todos nós. Acho que todos já tinham ouvido esta palavra, mas<br />

conhecer o significado a fundo, acho que ninguém conhecia.<br />

Outro dia eu li que no Brasil, entre o final do século XIX e no início<br />

do século XX, o sarau era o evento mais elegante da sociedade e<br />

88


<strong>Cooperifa</strong><br />

89<br />

só os seres iluminados que tinham gosto por música e literatura<br />

e que não precisavam se preocupar com dinheiro, podiam se dar<br />

ao luxo de promovê-lo em seus amplos e belos salões.<br />

Li também que um sarau que se prezasse tinha muito champanhe<br />

importado, quitutes caprichados que saíam quentinhos da<br />

cozinha trazidos por vários serviçais, um belo piano de cauda e<br />

músicos e poetas consagrados, prontos para exibir sua arte.<br />

Esses eventos eram chamados de “salões” – muito provavelmente<br />

pelo ambiente que ocupavam. Chegaram como tradição<br />

importada da Família Real, em 1808, e imediatamente ganharam<br />

terreno no Rio de Janeiro. Era o local onde se reunia a Corte,<br />

e onde também deveriam acontecer os encontros para regar o<br />

cérebro da aristocracia e dos nativos que sonhavam ganhar um<br />

certo ar europeu.<br />

São Paulo só entrou no circuito mais tarde, quando perdeu os<br />

ares provincianos e seus ricos fazendeiros de café começaram<br />

a fazer de tudo para afrancesarem-se. Outros salões menos<br />

ricos (ou esnobes), mas sempre elitistas, também apareceram<br />

na cidade naquele período.<br />

A partir dos anos 1940, a dinâmica da “elite culta” mudou e<br />

os ricos saraus foram escasseando. A organização desse tipo<br />

de evento mudou de mãos e coube aos intelectuais universitários<br />

realizá-los – em bares, porões, praças, teatros, geralmente<br />

espaços underground esfumaçados e com convidados<br />

com o copo cheio de bebida. As drogas também aumentavam a<br />

viagem literária.<br />

Sem saber de nada disso, eu e o Pezão, numa fria noite de outubro<br />

de 2001, criamos na senzala moderna chamada periferia o Sarau<br />

da <strong>Cooperifa</strong>, movimento que anos mais tarde iria se tornar um<br />

dos maiores e mais respeitados quilombos culturais deste país.


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<strong>Cooperifa</strong><br />

91


O primeiro<br />

sarau<br />

O primeiro sarau aconteceu mais ou menos com as pessoas que<br />

andavam com a gente no momento. Lembro de ligar para várias<br />

pessoas e elas não toparem, primeiro porque não entendiam<br />

muito bem o que a gente queria, e segundo porque era numa<br />

quarta-feira, dia morto para as baladas.<br />

Então só apareceram os amigos e poetas mais próximos: eu,<br />

Pezão, Élmantos, um poeta de Embu, Rose (musa da <strong>Cooperifa</strong>),<br />

Helena, Régis, Paulo Brito, Sérgio Carozzi, Erton de Morais,<br />

Sônia e Mariana (esposa e filha), Otília, Giba, Aladim, Tavinho<br />

e Rafael do Cavaco. Não tinha quase ninguém, nem para ouvir<br />

nem para falar; lembro que cada poeta leu mais de dez poesias<br />

durante o Sarau.<br />

Começou uma 20:00h e nós levamos bravamente até mais ou<br />

menos umas 21:30h, quando a maioria, já cheia de alegria artificial,<br />

pedia pelo fim do evento. Como o Sarau ia ser quinzenal<br />

e naquele quase não tinha ido ninguém, só pra contrariar dissemos<br />

que o Sarau tinha de acontecer todas às quartas-feiras,<br />

acontecesse o que acontecesse. Assim é até hoje.<br />

Com o bar quase vazio, lembro que não ficamos muito tristes,<br />

mas muito decepcionados com os que não puderam aparecer<br />

e dar a força que precisávamos, já que tantos tinham achado<br />

ótima a nossa idéia do encontro de poetas.<br />

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<strong>Cooperifa</strong><br />

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<strong>Cooperifa</strong><br />

95<br />

Depois do Sarau ficamos ali, tentando um encher a bola do<br />

outro, e a única coisa que conseguimos encher foi as nossas<br />

caras. A gente também não tinha muito tempo pra chorar; se<br />

a gente tinha se apossado de um movimento aristocrático e<br />

levado para a quebrada, nós tínhamos que dar a nossa cara pra<br />

ele, então começamos a dar a cara pra bater.<br />

O Pezão divulgava nos jornais da região, eu ligava para todo<br />

mundo que eu conhecia e os intimava para comparecerem, e<br />

rogava praga naqueles que não podiam ir. E assim foi indo.<br />

Um dia aparecia um, depois outro, mais dois, e o Pezão no jornal,<br />

eu no telefone, as meninas divulgando entre os amigos,<br />

poetas e mais poetas aparecendo, gente da quebrada, amigos<br />

atendendo os meus pedidos, gente que passava na rua e via o<br />

movimento e entrava para conhecer, o amigo do amigo, o bocaa-boca,<br />

e quando a gente menos esperava, o Bar do Garajão já<br />

tinha quase cem pessoas freqüentando o Sarau.<br />

Por ser o Garajão um bar pequeno, essas quase cem pessoas<br />

para nós eram uma multidão, que se espalhava em três pequenos<br />

ambientes: as mesas em frente ao microfone, o bar que<br />

ficava ao lado, e em frente ao bar, onde muitas vezes a muvuca<br />

se formava.<br />

O Sarau foi se firmando como movimento na quebrada, e sem<br />

que a gente exigisse as poesias românticas foram aos poucos<br />

sendo substituídas pelos poemas com a temática social. E os<br />

novos poetas iam chegando, e aos poucos assimilando a pegada<br />

forte das quartas-feiras poéticas na <strong>Cooperifa</strong>.<br />

O Kennya, que hoje faz parte de um grupo de rap e foi um dos primeiros<br />

a chegar no Sarau, quando apareceu lá no Garajão quase<br />

não falava nada, a tal ponto de quando Pezão ouviu seu nome<br />

achou que ele era queniano mesmo, lá da África. Aos poucos ele<br />

foi se soltando e liberando da caneta uma poesia linda e cheia<br />

de força. Hoje fala mais que todo mundo ao mesmo tempo.


96 <strong>Cooperifa</strong><br />

As pessoas iam chegando de mansinho só para olhar e quando<br />

menos esperavam eram seduzidas pela poesia. Foi assim com a<br />

Samantha, a Pilar. O Helber Ladislau, que a princípio só assistia<br />

e um dia pediu para recitar “Paulo César Pinheiro” – se não me<br />

engano –, e não faltou mais aos Saraus.<br />

A Rose (musa) não recitava, só participava e dava uma força,<br />

mas ainda nem sequer pensava em ser poeta. O Márcio Batista,<br />

amigo de mais trinta anos, nunca havia recitado. Ele era subdiretor<br />

de uma escola noturna, e me lembro que ele chegou no<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong> uns três meses depois que a gente já estava<br />

lá; pediu para ler uma poesia, e tremia que quase nem conseguia<br />

ler o que estava no papel. Hoje em dia é um poeta completo.<br />

Como esquecer os acordes do grupo de samba Papo de família,<br />

que nos acompanharam por tanto tempo? O Preto Jota,<br />

do Sabedoria de vida, que foi um dos grandes guerreiros da<br />

<strong>Cooperifa</strong>, chegou cheio de marra com o seu rap, mas aos poucos<br />

suas letras foram ganhando a poesia necessária para uma<br />

música forte, e ao mesmo tempo bela e cheia de revolta.<br />

O poeta Allan da Rosa, que nos conhecemos lá no bar do Portuga,<br />

viu anunciado na faixa quando a gente fez um Sarau, e ele trocou<br />

uma idéia com o Pezão para poder participar. Nem sequer<br />

sonhava escrever seu próprio livro, chegou lá de mansinho e até<br />

hoje ele faz parte do movimento. Fiquei feliz quando ele escreveu<br />

seu primeiro livro, Vão,e me convidou para fazer a orelha.<br />

O pessoal do grupo 2hO (Isaac, Nenê e Milton), o grupo Fatos,<br />

Ridson Dugueto, Gato Preto e uma rapaziada boa que hoje está<br />

por aí vivendo de arte e poesia. E sem contar aqueles que iam e<br />

vinham o tempo todo.<br />

O Garajão fervia e a gente tinha descoberto uma coisa tão ou<br />

mais importante quanto que o livro: a palavra. Por conta dessa<br />

palavra as pessoas foram seduzidas pelo livro.


<strong>Cooperifa</strong><br />

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101


Mano<br />

Brown<br />

Toda vez que eu encontrava o Mano Brown dos Racionais MCs,<br />

eu o convidava para ir ao sarau. Cheio de compromissos, nunca<br />

dava certo para ele aparecer. Ele me convidou para assistir ao<br />

show de lançamento do CD “Nada como um dia após o outro<br />

dia”, que aconteceu lá no Brás, Centro de São Paulo. Aceitei o<br />

convite mas disse que só ia se ele fosse no sarau da <strong>Cooperifa</strong>,<br />

e assim ficou combinado.<br />

No dia do show o galpão estava lotado de gente para ver o novo<br />

CD dos Racionais, sucesso total. Milhares de pessoas. Ao término<br />

do show entrei no camarim que estava lotado de convidados<br />

e os cumprimentei pelo belo show, e lembrei ao Brown que<br />

agora era ele quem estava devendo a visita.<br />

Falamos durante a semana e ficou certo a sua visita ao Sarau,<br />

mas só que eu não disse para todo mundo, até porque eu não tinha<br />

muita certeza de que ele iria, não queria fazer papel de tolo.<br />

Mas aí o Sarau está rolando e de repente alguém diz que o Brown<br />

havia chegado. Agitação total no Sarau, e os telefones celulares<br />

começaram a ser acionados com as pessoas convidando outras<br />

para ver o líder dos Racionais no Sarau. Lembro que no dia e na<br />

hora que ele chegou tinha em média umas sessenta pessoas, e<br />

depois de meia hora já tinha mais de cem disputando cadeiras<br />

vazias.<br />

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<strong>Cooperifa</strong><br />

103<br />

Discreto como sempre, chegou com a turma do Rosana Bronx,<br />

o Cascão e o Véio do Trilha Sonora do Gueto. Depois o poeta do<br />

Gueto também foi ao microfone e também deu uma idéia sobre<br />

a importância dos nossos encontros.<br />

Nesse dia ficamos até a madrugada debatendo assuntos pertinentes<br />

à periferia, à poesia e à música. Brown voltou outras<br />

vezes e ajudou a divulgar e dar credibilidade ao nosso movimento,<br />

que não parava de crescer.<br />

Daria um filme.


104 <strong>Cooperifa</strong>


<strong>Cooperifa</strong><br />

105


Marcelo<br />

Rubens Paiva<br />

O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> já estava bem conhecido na região por<br />

conta de várias pessoas que passavam por lá e saíam propagando<br />

nossas palavras. O GOG, rapper de Brasília que já vinha<br />

desde a fábrica; Afro-X, que acabara de sair do Carandiru e foi lá<br />

com a sua ex-esposa Simony; Gaspar do Záfrica que agora é um<br />

Cooperiférico total, entre tantos outros.<br />

Mas um que também ficou marcado foi a presença do escritor e<br />

jornalista Marcelo Rubens Paiva, que um dia apareceu por lá para<br />

assistir e fazer uma matéria para o jornal Folha de São Paulo.<br />

Quando falei com ele ao telefone quase nem acreditei que ele<br />

viria, já que ele era um cara bem conhecido e tal, e principalmente<br />

porque não era ligado à periferia. Lembro que ele chegou<br />

no horário combinado, em sua van toda adaptada, o que deixou<br />

frustradas algumas pessoas que queriam ajudá-lo.<br />

Quando chegou, fizemos uma roda em torno dele e começamos<br />

um bate-papo sobre o Sarau, sobre a gente, poesia e tudo o<br />

mais; ele foi anotando e se dizia ansioso para assistir ao sarau.<br />

Nesta quarta não tinha muita gente porque estava acontecendo<br />

um jogo do Corinthias e River Plate pela Copa Libertadores,<br />

inclusive ele, corinthiano roxo, saiu correndo para ver o jogo.<br />

Antes de ir, assistiu um dos saraus mais bacanas que a gente<br />

fez; estava todo mundo inspirado e a poesia saía com uma luminosidade<br />

indescritível.<br />

106


<strong>Cooperifa</strong><br />

107<br />

Ele, escritor, soube captar esse momento, e fez uma matéria de<br />

quase meia página na Folha de São Paulo que ajudou a construir<br />

ainda mais a nossa imagem de Movimento Cultural que a gente<br />

precisava, e dando uma moral danada para o nosso Quilombo.<br />

Se liga na matéria:


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Sarau transforma boteco da periferia de SP em centro cultural<br />

Marcelo Rubens Paiva, da Folha de S. Paulo / 11.12.2002<br />

“O boteco é o centro cultural da periferia”, diz o poeta Sérgio <strong>Vaz</strong>.<br />

A bússola aponta para a Zona Sul.<br />

E é num deles, o Garajão, no Jardim Maria Rosa, que nas noites de<br />

quarta juntam-se poetas experientes, iniciantes e uma média de<br />

cem pessoas de várias quebradas.<br />

O público senta em torno de mesas regadas à cerveja, para ouvir<br />

o grito semântico da perifa: poemas de denúncia social, exaltação<br />

à consciência negra e, claro, amor. Mano Brown, dos Racionais, é<br />

presença constante. Afro-X e Simony já apareceram por lá.<br />

Organizados por <strong>Vaz</strong>, da <strong>Cooperifa</strong> (Cooperativa dos Artistas da<br />

Periferia), os saraus atraem expoentes da antiga comunidade e<br />

novos poetas, como os adolescentes Kennya e Pelezinho.<br />

Os dois pequenos trutas apareceram como ouvintes, descobriram<br />

um dom, e, semanalmente, lêem um novo trabalho, escrito à mão<br />

em folhas de caderno. Ambos são tímidos, mas não relutam ao<br />

serem chamados para declamar.<br />

“Invadimos o galpão de uma fábrica, mas tomaram ele da gente,<br />

e começamos a fazer saraus num boteco lá em cima. Até fizemos<br />

uma peça, os caras bebendo cachaça, e a peça rolando”, diz <strong>Vaz</strong>.<br />

“Os artistas da periferia sabem: ou você cava o espaço ou fica<br />

sem nada. Já fui em saraus em outras quebradas e saquei que<br />

precisávamos fazer o mesmo”, explica.<br />

A balada dura até meia-noite. Como os saraus têm atraído muita<br />

gente, os organizadores levam poemas de poetas consagrados,<br />

de Maiakovski a Leminski, para os que aparecem de mãos vazias.<br />

“Isto aqui está virando um aparelho cultural, cada um fala de seu<br />

trabalho. Virou um foco de resistência dentro da periferia. Não<br />

adianta agitar sexta e sábado e, na segunda, voltar a ser medíocre.<br />

Temos que atacar”, diz <strong>Vaz</strong>.


<strong>Cooperifa</strong><br />

109<br />

Aqui, o silêncio é uma prece. No primeiro dia, foi um choque, acharam<br />

que era pagodão, mas viram o silêncio. Hoje, há uma repercussão<br />

dentro da cidade”, diz Bodão, um dos sócios do bar.<br />

Não se trata de mais um braço do movimento hip-hop, que faz<br />

parte tanto quanto o samba.<br />

“Não queremos o rótulo do hip-hop. Isto aqui é uma confraria<br />

de artistas. Teve dia em que a entrada era um livro usado. Aqui,<br />

somos todos independentes. O boteco dá combustível para a<br />

criação”, conta <strong>Vaz</strong>, autor de Pensamentos vadios e criador de<br />

uma biblioteca comunitária.<br />

Ao ler um dos manuscritos de Pelezinho, estranho a frase: “Quando<br />

um VL aperta o gatilho, o Lúcifer te conduz”. Perguntei ao pequeno<br />

poeta o que significa “VL”. Ele me olha como se eu tivesse perguntado<br />

a um playboy o que é açaí. “VL é vida louca”, respondeu. E o que<br />

é vida louca? Ele não respondeu.<br />

“Tem gente que escreve em casa, para desabafar as mágoas. Viu o<br />

espaço aberto, pediu licença, declamou um poema, e, na semana<br />

seguinte, foi convocado para vir. Estamos resgatando-os para<br />

outro caminho”, explica o poeta e artista plástico Binho, que tem<br />

um bar em Campo Limpo.<br />

Binho faz intervenções em postes pela cidade, o que chama de<br />

“Postesia”. São placas com pequenos poemas, como: “O tiro é no<br />

nariz, mas é no peito que dói”. “Minha idéia era fazer poesia em<br />

postes, reciclando material de campanha política. Depois, passei<br />

a pintar e colocar nos postes, com tinta doada. Não sei ainda o<br />

que é meu trabalho. Vêm idéias na cabeça, a gente põe.”<br />

A prefeitura é o principal obstáculo. Ele as coloca à noite, e ela as<br />

recolhe de dia. “A revolução tem que começar praticando, exercitando,<br />

sem muita conversa”, diz.<br />

Ele que abriu o sarau na última quarta, declamando: “No lugar<br />

em que nasci, brincava que era tudo nosso, tinham o campinho<br />

e os terrenos baldios, era o nosso território. Já foi interior, hoje,<br />

periferia, com as casas cruas. A cerca virou muro, óbvio. A cidade<br />

cresce, o muro cresce. Vieram os prédios, as delegacias.


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<strong>Cooperifa</strong><br />

111<br />

Hoje, pago imposto dos impostores. Também cresci, fiquei grande,<br />

não caibo dentro de mim. E tão solitário, sou meu próprio vizinho”.<br />

Élmantos, 37, faz performances, como “Os Milionários Malditos,<br />

Fome e os Pobres Mendigos”.<br />

“Nasci na Bahia, na Fazenda Cabaceiras, onde nasceu Castro<br />

Alves. Tenho trabalho inspirado na cultura afro, na fome, miséria,<br />

pobreza. Meus trabalhos são mais ligados à arte social”, explica.<br />

“É na periferia que existem os melhores artistas. Não é porque<br />

somos pobres, humildes, largados e jogados que somos miseráveis.<br />

Aqui tem arte, lazer”, conta.<br />

Pezão é fotógrafo do jornal local, O Independente. Ele cobre futebol<br />

de várzea. É poeta há muitos anos, com muita coisa guardada.<br />

Não tem livro publicado.<br />

“Gosto de ler outros artistas, como Castro Alves. Não necessariamente<br />

tem a ver com os dramas da periferia. Nesta noite, vou ler<br />

Solano Trindade, poeta pernambucano que veio morar aqui, em<br />

Embu, na década de 1960”, diz.<br />

Em seguida, ele sobe e declama “Bolinha de Gude”, de Trindade.<br />

Escrito há mais de três décadas, o poema fala de moleques que<br />

viram assaltantes. Hoje, poderiam estar declamando.


Cap.03<br />

Literatura, pão e poesia


Cap.03<br />

Literatura, pão e poesia


O sarau andava a mil, e sem que percebêssemos a poesia fazia<br />

parte do cotidiano de muita gente, que antes sequer sabia o<br />

seu nome. Àquela altura não fazia o menor sentido guardar os<br />

poemas nas gavetas; as pessoas devagarzinho foram descobrindo<br />

isso e a cada dia chegava mais e mais gente com poemas<br />

nas mãos.<br />

O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> foi se transformando no movimento dos<br />

sem-palco, e todo aquele ou aquela que se sentia injustiçado<br />

pelo pão da literatura, nos procuravam – fugindo do marasmo<br />

– às quartas-feiras para se juntar ao nosso quilombo: poetas<br />

amadores, funcionários públicos, desempregados, aposentados,<br />

donas de casa, advogados, comerciantes, enfermeiras, crianças<br />

etc. Principalmente as pessoas simples, a nossa gente.<br />

Essa gente que durante muito tempo foi e é moída dentro dos<br />

ônibus lotados ao ir e voltar do trabalho e cuja única dose de<br />

lazer e cultura eram as pílulas anestésicas da televisão, agora<br />

tinha um dia para comungar a palavra, uma palavra que a gente<br />

não tinha e que agora era a nossa voz.<br />

No Garajão as palavras “guerreiros” e “guerreiras” a cada dia<br />

ganhavam mais força, e a gente que não havia inventado a poesia,<br />

estava inventando um novo jeito de amar a literatura, o nosso<br />

jeito. E a gente que não tinha inventado a paz, estava querendo<br />

114


Literatura, pão e poesia<br />

115<br />

guerra. E a gente que não tinha inventado o revólver que mata a<br />

nossa gente também inventou um novo tipo de arma, a caneta.<br />

O nome da <strong>Cooperifa</strong> começou a percorrer as quebradas e à<br />

boca pequena dizia-se que havia um lugar onde qualquer um<br />

podia chegar para ouvir e falar poesia e que só tinha apenas<br />

uma regra: o silêncio é uma prece!<br />

A periferia, que sempre foi lugar de gente trabalhadora e supostamente<br />

ninho da violência, como querem as autoridades nos<br />

fazer acreditar, ganhava, às custas de sua própria dor e da sua<br />

própria geografia, uma nova poesia, a poesia das ruas.<br />

Uma poesia única, que nasce do mesmo barraco de Carolina de<br />

Jesus, que brota da panela vazia, do salário mínimo, do desemprego,<br />

das escolas analfabetas, do baculejo na madrugada, da<br />

violência que ninguém vê, da corrupção e das casas de alvenaria<br />

fincadas nos becos e vielas nas favelas das periferias da Zona<br />

Sul de São Paulo.<br />

Uma poesia dura, seca, sem papas na língua, ora sem crase, ora<br />

sem vírgula, mas ainda assim poesia, com cheiro de pólvora,<br />

com gosto de sangue, com o pus da doença sem remédio, com<br />

o pé descalço, com medo, com coragem, com arregaço, com<br />

melaço da cana, com o cachimbo maldito, mas que caminha<br />

com endereço certo: o coração alheio.<br />

A poesia tinha ganhado as ruas e nunca mais seria a mesma.<br />

A Academia? Que comam brioches!


Literatura,<br />

pão e poesia<br />

A literatura na periferia não tem descanso, a cada dia chegam<br />

mais livros. A cada dia chegam mais escritores, e, por conseqüência<br />

disso, mais leitores. Só os cegos não querem enxergar<br />

este movimento que cresce a olho nu, neste início de século. Só<br />

os surdos não querem ouvir o coração deste povo lindo e inteligente<br />

zabumbando de amor pela poesia. Só os mudos, sempre<br />

eles, não dizem nada. Esses custam a acreditar.<br />

Não quero nem falar dos saraus que estão acontecendo aos<br />

montes, pelas quebradas de São Paulo. Isto me tomaria muito<br />

tempo. Haja vista as dezenas de encontros literários pipocando<br />

nas noites paulistanas. Cada qual do seu jeito, cada qual com<br />

seu tema, cada qual à sua maneira de cortejar as palavras.<br />

Mas eu quero falar mesmo é da poesia que se espalhou feito<br />

um vírus no cérebro dos homens e mulheres da periferia. Pois<br />

é, essa mesma poesia que há tempos era tratada como uma<br />

dama pelos intelectuais hoje vive se esfregando pelos cantos<br />

dos subúrbios à procura de novas emoções.<br />

O tal poema, que desfilava pela Academia, de terno e gravata,<br />

proferindo palavras de alto calão para platéias desanimadas,<br />

hoje anda sem camisa, feito moleque pelos terreiros, comendo<br />

miudinho na mão da mulherada.<br />

Vocês, por acaso, já ouviram falar do tal poema concreto? Pois<br />

é, os trabalhadores e desempregados estão construindo biblio-<br />

116


Literatura, pão e poesia<br />

117<br />

tecas com eles, nas favelas. E o lobo mau pode assoprar que<br />

não derruba. Apesar da pouca roupa que lhe deram, está se<br />

sentindo todo importante com sua nova utilidade.<br />

A periferia nunca esteve tão violenta, pelas manhãs é comum ver,<br />

nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até quatrocentas<br />

páginas. Jovens traficando contos; adultos, romances.<br />

Os mais desesperados cheirando crônicas sem parar. Outro dia<br />

um cara enrolou um soneto bem na frente da minha filha. Deilhe<br />

um acróstico bem forte na cara. Ficou com a rima quebrada<br />

por uma semana.<br />

A criançada está muito louca de história infantil. Umas já estão<br />

tão viciadas que, apesar de tudo e de todos, querem ir para as<br />

universidades. Viu, quem mandou esconder ela da gente? Agora<br />

a gente quer tudo de uma vez!<br />

Dizem por aí que alguns sábios não estão gostando nada de ver a<br />

palavra bonita beijando gente feia. Mas neste país de pele e osso,<br />

quem é o sábio? Quem é o feio? E olha que a gente nem queria o<br />

café da manhã, só um pedaço de pão. Que comam brioches!<br />

Não, não é Alice no país das maravilhas, mas também não é o<br />

inferno de Dante. É só o milagre da poesia.<br />

Quem odeia ler agora?


O fim do<br />

Garajão<br />

Quando a gente ainda estava no Garajão, o Tavinho, que mora no<br />

Jardim Guarujá e que freqüentava o Sarau em Taboão da Serra,<br />

vivia insistindo para a gente fazer um Sarau no bar do Zé Batidão.<br />

Então fizemos uma ou duas vezes nas segundas-feiras. A gente<br />

nem sequer sabia o que estava por vir.<br />

O Sarau rolava a mil no Garajão, mas já se ouvia um boato que os<br />

sócios queriam vender o bar; chegaram até a oferecer para eu<br />

comprar, mas naquela época tinha acabado de ficar desempregado<br />

– na verdade havia largado o emprego novamente para me<br />

dedicar à poesia, mais tempos difíceis pela frente. Bom, como<br />

boato era boato, fomos seguindo a vida, ninguém nunca poderia<br />

acreditar que um dia isso iria acontecer. Mas aconteceu.<br />

O Bar do Garajão fica na ladeira do Jardim Maria Rosa, então quem<br />

vinha do Pirajussara, como eu, tinha uma visão ampla do lugar<br />

antes mesmo de chegar. Nesse dia estava vindo para o Sarau com<br />

a minha esposa Sônia, que na época era apenas minha namorada,<br />

e de longe vi o bar escuro e uma multidão em frente; caralho,<br />

parece que eu já estava sentindo um bagulho ruim no coração.<br />

Lembro de avistar o Giba, do grupo Papo de Família, sentado na<br />

frente e chorando; putz, já tinha pensado no pior; aliás, o que<br />

poderia ser pior do que fechar o bar e acabar com o Sarau? Ninguém<br />

podia acreditar, o bar tinha sido vendido, e pelo que a gente<br />

118


Literatura, pão e poesia<br />

119<br />

sabia o novo dono não queria saber de Sarau no local por que ia<br />

virar point de rock.<br />

Ficamos ali sentados por muito tempo como viúvos e viúvas consolando<br />

um ao outro, e avisando as pessoas que chegavam sobre<br />

o falecimento do lugar. Entre lágrimas, lembro que foi um dos dias<br />

mais tristes da minha vida, e quando olhei para aquele bar como<br />

um amigo que acabara de morrer, também pensei que morreria.<br />

Mas como de dor a gente entende, antes mesmo que o cadáver<br />

apodrecesse enterramos nossas lágrimas, juntamos nossas<br />

memórias com as nossas roupas de batalha e encarnamos num<br />

outro corpo, o bar do Zé Batidão.


Bar<br />

do Zé Batidão<br />

(de volta pro começo)<br />

Quando ficamos sem lugar para fazer o Sarau em Taboão da<br />

Serra, não pensei duas vezes, fui falar com o Zé Batidão. O Zé é um<br />

irmão, o conheço há mais de vinte anos (lembram do lançamento<br />

do meu primeiro livro?), sua história também daria um livro.<br />

Aos 57 anos esse mineiro chegou a ser criado como um escravo<br />

numa fazenda em Minas Gerais onde os patrões apenas lhe serviam<br />

restos de comida e o proibiam de estudar. Mas guerreiro<br />

que é, veio para São Paulo e trabalhou de pedreiro e garçom, até<br />

conseguir seu próprio boteco.<br />

Por aqui nós o conhecemos desde quando ele era dono de um<br />

bar na rua de baixo, onde eu, o Márcio, Samuca, Miltinho, Cleone,<br />

Ceará, Chuca, Marcão, Bom, entre tantos íamos tomar cerveja,<br />

principalmente às segundas-feiras.<br />

Guerreiro bom, perambulou com seu sonho por outros lugares<br />

até chegar ao bar que era do meu pai, onde eu fui criado, hoje o<br />

Bar do Zé Batidão.<br />

Chegamos no Zé por volta de março de 2003 e fomos acolhidos<br />

por pouca gente, mas principalmente a família Retrão. A família<br />

Retrão foi uma das primeiras famílias a chegar na região do<br />

Jardim Guarujá; fomos criados todos juntos na infância e adolescência,<br />

então quando o Sarau chegou timidamente no bar,<br />

fomos acolhidos principalmente por eles.<br />

120


Literatura, pão e poesia<br />

121<br />

A vida novamente se mostrava irônica: o lugar em que eu passava<br />

toda minha juventude querendo estar fora de lá era justamente<br />

o lugar que abrigava o quilombo que eu ajudei a criar.<br />

Chegamos no Batidão bem devagarzinho, e sem fazer barulho.<br />

Como nossa base estava toda em Taboão da Serra, às quartasfeiras<br />

o Zé mandava (até hoje o Ricardo busca) uma van trazer o<br />

pessoal de lá, que se encontrava na praça do Campo Limpo, em<br />

frente à casa do Pezão, para o nosso novo aparelho.<br />

A minha amizade com o Zé já rendeu outros eventos no passado.<br />

Uma vez, há uns dez anos levei o cantor Lobão pra comer<br />

uma feijoada e participar de um samba com a gente. Naquela<br />

época ele já planejava lançar o disco independente nas bancas<br />

de jornais. Ele acabou falando sobre o nosso encontro na<br />

revista Caros amigos.<br />

Tinha feito um evento com a 105FM, Gleides Xavier, que acho<br />

que foi o maior evento, em termos de público, que aquele bairro<br />

já viu. Até os bares da redondeza venderam cerveja.<br />

Outra vez foi o Big Richards, que na época da fábrica tinha um<br />

quadro no “Fantástico” chamado “Nóis na fita” e foi lá gravar.<br />

Fizemos um samba com poesia, mas não sei por que não foi ao<br />

ar. O Big disse, por brincadeira, que depois dessa gravação o<br />

programa tinha sido extinto.<br />

Outro dia levei a Amélia Nascimento, que era editora da revista<br />

Raça e que tinha feito uma matéria comigo na Rocinha. A feijoada<br />

do Zé sempre foi de primeira, por isso sempre quis levar as<br />

pessoas lá para conhecer a nossa periferia gastronômica.<br />

Estava quase tudo certo da Cássia Eller um dia aparecer por lá;<br />

não deu certo porque na produção tinha muita gente...<br />

Enfim, o bar já tinha uma certa tradição, por isso quando o Sarau<br />

chegou por lá já estava meio que esperando a gente chegar.


122 <strong>Cooperifa</strong>


Literatura, pão e poesia<br />

123


124 <strong>Cooperifa</strong>


Literatura, pão e poesia<br />

125


O Sarau<br />

Quando chegamos no Jardim Guarujá já tínhamos uma base<br />

bem montada com poetas já experimentados no Garajão, como<br />

Pezão, Márcio Batista, Kennya, Helber Ladislau, Samantha,<br />

Pilar, Allan da Rosa, Rose Dórea, Binho, Preto Jota, Vilma (nega<br />

drama), Issac (2hO), Tavinho, Pedro Lucas, o que facilitou e<br />

muito a implantação do Sarau.<br />

Aí foi só se juntar ao Carlos Silva, Prof. Lili, Lu Souza, Mavotsirc,<br />

Beso, Harumi, Roberto Ferreira, Periafricania, Sales, Rosy Eloy,<br />

Dinho Love, Elizandra, José Neto, Casulo, Fabio CRJ, Timbó, PH<br />

Boné, Augusto, Valmir Vieira, seu Lourival, Euller do Instituto<br />

UMOJA, Rodrigo Ciríaco, Robson Canto, Andréia, Bárbara e<br />

Lilá, Fanti, Ricarda, Dugueto, Akins Kinte, Fuzzil, B Valente,<br />

João Santos, Carlos Giannazi, prof. Toninho, Valter, Roberto<br />

QT, Brava Companhia, Régis do Ação e Arte, Arákúrin, Gaspar<br />

Záfrica Brasil, GOG, Rua 7, Asduba, César, Jair Guilherme,<br />

Samba da Hora, Samba da quinta, Marcio e Sandra do grupo<br />

Cavalo de Pau, grupo Versão Popular, Serginho Poeta, Adilson<br />

Lopes, Giba, Sandra Leia, Marinho, Zé Pompeu, Wésley Nóog,<br />

Beth Dentista, Dona Edite, Marcelo Ribeiro, Silvio Diogo, O<br />

gringo que fala, Magrela’s Bike, Tadeu Lopes, Vicente, Fernanda,<br />

Natália, Toni C., Bloco do beco, Ali Sati, P.A, Cláudio Laureart,<br />

Danilo, Zinhi Trindade, Lobão, Jorge Esteves, Tadeu Zuco,<br />

Renato Vital, Gastão e Ewald, De Lourdes, Renata Dias, Cine<br />

Becos, DGT Filmes, Daniel Alexandrino, Mamba Negra, Sônia,<br />

126


Literatura, pão e poesia<br />

127<br />

Juliana, Paula Preto, Tereza, Dinha, Diane Padial, Lygia, Antônio<br />

OHL e mais alguns que não lembro o nome agora, para que o<br />

Sarau sempre fosse o grande movimento de poesia que é.<br />

Não estavam sempre na mesma noite, nem no mesmo tempo,<br />

mas sempre na mesma sintonia.<br />

O funcionamento do Sarau é muito simples: começa pontualmente<br />

às 21:00h e também acaba pontualmente às 23:00h<br />

(às vezes acaba mais cedo) porque o bar fica na pracinha do<br />

Guarujá e tem muitas casas em volta. Procuramos colaborar<br />

com a vizinhança.<br />

Lógico que um dia ou outro sempre há excessos das pessoas<br />

que ficam em frente ao bar (tipo gente que estaciona o carro<br />

na garagem de alguém) ou que acabam falando mais alto, mais<br />

sem maiores ocorrências. É que tem dias que o Sarau está tão<br />

cheio que muita gente não consegue entrar. Falando nisso, a<br />

média de público por quarta-feira gira em torno de duzentas a<br />

250 pessoas, mas em saraus especiais já tivemos mais de quinhentas<br />

pessoas.<br />

Pra que todos possam falar nesse espaço de duas horas recomenda-se<br />

que as pessoas leiam poemas de no máximo duas<br />

laudas e evitem usar o microfone como palanque para discurso,<br />

assim a gente ganha tempo e mais pessoas podem falar. As<br />

poesias recitadas não sofrem qualquer tipo de censura prévia,<br />

e cada um fala o quer, seja texto de sua autoria ou de alguém<br />

consagrado, ou não.<br />

Durante o Sarau evitamos instrumentos musicais, ou incentivamos<br />

a cantoria de alguém, mas porque o movimento é estritamente<br />

literário. No passado tivemos problemas com as pessoas<br />

que chegavam de violão em punho querendo cantar (já teve<br />

noite com quase dez violeiros pedindo pra tocar). A gente também<br />

sabe que se a poesia concorrer com a música, com certeza<br />

vai tomar de goleada.


128 <strong>Cooperifa</strong><br />

Mas isso nunca impediu que antes de começar o Sarau alguém,<br />

devidamente conversado, possa dar uma canja. O Wésley Nóog<br />

fez isso durante muito tempo. O GOG, rapper de Brasília, o<br />

Versão Popular, o Periafricania, Carlos Silva e o Sabedoria de<br />

Vida já fizeram pequenos shows lá.<br />

O tempo que antecede o Sarau é o espaço que a gente usa<br />

como centro cultural do bar, para que outras expressões artísticas<br />

tenham acesso ao nosso público e vice-versa. É sempre<br />

às 20:00h que apresentamos um esquete de teatro de grupos<br />

como a Brava Companhia, Aço e Arte, Irmãos Carozzi, Cavalo de<br />

Pau, entre outros.<br />

Diga-se de passagem uma das mais belas histórias do Sarau<br />

aconteceu justamente por conta do teatro. Quando teve uma<br />

peça, não me lembro qual foi, um senhor da comunidade, uns 55<br />

a sessenta anos de idade, que tomava um aperitivo no balcão do<br />

bar me chamou e disse:<br />

— O que vai ter aqui?<br />

— Uma peça de teatro – respondi.<br />

— Como assim, o teatro vai vir aqui? – perguntou estupefato.<br />

Demorei para entender o porquê da surpresa, mas enquanto ele<br />

me falava pude perceber que ele estava achando que o Teatro,<br />

o prédio, iria na <strong>Cooperifa</strong>. Expliquei que era um grupo de atores<br />

da região que ia encenar uma peça, que era uma comédia e<br />

coisa e tal.<br />

Enquanto eu falava pude perceber em seus olhos uma dor que<br />

vinha acompanhada de um brilho cansado, mas ainda assim brilhava<br />

intensamente. Ele segurou no meu b raço, e quase suplicando<br />

me pediu:<br />

— Por favor, pede para esperar mais dez minutos que eu vou<br />

buscar minha esposa para ver isso também. – E saiu descendo<br />

à esquerda do bar para buscar sua convidada. Descendo bar à<br />

esquerda, não onde ele foi, mas mais para frente, fica o cemi-


Literatura, pão e poesia<br />

129<br />

tério do Jardim São Luiz. Pra quem não sabe, esse cemitério<br />

é onde estão enterrados a maioria dos jovens assassinados<br />

na Zona Sul de São Paulo – tem muito chumbo debaixo dessa<br />

terra.<br />

Pensei que ele não viria, por isso só os percebi quando o espetáculo<br />

já tinha começado. Notei ele acompanhado de sua esposa,<br />

que vestia um vestido simples e quase nenhuma maquiagem,<br />

trazia no rosto um riso triste, talvez por não estar entendendo<br />

nada, ou quem sabe por ter sido arrancada de frente à TV, na<br />

marra. Vai saber.<br />

Ao vê-los, procurei ficar numa posição em que eu pudesse percebê-los<br />

sem que eles me reparassem. Como não tinha mais<br />

lugar para sentar, ficaram no balcão, do lado esquerdo do bar.<br />

Estavam ali, quase abraçados, ele com um copo que devia ser<br />

um rabo de galo, ela segurando um copo de refrigerante tentando<br />

entender o que estava acontecendo, enquanto passeava<br />

com os olhos pelo local.<br />

Como a peça era uma comédia, a risada tomou conta da<br />

<strong>Cooperifa</strong> e do casal que assistia a tudo, ora com um riso destrambelhado<br />

no rosto, ora com uma ponta de aflição pelo esfregar<br />

das mãos.<br />

Ele ria com discrição, um certo machismo talvez, mas ria, e ria o<br />

tempo todo. Ela não ria, tinha orgasmos nos lábios, devia estar<br />

rindo tudo que ainda não tinha sorrido nesta vida. Ri também,<br />

baixinho, por solidariedade. Não assisti à peça. Assisti a eles.<br />

Ao final da peça, como diz a regra da nossa elegância e gratidão,<br />

todos aplaudiram de pé. Fui em direção ao casal e pude notar<br />

que eles ainda não tinham se refeito da alegria súbita que os<br />

tomara, e perguntei:<br />

— E aí, gostaram?<br />

— Gente, isso é muito legal! – disse-me ela.


130 <strong>Cooperifa</strong>


Literatura, pão e poesia<br />

131<br />

Ele me olhou profundamente – e ainda com um riso atrasado<br />

nos lábios – e me abraçou com as palavras mais doces que eu<br />

ouvi na minha vida:<br />

— Obrigado – disse-me ele. – Sabia que eu podia morrer sem<br />

nunca ter visto isso?<br />

Sim, eu sabia. Não respondi pra ele, mas eu sabia que o que ele<br />

disse era verdade.<br />

Assim como eu sabia que a maioria daqueles jovens que estavam<br />

enterrados no cemitério São Luiz também morreram sem<br />

ter visto uma peça de teatro, um filme no cinema, um show, um<br />

livro e um futuro.<br />

Na hora só me veio um pensamento: “se depender da gente, ninguém<br />

vai para lá, mas se for, antes tem que passar no Sarau da<br />

<strong>Cooperifa</strong>”.<br />

Lá também passamos diversos filmes e documentários, exposições<br />

de fotografias, artes plásticas. Mas como o nosso projeto<br />

é de literatura, lá no Sarau já teve lançamento de mais de quarenta<br />

livros e revistas.<br />

Mas antes de citar quem são esses novos autores que hoje<br />

estão por aí divulgando a literatura periférica, vou contar onde<br />

a maioria estreou.


Jornal<br />

Farol Urbano<br />

A <strong>Cooperifa</strong> sempre pensou em várias maneiras para divulgar a<br />

poesia produzida no Sarau. E, pensando nisso, em abril de 2004<br />

nós lançamos o jornal Farol Urbano.<br />

Era um jornal de poesia e cada poeta recebia sua cota em jornal<br />

e o vendia a um preço de R$ 1,00 cada exemplar. A idéia não era<br />

só pela grana, mas também fazer com ele circulasse através da<br />

distribuição de cada um. Cada poeta pegava uma parte e ia vender<br />

em algum lugar da comunidade, ou distribuía gratuitamente<br />

para amigos e parentes.<br />

O jornal também contava com uma agenda cultural, “Vai rolar”,<br />

que agitava as pessoas do Sarau, e já anunciava a entrega do 1º<br />

Prêmio <strong>Cooperifa</strong>. Também tinha textos de convidados, como o<br />

“É isso que me dão”, de Toni C.<br />

O professor Carlos Giannazi, hoje Deputado Estadual/PSOL,<br />

também escreveu lá. Assuntos internacionais ficou por conta<br />

do Ali Sati, que naquela época falava sobre os perigos da ALCA.<br />

Eu era o editor e o Brói era o diagramador.<br />

Já naquele tempo a gente convocava para a luta da cultura<br />

contra o marasmo. A manchete do primeiro e único jornal Farol<br />

Urbano foi: “<strong>Cooperifa</strong> declara guerra contra o imobilismo”.<br />

Por conta da falta de grana o jornal ficou apenas na primeira<br />

edição, mas foi o suficiente para agitar a comunidade. Foram<br />

três mil exemplares editados. Em 2008 está previsto o lançamento<br />

de uma revista.<br />

132


Literatura, pão e poesia<br />

133


Cap. 04<br />

A poesia dos deuses inferiores


Cap.04<br />

A poesia dos deus


A biografia poética<br />

da periferia<br />

Este quarto livro de poesia é um álbum de fotografias da minha<br />

memória. Uma biografia não autorizada, mas necessária, de um<br />

povo que cresce à margem de um país sem alvará de funcionamento,<br />

e sem licença para ser pátria. São fotografias de uma<br />

gente simples que vi crescer neste chão árido e escuro da senzala<br />

moderna chamada periferia. Uma homenagem a pessoas, que<br />

no curto tempo de uma vida, tiveram apenas o CIC e o RG como<br />

registro de passagem pelo planeta. É o 3x4 da minha infância.<br />

Um clique na dor alheia. É a raiva que escarra da lente dos meus<br />

olhos... são fotos de pretos e brancos governados por uma minoria<br />

colorida (esta íngua que dói na alma), arrogante e racista, que<br />

patenteou o arco-íris e guardou os negativos em algum banco<br />

estrangeiro. A beleza fica por conta de quem lê; não tive tempo<br />

para amenidades, a poesia só registrou a verdade.<br />

Assim começa a apresentação do meu quarto livro, A Poesia<br />

dos deuses inferiores, a biografia poética da periferia, lançado<br />

no dia 15 de julho de 2004.<br />

Na verdade o livro era para ser uma revista sobre história de<br />

pessoas que cruzaram meu caminho ao longo dessa vida.<br />

Histórias de gente simples da periferia. Uma revista poética<br />

com ilustrações e com letras bem grandes para facilitar a leitura<br />

da molecada. Quem me sugeriu essa idéia foi a garotada<br />

que eu conheci nas escolas públicas enquanto eu fazia o projeto<br />

“Poesia contra a violência”.<br />

136


A poedia dos deuses inferiores<br />

137


138 <strong>Cooperifa</strong><br />

A maioria dos alunos com quem eu conversava sempre davam<br />

as mesmas desculpas por não gostarem de livros, mas a mais<br />

citada foi que as letras eram muito pequenas e que cansavam<br />

as vistas. Pedi novamente ao Brói que fizesse a diagramação e<br />

que bolasse umas letras bem transadas, tipo grafite, mas sem<br />

perder as características do livro, para que a molecada não<br />

tivesse mais desculpas quando pegassem o meu livro para ler.<br />

Acontece que as histórias foram aumentando e os poemas também,<br />

então a saída foi editar o livro. A revista ia ficar para uma<br />

outra ocasião.<br />

Cheguei com o projeto do livro até o diretor da Faculdade de<br />

Taboão da Serra, Joel Garcia, e ele aceitou que a faculdade<br />

patrocinasse a edição de mil livros.<br />

A capa era uma foto do Eduardo Toledo que nós tiramos da laje<br />

do Paulão, no Jardim Guarujá, e que pega toda a quebrada da<br />

região, incluindo o Jardim Letícia, Morro do Piolho e Jardim<br />

Neide, quebradas onde eu cresci jogando futebol.<br />

O livro foi uma retomada na minha poesia de protesto. Era muito<br />

mais agressiva e bem alinhada com o rap, com quem, há muito<br />

tempo, vivia flertando. Também era um livro de homenagens<br />

às pessoas em quem eu sempre acreditei: Lamarca, Zequinha,<br />

Dona Ana, Miltinho, Sabotage, Mano Brown, minha mãe etc.<br />

Pessoas que, conhecidas ou não, sempre fizeram parte da<br />

minha vida.<br />

O lançamento foi em um prédio onde hoje é o banco Nossa<br />

Caixa, num coquetel que nós preparamos para os quatrocentos<br />

convidados que apareceram. O lançamento foi muito bem divulgado,<br />

e tanto minha família, <strong>Vaz</strong>, quanto da Sônia, Gramacho,<br />

deram a maior força no dia. Quer dizer, na noite.<br />

Livro na mão, percorri várias escolas por onde eu já havia passado,<br />

corri os shows, galeria, palestras, favelas, presídios, rádios<br />

comunitárias, sebos e livrarias, divulgando a minha poesia, ou<br />

revelando a Biografia poética da periferia.


A poedia dos deuses inferiores<br />

139<br />

Umas poesias do livro A Poesia dos deuses inferiores:<br />

Lamarca<br />

O Capitão Lamarca<br />

Morreu como fruta madura:<br />

Descansando em baixo da árvore.<br />

Só que ele foi arrancado do pé<br />

Pelo coração de mármore<br />

Da bruta ditadura.<br />

Sabotage (o invasor)<br />

Mauro<br />

Era um negro de asas.<br />

Um pássaro<br />

Com os pés no chão.<br />

Som de ébano<br />

Com pele de couro,<br />

O mouro fez ninho no canão.<br />

O passado,<br />

Que o futuro queria<br />

Escrito em carvão,<br />

Deixou de ser pó<br />

Pra ser pão,<br />

Ao se viciar em poesia.<br />

O poeta<br />

De plumas negras<br />

E voz de pedra<br />

Cravou teu canto<br />

Preto e branco<br />

Nas vidraças<br />

Do mundo colorido.<br />

Filho banto<br />

Em carne e carcaça<br />

Serviu a taça<br />

Com vidro moído<br />

Aos traidores da raça.<br />

Navegante<br />

De mares insolentes<br />

Sua bússola<br />

Apontava sempre para a periferia.<br />

A rima era o rumo<br />

O remo da sina.<br />

No ar,<br />

Como fumaça de fumo<br />

E vermelha retina,<br />

Era frio<br />

Era quente,<br />

Mas nunca banho-maria.<br />

Um dia<br />

Num vôo curto<br />

Depois de uma longa metragem<br />

Um disparo sem rosto<br />

Uma bala sem gosto<br />

Calou o personagem.<br />

Diante disso<br />

E sem nos esperar<br />

Desfez o compromisso<br />

Seguiu de viagem<br />

E foi cantar em outro lugar,<br />

Num bom lugar.


140 <strong>Cooperifa</strong><br />

Renilda de seu Francisco<br />

Renilda<br />

já nasceu mulher.<br />

Ainda menina<br />

era prostituída<br />

para matar a fome,<br />

pra não ser lixo, sina?<br />

Não tinha registro<br />

não tinha nome,<br />

era a filha de seu Francisco.<br />

Um dia,<br />

desses sem dores,<br />

sonhou ser artista de televisão:<br />

Glória, Fernanda ou Regina,<br />

ser estrela.<br />

Mas,<br />

de volta às dores<br />

podia ser vista<br />

maltratando a vagina,<br />

longe das telas,<br />

ao vivo e a cores<br />

em todas as vielas<br />

que tivesse um colchão.<br />

Doente,<br />

morreu virgem,<br />

sem nunca ter amado.<br />

Morreu seca,<br />

sem nunca ter gozado.<br />

Foda-se.<br />

Bengalas e muletas<br />

Um cego<br />

Com o polegar sujo<br />

Recebe o R.G.<br />

Vê a letra A<br />

E não entende nada.<br />

Olha a letra N<br />

Com desconfiança<br />

E esbarra novamente<br />

Na letra A.<br />

Indignado<br />

Tateia a letra L<br />

Triste,<br />

Como é F<br />

Não enxergar.<br />

Sem óculos,<br />

Tropeça de novo<br />

Na letra A<br />

No dorso da letra B<br />

E pensou em se matar<br />

Na letra T<br />

Com o nó da letra O.<br />

Aleijados,<br />

Tiramos de letra,<br />

Ao darmos as costas.<br />

Coisas da vida (terra em transe)<br />

Hoje<br />

eu vi uma criança acordada<br />

comendo pão dormido.<br />

Um homem desempregado<br />

empregando uma arma.<br />

Uma mulher vestida em trapos<br />

lavando roupa cara.<br />

Um policial desalmado<br />

separando um corpo da alma.<br />

Uma menina desnutrida<br />

com a barriga cheia.<br />

Uma bala perdida<br />

procurando uma veia.<br />

Senhoras de joelhos<br />

andando sem destino.<br />

Velhos com olhos vermelhos<br />

chorando como menino.<br />

Poetas loucos<br />

cuspindo razão.


A poedia dos deuses inferiores<br />

141<br />

Anjos e demônios<br />

na mesma religião.<br />

A miséria na coleira da fartura<br />

a vida fácil<br />

às custas da vida dura.<br />

Gente sorrindo<br />

com o coração em pranto<br />

surdos ouvindo<br />

a canção dos falsos santos.<br />

Vi mãos calejadas<br />

beijando mãos macias<br />

José nas enxadas<br />

no cabo delas, Maria.<br />

Com mansos olhos de fel<br />

E a boca dura de fera<br />

vi um país no céu<br />

E o inferno na terra.<br />

Cal Max<br />

Max nasceu pobre,<br />

Na verdade<br />

Nasceu Maximiliano<br />

Da Silva Nobre.<br />

Curtido na pedra<br />

Criou-se vidraça.<br />

Como o pai<br />

Também era pintor,<br />

Mas nada de Picasso,<br />

Van Gogh ou Portinari.<br />

Pintava parede, mansão,<br />

Muro e pé de árvore.<br />

Não tinha sonhos,<br />

Mas se sonhasse<br />

Seriam pretos<br />

Seriam brancos<br />

Cinzas de fato.<br />

Morava em bairro comunista<br />

Os vizinhos tinham em comum<br />

A mesma miséria.<br />

As mãos grossas<br />

Nunca fizeram carinho,<br />

Pra ele? Frescura.<br />

No enterro<br />

Depois que caiu do andaime,<br />

Pouca gente<br />

Pouco choro,<br />

Nenhuma madame.<br />

Lembranças?<br />

Só a última pá de cal.<br />

Jaz.<br />

Maria das Dores<br />

Filha de Saturnina<br />

Maria nasceu em Ladainha,<br />

No intestino de Minas,<br />

Quase Bahia.<br />

O nome Maria<br />

Quem deu foi o pai,<br />

Seu Firmino.<br />

Das Dores,<br />

Sobrenome da agonia,<br />

Quem lhe deu<br />

Foi o destino.<br />

Na cidade grande<br />

Vendeu cosméticos,<br />

Roupas e sapatos.<br />

Varreu chão, lavou pratos,<br />

Mas nunca foi domesticada.<br />

Sorria<br />

Por desobediência<br />

Por falta de instrução.<br />

Por alegria?<br />

Só se fosse descuido do coração.<br />

Sob o disfarce<br />

De mulher maravilha<br />

Morreu sem avisar.


142 <strong>Cooperifa</strong><br />

Frágil,<br />

Mas sem implorar.<br />

Feito flor que rasteja,<br />

Mas que a primavera<br />

Não pode humilhar.<br />

Náufrago<br />

Sebastião<br />

Nasceu longe do mar<br />

Distante das ondas.<br />

Seco,<br />

Não tinha nem água<br />

Pra chorar.<br />

Cresceu<br />

Nau sem rumo<br />

Sem sair do lugar.<br />

Sem prumo,<br />

E com areia nos olhos,<br />

Saiu por aí<br />

Sem saber navegar.<br />

Hoje<br />

Mora embaixo da ponte<br />

Num barquinho de papel<br />

Sem remo<br />

Sem saber nadar.


A poedia dos deuses inferiores<br />

143


as<br />

Cap.05<br />

O Rastilho da pólvora


ti<br />

pólvora<br />

Cap.05<br />

O Rastilho da pólvora


O Sarau caminhava tranqüilo em suas noites de quarta-feira.<br />

A poesia, a essa altura, já tinha arrebatado até os mais resistentes<br />

moradores do bairro. Por conta de algumas matérias na<br />

mídia, as pessoas não paravam de chegar para conhecer o nosso<br />

quilombo. Muitas das pessoas que chegavam eram do próprio<br />

bairro, que não acreditavam quando viam na TV que aquilo que<br />

estava acontecendo era perto das suas casas.<br />

Aliás, o Sarau andava tranqüilo até demais, e já havia algum<br />

tempo vinha falando com o Pezão, com o Márcio, que a gente<br />

precisava de alguma coisa para motivar os poetas. Chegamos<br />

à conclusão que estava na hora de editar uma antologia com<br />

os poetas da <strong>Cooperifa</strong>. Só tinha um problema: dinheiro. Onde<br />

conseguir?<br />

Onde conseguir o apoio que precisávamos a gente não sabia,<br />

mas sabíamos que a gente ia fazer o livro, de qualquer maneira.<br />

Aí um dia, o Claudiney Ferreira, do Itaú Cultural, me convidou<br />

para participar da 50ª Feira do Livro de Porto Alegre, que justamente<br />

caía numa quarta-feira e um pouco antes do horário do<br />

Sarau aqui em São Paulo – acho que foi a primeira vez que eu<br />

faltei a <strong>Cooperifa</strong> nesses quase três anos.<br />

Já saí daqui pensando em pedir o apoio para o Itaú Cultural, e<br />

na primeira oportunidade eu iria dar uma idéia no Claudiney a<br />

respeito do nosso sonho. Avisei para o Pezão deixar o celular<br />

146


O Rastilho da pólvora<br />

147<br />

ligado, porque qualquer novidade eu ligaria de imediato para<br />

avisar a todos sobre qualquer notícia positiva. O Pezão criou um<br />

clima dizendo ao microfone que eu estava no Sul e que estaria<br />

representando a <strong>Cooperifa</strong> e também tentando conseguir apoio<br />

para o nosso livro.<br />

Bom, segui para a gravação do programa “Jogo de idéias”, que<br />

aconteceu no Centro Cultural Mário Quintana e contou com a<br />

participação do poeta Fabrício Carpinejar e o Grupo PoETs,<br />

ambos de Porto Alegre. O programa acabou por volta de 20:00h<br />

ou 20:30h, acho que é isso, e de lá fomos jantar no Mercadão, no<br />

Centro. Pensei comigo: é a hora.<br />

Conversa vai, conversa vem, uma cerveja aqui, um bolinho de<br />

bacalhau ali, entrei de sola no assunto.<br />

Disse que a <strong>Cooperifa</strong> queria lançar uma coletânea com os poetas<br />

da comunidade. Falei da importância do livro em nossas<br />

vidas. Disse-lhe o quanto era primordial para o nosso movimento<br />

ter um livro nosso nas mãos. Putz, falei pra caralho. O Claudiney<br />

ouviu atentamente e senti que ele vibrou com a idéia, mas disse<br />

que não era ele quem decidia sobre isso, mas num gesto súbito<br />

e nobre pegou o telefone e ligou para o Eduardo Saron, superintendente<br />

de atividades culturais do IC para falar sobre o projeto.<br />

Ligou bem na minha frente, só por isso acreditei.<br />

Ele explicou mais ou menos o que a gente queria e o porquê, o<br />

que deveria ser feito, e como. Eu ali tentando ouvir o que o Saron<br />

falava do outro lado, e de repente o Claudiney fecha o telefone<br />

e diz:<br />

— Está fechado, vamos apoiar o livro.<br />

Porra, na hora nem acreditei de tão louca que foi a cena, e ainda<br />

brinquei com ele:<br />

— Mano, não mente pra mim não, mentir pra pobre dá azar. – E ri<br />

por dentro e por fora.


148 <strong>Cooperifa</strong><br />

Na hora liguei para o celular do Pezão ou do Márcio, não me lembro,<br />

e já eram umas 22:00h, hora de pico no Sarau, e dei a notícia<br />

que os guerreiros e guerreiras podiam pegar seus poemas que a<br />

gente ia fazer o nosso livro. Eu não vi, mas dizem que quando a<br />

notícia chegou no sarau o boteco do Zé quase veio abaixo e que<br />

foi uma das noites mais emocionantes do nosso quilombo.<br />

Quem deu o nome do livro de Rastilho da pólvora foi o Pezão; ele<br />

dizia que o nosso movimento estava se alastrando pela cidade.<br />

E realmente estava, muitos saraus já estavam acontecendo por<br />

conta da iniciativa da <strong>Cooperifa</strong>. A poesia da periferia estava começando<br />

a ganhar força, tanto espiritual como geográfica, nesse<br />

exato momento que antecedia a antologia poética do sarau.<br />

Para contar com o apoio do Itaú Cultural a gente teria que promover<br />

um seminário sobre periferia, no bar do Zé Batidão. Então<br />

nós fizemos. Fizemos três debates no bar com pessoas que participavam<br />

ativamente na cultura da periferia.<br />

No primeiro encontro trouxemos o rapper Thaíde e o jornalista<br />

Adunias da Luz (Estação Hip Hop) para falar sobre “A influência<br />

do rap como arte e denúncia”. E para falar sobre “Literatura de<br />

periferia” trouxemos o Sacolinha (graduado em marginalidade)<br />

e o Alessandro Buzo (suburbano convicto). E o cinema ficou por<br />

conta do Zagatti, catador de papelão que mantém o Mini Cine<br />

Tupy, um cinema para crianças carentes em Taboão da Serra,<br />

que falou sobre seu trabalho e passou um documentário sobre<br />

a sua história.<br />

A <strong>Cooperifa</strong> estava agitadíssima, todo mundo queria mandar<br />

poesias, até quem nunca tinha ido lá. A seleção não foi muito<br />

rigorosa, por isso tem algumas pessoas que participaram do<br />

livro e nunca mais foram lá. Tivemos algumas dificuldades na<br />

edição, por isso tivemos a colaboração do Felipe Lindoso, que<br />

deu a maior força para nós. A Karina Nóbrega fez a correção,<br />

sempre respeitando o nosso dialeto. Assim como nenhuma poesia<br />

foi desrespeitada para que pudesse ser publicada, cada um<br />

escreveu o que quis, e sobre aquilo que desejou.


O Rastilho da pólvora<br />

149<br />

Quase tudo pronto, conseguimos – depois de muita conversa<br />

– reunir 43 autores e um livro com 61 poesias exprimidas em<br />

103 páginas de poemas extraídos dos becos, vielas e ruas que<br />

formam o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. E para que ficasse ainda mais<br />

democrático, cada um recebeu sua parte em livros, sem nenhum<br />

ônus, e cada um poderia fazer o que quisesse com ele (nós recomendamos<br />

que vendessem a R$ 15,00). Uns presentearam os<br />

amigos, outros fizeram a feira com ele.<br />

Assim, no dia 22 de dezembro de 2004 era lançada uma antologia<br />

poética que iria ajudar a construir um novo momento da<br />

literatura brasileira e fazer coro com uma nova literatura que<br />

surgia da periferia: O Rastilho da Pólvora. Antologia poética do<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Se liga em alguns poemas do livro:<br />

Luta de libertação (Arákúrim) 1<br />

Pensam vocês que esta luta acabou.<br />

Estão muito enganados.<br />

Olhem ao redor e verão,<br />

Ouvirão, sentirão, que o racismo existe.<br />

Sim! Agora negros e brancos<br />

Sobrevivem em condições desumanas...<br />

A escravidão de forma generalizada<br />

Prende a todos em um sistema.<br />

Não, não abaixem a cabeça, Lutem,<br />

Lutem pelos seus direitos.<br />

Façam como Zumbi dos Palmares,<br />

Exija respeito, dignidade, igualdade.<br />

Liberdade. Liberdade. Liberdade.<br />

1 Arákúrim, Mestre Jonas, é um dos fundadores da Casa Popular de Cultura do<br />

M’Boi Mirim, coordenador do grupo Espírito de Zumbi e agitador cultural, que entre<br />

outras coisas produz o Panelafro, evento que acontece toda última sexta-feira do<br />

mês na Casa de Cultura.


150 <strong>Cooperifa</strong><br />

A asa e o ninho (Allan Santos da Rosa) 2<br />

Ô! Ninguém nasceu pra ser<br />

Encarcerado, fechado, preso,<br />

Calado o verso na garganta,<br />

Corrente no peso aceso.<br />

Ninguém nasceu pra ser...<br />

Vem rachar as pedras no muro,<br />

Se ainda não sabes voar,<br />

E a nossa pouca liberdade,<br />

Inteira, inteirinha, a desfrutar.<br />

Vem rachar as pedras do muro...<br />

Pra uma criança quilombola<br />

Se defender é inventar<br />

Nunca é cedo, nunca é tarde,<br />

É um eterno agora.<br />

E no meu verso eu bebo do suco mais puro<br />

Eu misturo, eu curo.<br />

Provo o mel da cicatriz, artimanho a beberage.<br />

No verso eu traço uma fogueira no escuro<br />

Uma tempestade no futuro.<br />

No verso eu brinco.<br />

Eu entrelaço<br />

Um brinco<br />

No pedaço<br />

Mais fofo da orelha<br />

Daquela guerreira.<br />

No Verso o aço, a forja, a centelha.<br />

No verso eu acaricio o sol<br />

A carne no cio.<br />

Cristalizo o rio.<br />

Me esparramo no ninho.<br />

No meu verso o versus.<br />

2 Allan da Rosa é escritor, poeta da <strong>Cooperifa</strong>, teatrólogo e fundador da editora<br />

Toró, que vem dando força e voz a novos autores da periferia. É autor dos livros<br />

Vão, Da Cabula, entre outros, e faz parte da coleção Literatura periférica da Global<br />

Editora.


O Rastilho da pólvora<br />

151<br />

No verso eu risco...<br />

Um fósforo na gasolina!<br />

Eu sonho a revolta na esquina.|<br />

No meu verso a corregedoria pra Rota assassina.<br />

No verso a melodia, a vitamina.<br />

Ô, menina...<br />

Tão bonita<br />

Que me fez arrepiar,<br />

O teu sopro é ventania<br />

Bota o mundo pra girar<br />

Na febre da tua ginga<br />

Eu vi tudo congelar.<br />

Solidão é uma ciência<br />

Que não é fácil desvendar<br />

Desespero uma vidência<br />

Pra onde a asa vai voar<br />

Paixão é malemolência<br />

É mocinha e é velha<br />

É oração é reverência<br />

Mas que pode até matar<br />

Na magia da cadência<br />

Do azul pro vermelho<br />

É braseiro é paciência<br />

Cama pronta pra deitar<br />

É o pé na consciência<br />

É mentira e é verdá.<br />

Lições urbanas (Augusto) 3<br />

A Cidade esteriliza meus sonhos,<br />

Mostrando o que de mais medonho<br />

Habita nosso ser.<br />

Oprime meus anseios de pai de família,<br />

Empurrando-me para sinuosa trilha,<br />

Que vejo muitos percorrer.<br />

3 Augusto Cerqueira Neto começou lendo gibi; letrou-se, para gostar de ler. Na<br />

coleção Vagalume achou sua vertente: leitura. É poeta da <strong>Cooperifa</strong>.


152 <strong>Cooperifa</strong><br />

A ausência dos meus filhos é um mal necessário,<br />

Quinze horas por dia servindo, em troca de um salário<br />

Que me faz enrubescer.<br />

Na condução do trabalho, fico pensando na sina<br />

Dos miseráveis que pelas esquinas<br />

Dobram para sobreviver.<br />

Nessa linha de pensamento me pego horrorizado,<br />

Se o fundamental eu não tivesse cursado,<br />

Em que porta iria bater?<br />

Só sobraria a informalidade<br />

Talvez, quem sabe, a criminalidade,<br />

Até onde iria descer.<br />

Meu pai me ensinou hombridade,<br />

Somada a natural sagacidade,<br />

Comecei as coisas entender.<br />

É pelos meus filhos que leio,<br />

Nas histórias do próximo me espelho,<br />

O que faz a minha mente crescer.<br />

Não cursei faculdade,<br />

Mas me formei na cidade,<br />

Que enrijeceu meu ser.<br />

Um dia mando o patrão<br />

Se pendurar no busão,<br />

E vou com meus filhos correr...<br />

Saudades de você (Dinho Love) 4<br />

Há quanto tempo<br />

Você não aparece<br />

Estou com saudades<br />

Todo mundo percebe.<br />

A sua partida<br />

Me deixou muito abalado,<br />

Mas graças a Deus<br />

4 Edinaldo Gomes da Silva, confeiteiro, começou a escrever poesias no bar do Zé<br />

Batidão, inspirado pela <strong>Cooperifa</strong>.


O Rastilho da pólvora<br />

153<br />

Tenho amigos do meu lado.<br />

Os nossos filhos<br />

Estão sendo criados<br />

Com a mesma alegria<br />

Que você tinha passado.<br />

Fico sem forças<br />

Até para trabalhar.<br />

É muito pouca<br />

A vontade de sonhar.<br />

Só quero ter um sonho,<br />

O de um dia você poder voltar.<br />

Estou à sua espera,<br />

Não me canso de esperar.<br />

Não vejo a hora<br />

Que esse dia vai chegar.<br />

Pra você voltar<br />

E matar a minha saudade.<br />

Iremos juntos<br />

Para toda a eternidade.<br />

Vida cantada (grupo Versão Popular, 5 Cocão e Leandro)<br />

I é assim aonde só, comunidade a malandragem é sadia,<br />

Tem quem não quer aceitar a palavra que salva.<br />

Aqui os loco aceitou, deus é por nós, porém a voz<br />

Não só dos manos, então por que não?<br />

Um brinde a elas, exemplo de mulher que sempre age<br />

Com fé, pelo que der e vier,<br />

Representando até umas horas.<br />

É isso que é da hora,<br />

Junção, opinião, crítico não, pois cada um na sua então.<br />

Quem curte um beck, nóis aqui, quem canta um rap,<br />

5 O grupo Versão Popular nasceu em 1999, analisando a vida do povo da periferia.<br />

Em 2004, Cocão é convidado a conhecer o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> e muitos dos seus<br />

planos começam a mudar. Além de compositor e rapper, passou a ser um membro<br />

atuante da comunidade. Por influência de Cocão, os outros integrantes conheceram<br />

e se identificaram com o movimento poético. Para ele, a <strong>Cooperifa</strong> é a escola e uma<br />

extensão do trabalho do grupo.


154 <strong>Cooperifa</strong><br />

Outros lá, cabelo é black, é da raiz que fortalece,<br />

A cada dia cresce, é forte o fundamento, importante,<br />

Trouxe a nós conhecimento, firmou respeito.<br />

Aqui eu tô suave e observador,<br />

Sangue do meu sangue é o pai criador,<br />

Professor mostrou lição,<br />

Eu por ele, ele por nóis, seja qual for a questão.<br />

Humilde no fuscão, caranga não é do ano,<br />

Mesmo assim tá feliz,<br />

Por um triz, a humildade faltou pro irmão.<br />

Deixou uma deixa, deixou a mãe falando só pra se montar<br />

Nos pano, como é meu chapa,<br />

Falou, pagou de humilde, mas nem colou na aula.<br />

Sou mais comunidade, humildade, vida cantada.<br />

Vida cantada aqui, realidade.<br />

É de verdade humildade, não tem disfarce,<br />

Não tem dublê, se liga aí, sou mais comunidade.<br />

Eu boto fé nos irmãos.<br />

De coração, meu sentimento é sincero, o bem eu quero, venero,<br />

Emocionante tal sorriso de criança, inocente esperança,<br />

Participante do rap da dança,<br />

Igual a filha de Gabi, linda quando sorri,<br />

O Junim pequininim, já sabe o estopim que é,<br />

É aprendiz, muito me diz, respeita tio,<br />

Tá lado a lado, vejo o Douglas afilhado,<br />

Já esteve presente nos palcos,<br />

Momentos positivos me dão mais força pra cantar.<br />

Pode crer aí Cocão, representou grandão.<br />

Tô contigo nas idéias, irmão,<br />

Não abro mão de ser humilde ou não,<br />

Essa é a questão, que Deus abençoe a todos de bom coração.<br />

Pilantra no mundão, eu sei, tem de montão.<br />

São vários no veneno, pode crer, não é fácil não.<br />

Ser humano traidor, até hoje eu sinto a dor,<br />

Jesus a salvação, teve até quem duvidou.<br />

Humilde que nem ele, nunca mais você vai ver,<br />

Realidade sem disfarce, verdadeiro até morrer.


O Rastilho da pólvora<br />

155<br />

Vida cantada aqui, realidade,<br />

É de verdade, humildade não tem disfarce,<br />

Não tem dublê, se liga aí, sou mais comunidade,<br />

Eu boto fé nos irmãos.<br />

Pra mim foi bom demais registrar e cantar,<br />

Manifesto da favela faz os manos dançar e pensar,<br />

Se tá com nóis, vem que vem,<br />

Se é contra nóis, vem também, o que é que tem.<br />

Há males que traz o bem.<br />

Sofrimento estampado no rosto de alguém.<br />

Sorriso vazio felicidade não tem.<br />

O que você quer dizer, diz pra mim.<br />

Quem não quer ter uma casinha à pampa, um carrinho, um lazer,<br />

Pode crer, fazer o quê se a cena da novela<br />

É que comove o mundão.<br />

Se a falta de opção é que desanda os irmão.<br />

É desse jeito que é,<br />

Só vaidade, ambição, se errou, perdão.<br />

Bateu com a cara no chão,<br />

Então levanta pra missão, dá a volta por cima.<br />

Vamos lá, você vai ver, sofrimento não é sina,<br />

A vida nos ensina, abrace essa chance, amanhã pode não ter.<br />

A cena perigosa quem faz é você, sem dublê,<br />

Sucesso ou fracasso só depende de você.<br />

A vida é cantada do jeito que tem que ser.<br />

Povo (José Neto) 6<br />

Eu posso. Sou possível.<br />

Rasgo o verbo,<br />

Vivo a vida no improviso.<br />

Eu posso. Sou possível.<br />

Sou um pedaço da história<br />

Que já foi lido.<br />

6 José Neto é poeta e nasceu em Lins, interior de São Paulo. Começou como letrista<br />

em festivais de música na região e freqüenta há três anos o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.


156 <strong>Cooperifa</strong><br />

Uma corrente quebrada<br />

Cunhada no grito.<br />

Eu posso. Eu sou possível.<br />

Assumo o rumo sem rumo.<br />

Sem terra, sem lar...<br />

Do tempo, nenhuma lágrima...<br />

De tudo só tenho a ganhar,<br />

A luta mal começa<br />

E já vem outra batalha pra ganhar...<br />

Eu posso. Eu sou possível.<br />

Divido meu sorriso, meu pranto,<br />

É tanto e tão pouco.<br />

Eu posso. Sou possível.<br />

Começo tudo de novo.<br />

Sou pele. Sou raça.<br />

Sou povo.<br />

O vaso (Kennya) 7<br />

Estive lá presenciando vários fatos.<br />

Sempre ali na mesa da sala, em cima da toalha.<br />

Às vezes cheio de água,<br />

Minha companheira que dava vida às rosas;<br />

Que com o passar dos dias secavam<br />

E junto com a água velha iam embora.<br />

Estive sozinho na madrugada<br />

E cercado de pessoas durante o dia.<br />

Presenciei brigas, intrigas, risos e tristezas;<br />

Dando abrigo às flores recebidas nos teus aniversários.<br />

Estive lá com medo das festas, das ondas sonoras,<br />

Que abalavam meu corpo de porcelana.<br />

Fui tocado por crianças.<br />

Esquecido por ladrões.<br />

Admirado pelas visitas...<br />

7 Kennya é poeta da <strong>Cooperifa</strong> e faz parte do grupo de rap Denegrir. Kennya chegou<br />

na <strong>Cooperifa</strong> quando ainda era no Garajão. Era tão tímido que o Pezão achava que<br />

ele não falava porque era nascido no Quênia, país africano.


O Rastilho da pólvora<br />

157<br />

O tempo foi passando e fui ficando velho,<br />

Até que um dia...<br />

Perdi meu espaço por um outro novo vaso,<br />

Assim fui parar no teu quarto.<br />

Onde descobri os segredos de tuas confissões.<br />

Os mais profundos sentimentos.<br />

Me tornei porta-caneta,<br />

Todo sujo de tinta,<br />

Sobra de teus poemas.<br />

Estive lá quando você brigou com o namorado<br />

E na parede fui lançado num ato de desabafo.<br />

Todo quebrado me jogou no cesto de lixo.<br />

E naquela tarde de domingo<br />

Escutei os muitos risos, estalo de beijos;<br />

Você voltou com seu amor!<br />

Mais calma e arrependida me procurou na lixeira.<br />

Juntou-me em pedaços e emendou meus cacos<br />

Com a cola fedida, química nojenta...<br />

Tornei-me então um cinzeiro.<br />

Sem a beleza que encantou tantos olhos.<br />

Sinto a falta dos perfumes das rosas<br />

Toda vez que recebo o calor em brasa<br />

Das bitucas de cigarros...<br />

Eu continuo, eu estou lá.<br />

Coração de guerreiro (Preto Jota) 8<br />

Só os guerreiros vencem e permanecem na arena,<br />

Firmes e fortes, quebrando as algemas.<br />

Vêem a luz na escuridão, caminham na contramão.<br />

Com coragem e lealdade não desistem da missão.<br />

A vida é um desafio, só vence quem tem raça.<br />

8 Infelizmente, três meses após o lançamento do livro Preto Jota morreu assassinado,<br />

também como Jhay, misteriosamente, e em cima de uma moto. Preto Jota<br />

era um dos guerreiros mais combativos da <strong>Cooperifa</strong> e um grande incentivador de<br />

novos grupos de rap que nasceram ali no Sarau. Sua morte trouxe-nos a certeza que<br />

a luta contra a violência na periferia não podia parar. Além de uma profunda tristeza<br />

que se abateu por muito tempo no nosso movimento.


158 <strong>Cooperifa</strong><br />

O Gladiador sobe no pódio e ergue a taça.<br />

Mesmo no inferno, entre a rosa e a espada,<br />

O sol nasce todo dia e fortalece a caminhada.<br />

Disposto a subir, se tiver que ser assim.<br />

Eu não nasci pra semente, eu vou até o fim.<br />

Acreditando no sonho, criando a realidade.<br />

Não é o Jardim do Éden, mas procuro a felicidade.<br />

Retirando a pedra, me esquivando da maldade.<br />

O cospe fogo não abate quem corre pela verdade.<br />

Encarando a tempestade, nas ruas selvagens,<br />

Batendo de frente com a pilantragem.<br />

Eu quero a paz, mas vivo na guerra.<br />

O sofrimento lhe ensina a ser leão na selva.<br />

Discípulo sou um, não temerei mal algum.<br />

Anjo quarenta e cinco, guerreiro do lado sul.<br />

Propinolândia (Roberto Ferreira) 9<br />

Não é obrigatório,<br />

É apenas uma contribuição<br />

Pura agilização!<br />

Tudo pode ser não visto,<br />

Tudo pode ser mais rápido,<br />

Tudo pode ser mais tranqüilo,<br />

Tudo pode ser mais barato.<br />

Mas,<br />

Se não for possível<br />

Não tem problemas...<br />

A contribuição passa a ser oficial,<br />

Com direito a papel e carimbo.<br />

Tudo passa a ser visto,<br />

Tudo passa a ser mais lento,<br />

Tudo passa a ser cansativo,<br />

Tudo passa a ser mais caro!<br />

Você decide!<br />

9 Professor Roberto Ferreira é poeta e freqüentador assíduo do Sarau. Paranaense,<br />

47 anos, professor de geografia. Gosta de escrever poesias inspirado no cotidiano.


O Rastilho da pólvora<br />

159<br />

De copo em copo (Valmir Vieira) 10<br />

Se hoje eu choro, é por ti,<br />

Que um dia te foste<br />

Sem de mim se despedir.<br />

Suportei a sua falta,<br />

Ignorei a mim mesmo,<br />

Terminando-me de copo em copo.<br />

A saudade era tamanha,<br />

Com tristeza e sem vergonha,<br />

Me empurrava por aí.<br />

O tempo ia passando<br />

A saudade ia roendo,<br />

E a gente ia tentando<br />

Esquecer quem amou.<br />

Mas esquecer não é só falar,<br />

Precisa se fortalecer<br />

Para a vida continuar.<br />

É, seu moço, falar de amor<br />

É tão difícil, e ele tem altos e baixos,<br />

Coisas difíceis de explicar.<br />

Nego ativo (Márcio Batista) 11<br />

Quem me nega trabalho, negô<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Negro é homem trabalhador<br />

Todos sabem, ninguém pode negar.<br />

Quem me nega salário, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Meu suor tem valor, meu senhor<br />

Senhor ainda se nega a pagar.<br />

10 Valmir Vieira é poeta criado na <strong>Cooperifa</strong>, nasceu ali, junto com o Sarau no bar<br />

do Zé Batidão. Guerreiro inconteste do movimento.<br />

11 Márcio Batista é professor de Educação Física e poeta e um dos coordenadores<br />

da <strong>Cooperifa</strong> e está prestes a publicar seu primeiro livro.


160 <strong>Cooperifa</strong><br />

Quem me nega saber, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Negro hoje é professor<br />

Sabedor não se nega a ensinar.<br />

Quem me nega cultura, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Cultura é quilombo pro negro<br />

Ignorância é a sua senzala.<br />

Quem me nega batuque, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Samba, funk, rap, rock, reggae, pop<br />

Som pro Negro se expressar.<br />

Quem me nega a palavra, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Vou zumbir palavras pelo mundo<br />

De versos negros todo mundo falará.


O Rastilho da pólvora<br />

161<br />

Quem me nega oração, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Negro reza pra teus orixás,<br />

Pra Ogum, pra Xangô e Oxalá.<br />

Quem me nega a paz, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Nego-ativo livro o mundo sim senhor<br />

Zumbizando pro mundo se libertar.<br />

Quem nega a luta, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Capoeira é atitude do negro<br />

Atitude é a força pra lutar.<br />

Quem me nega a raça, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Preto é cor, negro é raça<br />

Sou negro e com raça não vou sonegar.<br />

Quem me nega justiça, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Justiça se faz com amor<br />

Negraz, a humanidade é incapaz ao julgar.<br />

Quem me nega amor, nego<br />

Não terá outra chance de negar<br />

Nega ama teu nego em nagô<br />

Negritude pro mundo amar.<br />

Me negaram de tudo<br />

Nesta terra de negro sem lar<br />

Sei que não me negas, senhor,<br />

Sou teu filho, ninguém pode negar.


162 <strong>Cooperifa</strong><br />

Motivos pra sonhar (Sales, o evolucionário) 12<br />

Meu Deus era milagre, estava tudo mudado<br />

Dentro da mesma igreja todos ajoelhados<br />

Pedindo perdão a Deus por tanto sangue derramado<br />

Bush, Bin Laden, Saddam e Arafat<br />

Tony Blair, Sharon não podiam faltar<br />

Mulçumanos e Católicos, Israelense e Palestinos<br />

Todos unidos cantando o mesmo hino<br />

Subindo ao altar o povo se emocionou<br />

Era o Fidel para rezar<br />

Pai nosso que estais no céu<br />

A partir daquele momento foi anunciado<br />

Que todo pranto do homem havia acabado<br />

A Aids e o câncer não assustavam mais<br />

Não existia adultério entre os casais<br />

Era tudo perfeito, não dava para imaginar<br />

Eu vi o Sabotage cantando Um bom lugar<br />

O Run DMC estava completo<br />

Big e 2Pac não saíram de perto.<br />

E os rappers todos juntos fizeram uma composição<br />

Eram trechos da Bíblia numa evangelização<br />

A igreja não era comércio, não explorava o fiel<br />

Ninguém dava dinheiro em troca de céu<br />

Eu vi um nordestino pulando e cantando<br />

Era eu, que pena...<br />

Eu estava sonhando<br />

Eis que você me pede<br />

Me dê motivos pra sonhar<br />

Meu mano, o mundo nunca foi e nunca será assim<br />

Grécia antiga, Jerusalém, Sodoma e Gomorra<br />

Nós pegamos este filme quase no fim<br />

O que podia ser feito não foi feito<br />

12 José Sales Azevedo Filho é poeta e um dos coordenadores da <strong>Cooperifa</strong>. Lembro<br />

quando ele chegou no Sarau indicado por amigos falando de paz, mas com um boné<br />

que tinha um fuzil estampado. Perguntei o motivo da contradição. Na outra semana<br />

ele apareceu com o boné, mas sem o fuzil estampado. Tínhamos ganhado mais um<br />

guerreiro pra nossa batalha. Eu, particularmente falando, ganhei mais um filho.


O Rastilho da pólvora<br />

163<br />

Com a desculpa que só Deus é perfeito<br />

E o homem é cheio de defeitos<br />

Ninguém tenta, ninguém quer se modificar<br />

É a única coisa que não nos cobram<br />

Me deixem sonhar.


Cap.06<br />

Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />

Centro<br />

Cultural<br />

Cap.06<br />

Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong>


O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> sempre teve como filosofia o incentivo à<br />

leitura e a criação poética, e sempre foi um projeto de cidadania<br />

através da literatura. Quer dizer, essa idéia foi se formando ao<br />

longo dos dias, através de resultados que foram aparecendo.<br />

Muita gente começou a ler livros por conta do Sarau, seduzidos<br />

ali, no chão duro de um boteco, e sem que ninguém o obrigasse.<br />

A revista Caros amigos tem um papel muito importante nisso<br />

tudo, pois desde o começo de nossas atividades íamos buscar<br />

livros e revistas para distribuí-las gratuitamente para os participantes.<br />

Pelo menos uma vez por mês a gente estava lá na<br />

redação da Editora Casa Amarela enchendo o saco do Sérgio de<br />

Souza (in memorian) para descolar um pouco de conhecimento.<br />

Além disso, usamos várias datas comemorativas para distribuir<br />

livros como presentes que chegaram como doação ou de presente<br />

para a <strong>Cooperifa</strong>. Hoje o Zé mantém uma biblioteca dentro<br />

do bar, mas naquele tempo a gente presenteava as pessoas<br />

com tudo que chegava, para que elas não só lessem o livro, mas<br />

também o possuíssem.<br />

Certa vez o projeto do LEIA LIVRO que o Juliano comandava<br />

conseguiu uns cem livros novos e legais de ler para que a gente<br />

fizesse um dia das mães diferente na comunidade: toda mãe que<br />

fosse ao Sarau naquela semana ganhava uma rosa e um livro.<br />

Por ironia, hoje muitos deles estão lendo seus próprios livros.<br />

166


Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />

167


168 <strong>Cooperifa</strong><br />

Um dos nossos maiores orgulhos não é a formação de novos<br />

poetas e escritores, mas a formação de novos leitores escritores.<br />

Gente que se apegue ao livro pelo prazer da leitura e ao<br />

fortalecimento do senso crítico, não como um meio de vida. E<br />

através desse conhecimento adquirir coragem e humildade<br />

para voltar à escola, ou ingressar nas universidades, como muitos<br />

fizeram na <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Só para ficar em dois exemplos, o Dinho Love – ele ganhou esse<br />

apelido por conta de suas poesias românticas – disse que voltou<br />

a estudar porque queria escrever melhor; encarou o supletivo<br />

e agora só aparece quando não tem aula.<br />

No começo ele faltava às aulas na quarta-feira porque dizia<br />

que o Sarau era mais importante que tudo na vida dele, que ali<br />

sim ele aprendia alguma coisa. Mas aí ele começou a faltar no<br />

Sarau e um dia eu perguntei a ele por que ele não estava vindo<br />

mais; ele me respondeu que, apesar de todo amor que ele tinha<br />

pela <strong>Cooperifa</strong>, a escola era mais importante. Disse a ele que<br />

naquela hora ele realmente estava aprendendo alguma coisa.<br />

O Régis faz parte do grupo de teatro Ação e Arte e há muito freqüenta<br />

o Sarau.<br />

Depois de um tempo ele sumiu porque estava cursando jornalismo<br />

e não tinha mais tempo para a poesia. Pois não é que passados<br />

alguns anos ele volta e diz que para agradecer à <strong>Cooperifa</strong><br />

por todo incentivo para que ele voltasse a estudar, seu TCC seria<br />

sobre o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>? Pois é, assim foi. Hoje, formado, ele<br />

está de volta ao grupo.<br />

Mas como eu estava falando sobre o apego à leitura, os lançamento<br />

de livros também foram nossa grande arma para atingir<br />

esses objetivos: leitura e criação poética. Eis alguns nomes<br />

que lançaram livro no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>: Toni C., Alessandro<br />

Buzo, Ferréz, Sacolinha, Allan da Rosa, Fuzzil, Robson Canto,<br />

Tereza, Dinha, Ridson Dugueto, Elizandra, Akins Kinte, Binho,<br />

Serginho Poeta, Cidinha Silva, Eliane Brum, Ertom Morais,


Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />

169<br />

Adilson Lopes, Big Richards, Maurício Pestana, Edson Gabriel e<br />

Cadernos Negros. Só para ficar em alguns nomes mais conhecidos<br />

do Sarau.<br />

Também não foi diferente com o cinema. Como já tem muita<br />

gente produzindo, também levamos muitos documentários para<br />

que a comunidade pudesse ter acesso ao cinema de qualidade<br />

ao lado de casa, no Sarau. Se liga nos filmes:<br />

Solano Trindade – Intensidade de uma vida simples, Cia.<br />

Sansocrama e Núcleo de Comunicação Alternativa, 2 meses<br />

e 23 minutos; de Rogério Pixote e Fábio Ranzani; Zumbi somos<br />

nós, de Frente 3 de fevereiro; Balé no chão, de Lílian Santiago e<br />

Marianna Monteiro; Direitos esquecidos: moradia na periferia, do<br />

MTST – Acampamento Chico Mendes, Vaguei os livros e sujei com<br />

a merda toda, de Akin Kinte, Allan da Rosa e Mateus Subverso;<br />

Panorama: Arte na periferia, de Peu Pereira, David Vidad, Anabela<br />

Gonçalves e Daniela Embóm; Carolina de Jesus, de Jéferson De;<br />

O espetáculo democrático, de Guilherme César.<br />

Também só para ficar em alguns nomes conhecidos da gente.<br />

Em junho de 2008, será apresentado o documentário Povo lindo,<br />

povo inteligente, que conta a história da <strong>Cooperifa</strong>, produzido<br />

pela DGT Filmes. Não é o primeiro; em 2006 uma mulherada da<br />

PUC-Campinas fez um vídeo-documentário para conclusão de<br />

curso de jornalismo.<br />

As meninas Andréia Lédio, Carolina Lasca, Isabella Haddad e a<br />

Luana Dalmolin ficaram uns três meses curtindo o Sarau com a<br />

gente e fizeram um belo trabalho sobre ele.<br />

Já que estamos falando nisso, o professor Nilton Ferreira Franco<br />

fez uma tese de mestrado sobre o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>: O Sarau<br />

paulistano na contemporaneidade – <strong>Cooperifa</strong> Zona Sul, 1980-<br />

2006.<br />

Dissertação apresentada ao programa de mestrado da Universidade<br />

Presbiteriana Mackenzie como parte das exigências


170 <strong>Cooperifa</strong>


Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />

171<br />

para a obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e História<br />

da Cultura.<br />

Eu e o Márcio Batista fomos assistir à defesa da tese lá no<br />

Mackenzie. Foi emocionante. Aliás, essa tese também serviu<br />

como pesquisa para escrever esse livro. Ah, só pra constar, ele foi<br />

aprovado com a nota 10, com louvor.<br />

Foram TCCs e documentários e trabalhos de faculdades sobre o<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong> e a literatura periférica.


CD de poesia<br />

da <strong>Cooperifa</strong><br />

O Sarau é um movimento que não pode parar, e em 2006 nós<br />

estávamos afim de fazer um CD com poesias para registro de<br />

áudio, já que o nosso trabalho tem tudo a ver com a oralidade.<br />

Para conseguir o apoio do Itaú Cultural usamos o mesmo expediente<br />

com o Edson Natale do departamento de música. Já<br />

vinha falando com ele sobre a possibilidade do projeto, e ele<br />

com o Eduardo Saron, até que um dia demos um xeque-mate<br />

lá no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. E mais uma vez eles aceitaram ser<br />

nossos parceiros.<br />

Aliás, uma vez, no programa “Provocações”, do Antônio Abujamra,<br />

na TV Cultura – SP, ele me perguntou:<br />

— Como uma idéia anárquica consegue apoio de um banco?<br />

Respondi a mesma coisa que havia falado para a revista Época<br />

numa matéria da Eliane Brum, e que gerou muita polêmica.<br />

— A periferia está aprendendo a tirar dinheiro dos bancos sem<br />

ter que usar um revólver na mão.<br />

Polêmicas à parte, escolhemos 26 poetas, os mais assíduos,<br />

para participar da produção do CD. Nossa única exigência era<br />

que não houvesse nenhum som, só a poesia, e que se preservasse<br />

a poesia: sua forma, o dialeto, a gíria e a simplicidade de<br />

cada um. A gravação do CD foi muito louca, porque todo mundo<br />

172


Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />

173<br />

queria ir ouvir a gravação do outro, por isso o estúdio vivia sempre<br />

cheio de gente e poetas.<br />

A exemplo do livro, todos os poetas iriam receber suas cotas em<br />

discos e cada um faria o que quiser com a sua parte, recebida<br />

sem ônus nenhum para cada participante. De mais a mais, a<br />

emoção foi a mesma do livro, só que agora a gente já era conhecido<br />

da rapaziada de lá.<br />

O Edson Natale ficou responsável pela produção geral e Juliana<br />

Sonoe pela produção fonográfica. Escrevi um texto no meu blog<br />

sobre o CD e pedi que o Natale também escrevesse alguma<br />

coisa sobre isso.<br />

CD da <strong>Cooperifa</strong><br />

Salve, salve, licença pra chegar,<br />

Acabei de pegar o CD do Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, é simplesmente<br />

maravilhoso.<br />

Só o encarte do CD tem mais de 30 páginas, vixe, o negócio é de<br />

outro mundo, o nosso mundo.<br />

Estou dando este toque pra que ninguém diga que eu não avisei,<br />

é dinamite pura.<br />

É a periferia em versos, nas vozes de seus reais representantes,<br />

sem cortes, sem censura e sem massagem.<br />

Não é aconselhável às pessoas alienadas, nem para aqueles que<br />

apreciam coisas pequenas, mesquinharias de supermercado,<br />

entendeu?<br />

Aconselho este CD para as pessoas que amam sua causa, não importa<br />

qual, mas aqueles que trazem no coração a grandeza da luta.<br />

Também não é aconselhável para os falsos super-heróis, que se<br />

destacam na multidão pelo marketing dos superpoderes.<br />

Este CD é a vitória do amor. Só isso. Nada mais.<br />

A todos que nos que nos amam, sintam-se abraçados.<br />

Mais feliz do que de costume, Sérgio <strong>Vaz</strong>


174 <strong>Cooperifa</strong><br />

Perto<br />

Tudo começou na quarta-feira<br />

A única certeza é que minha primeira visita aconteceu em uma<br />

quarta-feira, mas não me lembro o mês ou se estava calor ou frio,<br />

garoando, chovendo ou serenando. Além dessa informação óbvia,<br />

já que o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> acontece toda quarta-feira, sempre<br />

às 20:00h, o que ficou na memória foi o fato de que, ao entregar o<br />

pequeno papel ao motorista de táxi com a indicação do caminho<br />

(algo como “vá até a Estrada do M’Boi Mirim, na altura da Igreja<br />

de Piraporinha, vire à direita e suba até o fim, vire à direita novamente<br />

até chegar ao bar do Zé Batidão”) a reação foi imediata:<br />

“Não te aconselho a chegar até lá neste horário, e se eu fosse<br />

você iria durante o dia. Até lá, nesta hora, o senhor me desculpe:<br />

levo não...”.<br />

Eu também estava com medo e aquela era a deixa perfeita para<br />

desistir (nem o taxista quis me levar!), mas amigos próximos me<br />

falaram com tanto entusiasmo daquele sarau que eu cheguei a<br />

falar com outro motorista. Combinamos o preço e um adicional<br />

para que ele ficasse comigo durante algum tempo, pois considerei<br />

a possibilidade de não conseguir um táxi de volta para casa.<br />

Fomos, chegamos e ficamos. Fui apresentado pelo Sérgio <strong>Vaz</strong> ao<br />

Zé Batidão, o dono do local. Rapidamente eu e o taxista, Francisco,<br />

nos sentamos à mesa; havia uma garrafa de cerveja bem gelada e<br />

carne-de-sol com mandioca. O bar estava lotado; no lado oposto<br />

à nossa mesa, pendurada entre as grades, uma faixa: “o silêncio<br />

é uma prece”. Fiquei ali pensando: “será que essa idéia de gravar<br />

um CD com as poesias desse pessoal faz sentido?”.<br />

No bar, crianças e pessoas de todas as idades conversando e<br />

brincando. De repente (pelo menos pra mim), todos começaram<br />

a bater as mãos na mesa em uma dinâmica crescente, dizendo<br />

em coro: “Nós é ponte e atravessa qualquer rio, nós é ponte e<br />

atravessa qualquer rio, nós é ponte e atravessa qualquer rio, nós<br />

é ponte e atravessa qualquer rio!”. Comentei com Francisco, o<br />

taxista (ou ele comigo, já não me lembro): “E a gente estava com<br />

medo de vir pra cá!”.


Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />

175<br />

Os poetas foram chamados, um por um ao microfone, e diziam<br />

seus poemas − uns estáticos, outros andando entre as mesas,<br />

uns sem muita musicalidade, outros entoando seus versos como<br />

se fossem samba, rap etc.<br />

O CD com as poesias já fazia todo o sentido. No dia seguinte,<br />

começou a fazer sentido também para o Itaú Cultural, quando<br />

Eduardo Saron, superintendente de atividades culturais do instituto,<br />

visitou o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Outro fato que ficou marcado para mim foi a primeira conversa de<br />

trabalho a respeito da produção do CD. Eu disse ao Sérgio <strong>Vaz</strong> que<br />

poderíamos colocar algumas intervenções sonoras, pensadas<br />

poema por poema: uma sanfona em um poema, um clarinete em<br />

outro, um pandeiro aqui ou um sampler acolá...<br />

É preciso dizer que, depois, aprendi a ler o olhar do Sérgio <strong>Vaz</strong>. Ele<br />

ouve as pessoas com a maior atenção, mas, depois de um tempo<br />

de convivência, você percebe que ele só não corta logo a conversa<br />

por puro respeito, paciência ou comiseração mesmo: “Bem legal,<br />

Natale! Mas olha só: o pessoal prefere só os poemas mesmo, sem<br />

maquiagem, sem frescuras. A nossa paixão é a palavra, purinha,<br />

purinha. Vamos deixar esse negócio de música pra lá...”.<br />

Marcamos o estúdio e gastamos cerca de 50 horas para as gravações,<br />

em seis ou sete sessões. Sugeri que eles se dividissem em<br />

blocos: já que não conseguiríamos gravar todos no mesmo dia,<br />

poderiam ser organizados grupos, assim não precisariam sofrer<br />

com o trânsito de São Paulo do final da tarde, já que do bar do<br />

Zé Batidão, que fica perto do Capão Redondo, até o estúdio, no<br />

Butantã, era uma boa caminhada. Além disso, seria mais “produtivo”<br />

se trabalhássemos com menos pessoas de cada vez. Acho<br />

que essa minha sugestão foi feita em uma conversa com o Sérgio<br />

<strong>Vaz</strong>, o Marco Pezão e o Jairão (Jairo Barbosa), músico do grupo<br />

PeriAfricania. Dessa vez foram três os olhares, que podem, em<br />

palavras, ser traduzidos para: “Esse cara não tá entendendo...”. E<br />

foi do jeito deles: logo no primeiro dia (e em todos os outros) praticamente<br />

todos estiveram ali. Quem não gravava ficava proseando,<br />

torcendo, participando... Bingo! Finalmente eu havia aprendido o<br />

significado da palavra comunidade...


176 <strong>Cooperifa</strong><br />

Conheci todos os que participaram do disco. Naqueles momentos<br />

que antecedem a gravação, embaixo da jaqueira (acreditam<br />

que tem estúdio em São Paulo com jaqueira?!) a conversa corria<br />

solta. Os poetas e poetisas eram (são) fotógrafos, professores,<br />

motoristas, vigilantes, metalúrgicos, desempregados, donas de<br />

casa, músicos, poetas, donos de bares, funcionários públicos,<br />

feirantes, taxistas, babás, padeiros etc. Quando começamos a<br />

discutir como seria a capa, eu, já escolado, primeiro perguntei o<br />

que imaginavam. Foi consenso: “Queremos só um microfone na<br />

capa, em uma foto lá no Zé Batidão. Nada mais...”.<br />

O libreto do CD traz um texto do Sérgio <strong>Vaz</strong>. Parte dele diz: “...O<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong> é nosso quilombo cultural. A bússola que guia<br />

a nossa nau pela selva escura da mediocridade. Somos o grito de<br />

um povo que se recusa a andar de cabeça baixa ou de joelhos...”.<br />

Pessoalmente essa experiência foi uma espécie de bússola que<br />

ganhei para estreitar as distâncias entre o que penso e falo e o<br />

que penso e faço (acredito que também tenha sido assim para o<br />

Itaú Cultural). Foi bacana quando saímos em caravana para o lançamento<br />

do CD. Estávamos ali, parte da equipe do Itaú Cultural,<br />

comemorando no Zé Batidão uma conquista coletiva com a<br />

<strong>Cooperifa</strong> e seus poetas. Cerveja, mandioca e carne-seca e muito<br />

riso e pouco siso. Acho que isso também é poesia...<br />

Edson Natale<br />

Gerente do Núcleo de Música do Itaú Cultural<br />

A realização deste que é o primeiro CD do <strong>Cooperifa</strong> só foi possível<br />

graças à parceria do grupo com o Itaú Cultural. Em 2004,<br />

a instituição, em conjunto com a Associação Basílio da Gama,<br />

também incentivou e ajudou a divulgar a poesia urbana da periferia<br />

com a edição do livro Rastilho da Pólvora, com a obra de<br />

53 poetas.<br />

Para o lançamento do CD foi preciso duas festas, uma no Sarau<br />

da <strong>Cooperifa</strong> e outra no Itaú Cultural. As duas foram loucas. Na<br />

<strong>Cooperifa</strong> o bagulho endoidou de tanta gente e tanta emoção.


Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />

177<br />

Leia o que pensam Marco Pezão e Márcio Batista sobre a parceria<br />

do Itaú Cultural com a <strong>Cooperifa</strong> no CD de poesia.<br />

Marco Pezão:<br />

As poesias, no Sarau, sempre se orientam para a obtenção de um<br />

viés crítico em relação às questões sociais. Sobre isto, não resta<br />

dúvida. Mas há uma realidade prática que demanda ações que<br />

temos que desempenhar para a manutenção da própria vida.<br />

Hoje, tudo está dentro do capitalismo, não há quase atitudes que<br />

possam escapar dessa lógica econômica que envolve a todos.<br />

Carrego a opinião que se o Estado não cumpre suas obrigações<br />

como bem o deveria, então o setor privado deve fazê-lo.<br />

Alguém tem que fazer alguma coisa diante da urgência e de toda<br />

carência social que existe atualmente.<br />

Márcio Batista:<br />

Trabalhar uma poesia crítica voltada para a melhoria cultural da<br />

comunidade é uma das metas da <strong>Cooperifa</strong>; mas há uma situação<br />

real a se enfrentar, que é a falta de dinheiro na comunidade.<br />

Nesse sentido, o Itaú Cultural nos ajudou muito e somos muito<br />

gratos a ele.<br />

É importante, hoje, a <strong>Cooperifa</strong> aproveitar esta oportunidade que<br />

apareceu com a parceria para promover a arte na quebrada e<br />

fazer com que esse modelo de ação positiva saia do gueto e possa<br />

ser visto de modo mais amplo por outras pessoas. Lutar para que<br />

as nossas atividades não caiam no isolamento, no abandono e no<br />

esquecimento é fundamental para projetos culturais.<br />

Leia também o pronunciamento do Eduardo Saron (Superintendente<br />

do IC) no lançamento do CD da <strong>Cooperifa</strong>, lá no bar do<br />

Zé Batidão.<br />

Eduardo Saron:<br />

Primeiramente compramos um sonho: não apostamos no que<br />

vai ser pesadelo. Quando o Claudiney Ferreira me ligou de Porto<br />

Alegre, do Programa “Jogo de idéias”, em 2004, para falar sobre o


178 <strong>Cooperifa</strong><br />

projeto de se fazer um livro com a <strong>Cooperifa</strong>, acabamos optando<br />

pelo apoio, porque entendemos que a turma do movimento era<br />

do bem.<br />

Quanto à oportunidade de lançarmos o CD, nós tínhamos duas<br />

opções: ou lançar no Itaú Cultural ou aqui na <strong>Cooperifa</strong>. E mais<br />

uma vez preservamos esta relação que estabelecemos entre as<br />

partes – nós apostamos em lançar aqui, porque é essa identidade<br />

que, num bom sentido, queremos roubar para nós.<br />

Queremos ver o que está acontecendo.<br />

A atitude de virmos até aqui é justamente para dividir uma coisa<br />

que está nítida no olho de cada um, na manifestação de cada um,<br />

que é um pouco desta felicidade. Apostamos nesse projeto, estamos<br />

juntos. Não com a intenção de amanhã ter um Banco Itaú<br />

abrindo aqui para vocês abrirem conta. Não é com esta relação. A<br />

intenção é dividir com vocês um pouco desta felicidade que vocês<br />

têm aqui às quartas-feiras. Não sou eu que estou dizendo, é a<br />

revista Época, onde o próprio Sérgio <strong>Vaz</strong> foi noticiado.<br />

Esta não é primeira parceria, é a segunda vez que estamos aqui<br />

juntos exercendo um trabalho. A primeira foi o livro, agora o CD.<br />

Não sei quantas vezes mais estaremos, só sei que estamos afim<br />

de dividir um pouco mais de felicidades com vocês.<br />

Fazer cultura não é somente ficar lá no alto da avenida Paulista<br />

pensando e imaginando o que o Brasil está pensando. Fazer cultura<br />

é vir aqui, pisar um pouco com vocês, sentir um pouco com<br />

vocês, e isto nós estamos fazendo – muitíssimo obrigado.<br />

Depois de tudo isso, cada poeta recebeu sua cota de disco<br />

pela sua participação e o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> rolou solto no bar<br />

do Zé Batidão, e a nossa poesia, do jeitinho que a gente faz,<br />

estava registrada para sempre, em 26 poemas: “Mina da periferia”,<br />

de Marco Pezão; “Palavras com P de alma”, da Professora<br />

Lili; “Antônio”, de Helber Ladislau; “Cibernético”, de Carlos<br />

Silva; “Um sonho”, de Sérgio <strong>Vaz</strong>; “Campo Limpo Taboão”, de<br />

Binho; “Pobreza”, de Mavotsirc; “Precisão”, de Allan da Rosa;<br />

“Andarilho”, de Célia Harumi; “Ratos, ratos, ratos”, de Marcelo<br />

Beso; “Tudo bacana”, de Roberto Ferreira; “Um rolê”, do Grupo


Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />

179<br />

PeriAfricania; “Motivos pra sonhar”, de Sales; “Ritual”, de Rosy<br />

Eloy; “Inspiração de amor”, de Dinho Love; “Povo”, de José Neto;<br />

“O pecado”, de Casulo; “Alienação”, de Fábio C.R.J.; “Liberdade”,<br />

de Timbó; “Uniosversos”, de PH Boné; “Amor composto”, de<br />

Augusto; “Nêgo Ativo”, de Márcio Batista; “A vida é cantada”,<br />

do Grupo Versão Popular; “De copo em copo”, de Valmir Vieira;<br />

“Menina pretinha”, de Elizandra Souza e “O homem necessita se<br />

casar”, de Seu Lourival.


180 <strong>Cooperifa</strong>


Centro Cultural <strong>Cooperifa</strong><br />

181


Cap.07<br />

1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong>


Quando o Sarau ainda era no Garajão, no final de 2002, queríamos<br />

agradecer aos freqüentadores com um presente pela<br />

participação daquele ano em nossos encontros. Nós pensamos<br />

numa medalha como prêmio.<br />

O Pezão falou com o Daniel e a Claudia Funari, que deram uma<br />

força, e eu falei com o amigo e professor Said, que ajudou na<br />

aquisição de cem medalhas que nós distribuímos como lembranças<br />

para os poetas e freqüentadores. Mas a idéia de um<br />

prêmio para fortalecer os ideais da <strong>Cooperifa</strong> só estava começando.<br />

Assistindo à entrega do Oscar um dia desses, eu pensei:<br />

Por que não?<br />

Falei com o Pezão que deveríamos criar um prêmio, principalmente<br />

para os poetas, mas que a gente se estendesse para pessoas<br />

da comunidade e para todos aqueles que direta ou indiretamente<br />

ajudassem a periferia a se tornar um lugar melhor<br />

para viver.<br />

Com a idéia do prêmio na cabeça, outro dia eu estava passeando<br />

com a Sônia na feira de artesanato que acontece em Embu das<br />

Artes, e vi um Dom Quixote de bronze em uma banca de um artesão.<br />

Mano, fiquei louco com a peça, mas ao perguntar quanto<br />

custava, fiquei mais louco ainda: “impossível”, pensei.<br />

A gente tinha pouca grana, só um cachê de um evento que a<br />

gente tinha feito com a Brava Cia., mas o evento teria que ser<br />

184


O Bonde da <strong>Cooperifa</strong><br />

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186 <strong>Cooperifa</strong>


1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong><br />

187<br />

louco. Descobrimos um cara que fazia troféus para times de<br />

futebol e fomos conhecê-lo em Santo Amaro, eu e o Pezão.<br />

Chegamos lá, falamos com o cara, cujo nome infelizmente não<br />

lembro, sobre o nosso objetivo e coisa e tal. O cara ficou todo<br />

entusiasmado com o projeto e até nos mostrou um livro que ele<br />

tinha escrito sobre ética e cidadania, e que ele apreciava muito<br />

a nossa iniciativa.<br />

Vimos vários modelos e cores até chegar em um com o qual a<br />

gente simpatizou e que dava para a gente pagar. Ele era todo<br />

de vidro, marrom, e com o logotipo da <strong>Cooperifa</strong> no alto do troféu.<br />

Bonito. Encomendamos 110 troféus. A gente queria premiar<br />

todas as pessoas que a gente achava que representavam<br />

de alguma forma a periferia, não ia haver votação nenhuma: a<br />

gente ia escolher quem a gente quisesse, não cabendo recurso<br />

ou choradeira.<br />

A festa de entrega tinha que ser no bar do Zé Batidão e nós estávamos<br />

afim de reunir o maior números de guerreiros e guerreiras<br />

da periferia possíveis nesse dia. De mais a mais, a entrega<br />

do prêmio também ia encerrar as atividades do ano de 2005,<br />

então a perifa precisava estar em grande estilo para esse dia.<br />

Como a gente tinha poucos troféus, a escolha não foi muito<br />

fácil. O mais engraçado foi que no dia que receberíamos o troféu,<br />

o cara que tinha escrito o livro sobre ética e cidadania não<br />

entregou o produto combinado, e sim um inferior, alegando falta<br />

do material, só que ele queria cobrar o mesmo preço.<br />

Lembro que eu e a Sônia tínhamos ido buscar o dinheiro para pagar<br />

o cara, e o Pezão ligou dizendo para a gente ir rápido para casa que<br />

havia algum problema com os troféus. Resumindo: eu queria que<br />

ele engolisse o troféu, e a Otília, esposa do Pé, queria bater nele,<br />

mas aí ele fez um desconto e ficou por isso mesmo. Como disse a<br />

Otília, nada poderia estragar nossa festa, e assim foi.<br />

Leia abaixo quem foram os primeiros agraciados com o 1º<br />

Prêmio <strong>Cooperifa</strong>:


188 <strong>Cooperifa</strong><br />

Literatura<br />

Marco Pezão<br />

Márcio Batista<br />

Adilson Lopes<br />

Sérgio <strong>Vaz</strong><br />

A poesia dos deuses inferiores<br />

Alessandro Buzo Suburbano<br />

Convicto<br />

Allan Da Rosa – Vão<br />

Augusto<br />

Big Richards<br />

Hip Hop conciência e atitude<br />

Binho<br />

Dinho Love<br />

Helber Ladislau<br />

Erton De Morais<br />

José Neto<br />

Kennya<br />

Sandra Alves<br />

Pillar<br />

Samanta Pillar<br />

Roberto Ferreira<br />

Sacolinha – Graduado em<br />

marginalidade<br />

Valmir Vieira<br />

Professora Lu<br />

Professora Lili<br />

Tereza<br />

Paula Preta<br />

Rose – Espírito de Zumbi<br />

Mavortisirc<br />

Marcelo Beso<br />

Harumi<br />

Seu Lourival<br />

Natália<br />

Cazulo<br />

Marinh<br />

Elizandra<br />

Toni – Hip Hop a lápis<br />

Euller Alves<br />

Mauricio Marques<br />

Sônia Pereira<br />

Personalidades Importantes<br />

Asduba<br />

Marcelo Ribeiro<br />

Rose – musa da <strong>Cooperifa</strong><br />

Família Retrão<br />

Dra. Elizabeth Takase<br />

Paco Produções<br />

Paulo Magrão – Capão Redondo<br />

Projetos<br />

Samba da Hora<br />

Samba da Vela<br />

Rastilho da Pólvora – Itaú Cultural<br />

CD da <strong>Cooperifa</strong> – Itaú Cultural<br />

Ferréz – Literatura Marginal<br />

Magrela´S Bike<br />

Rainha da Paz<br />

Monte Azul<br />

Bloco do Beco<br />

Casa dos Meninos<br />

Zé Batidão<br />

Ricardo – perueiro<br />

Prof. Carlos Giannazi –Universidade<br />

pública<br />

Jeferson De – Produtora<br />

Barraco Forte<br />

Mario Bibiano – Artes plásticas<br />

Ali Sati – Empresa Amiga<br />

Prof. Nilton Franco<br />

Itapoesia<br />

O autor na praça<br />

Movimento Negro Unificado–<br />

Milton Barbosa<br />

Biblioteca Zumaluma<br />

Favela do Inferninho


1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong><br />

189<br />

Eventos<br />

Ponte Preta – festa do dia das<br />

crianças<br />

PANELAFRO – Casa de Cultura<br />

M’Boi Mirim<br />

Leia Livro<br />

Casa das Rosas<br />

Teatro<br />

Grupo Cavalo de Pau<br />

Manicômicos<br />

Ação e Arte<br />

Zezé Mota – atriz<br />

Música<br />

Carlos Silva<br />

Versão Popular<br />

Záfrica Brasil<br />

Grupo 2hO<br />

PeriAfricania<br />

PH Boné<br />

Sabedoria de Vida<br />

Diney do Gueto<br />

Banda Varal<br />

Fábio<br />

Sales<br />

Wesley Nóog<br />

Thaíde<br />

Mano Brown – Racionais MCs<br />

Leandro Lehart – Art Popular<br />

Grupo Papo de Família<br />

Gog<br />

Afro-X<br />

Dexter<br />

A Família<br />

Jornalismo<br />

Becos e Vielas<br />

Revista Caros amigos<br />

Gazeta de Taboão<br />

Jornal Hoje – Taboão<br />

Revista Rap Brasil<br />

Programa “Provocações” – TV<br />

Cultura<br />

“SP Comunidade” –SPTV<br />

Estação Hip Hop<br />

Site Real Hip Hop<br />

Site Bocada Forte<br />

Fotografia<br />

Eduardo Toledo<br />

Educação<br />

Escola Mauro Faccio Zacaria<br />

teve a coragem de levar os alunos<br />

no Sarau<br />

Comunicação<br />

Espaço Rap


190 <strong>Cooperifa</strong><br />

Leia o texto que escrevi sobre o dia no meu blog 1 no dia 22 de<br />

dezembro de 2005:<br />

A FESTA DE ENTREGA DO 1º PRÊMIO COOPERIFA FOI UMA<br />

NOITE INESQUECÍVEL PARA A PERIFERIA.<br />

A festa de entrega do Troféu <strong>Cooperifa</strong> acabou se transformando<br />

numa noite inesquecível para as quase seiscentas pessoas que<br />

compareceram no bar do Zé Batidão. Já prevendo a lotação do<br />

bar, foi instalado um enorme telão na praça em frente, para que<br />

aqueles que não conseguissem entrar não perdessem nada do<br />

que rolava da festa.<br />

Num clima de extrema amizade e alegria, as pessoas foram sendo<br />

tomadas pela emoção que ocupava até os corações desavisados<br />

dos que passaram por lá. As pessoas foram chegando aos montes,<br />

e de todas as quebradas. À pé, de carro e de ônibus. Vans, peruas<br />

(automotivas, é claro!) e ônibus fretados traziam guerreiros e<br />

guerreiras para a grande noite dos heróis que travam batalhas<br />

nas sombras.<br />

Nada mais revolucionário que evoluir.<br />

O bar foi todo decorado com pipas, símbolo da <strong>Cooperifa</strong>, pelos<br />

organizadores do evento, que trabalharam até minutos antes para<br />

que nada desse errado. É difícil citar nomes sem cometer injustiças,<br />

mas... foda-se. Valeu Pezão e Otília, Márcio Batista e Danilo,<br />

Versão Popular, Sales, Jú e Jairo, Marcelo, Sônia e Mariana, Ali<br />

Sati, Zé, Magda, Tiana, Grupo Espírito de Zumbi, Mesa Redonda,<br />

Mavortisic e Lu, Cleide, Rose Negona, Rose, poetas da <strong>Cooperifa</strong><br />

que trabalharam para que tudo desse certo, Valmir Vieira, José<br />

Neto, Paco Produções, quem mais...? Buzo, Sacolinha, Ferréz,<br />

Toni C., Becos e Vielas, Casa de Cultura M’Boi Mirim, Magrela’s<br />

Bike, Brown, Afro-X, a Família, Jeferson De, Manicômicos, Carlos<br />

Giannazi, Toninho, Valter,Big Richard... assim que for lembrando a<br />

gente vai nomeando. Muita gente maravilhosa que foge à memória,<br />

mas está guardada no coração.<br />

1 www.colecionadordepedras.blogspot.com


1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong><br />

191<br />

Muitas pessoas atestam que até agora ainda não entenderam<br />

muito o que aconteceu nesta noite mágica. Muitos ainda estão<br />

chapados pela emoção que se abateu sobre todos.<br />

Não há nada para entender, era apenas uma noite repleta de<br />

seres humanos brasileiros contemplando a vida como ela deveria<br />

ser: viva!<br />

“Desculpem as lágrimas da felicidade, é que quando o coração<br />

tem um orgasmo ejacula pelos olhos”.


o<br />

oop


nde<br />

er<br />

Cap.08<br />

O Bonde da <strong>Cooperifa</strong>


Sarau da<br />

<strong>Cooperifa</strong> em Suzano<br />

194


O Bonde da <strong>Cooperifa</strong><br />

195<br />

O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> é um movimento de poesia da periferia,<br />

e assim tem sido durante esses seis anos de atividades, mas<br />

isso não significa que a gente nunca saiu do bar. Saímos poucas<br />

vezes, mas essas vezes foram de grande impacto para nós e<br />

para as pessoas que nos convidaram.<br />

Só para se ter uma idéia, quando nós fomos à cidade de Suzano<br />

a convite do escritor Sacolinha, nós fomos em mais de sessenta<br />

pessoas, entre poetas e nossos convidados. Depois fomos mais<br />

umas duas vezes.


Sarau da <strong>Cooperifa</strong><br />

na Casa das Rosas<br />

Um outro lugar em que o Sarau gosta muito de se apresentar é<br />

na Casa das Rosas, presidida pelo poeta Frederico Barbosa, que<br />

é um grande amigo da <strong>Cooperifa</strong>. Sempre que há um evento de<br />

poesia ele nos recomenda. Entre essas várias vezes teve uma que<br />

foi especial para a gente e para o público da Casa das Rosas.<br />

No aniversário de São Paulo de 2006 a Casa das Rosas programou<br />

um evento intitulado “SAMPOEMAS” e eu fui convidado<br />

para comandar o sarau da Paulista, só que caiu numa quartafeira,<br />

e quase no mesmo horário do Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Por isso<br />

só foi o Pezão representando os poetas da <strong>Cooperifa</strong>, e eu apresentando<br />

os poetas da Paulista e região.<br />

Na Casa das Rosas o público lotou o espaço, mais de cem pessoas,<br />

e quase quarenta para recitar poemas para a mega Sampa.<br />

Na <strong>Cooperifa</strong> duzentas pessoas lotavam o bar do Zé Batidão na<br />

periferia da Zona Sul de São Paulo. Ou seja, no aniversário de<br />

Sampa tinha mais de trezentas pessoas comungando a poesia.<br />

A certa altura liguei para o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, ao vivo da Casa<br />

das Rosas, e coloquei o celular no microfone e pudemos ouvir a<br />

poesia rolando direto da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

196


O Bonde da <strong>Cooperifa</strong><br />

197<br />

Depois invertemos o processo e colocaram o celular no microfone<br />

da <strong>Cooperifa</strong>. Na Casa das Rosas todos aplaudiram o Sarau<br />

da <strong>Cooperifa</strong>, e depois todos da <strong>Cooperifa</strong> aplaudiram o público<br />

da Casa das Rosas. Loucura total.<br />

Ambos os lados entraram em êxtase nesta noite memorável<br />

onde todos puderam transformar tempo e espaço a favor da<br />

humanidade.


Colecio<br />

Cap.09<br />

Colecionador de pedras


Livro<br />

Colecionador<br />

de pedras<br />

Na esteira do barulho que a literatura da periferia estava fazendo<br />

em dezembro de 2006 eu lanço meu quarto livro, Colecionador<br />

de pedras, que é um resumo dos meus vinte anos de poesias.<br />

Como era um livro comemorativo e com poucas poesias inéditas,<br />

apesar de ser independente, ele teria que ficar bem produzido.<br />

Sem grana novamente, consegui apoio da Eutotur Turismo,<br />

do bom e velho amigo de sempre, Ali Sati.<br />

Tinha pensado em uma capa com a imagem de um estilingue, e<br />

por isso encomendei um desenho ao South, do estúdio INCA, no<br />

Capão Redondo, mas como eu não conseguia terminar o livro o<br />

estilingue foi perdendo o sentido. O South fez uma capa muito<br />

bonita para mim e eu acabei não aproveitando; aproveito aqui<br />

para agradecê-lo e desculpar-me pela deselegância.<br />

Estava com uma idéia de pipas na capa, e tinha visto um com o<br />

Bne (Vadiagi) que faz uns grafites bem locos e que é do Jardim<br />

Leme, aqui em Taboão da Serra. Mano, quando eu vi o desenho<br />

pirei na hora: é esse mesmo!<br />

200


Colecionador de pedras<br />

201<br />

O livro ainda contava com textos de apresentação do Toni C. (Hip<br />

Hop a Lápis) e o Nelson Maca (Blackitude/BA). O Eduardo Toledo<br />

fez a produção da capa; a fotografia é do Jefferson Dias; editoração<br />

Célia Harumi Seki; revisão Marcelo Beso Veronese; e aí, no<br />

dia 6 de dezembro, no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, eu lancei o livro que<br />

celebrava meus vinte anos de poesia.<br />

Mais tarde este mesmo livro iria abrir a coleção Literatura periférica,<br />

da Global Editora.


Café Literário em<br />

Taboão da Serra<br />

A poesia estava pulsando em todos os lugares da periferia do<br />

Estado de São Paulo, faltava na minha cidade. Não estava afim<br />

de fazer um outro sarau nos moldes da <strong>Cooperifa</strong>, mas também<br />

não sabia o que eu queria fazer.<br />

Certo dia, quando trocou o prefeito na cidade, Dr. Fernando,<br />

pelo atual Dr. Evilásio, eu conheci a assessora do secretário da<br />

Educação e Cultura, Celso Callegari, Marta de Betânia, e falei<br />

das minhas intenções poéticas.<br />

Ela, que vinha da Casa de Cultura de Santo André e conhecia<br />

o pessoal da Casa de Hip Hop de Diadema, se empolgou muito<br />

com a idéia, e sugeriu que a gente fizesse um sarau, mas com<br />

um outro nome, para desvincular um pouco da <strong>Cooperifa</strong>, e<br />

assim surgiu o Café Literário em Taboão da Serra.<br />

Coordenei este projeto por mais de um ano e ele sempre acontecia<br />

na segunda segunda-feira de cada mês. O Café não tinha<br />

muito a ver com o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, mas a maioria dos poetas<br />

era de lá.<br />

A poesia não podia parar e a cada Café Literário a gente convidava<br />

uma escola para assistir. Sem perceber, a poesia estava<br />

novamente voltando para casa.<br />

202


Colecionador de pedras<br />

203


Sarau<br />

da Coopeirfa<br />

nas escolas<br />

O Café Literário era realizado somente uma vez por mês, por isso<br />

eu achava que a poesia precisava de mais tempo para sobreviver,<br />

mas, por falta de oxigênio, o Café foi acabando aos poucos.<br />

Porém, uma coisa tinha ficado na minha cabeça: a poesia tinha<br />

que freqüentar a sala de aula novamente.<br />

Por isso decidimos que se os professores e alunos não podiam<br />

freqüentar o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> iria até<br />

eles, e no ano de 2007 começamos a visitar as escolas da região.<br />

O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> era composto mais ou menos de 15 a vinte<br />

poetas e era realizado todas as terças-feiras. Como a <strong>Cooperifa</strong> é<br />

muito conhecida na região, foi fácil programar esses encontros;<br />

aliás, as diretoras e professoras estavam sempre cobrando as<br />

nossas visitas. Novamente foi muito bom ter o contato com os<br />

alunos, pois, como já disse anteriormente, na periferia a palavra<br />

poesia, ou poeta, parece coisa de estrangeiro, ou extra-terrestre:<br />

as pessoas já ouviram falar, mas não sabem se existe.<br />

A luta pela divulgação da poesia não podia parar, por isso visitamos<br />

mais ou menos umas vinte escolas, e com média de cem a<br />

204


Colecionador de pedras<br />

205<br />

150 alunos por Sarau, e em cada lugar que a gente chegava era<br />

possível perceber a alegria e o orgulho que a <strong>Cooperifa</strong> levava<br />

às pessoas, e não só pela palavra, mas eles sentiam força na<br />

nossa postura de levar cidadania através da literatura.<br />

E em todo lugar que a gente ia tinha sempre alguém que tinha<br />

algum escrito que tirava da gaveta ou da memória e participava<br />

com a gente de forma livre e espontânea. Muitos nem acreditavam<br />

que a gente era da comunidade, e muitos ficavam admirados<br />

que a maioria dos escritores que estavam assistindo se<br />

pareciam com eles. E o que é melhor, falando no mesmo idioma:<br />

a língua do povo.<br />

Nesse curto período de Sarau nas escolas nós falamos poesia<br />

para mais ou menos umas quatro mil pessoas de várias comunidades<br />

da periferia, e boa parte delas viraram freqüentadores do<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, mas o que mais marcou a gente foi a alegria<br />

dos professores nesses encontros.<br />

E a gente pode perceber que apesar de todo esforço do Estado<br />

em destruir a educação, ainda tem muitas guerreiras e guerreiros<br />

entrincheirados nas salas de aulas tentando impedir que<br />

isso aconteça. Descobrimos uma outra coisa nesses encontros:<br />

escola + poesia = conhecimento.


206 <strong>Cooperifa</strong>


Colecionador de pedras<br />

207


Ajoelhaço<br />

O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> todo ano comemorava o Dia Internacional<br />

das Mulheres com poesias dedicadas às guerreiras da comunidade.<br />

Mas aí, com o tempo, a gente achou que era chover no<br />

molhado. Pois todo mundo fazia isso, e em todos os lugares.<br />

Outra coisa que a gente rechaçou logo de cara foi presenteálas<br />

com rosas, bombons ou qualquer outra coisa que alguém já<br />

tivesse feito.<br />

Mas mal os homens sabiam que elas tinham planejado, produzido<br />

e realizado um Sarau totalmente diferente para nós. Para<br />

nós, não por nós. Vai vendo a ironia. O Sarau neste dia começou<br />

com as guerreiras nos presenteando com botões de rosa. E<br />

logo em seguida assumiram o Sarau completamente, e nenhum<br />

homem foi convidado para falar. Nenhum.<br />

Todas as mulheres falaram poesia e textos que relatavam a covardia<br />

e o machismo que impera no Brasil. Recitaram sobre a violência,<br />

o descaso, a sobra de sexo e a falta de orgasmo. Ficamos ali,<br />

uns duzentos caras tomando um tremendo esculacho pelas nossas<br />

grosserias ao longo de toda a existência da humanidade.<br />

Enquanto éramos colocados no nosso devido lugar, já tínhamos<br />

combinado que ao final do Sarau todos os poetas e convidados<br />

iriam à frente, de joelhos, implorar pelo perdão feminino.<br />

Enquanto o Sarau ia acabando, a gente ia combinando. Alguns,<br />

ou a metade, já começava a afinar, e dizer que ajoelhar já era<br />

208


Colecionador de pedras<br />

209<br />

demais, e coisa e tal. Sabíamos que não ia ser fácil fazer o<br />

machismo se curvar, mas tínhamos que tentar.<br />

Ao final fomos para a frente e começamos a nos posicionar para<br />

o ajoelhaço, como ficou conhecido esse evento, enquanto as<br />

mulheres gritavam: Ajoelha! Ajoelha! Ajoelha! A gente foi chamando<br />

a galera. Uns vinham meio desconfiados, outros fugiam<br />

para o banheiro ou para o lado de fora do bar; sei que só a<br />

metade se curvou. Lembro que quando nos ajoelhamos gritamos<br />

bem alto:<br />

— Perdoem-nos mulheres! Perdão! Perdão! Perdão!<br />

As mulheres foram à loucura, não imaginavam que seríamos<br />

capazes; para falar a verdade nem nós mesmo podíamos<br />

acreditar no nosso gesto, em março de 2006. No ano seguinte<br />

novamente o ajoelhaço aconteceu, e uns 80% aderiram ao ato.<br />

Apesar da maioria, a gente ainda não estava satisfeito.<br />

Em março de 2008 nós comemoramos o Dia Internacional<br />

das Mulheres do mesmo jeito e chamamos este dia de “Noite<br />

da poesia e do perdão”. Neste dia mais de trezentas pessoas<br />

apareceram no Sarau e muitos já vieram prontos para ajoelhar.<br />

E assim aconteceu.<br />

Ao final do Sarau, uns 150, entre poetas e freqüentadores, foram<br />

à frente suplicar o perdão das divinas.<br />

E aos gritos de: “Ajoelha! Ajoelha! Ajoelha!<br />

Todos nós ajoelhamos. Todos.<br />

Foi uma das noite mais lindas que a periferia já presenciou.<br />

Se você quiser ver o vídeo do ajoelhaço no youtube, acesse:<br />

http://www.youtube.com/watch?v=YfAJWR5YLsM<br />

Fiz até um texto sobre esse dia e publiquei no meu blog, e queria<br />

dividir com vocês:


210 <strong>Cooperifa</strong>


Colecionador de pedras<br />

211<br />

DIA INTERNACIONAL DAS MULHERES<br />

Ninguém sabe ao certo quando e como surgiu a data em que se<br />

comemora o Dia Internacional da Mulher. Um dos seus maiores<br />

mitos é a versão capitalista americana que diz sobre a morte de<br />

129 costureiras queimadas vivas em Nova York no ano de 1857,<br />

originando e ratificando assim o dia 8 de março como data comemorativa<br />

do Dia Internacional da Mulher.<br />

Mas uma breve pesquisa pode revelar que a história não foi bem<br />

assim, e que pode ser apenas “mais um besteirol americano” (vale<br />

pesquisar).<br />

O fato não invalida a luta das mulheres em busca da igualdade ao<br />

longo da história da humanidade. Nem suas personagens, suas<br />

heroínas, seus feitos, suas derrotas e suas glórias, mas é que a<br />

verdade combina muito melhor com a história feminina. Poderia<br />

citar milhares de nomes dessas infantes, e ainda assim não estaria<br />

cometendo justiça.<br />

Eu, particularmente, acho que tirando a beleza, a força, a cultura e<br />

o caráter, as mulheres e os homens são iguais. Apesar de não imaginar<br />

a Camila Pitanga de bigode e o Ronaldinho Gaúcho matando<br />

a bola nos seios. Fisicamente, está bom do jeito que está. Mas<br />

espiritualmente... está muito longe do ideal.<br />

Aqui no Brasil foi preciso a Lei “Maria da Penha” (nº11340 de agosto<br />

de 2006), que conforme o que está escrito, cria mecanismos para<br />

coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, para conter<br />

a fúria assassina do sistema machista que impera na sociedade<br />

brasileira. Avança o direito feminino, num país em que há lugares<br />

em que um simples apito pode salvar a vida de uma mulher.<br />

De olho em tudo isso, nesta quarta-feira, no dia 5 de março de<br />

2008, sob uma lua linda e propícia ao perdão, aconteceu uma<br />

das noites mais lindas da periferia de São Paulo, e no centro do<br />

coração de muita gente: o ajoelhaço no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Uma<br />

noite de poesia e perdão. Como já é tradição, sempre nesta época<br />

do Dia Internacional das Mulheres os poetas promovem um Sarau<br />

dedicado às guerreiras presentes, e, mais ou menos umas 22:30h,<br />

o recital é interrompido para que os poetas e presentes venham<br />

à frente, e de joelhos peçam perdão por tudo de ruim e covarde


212 <strong>Cooperifa</strong>


Colecionador de pedras<br />

213


214 <strong>Cooperifa</strong><br />

que nós já proporcionamos a elas, ao longo da nossa existência.<br />

Uma noite linda! Para se ter uma idéia, havia mais ou menos umas<br />

quatrocentas pessoas nesta quarta-feira, mais de cem mulheres, e<br />

todas gritando ao mesmo tempo: AJOELHA! AJOELHA! AJOELHA!<br />

Ajoelhamos.<br />

Muitos de nós poderíamos passar a vida inteira ali, ajoelhados, em<br />

busca do perdão, que não seríamos perdoados. E por tudo... e por<br />

todos. O mais importante é que nós estávamos ali, de joelhos, uns<br />

por diversão, outros por oração, aprendendo com a dor alheia o peso<br />

de nossas mãos. Lógico que não será isso que vai mudar a condição<br />

feminina, e nem vai apagar todas as injustiças e os crimes cometidos<br />

pelos homens, longe disso. Mas é tratar a nossa mente e o coração<br />

machista da quebrada, e não só com palavras, com atitudes.<br />

Pois às vezes pequenos gestos que acolhem a sutileza revelam ensinamentos<br />

profundos.<br />

Um discurso na mão e a prática na outra. Sem maquiagem. Encarar<br />

o problema de frente já é um grande aprendizado. Humildade é<br />

muito mais do que uma palavra, é um sentimento.<br />

Se por acaso vão presentear alguma mulher com buquê de rosas,<br />

vejam se não deixaram nenhuma violeta estampada no rosto dela.<br />

Nunca esqueçam: “...espinhos e pétalas fazem parte da primavera.”


Colecionador de pedras<br />

215


Sarau Rap<br />

Poesia nas ruas<br />

O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> foi ao longo dos anos se tornando um<br />

grande refúgio de poetas, e a poesia da periferia que sofreu<br />

tanta influência do rap, agora via seu quartel general tomado<br />

por pessoas ligadas ao hip-hop.<br />

Aí, conversei com o Eleilson, da Ação Educativa, que precisávamos<br />

fazer uma parceira em um projeto que abrigasse somente<br />

os rappers e somente a poesia. A idéia foi criar um Sarau para<br />

o rap, que significa ritmo e poesia, mas que eles não cantassem<br />

sobre a batida, somente recitassem as letras, à capela. Um<br />

Sarau dedicado somente a rimadores e rimadoras e que estimulasse<br />

ainda mais a criação poética dos envolvidos.<br />

O Sarau RAP foi inspirado nos movimentos culturais americanos<br />

slam e spoken word. O Sarau acontece sempre na última quintafeira<br />

de cada mês, desde abril de 2007. A Ação Educativa fica no<br />

centro de São Paulo, por isso o público, estimado sempre entre<br />

cinqüenta ou mais pessoas, são de todas as partes da cidade<br />

(leste, oeste, sul e norte). Por isso o Centro é um lugar ideal para<br />

o evento. E para o fim de 2008 nós estamos selecionando letras<br />

para um livro do Sarau RAP. O Eleilson da Ação Educativa seria<br />

mais tarde parceiro num outro projeto literário.<br />

216


Colecionador de pedras<br />

217<br />

Saiba um pouco mais sobre o slam e o spoken word:<br />

Poesia das Ruas pretende se inserir no movimento poético social<br />

que nos Estados Unidos se denomina slam ou spoken words.<br />

Surgido em Chicago em 1985 por iniciativa do escritor Marc<br />

Smith, que organizava competições de poesia no Bar Green Mill, o<br />

slam ganhou popularidade com o filme homônimo de Marc Levin<br />

no final da década de 1990. O sucesso deste filme na Europa<br />

propagou o slam no velho continente, principalmente na França,<br />

fazendo de Paris a capital mundial dos slameurs, como se define<br />

por lá, os poetas urbanos adeptos do slam.<br />

Em São Paulo há uma cena forte de saraus, mas não há registro<br />

de um evento que enalteça a poesia do rap com declamação, sem<br />

música. Há importantes eventos como a rinha de MCs promovida<br />

pelo rapper Crioulo Doido no Grajaú, Zona Sul de São Paulo, mas<br />

um sarau só para rapper recitar suas letras, talvez o Poesia das<br />

Ruas seja o primeiro.<br />

No Brasil a polêmica em torno do estatuto poético da letra de<br />

canção é antiga. Este debate, porém, se restringe às hostes da<br />

MPB e dos poetas. Acreditamos que o rap foge a essa polêmica,<br />

já que é na própria essência uma poesia, como o próprio nome<br />

sugere: ritmo e poesia.


Cap.10<br />

Poesia no ar


Outro dia estava conversando com o amigo e jornalista Eduardo<br />

Toledo e ele havia me dito que tinha passado o revéillon de 2006<br />

em uma cidade do interior. Na cidade, a maioria dos turistas,<br />

assim como ele, passava a meia-noite nos bares. Só que tinha<br />

uma curiosidade: as pessoas eram convidadas a escreverem<br />

mensagens de paz ou coisas assim, e depois elas seriam enviadas<br />

em balões de gás, e assim era feito em outros bares, sempre<br />

no mesmo horário.<br />

Na hora eu pensei: vamos fazer isso lá no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Reuni-me com a turma e todos piraram na idéia. Falei com o Ali<br />

Sati, da Eurotur, que arrumou as bexigas. Eu e o Celsinho fomos<br />

atrás do gás hélio e todos nós realizamos o evento.<br />

O 1º Poesia no Ar aconteceu em abril de 2007 e contou com trezentas<br />

bexigas. O Sarau aconteceu normalmente até às 22:30h,<br />

mas depois uma pequena multidão de mais de trezentas pessoas<br />

se aglomeraram em frente ao Bar do Zé Batidão, e às<br />

23:00h em ponto nossa poesia foi lançada no céu de São Paulo.<br />

Por falta de experiência e na correria esquecemos de colocar o<br />

endereço do remetente, para que as pessoas que fossem abordadas<br />

pela nossa poesia soubessem da sua origem. Só tivemos<br />

um retorno de uma pessoa que recebeu a bexiga, no bairro de<br />

Pinheiros, bem distante de onde ela foi lançada. O evento foi tão<br />

220


Poesia no ar<br />

221


222 <strong>Cooperifa</strong>


Poesia no ar<br />

223<br />

bonito que não podíamos deixar de realizar. Aliás, o Poesia no Ar<br />

já faz parte do calendário da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Neste ano preparamos um Poesia no Ar bem mais planejado.<br />

Pra começar foram confeccionados pelo artista plástico Brói,<br />

com fotos do João Wainer, dois mil convites em forma de cartão<br />

postal para a distribuição aos nossos amigos. O convite,<br />

de tão bonito, já era uma lembrança do evento. Com apoio da<br />

<strong>Cooperifa</strong>, Zé Batidão e Ali Sati, nós fizemos quinhentas bexigas<br />

com o logotipo da <strong>Cooperifa</strong> impresso. A Rose e a Lu mandaram<br />

fazer papéis timbrados com o nome da <strong>Cooperifa</strong> e com o endereço<br />

do bar para que todos pudessem escrever seus poemas<br />

e suas mensagens, e para que todos aqueles que recebessem<br />

via aérea tivessem oportunidade de responder, se quisessem,<br />

é claro.<br />

Neste último Poesia no Ar uma pequena multidão de mais de<br />

quinhentas pessoas se aglomeraram em frente ao bar do Zé, e<br />

ao final da contagem regressiva lançaram suas poesias e suas<br />

mensagens de paz ao povo paulistano. Conforme o retorno que<br />

tivemos, vários quintais foram visitados pela nossa poesia. E<br />

de vários bairros distantes da Piraporinha, onde estamos. Cada<br />

um, a seu modo, recebeu um pedaço do Sarau da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Escrevi um texto para sintetizar este dia:<br />

Batalha de abril (Poesia no ar)<br />

Não há palavras para descrever o que foi a noite de ontem<br />

(30/04/2008) no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Quem sabe talvez “catarse”<br />

seja a palavra para defini-la. Na noite mais fria de São Paulo a periferia<br />

teve uma das noites mais lindas de sua vida. Uma das noites<br />

mais gentis e belas de nossas vidas. Uma noite em louvor à amizade,<br />

à palavra e à poesia. Uma noite para sempre, em nossas retinas.<br />

Só para se ter uma idéia, nesta quarta-feira fria de véspera de<br />

feriado, onde boa parte dos paulistanos estava entrincheirada<br />

e mau-humorada na imensidão do trânsito em busca de dias<br />

de paz, onde a torcida do Palmeiras, Corinthians e São Paulo<br />

estavam em casa ou no Morumbi assistindo aos jogos, mais de


224 <strong>Cooperifa</strong>


Poesia no ar<br />

225


226 <strong>Cooperifa</strong><br />

quinhentas pessoas vindas da comunidade, de outras quebradas,<br />

outras cidades, de outros estados e até de outros países, compareceram<br />

ao Sarau da <strong>Cooperifa</strong> para participar do 2º Poesia no Ar,<br />

que para sempre, devido às dificuldades, será lembrado como a<br />

batalha de abril.<br />

Duas escolas, Zacarias e Antônio Agio, enviaram seus alunos<br />

para prestigiarem o evento. Os professores dessas duas escolas<br />

acreditam que o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> é uma extensão da sala de<br />

aula; por conta disso, da proximidade do conhecimento, muitos<br />

de nós estamos perdendo o medo das notas vermelhas e estamos<br />

voltando a estudar. A gente achando que estava seduzindo<br />

a escola, e a escola, dos nossos parceiros professores, nos seduzindo<br />

descaradamente. Sem os muros entre nós, que bela aula<br />

nós tivemos – muita gente já voltou a estudar por conta dessa<br />

irmandade. Escola + comunidade = Futuro.<br />

Bom, mas voltando à noite mágica, o Sarau transcorreu normalmente<br />

até às 22:30h, e vale lembrar que tinha mais ou menos uns<br />

cinqüenta poetas para declamar, e todos recitaram normalmente.<br />

Quer dizer, foram normalmente fantásticos!<br />

Uma poesia mais bela do que a outra, se é que isso é possível, e<br />

uma noite de literatura pura, como há muito não se via, como há<br />

muito não se produzia. Mesmo por aqueles que ordenam, quem<br />

deve escrever e quem deve ler nesta metrópole cinza e analfabeta,<br />

comandada por uma elite de intelectuais arrogantes que<br />

nos odeiam por amar os livros e a criação poética. Que comam<br />

brioches!<br />

A esta altura, quase quinhentos balões, portando poesia e mensagens<br />

do Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, devem estar chegando nos quintais<br />

do povo paulistano, com um pouco do que aconteceu na noite<br />

de quarta-feira. Dê uma olhada no seu quintal, quem sabe...<br />

Se você não esteve lá, perdeu, porque não vai passar em nenhum<br />

órgão da imprensa, que tem muito mais apreço à bala perdida do<br />

que poesia. Ora, então por que será que eles tanto pedem paz?<br />

Em frente à praça uma pequena multidão portando balões com<br />

munição poética aguardava em posição de combate a contagem<br />

regressiva, para o atacar a cidade enquanto ela dormia, quase


Poesia no ar<br />

227<br />

que inocentemente, com uma chuva de poemas contendo um gás<br />

extremamente venenoso: a resistência.<br />

Não banquem os tolos: estamos em guerra, e a nossa poesia iletrada,<br />

dura e com cheiro de pólvora é apenas um artifício para confundir<br />

os tais sábios e os que fingem que não sabem de nada. A poesia no<br />

ar é só aviso que o nosso pequeno exército marcha corajosamente<br />

sobre a terra, contra tudo e contra todos, mas sem esquecer o sorriso<br />

no rosto e os punhos cerrados. Somos nós por nós!<br />

Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.


Coleção<br />

Literatura Periférica<br />

“Ser independente ou não, eis a questão.”<br />

Passei toda a vida editando meus livros independentes, todos<br />

os cinco, e quando já nem imaginava mais uma grande editora<br />

na minha vida, surge a Global Editora no meu caminho.<br />

O Eleilson, da Ação Educativa, que a essa altura já se tornara<br />

um grande amigo, tinha pensado em uma idéia de criar uma<br />

coleção com vários autores da periferia, uma coleção intitulada<br />

Literatura Periférica. Pegou a idéia e conversou com o Luiz e o<br />

Jéferson, da Global, que resolveram investir na coleção.<br />

Para a primeira coleção foram convidados eu, Sacolinha,<br />

Alessandro Buzo, Allan da Rosa e a Dinha, e mais para frente<br />

se juntaram à coleção o rapper GOG e o poeta baiano Nelson<br />

Maca, da Blackitude.<br />

Fomos para a primeira reunião da editora, intermediada pelo<br />

Eleilson, cheios de desconfiança, mas aos poucos fomos percebendo<br />

que a editora nos queria exatamente como a gente era e<br />

como a gente escrevia. O que para nós já era uma grande coisa,<br />

já que estávamos trocando o certo pelo duvidoso.<br />

De minha parte, com mais de cinco mil livros vendidos de mão<br />

em mão ao longo desses vinte anos, achei que já estava na hora<br />

de tentar uma nova experiência. Aliás, uma experiência que eu<br />

228


Poesia no ar<br />

229<br />

aguardava há mais de vinte anos. Hoje, por exemplo, o livro pode<br />

ser encontrado em todas as livrarias do Brasil.<br />

A editora resolveu lançar todos os livros que nós já havíamos<br />

lançado de forma independente, ou o livro que o autor escolhesse.<br />

Eu relancei o Colecionador de pedras, que é o meu livro<br />

que comemora os meus vinte anos de poesia. O livro ganhou<br />

uma nova capa, mas continuou exatamente com eu o havia<br />

concebido. Para a apresentação do livro eu convidei o escritor<br />

Ferréz, que fez um bonito texto. E para a contracapa continuei<br />

com o texto do Nelson Maca, que já tinha escrito no livro<br />

independente.<br />

Como ia ser um livro com uma grande editora, eu precisava<br />

fazer um grande lançamento, e com a cara da periferia. Escolhi<br />

um espaço chamado CEMUR, que tem aqui em Taboão da Serra,<br />

e preparei um grande evento para receber o livro da Global.<br />

Na mesma noite contei com a ajuda da família e os amigos de<br />

sempre, e realizamos um grande evento, com sarau de poesia,<br />

rap, MPB, dança, cinema, teatro e apresentações de artistas<br />

gerais. Foi uma noite totalmente atípica para o lançamento de<br />

um livro. Mas foi uma noite com a minha cara, com a cara da<br />

<strong>Cooperifa</strong>. Inesquecível.<br />

Conforme alguns, tinha mais de quinhentas pessoas no lançamento.<br />

Eu lembro de um por um. Novos vôos, mas com os pés<br />

sempre grudados no chão.


As guerreiras<br />

da <strong>Cooperifa</strong><br />

Desde o início do Sarau poucas mulheres apareciam para recitar;<br />

uma coisa que eu não sei explicar até hoje, já que desde os<br />

meus primeiros livros eu ouvia alguns dizerem que o livro que<br />

estavam comprando ou era para esposa ou para a filha. Como<br />

se fosse uma vergonha o cara da periferia gostar de poesia. O<br />

rap ajudou muito a mudar essa opinião.<br />

Ora, então se são as mulheres que gostam de poesia, por que<br />

demoraram tanto para recitar no Sarau? Mistério. Bom, mas<br />

isso não quer dizer que elas nunca estiveram presentes. Sim,<br />

desde sempre.<br />

Já nos primeiros dias as mulheres é que seguram todas as ações<br />

da <strong>Cooperifa</strong>. Hoje nada acontece sem a presença e a força da<br />

Rose, musa da <strong>Cooperifa</strong>, e da guerreira Lu Souza, que sempre<br />

estão à frente do movimento. A Rose todo mundo conhece,<br />

é pau para toda obra, <strong>Cooperifa</strong> até a medula e está desde o<br />

começo com a gente, só parou de vir quando voltou a estudar;<br />

hoje escreve e recita. A Lu é professora e chegou com o Sarau em<br />

movimento e nunca mais faltou aos nossos encontros. Hoje, além<br />

de falar muito bem ela tem se tornado uma grande poetisa<br />

Para não ficar só nelas, por lá estão e já passaram grandes<br />

guerreiras que dão a luz necessária para que o movimento<br />

nunca caia em qualidade. Mulheres fortes e inteligentes como<br />

Otília, Sônia, Juliana, Bárbara e Lila, Tiana, Andréa, Ricarda,<br />

230


Poesia no ar<br />

231<br />

De Lourdes, Lea, As irmãs Retrão, Eliane Brum, Rose Eloy,<br />

Luciana Dias, Sandra Cavalo de Pau, prof. Lili, Samantha, Pilar,<br />

Diane, Raíssa, Dona Edite, Elizandra, Sandra Lea, Dinha, Helena,<br />

Viviane, Mariana, Clarice, Cema, Ligia, Kátia (Brava), Fernanda,<br />

Vilma negra drama, dra. Elizabeth, Laide, Doca, Ju, Daniela<br />

Mercedes, Renata Dias, Izilda, Harumi, Tânia Canhadas, Neide<br />

Canto, Anabela, Cidinha Silva, Clarinda, Kely, Claudia, Paula<br />

Preto, Maria Teresa, Valéria e sem contar às inúmeras guerreiras<br />

que entram e saem das nossas vidas a todo instante e dão<br />

corda nesse relógio chamado <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Não quero nem mencionar as mulheres que freqüentam o<br />

Sarau, se não iria cometer injustiças, como já devo ter cometido<br />

na lista acima. Mas elas sabem quem são e o que representam.<br />

É tudo delas!


Mod<br />

Periferia<br />

Semana


233<br />

Periférica<br />

Antro<br />

fagia<br />

Cap.11<br />

Antropofagia Periférica<br />

Semana de Arte Moderna da Periferia<br />

erna a<br />

Cap.11<br />

Antropofagia Periférica<br />

Semana de Arte Moderna da Periferia


Como já tinha dito anteriormente, a <strong>Cooperifa</strong> foi criada e pensada<br />

na Semana de Arte Moderna de 1922, e há muito nós da<br />

<strong>Cooperifa</strong> vínhamos discutindo a possibilidade de realizar uma<br />

Semana de Artes para nós, inspirada na Semana de Artes da<br />

elite paulistana. Quer provocação maior?<br />

Tinha que ser uma semana inteira de artes na periferia, e para a<br />

periferia, nos mesmos moldes da turma de Oswald de Andrade.<br />

Lógico que o terreno estava propício; a zona sul, principalmente,<br />

estava abarrotada de gente fazendo arte e cultura por todos os<br />

lados, era só reunir as tribos e devorar o nosso Bispo Sardinha<br />

também. Estava começando a se desenhar a nossa Antropofagia<br />

Periférica.<br />

Como era um evento muito grande, a <strong>Cooperifa</strong> não ia poder realizar<br />

sozinha, por isso foram convidadas várias lideranças culturais<br />

para pensar e conceber a nossa Semana.<br />

Primeiro começamos a nos reunir às segundas-feiras no Bar do<br />

Zé Batidão, lugar que era próximo a todos. E também uma espécie<br />

de sede da <strong>Cooperifa</strong>. Para se ter uma idéia, tinha dia que<br />

havia até quarenta pessoas discutindo sobre como e quando<br />

seria a nossa Semana. Também tinha os palpiteiros culturais,<br />

gente que só ia para tumultuar o ambiente, mas aos poucos<br />

fomos enquadrando os teóricos da quebrada.<br />

234


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

235<br />

A primeira discussão foi em torno do nome, Semana de Arte<br />

Moderna da Periferia. Muitos não queriam porque era um nome<br />

usado pela elite cultural de São Paulo, e que devíamos ter um<br />

nome voltado para semana cultural da periferia, ou coisa assim.<br />

Mas quem daria bola para uma semana de artes produzida no<br />

gueto da maior e mais preconceituosa metrópole do Brasil?<br />

Ninguém.<br />

Mas o que alguns não sabiam era que nós da <strong>Cooperifa</strong> queríamos<br />

justamente era isso mesmo, comer esta arte enlatada<br />

produzida pelo mercado que nos enfiam goela abaixo, e vomitar<br />

uma nova versão dela, só que desta vez na versão da periferia.<br />

Sem exotismos, mas carregada de engajamento. Uma arte com<br />

endereço e com sua bússola apontada para o subúrbio, 85 anos<br />

depois, como previu o poeta. Conforme se viu, as massas realmente<br />

estavam afim de comer o biscoito, fino ou não.<br />

Bom, já tínhamos nos apropriado da escrita, e já tínhamos apropriado<br />

o nome sagrado da Semana, o que causou ainda mais ódio<br />

nos intelectuais que já nos odeiam o suficiente por ousar ler e<br />

escrever, imagina o que será que causou neles quando nós usamos<br />

o mesmo desenho de Di Cavalcanti para o cartaz de 2007?!<br />

O cartaz de 22 era apenas um arbusto seco com poucas folhas<br />

vermelhas e sugerindo um terreno árido. Parodiando o cartaz, o<br />

artista plástico Jair Guilherme transformou o pequeno arbusto<br />

em um enorme Baobá e cheio de frutos, o que muitos interpretaram<br />

como gotas de sangue, o qualificaram como violento; nós<br />

achamos do caralho. Isso basta.<br />

Falando assim até parece que foi fácil decidir qual seria o logotipo<br />

do nosso evento. Esse desenho demorou quase um mês para<br />

ser aceito, isso porque o Jair, que estava incumbido do desenho,<br />

a certa altura dispensou as opiniões e trouxe o cartaz já pronto,<br />

depois de inúmeras tentativas não aprovadas. A Semana aconteceu<br />

em novembro e as reuniões começaram em agosto.


236 <strong>Cooperifa</strong>


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

237


238 <strong>Cooperifa</strong><br />

Outra coisa que também estava certa, e que economizou tempo<br />

e discussão, era quanto aos locais das apresentações. Todas<br />

teriam que ser na periferia, impreterivelmente. Senão, não teria<br />

a menor razão de ser. Também os grupos teriam que ser da quebrada,<br />

o que já não foi tão simples assim decidir. Quando a notícia<br />

que nós iríamos fazer uma Semana Periférica se espalhou<br />

pelos quatros cantos da cidade, centenas de pessoas queriam<br />

se inscrever para participar. Gente da Leste, da Sul, da Norte,<br />

Oeste e Centro queria fazer parte desse acontecimento.<br />

Muitos argumentaram que havia vários grupos que não eram da<br />

perifa, mas eram tão ou mais importantes que nós, o que não<br />

deixava de ser verdade. São Paulo tem muita gente importante<br />

trabalhando para a cultura, independente da geografia, mas aí<br />

uns diziam que muitos desses grupos tinham oportunidades<br />

nos espaços centrais, e que agora seria a nossa vez. O que também<br />

é uma grande verdade. O único espaço que nós temos é o<br />

bar. O que fazer?<br />

Começamos a exercitar a democracia, fizemos uma eleição.<br />

Conforme o resultado, só os artistas ligados à periferia seriam<br />

convidados, e também ficou acertado que os locais também<br />

seriam só na quebrada, e na Zona Sul de preferência. Era onde<br />

se concentrava a maioria dos envolvidos, e também por falta<br />

de grana, que foi um outro problema sério, mais para frente<br />

eu conto.<br />

Quanto mais a gente se reunia, mais gente chegava, e alguns<br />

que chegavam queriam mudar o que já estava decidido. Uns<br />

faltavam nas reuniões e depois queriam saber por que isso ou<br />

aquilo tinha sido decidido. Enquanto o tempo passava, a convivência<br />

entre alguns já estava abalada.<br />

Nós da <strong>Cooperifa</strong>, que éramos os curadores do projeto, sabíamos<br />

que não ia ser fácil reunir vários grupos, mas também<br />

sabíamos que era necessário esse tipo de reunião. Teríamos<br />

que sobreviver às diferenças em prol de um objetivo maior que<br />

era a Semana. Particularmente nunca gostei de reunião. Tem


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

239<br />

gente que se reúne até para decidir quando vai ser a reunião. Na<br />

<strong>Cooperifa</strong> a gente põe fogo, depois vê como apaga. Mas...<br />

Ficou acertado que a Semana começaria num domingo, 04 de<br />

novembro, com uma grande caminhada cultural que começaria<br />

na ponte do Socorro – ponte que separa a gente dos bairros<br />

mais centrais –, e viria pela estrada do M’Boi Mirim, que é uma<br />

avenida importante para os bairros da região da Zona Sul, e que<br />

é uma espécie de avenida Paulista para nós.<br />

A Polícia Militar e o DSV não autorizaram a caminhada, por isso<br />

viemos pela calçada, pelo menos no começo; depois invadimos<br />

uma pista pacificamente e caminhamos nós, centenas de pessoas,<br />

até a Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim.<br />

Conforme o combinado, a Semana iria começar com as artes<br />

plásticas no Sacolão das Artes no Parque Santo Antônio. A<br />

dança ficou para a terça-feira no CÉU Campo Limpo. Na quarta-feira,<br />

a literatura aconteceu no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Antes, à<br />

tarde, teve um debate na Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim.<br />

O cinema aconteceu na quinta-feira no CÉU Casablanca, na<br />

vila das Belezas. Sexta-feira o teatro tomou conta no Centro<br />

Cultural Monte Azul. Sábado a música voltou novamente ao<br />

palco da Casa de Cultura M’Boi Mirim. E como ninguém é de<br />

ferro, no domingo encerramos com um enorme churrasco com<br />

os participantes no bar do Zé Batidão.<br />

Contando assim até parece que não teve emoção nenhuma, né<br />

não? Mas após algumas páginas eu vou contar como foi cada<br />

dia da semana.<br />

Com as datas e locais na mão, as reuniões deixaram de ser centrais<br />

e enormes e passaram a ser por artes, o que facilitou e<br />

muito a nossa vida. Por exemplo: em uma mesa ficavam os grupos<br />

de teatro e na outra os grupos de música, e assim sucessivamente.<br />

E cada mesa elegia um coordenador e ele é quem<br />

levava as dúvidas e decisões para a mesa administrativa. Sim,<br />

tinha uma mesa para administrar os pepinos.


240 <strong>Cooperifa</strong><br />

A gente queria tudo, mas na tinha nada.<br />

Quase tudo decidido, a gente só tinha uma dúvida: onde iríamos<br />

arrumar dinheiro para o nosso sonho? Pois é, essa era a função<br />

da administração, de onde eu fazia parte. A <strong>Cooperifa</strong> só tinha<br />

R$3.550,00 em caixa de um evento que nós tínhamos feito na<br />

cidade de Dois Córregos, e um pouco das camisetas promocionais<br />

da semana. Diz o ditado que quem tem amigos não morre<br />

pagão. O ditado não nos deixou na mão, nem os amigos.<br />

O Eleilson da Ação Educativa foi um cara muito importante<br />

nesse processo. Ele conseguiu os papéis da divulgação do<br />

evento na Ação Educativa, o apoio da Global Editora “Literatura<br />

Periférica”, e da Maxprint. Eu fui conversar com o pessoal do<br />

SESC Santo Amaro, através do meu amigo Marco, que também<br />

deu uma força legal. O Gil Marçal conseguiu o apoio da AASAOC,<br />

e o Itaú Cultural nos ajudou com som e iluminação, o que adiantou<br />

e muito o processo de produção.<br />

Aliás, quando eu pedi o som para o Itaú Cultural, acabei conhecendo<br />

pessoalmente a Heloisa Buarque, e é por isso que estou<br />

escrevendo este livro. Estava participando, eu, Rose e Cocão,<br />

no Rio de Janeiro, do seminário ONDA CIDADÃ, a convite do<br />

Claudiney Ferreira, quando encontrei o Eduardo Saron e falei<br />

para ele sobre a Semana. Agradecimentos especiais ao Natale<br />

e ao Nuno. Também especiais são os agradecimentos a DGT<br />

Filmes e ao Coletivo Epidemia.<br />

O dinheiro deu em cima e foi o suficiente. Não houve loucuras.<br />

Foi suficiente e ainda sobrou dinheiro para patrocinar uma<br />

revista da Semana de Artes, produzida pelo Gunnar, e editar a<br />

2ª Antologia Poética do Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, que será publicada<br />

em junho/2008.<br />

A Semana de Arte Moderna da Periferia contou com a participação<br />

de centenas de artistas e foi assistida por milhares de<br />

pessoas, tanto do centro como do subúrbio. Foi pensada e produzida<br />

pelo povo simples, por artistas marginalizados pela falta


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

241


242 <strong>Cooperifa</strong>


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

243


244 <strong>Cooperifa</strong>


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

245<br />

de espaço para a produção cultural; uma semana inteira de atividades<br />

que se realizaram de baixo para cima, como profetizou<br />

o geógrafo Milton Santos. Uma semana que mobilizou várias<br />

comunidades. Gente que sequer tinha ido ao teatro ou assistido<br />

um espetáculo de dança teve esta oportunidade, sem que tivesse<br />

sido abençoado pela mão do governo. Arte de graça, dada pelo<br />

próprio povo, em troca de luz, do brilho da auto-estima.<br />

Talvez por isso, por ter sido um evento demasiadamente periférico,<br />

é que muita gente não pôde assistir o que aconteceu nesses<br />

dias. Umas não viram por conta do velho e mau preconceito<br />

arraigado na alma de uma burguesia racista e violenta que se<br />

apoderou da alma paulistana.<br />

Sabe por que afirmo isso? Porque a Semana não nos foi imposta<br />

pelo governo. Porque ela obedecia apenas a uma linguagem,<br />

a nossa. Porque esse macro-evento aconteceu durante uma<br />

semana inteira em vários bairros da periferia, e as TVs, a não ser<br />

que sejam balas perdidas, não têm o menor interesse no que<br />

acontece de interessante na periferia.<br />

Os jornais e revistas de grande circulação também ignoraram a<br />

nossa Semana (saiu só no Le Monde Brasil), e se não fosse pelas<br />

revistas e jornais, fanzines, pixações, sites e blogs comprometidos<br />

com a notícia, sequer poderíamos provar que estamos<br />

falando a verdade. Sequer poderíamos provar que um dia nós<br />

tivemos a nossa Primavera de Praga.<br />

Para não ser injusto, a revista Época, através da jornalista<br />

e escritora Eliane Brum, fez uma excelente matéria sobre a<br />

Semana, e o que estava preparando. Foram sete páginas sobre<br />

o lado interessante da periferia. A periferia não-exótica. Aquela<br />

que enfia o dedo na cara e chama pra briga. Aquela que muita<br />

gente não quer ver. Por tabela, Eliane também falou sobre o<br />

movimento literário da periferia.<br />

O Jornal do Brasil de fato acabou virando nosso porta-voz;<br />

o Danilo conseguia espaços generosos para a divulgação


246 <strong>Cooperifa</strong><br />

do evento, e acabou que o jornal virou grande parceiro da<br />

<strong>Cooperifa</strong>. A revista Caros amigos, que sempre foi parceira nas<br />

nossas empreitadas, também divulgou legal. A revista do Brasil,<br />

a revista do MST, a agenda cultural da periferia, o Agora SP, a<br />

revista Raiz, o jornal SP Imprensa, o Jornal do Bairro, o Jornal<br />

da Tarde, o Guia da Folha, os sites Bocada forte, Real Hip Hop,<br />

Rap Nacional, o Taboanense, entre tantos outros que agora me<br />

fogem da memória, também foram de suma importância para o<br />

sucesso da Semana de Arte Moderna da Periferia.<br />

Se a gente perdeu em quantidade, ganhou em qualidade. O que<br />

a gente queria mesmo era que o Brasil inteiro soubesse o que a<br />

gente estava fazendo, para que o Brasil inteiro também fizesse<br />

o que a gente estava fazendo. Sacou?<br />

A Semana só foi possível porque várias pessoas se empenharam<br />

e deixaram de lado as diferenças artísticas e pessoais. Não<br />

seria possível sem a força do Jair Guilherme, Ademir da Brava<br />

Companhia, Mário Bibiano, Roberto QT, Jairo, Ricarda, Márcio<br />

Batista, Arákúrin, Euller Alves, Wagner Felipe, Cocão, Anabela, Gil<br />

Marçal, Mavotsirc, Lu Souza, Robson Canto, Rose Dorea, Tadeu<br />

Lopes, Casulo, Lerói, Anderson, Vicente, Sales, Gunnar, Preto Will,<br />

Juliana, Pixote, Daniel, Peu, Bárbara e Lilá, e mais alguns nomes<br />

que estou esquecendo, o que vai me trazer alguns problemas.<br />

Leia o manifesto que escrevi para a Semana, inspirado no manifesto<br />

de Oswald e nas idéias da <strong>Cooperifa</strong>. E também um texto<br />

que foi publicado no jornal Brasil de fato, que era uma explicação<br />

do por que da gente realizar uma Semana de Artes na periferia:<br />

Manifesto da Antropofagia Periférica<br />

A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas<br />

há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que<br />

surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o<br />

passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

247<br />

A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade<br />

para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de<br />

violinos, só depois da aula. Contra a arte patrocinada pelos que<br />

corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para<br />

destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da<br />

múltipla escolha.<br />

A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.<br />

A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não<br />

quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.<br />

Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que<br />

transmite ilusão.<br />

Das Artes Plásticas, que, de concreto, querem substituir os barracos<br />

de madeira.<br />

Da Dança que desafoga no lago dos cisnes. Da Música que não<br />

embala os adormecidos.<br />

Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.<br />

A Periferia unida, no centro de todas as coisas.<br />

Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais<br />

a arte vigente não fala.<br />

Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.<br />

É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão.<br />

Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não<br />

compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido<br />

de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do<br />

país. Que, armado da verdade, por si só exercita a revolução.<br />

Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza<br />

no colo da poltrona.<br />

Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus,<br />

teatros e espaços para o acesso à produção cultural.<br />

Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.


248 <strong>Cooperifa</strong>


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

249


250 <strong>Cooperifa</strong><br />

Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra<br />

eles? “Me ame pra nós!”.<br />

Contra os carrascos e as vítimas do sistema.<br />

Contra os covardes e eruditos de aquário.<br />

Contra o artista serviçal escravo da vaidade.<br />

Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.<br />

A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.<br />

Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.<br />

É TUDO NOSSO!<br />

Periferia moderna – por Sérgio <strong>Vaz</strong> 1<br />

A periferia, apesar da dura realidade e abandono dos governantes<br />

em geral, está dominada pela poesia. Prova disso são os saraus<br />

que não param de acontecer nas quebradas de São Paulo. E por<br />

conta dessa poesia e dessa literatura que se alastra pelas ruas,<br />

as pessoas mais simples têm se interessado um pouco mais em<br />

ter uma vida cultural.<br />

Um clássico exemplo é o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, que na ausência<br />

de teatros, bibliotecas, livrarias, cinemas, museus e raríssimos<br />

espaços para acesso à cultura, transformou um boteco na periferia<br />

da maior cidade do Brasil em Centro Cultural.<br />

No bar, há seis anos, todas as quartas-feiras, uma média de duzentas<br />

pessoas com picos de até quatrocentas – reúnem-se para ouvir<br />

e falar poesia. O sarau é freqüentado por toda a comunidade, e gente<br />

de várias quebradas, inclusive do Centro. Os saraus que acontecem<br />

na periferia têm se transformado num grande Quilombo cultural.<br />

Muitos até os denominam de o movimento dos sem-palco.<br />

O Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, por exemplo, é freqüentado por poetas,<br />

motoristas de táxis, donas-de-casa, desempregados, professores,<br />

crianças, jovens, adultos, idosos, jornalistas, mecânicos de auto,<br />

motoboys, advogados, estudantes etc., e muitos deles tinham apenas<br />

a televisão como referência cultural. E boa parte dessa gente<br />

1 Do jornal Brasil de fato.


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

251<br />

que nunca havia tocado num livro ou sequer ouvido uma poesia foi<br />

seduzida ali, na porta do bar, pela literatura. Não é de embriagar?<br />

E o que é melhor é que boa parte deste povo lindo e inteligente,<br />

hoje, já estão segurando seus próprios livros editados nas mãos.<br />

A maioria tem seus escritos registrados em CDs e antologias que<br />

se alastram pelos becos e vielas da grande metrópole paulistana.<br />

Sem contar que através da oralidade muita gente tem se tornado<br />

grandes intérpretes de poesias de autores consagrados.<br />

O livro, sempre tratado como pão do privilégio, chegou na periferia<br />

através da palavra. Literalmente no boca-a-boca.<br />

Lógico que não se trata de uma literatura melhor que a produzida<br />

pela academia; também não é menos importante como sugerem<br />

alguns. Muitos dos intelectuais nos acusam de assassinar a gramática<br />

e seqüestrar a crase, por isso é comum ver jovens poetas<br />

e escritores sendo enquadrados pelas canetas nervosas dos acadêmicos<br />

como suspeitos de abusarem da palavra alheia.<br />

Mas esconder e negar a educação por quinhentos anos também<br />

não é crime?<br />

Menos vírgulas, mais acento, mas ainda assim literatura. O mais<br />

difícil foi acordar. Aprender é um verbo que se conjuga em grupo.<br />

Falando em aprendizado, nesses seis anos de atividades do<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong> mais de trinta autores lançaram seus livros lá.<br />

Boa parte deles criados ali mesmo, no solo duro do bar. Grupo de<br />

teatro com a Brava Companhia, Ação e Arte, Cavalo de Pau, Irmãos<br />

Carozzi, entre outros, encenaram, ali, no chão duro, as suas peças.<br />

Pessoas com mais de 50 anos que nunca haviam ido a um teatro<br />

assistiram ali, tomando rabo-de-galo, à sua primeira peça.<br />

Vários documentários produzidos por jovens da região e de cineastas<br />

consagrados são freqüentemente exibidos ali também.<br />

Exposição de fotos, artes plásticas, lançamento de discos e DVDs,<br />

tudo que é e está sendo produzido pela periferia está sendo também<br />

consumido por ela.<br />

Hoje em dia na periferia de São Paulo, por onde quer que você<br />

olhe tem alguma coisa acontecendo, e para todos os gostos:<br />

Panelafro na Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim, Cine Becos e


252 <strong>Cooperifa</strong><br />

vielas, Sarau do Binho, Sarau Elo da Corrente, Sarau RAP, Favela<br />

toma conta no Itaim Paulista, Quilombagem, Samba da vela,<br />

Samba da Hora, Poesia das ruas, Saraus nas escolas, Bibliotecas<br />

nas favelas, 1 da sul, saraus nos acampamentos do MST, o rap, o<br />

reggae etc. A gente no centro de tudo e nem se dava conta disso.<br />

Estamos vivendo a nossa Primavera de Praga.<br />

Baseado neste momento de luz, a <strong>Cooperifa</strong> e um grupo de artistas<br />

propõe, 85 anos depois, uma nova Semana de Artes, só que<br />

agora oriunda da periferia. Uma nova história escrita e contada<br />

por quem realmente vive por ela e para ela. Uma nova versão<br />

daquela Semana, contada não de fora para dentro, mas de dentro<br />

para fora. Construída com as mesmas mãos calejadas que construíram<br />

a cidade de São Paulo.<br />

Uma Semana cultural criada e produzida com o mesmo suor<br />

desse povo que tanto luta por um Brasil melhor.<br />

A idéia da Semana não é somente propor um outro tipo de linguagem,<br />

mas também um outro tipo de artista. Um artista mais<br />

humano e solidário e uma arte que preze pela estética, mas que<br />

também ofereça conteúdo.<br />

Um artista formado pelo caráter da sua obra, não forjado em<br />

pranchetas de publicitários, onde a mesma música lançada nas<br />

rádios pela manhã é a que vende xampu, carro, miojo e cerveja no<br />

final da tarde. E de quebra, jingle para campanhas políticas.<br />

A <strong>Cooperifa</strong>, ao produzir a Semana, deseja estimular o interesse<br />

pela leitura, a criação poética, o gosto pelo teatro, cinema, e<br />

aliar-se à escola e à universidade para que a cultura seja um elemento<br />

primordial para a construção de seres humanos melhores<br />

e mais conscientes.<br />

Moderno por aqui tem sido ousar e encarar novos desafios:<br />

o medo ficou no período Barroco.<br />

Veja aqui como foi a programação e logo depois eu conto como<br />

foi cada dia da Semana.


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

253<br />

Semana de Arte Moderna da Periferia<br />

programação:<br />

DOMINGO: 04/11 – CAMINHADA CULTURAL<br />

Trajeto entre o Largo do Socorro e Casa de Cultura M’Boi Mirim<br />

(Largo de Piraporinha)<br />

SEGUNDA: 05/11 – ARTES PLÁSTICAS<br />

11h Oficinas de artes plásticas<br />

19h Exposição coletiva com artistas da periferia.<br />

Expositores: Ricardo Akemi, Boicote, Ganu, Jair Guilherme Filho,<br />

Marcus Vinicius, Michel Onguer. A trajetória vivida na periferia.<br />

Local: Sacolão das Artes – Parque Santo Antonio<br />

TERÇA:<br />

14h<br />

14h30<br />

15h30<br />

18h<br />

18h30<br />

19h30<br />

20h00<br />

20h30<br />

Local:<br />

06/11 – DANÇA<br />

Mostra de vídeo<br />

Palestra /debate<br />

Workshop /danças-intervenções poéticas<br />

Marana capoeira – roda de capoeira: angola/regional.<br />

Flor de Lis (grupo da melhor idade) coreografia: dança indígena<br />

Projeto Diversidança coreografia: danças da peneira (flor de lis)<br />

Cia. Sansacroma (afro contemporâneo)<br />

Espírito de Zumbi (afro brasileiro)<br />

CEU Campo Limpo<br />

QUARTA: 07/11 – LITERATURA<br />

17h DEBATE: “A produção literária na periferia”,<br />

Debatedores: Alessandro Buzo – Sacolinha, Elizandra Souza –<br />

Antonio Eleilson. Mediação: Sérgio <strong>Vaz</strong><br />

Local: Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim – Piraporinha<br />

20h SARAU DA COOPERIFA<br />

Local: BAR DO ZÉ BATIDÃO – Chácara Santana<br />

QUINTA: 08/11 – CINEMA<br />

16h Dança das Cabaças – Exu no Brasil - 54´<br />

17h15 Poeira - 5 ‘O Último da Fila - 10’ A Viagem<br />

12’Paralelo: Espasmos de Realidade - 16’<br />

18h15 Defina-se - 4’Nhanhoma Paulista - 2’Cosmolho - 3’<br />

19h15 Onomatomania - 2’2 Meses e 23 Minutos


254 <strong>Cooperifa</strong><br />

20h30<br />

19h<br />

Local:<br />

23’ Panorama: Arte na Periferia - 50´<br />

Conversa entre convidados e público<br />

Exibição de vídeos no Terminal Capelinha<br />

CEU Casablanca – Vila das Belezas<br />

SEXTA:<br />

8h30<br />

11h<br />

14h<br />

16h<br />

17h30<br />

18h<br />

19h30<br />

Local:<br />

09/11 – TEATRO<br />

Café da manhã e colóquio com coletivos teatrais<br />

Band’doido apresenta “... Não é contar piada!”.<br />

Cia. Diarte Teatral apresenta “Fragmentos de um poeta”<br />

UMOJA apresenta demonstração de processo do<br />

espetáculo “Quem me pariu?”<br />

Capulanas apresenta performance “Negra Poesia”<br />

Ação e Arte apresenta performance com trecho d<br />

seu novo espetáculo “X”<br />

Brava Companhia apresenta “A BRAVA”<br />

Centro Cultural Monte Azul – Jardim Monte Azul<br />

SÁBADO: 10/11 – MÚSICA<br />

16h Show com os grupos Trio Porão<br />

16h45 Chapinha do Samba da Vela e Pagode da 27<br />

17h30 Wesley Noóg<br />

18h10 B Valente<br />

18h55 Os Mamelucos<br />

19h50 Banda A<br />

20h40 Periafricania<br />

21h35 Preto Soul<br />

11h05 Versão Popular<br />

Local: Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim – Piraporinha


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

255


A Semana<br />

A abertura da Semana de Arte Moderna da Periferia aconteceu<br />

em grande estilo. As irmãs Lila e Bárbara fizeram a leitura do<br />

manifesto, e daí por diante o público pôde saborear o melhor<br />

das artes plásticas e grafites que são produzidos na periferia.<br />

O Jair e Mario Bibiano fizeram um trabalho de dar inveja a qualquer<br />

exposição internacional; ficou simplesmente lindo. Várias<br />

obras e painéis foram expostos para o deleite dos convidados.<br />

As bicicletas penduradas no teto davam o clima de que a gente<br />

estava pedalando rumo ao futuro.<br />

Todo mundo ficou abismado com a beleza do Sacolão transformado<br />

em galeria de arte pelos artistas da comunidade.<br />

Lembrei-me do Paulo Magrão que quando me viu disse: “Carái,<br />

estou todo arrepiado com a beleza do evento”, mostrando o<br />

braço com os pêlos eriçados. A emoção tomou conta de todos.<br />

As crianças, sempre elas, fizeram a festa nas oficinas.<br />

O Alan Leão fez um mosaico com o logotipo da Semana todo em<br />

pedrinhas de azulejo que durou dez horas para produzi-lo, por<br />

ele e uma dúzia de garotos.<br />

A imprensa grande não veio por conta do avião, perdemos espaço<br />

para a desgraça novamente; em compensação não faltou os<br />

nossos parceiros de jornais locais, blogs, sites, rádio, revistas<br />

etc. E amigos e mais amigos, gente e mais gente, irmãos e irmãs<br />

de tudo quanto é lado. Festa linda!<br />

256


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

257


258 <strong>Cooperifa</strong>


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

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Semana de arte moderna da periferia<br />

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262 <strong>Cooperifa</strong>


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

263<br />

Para quem não veio, ainda há chance de saber como foi, quando<br />

sair nas enciclopédias no futuro, ou nos livros escolares. Quem<br />

foi uma das centenas ou milhares de pessoas de pessoas que<br />

testemunharam esse maravilhoso encontro da arte com a periferia<br />

diz que parecia o Louvre da França, ou qualquer galeria de<br />

Milão na Itália, mesmo sem nunca ter pisado o pé no exterior.<br />

Ué, não dizem que a arte é uma viagem?<br />

Terça-feira – Dança<br />

O Mestre Arákúrin comandou a noite da dança com os grupos<br />

Espíritos de Zumbi, Flor de lis, Diversidança e Cia. Sacrossanta.<br />

Foi simplesmente maravilhoso!<br />

Teve gente que chorou diante de tanta beleza e dedicação dos<br />

bailarinos da periferia, pergunte ao Jairo e ao Buzo que choraram<br />

no dia. Sim, foi de chorar, mas de alegria, de esperança pela<br />

nossa molecada cheia de talento, vencendo os preconceitos e<br />

as velhas dificuldades.<br />

O CÉU parecia o Céu, se é que ele existe, e se é que você me<br />

entende.<br />

A Semana realmente estava sendo grande: cheia de arte!<br />

E tudo feito por nós, para nós; quem é que é o fraco agora,<br />

hein?<br />

Moral da história: quer queiram ou não, o lago dos cisnes estava<br />

cheio de patinho feio aprendendo a nadar, e se jogassem óleo na<br />

água, a gente afogava o ganso.


264 <strong>Cooperifa</strong><br />

Quarta-feira – Literatura (600 pessoas no Sarau da <strong>Cooperifa</strong>)<br />

A periferia de São Paulo parou para acompanhar o dia da literatura<br />

na nossa Semana de Arte, gente de todas as quebradas, de<br />

todos os estados e até de outros países ..<br />

À tarde o auditório da Casa de Cultura M’Boi Mirim ficou lotado<br />

para acompanhar o debate sobre “Produção literária na periferia”,<br />

com os convidados Sacolinha, Alessandro Buzo, Eleilson<br />

Leite, Elizandra e eu na mediação.<br />

O debate foi muito rico e importante, quase duas horas falando<br />

e discutindo sobre a nossa literatura e sobre a nossa produção.<br />

O público bombardeou os convidados com inúmeras perguntas<br />

interessantes, foi bem louco!<br />

Só de imaginar que o debate foi promovido por nós, apresentado<br />

por nós e consumido também por nós, já foi um grande resultado.<br />

Todo mundo pirou. Estamos aprendendo a fazer! Estamos<br />

aprendendo a fazer!<br />

A palavra de ordem era união, o tempo inteiro as pessoas falavam<br />

em união. Meu, que coisa maravilhosa! Nunca achei que este dia<br />

chegaria, a gente fazendo e escrevendo a nossa história.<br />

Perguntem a quem foi, a casa estava cheia, em plena tarde de<br />

quarta-feira, para ouvir o que os representantes da literatura<br />

periférica tinham a falar, sem falar que boa parte da platéia era<br />

de poetas e escritores que, por diversas vezes, inverteram a<br />

mesa do debate.<br />

Bom, se estava bom ficou melhor: faltando dez minutos para<br />

as 20:00h saímos todos correndo pro bar do Zé Batidão para<br />

participar do Sarau da <strong>Cooperifa</strong> Especial. A noite mágica só<br />

estava começando. Ao chegar, todos fomos surpreendidos pela<br />

decoração do local, tente imaginar: os livros desciam pelo teto<br />

em linhas invisíveis até as mesas, pipas de pano flutuavam pelo<br />

ambiente, garrafas com poesias dos poetas foram decoradas<br />

e distribuídas nas mesas, cartazes com poemas forraram as<br />

paredes e o logotipo da Semana foi projetado no teto do bar,


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

265<br />

coisa do nosso mundo!Parabéns às meninas e rapazes: Lila,<br />

Bárbara, Fernanda, Cocão, Rose, Augusto, Márcio, prof. Lu, entre<br />

outros que não me lembro agora, perdão. Quem chegava já era<br />

recebido por este ambiente colorido e aconchegante que é o<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Abraços e mais abraços.<br />

O Sarau começou com uma apresentação do Grupo Espírito de<br />

Zumbi na praça em frente ao bar, que foi tomada por uma multidão<br />

que não conseguiu entrar. Nesse dia, só do lado de fora<br />

tinha mais de trezentas pessoas – eu disse do lado de fora. Do<br />

lado de dentro mais umas trezentas pessoas, catarse total.<br />

Daí por diante não tenho palavras para expressar o que realmente<br />

aconteceu, tamanha beleza e profundidade. Só para se<br />

ter uma idéia, o Sales leu sua poesia “Evolucionário” em espanhol.<br />

O Alan da Rosa leu sua poesia tocando berimbau, o Márcio<br />

Batista fez uma leitura coletiva dos seus poemas, Mavot e Lu<br />

fizeram uma apresentação cinematográfica, eu lancei meu<br />

clipe poético, e por aí a noite seguiu distribuindo sonhos de uma<br />

periferia melhor.<br />

Pergunte a quem foi, pergunte às pessoas privilegiadas que estiveram<br />

no exato momento que a história estava sendo escrita. O<br />

Sarau acabou quase meia-noite, e para terminar ganhamos um<br />

presente do Alan Leão, um mosaico com pedrinhas de azulejo<br />

formando o logo da <strong>Cooperifa</strong>, da hora. Dizem que tem gente lá<br />

até agora.<br />

Depois desta noite a poesia e a literatura da periferia nunca<br />

mais serão as mesmas, como eu disse anteriormente: “estamos<br />

aprendendo a fazer!”.<br />

Quinta-feira – Cinema<br />

O cinema foi o grande tema da Semana de Arte Moderna da<br />

Periferia, e para variar a rapaziada preparou um coleção de filmes<br />

periféricos de arrasar. Ao velho e bom estilo Glauber Rocha, “uma


266 <strong>Cooperifa</strong><br />

câmera na mão e uma idéia na cabeça”, os nossos cineastas prepararam<br />

um seleção magnífíca de filmes e documentários.<br />

Como é bom a gente se ver na telona, como a gente gosta de<br />

ser visto!<br />

O cinema talvez seja a arte mais cara e distante para nós. Por<br />

isso que é muito difícil ver filmes que retratem o povo brasileiro<br />

sem os estereótipos tão presentes nas telonas. Mas também<br />

é uma arte que cresce assustadoramente. Mais e mais jovens<br />

estão empunhando câmeras nas mãos e contando histórias da<br />

nossa gente, como elas realmente são.<br />

Sexta-feira – Teatro<br />

Na sexta-feira foi o dia do teatro na Semana de Arte Moderna<br />

da Periferia, foi simplesmente maravilhoso. O Centro Cultural<br />

Monte Azul abrigou centenas de pessoas durante o dia inteiro<br />

para presenciar a cena teatral da periferia, e quem foi não se<br />

arrependeu, foi do caralho! Foi lindo! Foi evolução total!<br />

Para se ter uma idéia, as apresentações começaram às 8:00h<br />

da manhã com um café-debate com os artistas envolvidos na<br />

Semana... e durante o dia inteiro o que se viu foi o talento da<br />

nossa juventude; atores e atrizes desfilarem seus talentos nos<br />

palcos da periferia.<br />

Cada peça mais louca que a outra, mais interessante, mais profunda.<br />

Nossas raízes representadas da forma fecunda possível.<br />

Estou com inveja da gente também. A Semana foi uma das<br />

maiores experiências das nossas vidas e o teatro também faz<br />

parte do nosso dia a dia. E que venham novos palcos!<br />

“Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor...”.<br />

Tinha tudo para dar errado, mas deu certo, não posso fazer nada.


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

267<br />

Sábado –Encerramento – Música<br />

A Semana de Arte Moderna da Periferia, contra a nossa vontade,<br />

teve encerramento no sábado com um dos melhores<br />

shows musicais que São Paulo já curtiu. Simplesmente um dos<br />

melhores que eu já fui, e olha que já fui a bastantes. Só para se<br />

ter uma idéia, o som foi de primeiríssima qualidade, todos os<br />

grupos elogiaram.<br />

Outra coisa que contribuiu para o brilho do evento foi o profissionalismo<br />

dos grupos, nenhum deles se atrasou, nenhum.<br />

Começou no horário previsto e acabou no horário combinado.<br />

A vaidade não imperou.<br />

A seleção dos grupos também foi muito importante, pois vários<br />

ritmos foram se revezando num mega palco da Casa de M’boi<br />

Mirim: rap, samba, rock e MPB, teve para todos os gostos e todas<br />

as pessoas da comunidade foram contempladas. O palco tinha<br />

uma decoração louca também: telão, as bikes do Magrela’s,<br />

mosaicos, a faixa da <strong>Cooperifa</strong>, sem contar que São Pedro tomou<br />

olé de São Jorge, e não caiu uma gota de água sequer.<br />

Os músicos envolvidos preparam uma música coletiva, no<br />

estilo “ We are the World”, lembram? Putz, a porra da música<br />

ficou impregnada nos nossos ouvidos: “...Lá ....lálálá ....lá...”, foi<br />

demais! Ninguém parava de cantar.<br />

No final, todos que estiveram envolvidos nestes três meses de<br />

produção da Semana, subiram ao palco para cantar e extravasar<br />

a alegria de ver e curtir um dos maiores eventos de São Paulo, a<br />

Semana de Arte Moderna da Periferia.<br />

Muita gente chorou de emoção, o público ficou hipnotizado<br />

do começo ao fim. E para terminar em grande estilo, todos<br />

numa só voz, gritaram: UH, COOPERIFA! UH, COOPERIFA! UH,<br />

COOPERIFA!<br />

Não posso fazer nada, o evento foi um sucesso! Também, mais<br />

de trinta grupos envolvidos, quase trezentos artistas na programação,<br />

você quer o quê? Não tinha como dar errado, a gente


268 <strong>Cooperifa</strong><br />

estava super-unido, centrado, cheio de garra e afim de dar o<br />

nosso melhor para o povo da periferia.<br />

Sim, eu disse dar, não tirar.<br />

Desculpaí pelos que torceram contra, a vontade de dar certo<br />

foi muito maior. Aos que nos amam, sintam-se abraçados.<br />

Aos demais, sintam-se abraçados também, não chutamos<br />

cachorro morto. “Por uma periferia que nos une pelo amor,<br />

pela cor e pela dor”. Aos Quixotes que lutaram contra os moinhos<br />

de ventos, nunca esqueçam: “A Arte que liberta não vem<br />

da mão que escraviza”.<br />

Em 2008 tem mais.


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

269<br />

Depoi<br />

mentos


270 <strong>Cooperifa</strong><br />

Ninguém entra no boteco do Zé Batidão impunemente. Sai de lá<br />

transformado pelo que viveu – ou melhor, sai de lá transtornado.<br />

O que acontece no boteco do Zé Batidão toda quarta-feira muda<br />

cada um de nós – e muda o Brasil. Centenas de pessoas, identificadas<br />

por algo que vai muito além de uma referência geográfica,<br />

a periferia, reunidas depois de um dia de trabalho duro para ouvir<br />

e fazer poesia. Simples assim: e uma revolução sem um tiro.<br />

Não é sempre que a gente testemunha a história em curso, percebe<br />

o instante exato em que o mundo balança. A <strong>Cooperifa</strong> é<br />

isso, um abalo sísmico a partir de uma esquina de quebrada,<br />

enquanto os carros passam velozes pelo asfalto, lá no outro lado<br />

do rio, indo e vindo do mesmo lugar. Mas com uma pressa...<br />

Na <strong>Cooperifa</strong>, toda quarta-feira, o tempo pára. E quando a<br />

gente vê, meio no susto, já passam das 23:00h. Quando alguém<br />

pega o microfone para declamar uma poesia que escreveu, é<br />

seu destino que recria, é seu lugar no mundo que reinventa.<br />

Quando "o povo lindo, o povo inteligente" da periferia se apropria<br />

das palavras, é da História que passa a tomar conta.<br />

Naquele palco sem degrau, cada um bagunça a ordem das coisas<br />

– e bagunça com um instrumento que por 500 anos anos<br />

foi privilégio da elite do país. Bagunça pela palavra escrita.<br />

A ponto de a periferia virar centro sem deixar de ser periferia.<br />

E quem diria, depois de tanta bala perdida, que seria pela<br />

poesia que a ordem das coisas seria ferida de morte?<br />

Pela primeira vez, há uma geração de escritores identificados<br />

pela origem periférica no Brasil e que se definem como "peri<br />

féricos". Parte deles começou a escrever na <strong>Cooperifa</strong>, lançou<br />

seu primeiro livro no boteco do Zé Batidão. A <strong>Cooperifa</strong> escre<br />

veu/ escreve vários capítulos dessa história. Inspirou dezenas<br />

de saraus de poesia Brasil afora, sua pipa no céu virou farol.<br />

Mas a <strong>Cooperifa</strong> é isso e é mais. É um espaço para todos, sem<br />

hierarquias nem julgamentos. Pega o microfone quem tiver<br />

algo a dizer.


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

271<br />

E o que deixou de dizer será uma falta no mundo. Ao garantir<br />

um lugar no microfone, a <strong>Cooperifa</strong> desmente os que tentam<br />

nos fazer acreditar todo dia, que somos substituíveis, descartáveis,<br />

comuns. A cada quarta-feira, no boteco do Zé Batidão,<br />

é reeditada a garantia de que cada um é insubstituível, único,<br />

extraordinário. Lá dentro há palmas de verdade, do tipo que<br />

deixa as mãos ruborizadas, há assobios entusiasmados, mas<br />

nenhuma vaia. Não há cochichos ridicularizando um e outro,<br />

sussurros pelas costas. Lá há choro, há riso, mas não há exclusão.<br />

Por isso a <strong>Cooperifa</strong> é quente mesmo quando faz frio.<br />

E é por isso que na <strong>Cooperifa</strong> se fala da violência, da desigualdade,<br />

mas também se fala de amor. E ao falar de amor entre<br />

becos e vielas de concreto, esgoto escorrendo pelas rachaduras,<br />

a <strong>Cooperifa</strong> é ainda mais insubordinada. Porque ninguém<br />

esperava que periféricos escrevessem – e se tivessem<br />

essa ousadia, muitos apostariam apenas na dor. E assim um<br />

pedaço da vida continuaria exilada, roubada. Fora.<br />

Na <strong>Cooperifa</strong> não se censura a vida. Nem as palavras, os<br />

temas. Não se espera do poeta que faça apenas denúncias,<br />

dispare frases engajadas, lance versos encharcados de ideologia.<br />

Na <strong>Cooperifa</strong> há quem fale de dor de corno e de moça<br />

bonita. Há quem fale de corpos úmidos, de gozo, nudez e sexo.<br />

De saudade e de desencontro. E há quem fale de ódio, de rancor,<br />

de vingança. E há quem fale de tudo isso junto, porque a<br />

vida tem um pouco de tudo. E há quem pegue o microfone só<br />

para recitar Fernando Pessoa.<br />

Ao acolher todas as palavras, a <strong>Cooperifa</strong> garante, a cada quarta-feira,<br />

um lugar para todos os sonhadores. Simples assim. E<br />

abala as placas tectônicas do centro. Porque na <strong>Cooperifa</strong> o<br />

que cada um descobre quando entra tímido, meio desengonçado,<br />

se sentindo um tanto apartado das letras, é que pela<br />

palavra escrita – seja ela de amor, de gozo ou de fúria – "nóis é<br />

ponte e atravessa qualquer rio".<br />

Eliane Brum, jornalista


272 <strong>Cooperifa</strong><br />

Morada da poesia<br />

A poesia é o gênero literário que mais seduz corações e mentes<br />

nos becos e vielas. Não por acaso, o sarau ressurgiu nos<br />

últimos anos e tomou conta da periferia paulistana. Nesses<br />

encontros, os freqüentadores recitam poemas consagrados<br />

da literatura, mas o que mais se compartilha são versos de<br />

autoria daqueles que lá estão. O Sarau é espaço de formação<br />

de leitores e autores. Assim é o Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, o mais<br />

famoso da periferia paulistana e, para mim, o melhor de toda<br />

a metrópole.<br />

Ao serem anunciados, os poetas engrandecem. Microfone na<br />

mão, olhar atento, sentimento à flor-da-pele e a alma exposta<br />

diante de uma platéia sedenta por versos como os do poeta<br />

Márcio Batista:<br />

Quem me nega cultura, nego<br />

Não terá outra chance de nega<br />

Cultura é Quilombo pro Negro<br />

Ignorância é sua senzala.<br />

Realizado em um boteco, o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> é despojado de<br />

requintes. Mas os organizadores são muito rigorosos quanto<br />

aos rituais de pertencimento e ao acolhimento. Enganam-se<br />

aqueles que vêem esses encontros como algo furtivo e desprovido<br />

de regras . "O silêncio é uma prece", diz uma inscrição<br />

logo na entrada do bar do Zé Batidão. E a frase é anunciada<br />

com determinação pelos mestres de cerimônia.<br />

Falatório lá, só se for na rua, que acaba sendo uma extensão do<br />

bar, já que este sarau, o mais famoso da periferia paulistana,<br />

reúne, todas as quartas-feiras, mais de duzentas pessoas.<br />

Aquela gente humilde da qual falavam Vinicius de Moraes<br />

e Chico Buarque, tem no Sarau da <strong>Cooperifa</strong> seu momento<br />

de glória. Tem taxistas, estudantes, funileiros, escriturários,<br />

motoboys, professores, enfermeiros. Tem gente graduada<br />

também, mas que não perdeu a humildade e nem


Antropofagia periférica<br />

Semana de arte moderna da periferia<br />

273<br />

saiu da quebrada. Allan da Rosa é um desses. Terminou<br />

o ensino médio, sabe-se lá como. Fez cursinho no Núcleo<br />

de Consciência Negra e entrou na USP. Graduou-se em<br />

História e hoje faz mestrado em Educação. Quem primeiro<br />

leu seus versos foi seu pai, a quem o jovem poeta entregava<br />

seus escritos quando o visitava na cadeia. Allan, negro,<br />

esguio, ágil, abre Vão, seu livro de poesias e tira de lá uma de<br />

suas pérolas:<br />

Solitária<br />

A aranha tece<br />

Formando quadrantes geométricos<br />

Deixando seu rastro de seda<br />

Sua teia interessa apenas a si mesma<br />

Aos poucos que optaram se emaranhar<br />

E aos perdidos que não conseguem<br />

Se desprender de suas linhas<br />

No Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, a poesia encontra sua redenção.<br />

Acostumada a freqüentar os salões das elites, ela encontrou<br />

morada em um botequim da quebrada, onde se entrega sem<br />

pudor aos encantos de quem lhe declarar amor incondicional.<br />

E na <strong>Cooperifa</strong>, são muitos seus amantes. Neste sarau, a poesia<br />

penetra tão profundamente aqueles que a declamam que<br />

eles próprios se fazem poesia. Sérgio <strong>Vaz</strong>, criador e criatura do<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong> traduziu essa magia em um maravilhoso<br />

poema de três versos:<br />

Ser Poeta<br />

Não é escrever poemas,<br />

É ser poesia.<br />

Eleilson Leite, colunista do Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique,<br />

historiador, programador cultural, coordenador editorial da Agenda<br />

Cultural da Periferia


ifa<br />

Cap.12<br />

<strong>Cooperifa</strong>, Quilombo da poesia<br />

Quilo<br />

mbo


Quando a Heloisa pediu que eu contasse um pouco da minha<br />

história e da <strong>Cooperifa</strong>, no começo eu não estava muito afim,<br />

por conta da minha memória um tanto quanto irresponsável e<br />

mentirosa. Mas também não podia me furtar o direito de dividir<br />

com você essa história de luta em prol da cidadania através<br />

da literatura.<br />

Era muito mais fácil a gente ficar reclamando que na periferia<br />

não temos bibliotecas, cinemas, teatros, museus, espaço para<br />

produção cultural, livraria, leis de incentivo que nos incentivem,<br />

mas a gente decidiu ir à luta. Não que a gente não reclame,<br />

mas a gente quis lutar e reclamar ao mesmo tempo. E no único<br />

espaço público ao qual nós temos direito, o boteco.<br />

O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> já é inspiração para mais de quarenta<br />

saraus que acontecem nos botecos espalhados pelo Brasil. Na<br />

periferia de São Paulo a poesia já é uma realidade, o livro rola de<br />

mão em mão, e a palavra é a nossa arma contra a mediocridade,<br />

o preconceito e as injustiças desse país sem alvará de funcionamento,<br />

sem licença para ser pátria.<br />

A <strong>Cooperifa</strong> é um movimento que trabalha única e exclusivamente<br />

com o conhecimento. Enquanto eu escrevia esse livro, para se<br />

ter uma idéia, a gente já estava pensando na nossa 2ª Antologia<br />

Poética com quarenta autores da comunidade. Enquanto a gente<br />

estava fazendo a antologia, estávamos realizando o 2º Poesia<br />

no Ar, e enquanto a gente estava realizando o 2º Poesia no Ar, a<br />

gente estava pensando como seria o lançamento do nosso DVD,<br />

produzido pela DGT filmes. Enquanto eu escrevia o livro tudo isso<br />

276


<strong>Cooperifa</strong> – Quilombo de poesia<br />

277<br />

estava acontecendo ao mesmo tempo. Isso é a <strong>Cooperifa</strong>. Nós<br />

somos produto da irresponsabilidade. Da ousadia.<br />

O nosso sonho é ter a nossa casa, o “Espaço <strong>Cooperifa</strong>” ou a<br />

“Casa do aprender”, para que a gente possa dar vazão a planos<br />

maiores como a nossa própria biblioteca, um espaço para<br />

leitura, criação poética, debates, oficinas, um lugar não para<br />

tirar as pessoas da ruas, muito pelo contrário, um lugar onde as<br />

pessoas estejam preparadas para elas. Um lugar onde as pessoas<br />

aprendam definitivamente que a gente não quer mudar da<br />

periferia, e sim mudar a periferia. Como eu disse anteriormente,<br />

primeiro a gente põe fogo, depois nós vemos como apaga.<br />

E gente para colocar lenha na fogueira é o que não falta. A<br />

Rose (musa da <strong>Cooperifa</strong>), Lu Souza, Márcio Batista, Jairo<br />

(Periafricania), Sales (o Evolucionário), Zé Batidão, Cocão (Versão<br />

Popular), Preto Will (Versão), José Neto, Tadeu Lopes, Alan da<br />

Rosa, Valmir Vieira, João Santos, Casulo, Andréa, De Lourdes,<br />

Asduba, prof. Toninho, Walter, Augusto, Lobão, Mavotsirc, Ricarda,<br />

Vicente, Fuzzil, Seu Lourival, Robson Canto, Cláudio Laureart,<br />

Renato Vital, Bárbara e Lila, Toni C., Renata Dias, Daniela<br />

Mercedes, pessoal da Rua 7, Jair, Silvio Diogo, Timbó, Euller, Rose<br />

Eloy, Helber, Kennya, Roberto Ferreira, Wésley Noóg, Marcelo<br />

Ribeiro, Ricardo (perueiro), Dinho Love, Sônia, Seu Jorge Esteves,<br />

Dona Edite, Beso, Harumi, Mamba Negra, Magrela´s Bike, Régis<br />

Ação e Arte, DGT Filmes, Carlos Giannazi, Gaspar Záfrica Brasil,<br />

B Valente, Brava Companhia Akins Kinte, Elizandra, Maria Tereza,<br />

GOG, Juliana, Fernanda, Fábio, Zé Pompeu, PH Boné, entre tantos<br />

outros que somam com a gente, e que estão sempre a postos<br />

para incendiar o futuro.<br />

Foi assim que a <strong>Cooperifa</strong> se transformou nesse quilombo poético,<br />

que abriga guerreiros e guerreiras que estão sempre em<br />

busca do conhecimento. Que venham novos desafios!<br />

É tudo nosso!<br />

Com um sorriso no rosto e os punhos cerrados.


Imagens:<br />

índice e créditos<br />

P.18 Do tempo em que a vida era a poesia.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.20-21 Campo dos sonhos (E. C. Aliados).<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.23 Dona Maria Vieira, mãe do autor e o próprio quando trabalhava<br />

como vendedor de vídeo-games. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.27 Por dentro da ditadura (CPOR/83).<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.34-35 O Pipa, a cara da periferia, da <strong>Cooperifa</strong>. Foto: João Wainer.<br />

P.39 Lançamento do livro A Margem do vento.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.44 Lançamento do livro Pensamentos vadios na favela da Rocinha,<br />

no Rio de Janeiro. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.47 Sérgio <strong>Vaz</strong> vestido de mendigo com o Plínio Marcos na Bienal<br />

do Livro de São Paulo. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.49 acima: Sérgio <strong>Vaz</strong> e o presidente Lula.<br />

abaixo: Prof. Carlos Giannazi, Sérgio <strong>Vaz</strong> e o ministro Gilberto Gil.<br />

Fotos: arquivo pessoal do autor.<br />

P.52-53 Sérgio <strong>Vaz</strong> trabalhando como locutor na Rádio Atividade FM<br />

(Taboão da Serra). Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.59 Cartões postais poéticos. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.61 Projeto Poesia contra a violência. Foto: Eduardo Toledo.<br />

P.65 Guerreiro Jota (in memorian), sabedoria de vida.<br />

Foto:Marco Pezão.<br />

P.70 O rapper GOG e Sérgio <strong>Vaz</strong> no lançamento da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.71 Edu Toledo e Sérgio <strong>Vaz</strong> na favela da Rocinha.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.


P.74 Vendendo camisetas poéticas. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.76 acima: Brói, artista plástico.<br />

abaixo: Diagnóstico, grupo de rap cantando na Fábrica.<br />

Fotos: Edu Toledo.<br />

P.77 acima: Lançamento da <strong>Cooperifa</strong> na Fábrica.<br />

abaixo: Grupo de capoeira Irmãos Guerreiros de Angola<br />

na fábrica. Fotos: Edu Toledo.<br />

P.78-79<br />

Artistas da região (pré-<strong>Cooperifa</strong>). Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.86 Poeta Marco Pezão. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.90-91<br />

Lançamento do CD da <strong>Cooperifa</strong>. Foto: João Wainer.<br />

P.93 Sarau da <strong>Cooperifa</strong>, Rose (musa), Robson Canto e Rose (Umoja).<br />

Foto: João Wainer.<br />

P.94 Zé Batidão, mecenas da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.97 Helber Ladislau exorcisando o “Navio Negreiro” de Castro Alves.<br />

Foto: João Wainer.<br />

P.98-99<br />

O Sarau da <strong>Cooperifa</strong> visto pelo lado de fora.<br />

Fotos: João Wainer.<br />

P.100 Alan da Rosa, Timbó e Augusto. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.101 Alessandro Buzo, Gaspar e Rappin’ Hood.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.103 Mano Brown recebendo o 1º Prêmio <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Foto: Marco Pezão.<br />

P.104 Sônia, Sérgio <strong>Vaz</strong>, Mariana e Juliana. Poesia em família.<br />

Foto: Arquivo pessoal do autor.<br />

P.105 Ferréz recebendo o prêmio <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Fotos: arquivo pessoal do autor.<br />

P.107 Recortes de jornal. Arquivo pessoal do autor.<br />

P.110 Marcelo Rubens Paiva, escritor, no início do Sarau da <strong>Cooperifa</strong><br />

no Garajão. Foto: Marco Pezão.<br />

P.122-123 Guerreiros e guerreiras da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.124 Leandro Lehart. Foto: Marco Pezão.<br />

P.125 acima: Kênia, Marcio Batista, a atriz Zezé Mota, amigo<br />

e Gaspar do Záfrica Brasil. abaixo: Gaspar, Helber,<br />

Jeferson De, Isaac e 2ho. Fotos: Marco Pezão.<br />

P.130 acima: Grupo de teatro Manicômicos.<br />

abaixo: Grupo de teatro da Juliana.<br />

Fotos: Marco Pezão.<br />

P.132 Jornal da <strong>Cooperifa</strong>. Arquivo pessoal do autor.


P.137 Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Foto: João Wainer.<br />

P.143 acima: Rose Musa. abaixo: Sérgio <strong>Vaz</strong> e Cocão. Apresentação no<br />

Circo Voador, Rio de Janeiro. Foto: Arquivo pessoal do autor.<br />

P.160 Sarau da <strong>Cooperifa</strong> na Câmara Municipal de São Paulo.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.163 Sarau da <strong>Cooperifa</strong> no programa “Jogo de idéias”.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.167 Sarau da <strong>Cooperifa</strong> lotado, como sempre. Foto: João Wainer.<br />

P.170-171 Sarau da Coperifa onde o silêncio é uma prece.<br />

Foto: João Wainer.<br />

P. 179 Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Foto: João Wainer.<br />

P.180-181 Programa “Jogo de idéias”: Claudiney Ferreira, Sérgio <strong>Vaz</strong>,<br />

Helber e Marcio Batista. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.185 Jornalista Chico Pinheiro recebendo o Prêmio <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Foto: Marco Pezão.<br />

P.186 acima: Valmir Vieira, José Neto, Sandra e Márcio.<br />

abaixo: Mavotsirc e Cleide. Fotos: arquivo pessoal do autor.<br />

P.191 Lu Souza e Rose. Foto: Marco Pezão.<br />

P.194-195 Sarau da <strong>Cooperifa</strong> na cidade de Suzano, São Paulo.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.197 Prêmio Hutuz no Rio de Janeiro. acima: Recebendo o prêmio<br />

abaixo: Marcio, Rose (musa), Edy Rock e Dugueto.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.201 “Quem Lê, enxerga melhor", na Biblioteca Castro Alves<br />

Taboão da Serra . Foto: Edu Toledo.<br />

P.203 Café Literário em Taboão da Serra.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.206 acima: Sarau da <strong>Cooperifa</strong> nas escolas.<br />

abaixo: Uma pequena homenagem na Escola Neusa Demétrio.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.207 acima: Sarau nas escolas (Lobão, Jairo, Augusto, Will, Rose,<br />

Bolão, Lu Souza, Mavot e Sales). abaixo: Lu Souza, Lobão,<br />

Augusto Jairo e Mavotsirc. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.210 Ajoelhaço: poetas de joelhos, pedindo perdão às mulheres.<br />

Foto: João Wainer.<br />

P. 212-213-215<br />

Sarau da <strong>Cooperifa</strong>. Foto: João Wainer.<br />

P. 221-222-224-225-227<br />

Poesia no ar, a <strong>Cooperifa</strong> enchendo de poesia o céu de São Paulo.<br />

Fotos: João Wainer.


P.231 Aniversário da <strong>Cooperifa</strong>: Danilo, Rose (musa) e<br />

De Lourdes. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.236 Os novos antropófagos: Sérgio <strong>Vaz</strong>, Jairo, Salesm Gunnar,<br />

Wésley Noóg, Ademir, Cocão, Ana bela, Marcelo, Mavotsirc,<br />

Juliana, Robson Canto, Casulo, Preto Will, Ricarda, Rose Dorea,<br />

Tadeu Lopes, Euller Alves, Roberto QT, Jair Guilherme, Wagner<br />

Felipe, Marcio Batista, Lerói, Anderson e Vicente.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.237 Caminhada Cultural, prof. Toninho segurando o estandarte<br />

da <strong>Cooperifa</strong>.Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.241 Mosaico da Semana de Arte Moderna da Periferia.<br />

Fotos: arquivo pessoal do autor.<br />

P.242 Dia da Literatura na Semana de Arte Moderna da Periferia<br />

(livros despencado do teto). Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.243 Bicicletas voadoras do Magrela’s Bike na Semana.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.244 Grupo de teatro Brava companhia na Semana.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.248 Música na Semana com Jairo do Periafricania.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.249 Dança na Semana com o grupo Espírito de Zumbi.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.255 Logo da Semana de Arte Moderna da Periferia feita pelo<br />

artista P. Jair Guilherme. Arquivo pessoal do autor.<br />

P.257 Oficina de poesia. Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.258–259 Dança na Semana de Arte Moderna da Periferia.<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.260 Grupo Espírito de Zumbi se apresentando em frente ao Sarau.<br />

Foto: João Wainer.<br />

P.261 Grupo de teatro Ação e Arte na Semana de Artes da Periferia.<br />

Foto: João Wainer.<br />

P.262 acima: Cinema na Semana de Arte Moderna da Periferia.<br />

abaixo: Música na semana (Cocão e Will do grupo Versão Popular).<br />

Foto: arquivo pessoal do autor.<br />

P.282 Sérgio <strong>Vaz</strong>.<br />

Foto: Eduardo Toledo.


282 <strong>Cooperifa</strong>


sobre o autor<br />

Sérgio <strong>Vaz</strong> fala que é poeta e acha que faz poesia. Formado nas<br />

ruas, aprendeu tudo que sabe nos livros e no Bar e Empório<br />

Gurarujá, atual bar do Zé batidão, onde acontecem os saraus<br />

da <strong>Cooperifa</strong>.<br />

Começou a escrever poesia em papel de pão. Excelente atacante<br />

de futebol de salão e meia-boca como médio-volante no<br />

time do Jardim Panorama. Hoje, apesar dos 44, sonha em ser<br />

jogador de futebol.<br />

Gosta de rap, cerveja, samba, música negra, MPB antiga e torce<br />

para o Palmeiras. Já trabalhou como auxiliar de escritório, vendedor<br />

de vídeo-game e assessor parlamentar.<br />

É casado com a Sônia e tem uma filha chamada Mariana.<br />

Não anda sozinho, está sempre em companhia dos poetas da<br />

<strong>Cooperifa</strong> e conhece os becos e vielas do país, por isso, é folgado<br />

e agitador cultural. Tem gente que gosta, tem gente que não.<br />

Morador de Taboão da Serra, grande São Paulo, iniciou a <strong>Cooperifa</strong><br />

com outros artistas em uma fábrica desativada em fevereiro de<br />

2001. Meses depois, o Sarau da <strong>Cooperifa</strong> com o poeta Marco<br />

Pezão, que deflagrou um dos maiores movimentos literários de<br />

São Paulo: a Literatura periférica.<br />

Lançou cinco livros, entre eles Subindo a ladeira mora a noite<br />

e Colecionador de pedras, que faz parte da coleção “Literatura<br />

periférica” da Global Editora.<br />

Outro dia, ele e mais um monte de artistas, criaram a Semana<br />

de Arte Moderna da Periferia. Ninguém ficou sabendo, mas<br />

eles fizeram.<br />

Fora isso, não tem mais nada que valha a pena saber.


Este livro foi composto em Akkurat.<br />

O papel utilizado para a capa foi o cartão Suprema Alta-Alvura 250g/m 2 .<br />

Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m 2<br />

A impressão e o acabamento foram feitos pela gráfica<br />

Morada do Livro, em julho de 2008, no Rio de Janeiro.<br />

Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter<br />

as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha<br />

nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro<br />

de identificação do próprio contato. A editora está à disposição<br />

para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.

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