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A expansão árabe na África e os Impérios negros ... - Casa das Áfricas

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A expansão árabe <strong>na</strong> África e <strong>os</strong> Impéri<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> de Ga<strong>na</strong>,<br />

Mali e Songai (sécs. VII-XVI) - Segunda Parte<br />

Ricardo da C<strong>os</strong>ta (Ufes)<br />

IV. Civilizações negras ao sul do Saara (1): a Terra d<strong>os</strong> Maqzara e o reino<br />

de Tekrur<br />

21. Feira livre em Atar (cidade a oeste da Mauritânia)<br />

No extremo oeste da África setentrio<strong>na</strong>l, entre <strong>os</strong> atuais países de Mali e da<br />

Mauritânia, ao longo do rio Níger até mais a oeste, <strong>na</strong> escarpa do Tagant, com<br />

limite ao sul n<strong>os</strong> ri<strong>os</strong> Senegal e Bakoy, desenvolveram-se as primeiras civilizações<br />

negras conheci<strong>das</strong>: <strong>os</strong> Maqzara, o reino de Tekrur, e <strong>os</strong> fam<strong>os</strong><strong>os</strong> Impéri<strong>os</strong> de Ga<strong>na</strong><br />

(Wagadu), ou o “Império do Ouro”, como ficou sendo chamado, e o de Songai (ou<br />

de Gao). Essas culturas negras que giravam em torno do Baixo Senegal (nome de<br />

toda essa região) foram o resultado de um desenvolvimento autóctone bastante<br />

recuado (e de <strong>na</strong>tureza pagão-animista), iniciado provavelmente <strong>na</strong> era cristã,<br />

aliado ao avanço berbere-islâmico em direção ao sul do Saara no século IX.<br />

Essa expansão berbere havia se dirigido tanto no leste ao sul do Egito, para obter<br />

o controle <strong>das</strong> mi<strong>na</strong>s de ouro do Sudão, quanto no oeste ao sul de Magreb, e aqui<br />

no Baixo Senegal a expansão basicamente tivera como motivação o desejo de<br />

domi<strong>na</strong>r as rotas cada vez mais desenvolvi<strong>das</strong> d<strong>os</strong> tráfic<strong>os</strong> de ouro, de sal e de<br />

escrav<strong>os</strong>, este último um tráfico que nunca parou de crescer desde então até<br />

mead<strong>os</strong> do século XIX (KI-ZERBO, s/d: 130). O tráfico de escrav<strong>os</strong> – escrav<strong>os</strong> que<br />

eram utilizad<strong>os</strong> em sua maior parte no serviço doméstico ou como soldad<strong>os</strong> –<br />

acontecia tanto no sentido do sul para o norte do Saara quanto o inverso.<br />

(DAVIDSON, 1992: 146.)<br />

Apesar <strong>das</strong> dificuldades <strong>na</strong>turais de se atravessar o deserto, muitas carava<strong>na</strong>s de<br />

muçulman<strong>os</strong> cruzavam o Saara a oeste para comerciarem escrav<strong>os</strong>, sal, caval<strong>os</strong> e<br />

metais (ouro e cobre) com as populações negras. Os berberes também<br />

compravam d<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> marfim, peles de animais, plumas de avestruz e sementes<br />

de cola (com cafeí<strong>na</strong>); em troca, traziam cobre, espa<strong>das</strong> decora<strong>das</strong> de Damasco,<br />

louças e talheres fin<strong>os</strong>.


Partindo-se do Magreb (de Fez, mais a oeste, ou mesmo de Trípoli), <strong>os</strong> viajantes<br />

islâmic<strong>os</strong> utilizavam quatro rotas conheci<strong>das</strong> através do deserto para chegar a<br />

quatro importantes pont<strong>os</strong> de comércio ao sul. Da esquerda para a direita:<br />

1) De Awdagh<strong>os</strong>t e Tekrur (<strong>na</strong> Mauritânia atual) para Tindouf, até Marrakech,<br />

Fez e Túnis;<br />

2) De Tombuctu (no Mali) também para Fez e Túnis, mas passando por<br />

Taouden;<br />

3) De Gao (também no Mali) para Trípoli, passando por Ghadames;<br />

4) De Agadez, mais ao centro, no Níger, também para Trípoli, passando por<br />

Ghadames ou por Murzuk.<br />

22. Mapa <strong>das</strong> rotas pré-coloniais da África Setentrio<strong>na</strong>l<br />

Graças a essas regulares rotas de comércio transaaria<strong>na</strong>s estabeleci<strong>das</strong> pel<strong>os</strong><br />

berberes islamizad<strong>os</strong> é que se tem notícia escrita <strong>das</strong> civilizações negras ao sul do<br />

Saara. Um viajante e geógrafo muçulmano chamado al-Bakri (século XI) escreveu<br />

a principal fonte para essa região, um livro chamado Descrição da África (de<br />

1087). Abu Ubayd al-Bakri, filólogo, poeta, geógrafo, historiador e erudito<br />

religi<strong>os</strong>o, viveu em Qurtuba (Córdoba), Al Mariyya (Almeria) e Ishbiliya (Sevilha),<br />

onde morreu em 1094. Ele ficou conhecido por seus comentári<strong>os</strong> a várias obras,<br />

principalmente o Sharth Kitav al amthal de Abu Ubayd al-Qasim ibn Sallam, e o Al<br />

'Ali fi sharh al amáli, de al-Qali. A intenção desses comentári<strong>os</strong> muito difundid<strong>os</strong> <strong>na</strong><br />

Idade Média era esclarecer <strong>os</strong> cas<strong>os</strong> em que o significado desejado por um<br />

conhecido autor não estava claro. Então o comentarista explicava as expressões<br />

pouco comuns e fazia as necessárias correções para <strong>os</strong> nov<strong>os</strong> e futur<strong>os</strong> leitores.<br />

(Poetas andalusíes sevillan<strong>os</strong>)<br />

Embora al-Bakri, da mesma forma que Tácito em sua obra Germânia (no século I),<br />

nunca tenha ido pessoalmente à região que descreve em sua obra, ele conversou<br />

com viajantes e comerciantes, além de consultar obras de geógraf<strong>os</strong> muçulman<strong>os</strong>,<br />

e pôde assim fazer um preci<strong>os</strong>o registro de segunda mão sobre aquelas culturas<br />

negras. (KI-ZERBO, s/d: 131-141; Al-Bakri’s online guide to Gha<strong>na</strong> Empire)<br />

23. Mapa <strong>das</strong> culturas negras de Tekrur, Awdagh<strong>os</strong>t e Ga<strong>na</strong>


In: KI-ZERBO, J<strong>os</strong>eph. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 137.<br />

Assim, tomando como base esse depoimento muçulmano (e de outr<strong>os</strong>, como<br />

verem<strong>os</strong>), sabem<strong>os</strong> que, já a partir do século IX, uma confederação de trib<strong>os</strong><br />

berberes sob o comando de Tilutan (836-837) – <strong>os</strong> lemtu<strong>na</strong>s, <strong>os</strong> mesufas e <strong>os</strong><br />

djoddalas – conseguiram impor sua autoridade sobre vári<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> e<br />

negro-berberes instalad<strong>os</strong> ao redor de um povoamento chamado Awdagh<strong>os</strong>t, que<br />

ficava bem no centro da região do Baixo Senegal. To<strong>das</strong> essas culturas próximas a<br />

Awdagh<strong>os</strong>t tinham uma defesa <strong>na</strong>tural que as protegiam de ataques, as escarpas<br />

do Tagant, que formam um grande semicírculo <strong>na</strong>tural protetor <strong>na</strong>quela região.<br />

Outro escritor islâmico, Al-Idrisi (Abu al-Idrisi, muçulmano de Ceuta, no Marroc<strong>os</strong>,<br />

educado em Córdoba, <strong>na</strong> Espanha) (RONAN, 2001: 113) n<strong>os</strong> informa que o nome<br />

desse reino era País de Qamnuriya (Mauritânia) ou Terra do Maqzara d<strong>os</strong> Negr<strong>os</strong><br />

(Ard Maqzarati es Soudan). Bem no centro da rota do sal, de Buré ao sul até<br />

Teghazza, esse reino teria tanto no sul quanto no norte um povoamento<br />

concentrado em um cinturão de cidades: ao sul, Awlil, Sila, Tekrur, Daw e Barissa;<br />

ao norte Qamnuriya e Nighira. No entanto, <strong>na</strong> época da chegada d<strong>os</strong> berberes<br />

islâmic<strong>os</strong>, as rotas com o sul (Senegal) teriam desaparecido, restando o contato e<br />

comércio com o norte islâmico.<br />

*<br />

Um pouco à esquerda do reino de Maqzara, havia outro importante reino negro, <strong>na</strong><br />

trilha da fam<strong>os</strong>a “rota saaria<strong>na</strong> do ouro” (que passava por Walata e Sidjilmasa até<br />

Fez): era o reino do Tekrur. No século IX, esse reino era gover<strong>na</strong>do por uma<br />

di<strong>na</strong>stia peule vinda de Hodh: eram <strong>os</strong> Dia Ogo.<br />

24. Tipo de construção <strong>na</strong> área rural da Mauritânia


O Tekrur, segundo Al-Idrisi, era um reino com um soberano independente, que<br />

p<strong>os</strong>suía tropas e escrav<strong>os</strong>, e era muito fam<strong>os</strong>o por seu senso de justiça. Com um<br />

comércio ativo, o reino de Tekrur importava lã, cobre e pérolas do Marroc<strong>os</strong> e<br />

exportava ouro e escrav<strong>os</strong> para o norte berbere-muçulmano.<br />

Aqui faço um breve parêntese para a questão da escravidão. Muito antes da<br />

chegada d<strong>os</strong> branc<strong>os</strong> europeus, as trib<strong>os</strong>, rein<strong>os</strong> e impéri<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> african<strong>os</strong><br />

praticavam largamente o escravismo, da mesma forma <strong>os</strong> berberes e demais<br />

etnias muçulma<strong>na</strong>s. Imagi<strong>na</strong>r <strong>os</strong> portugueses, castelhan<strong>os</strong> e italian<strong>os</strong> lançando<br />

seus marinheir<strong>os</strong> em caça<strong>das</strong> a<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> no coração <strong>das</strong> florestas africa<strong>na</strong>s não<br />

resiste ao menor exame histórico.<br />

O Islamismo praticou desde cedo o escravismo. Antes mesmo de Maomé, já no<br />

século VI mercadores árabes freqüentavam tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> port<strong>os</strong> da c<strong>os</strong>ta oriental da<br />

África, trocando cereais, carnes e peixes sec<strong>os</strong> com trib<strong>os</strong> bantus por escrav<strong>os</strong>. As<br />

populações negras também consideravam a escravidão um fato normal. Por<br />

exemplo, <strong>na</strong>s mi<strong>na</strong>s de sal-gema de Targhaza (exatamente <strong>na</strong> rota do Tekrur em<br />

direção a Marrakech), milhares de negr<strong>os</strong> morriam para prover uma carava<strong>na</strong> de<br />

camel<strong>os</strong> cada vez maior de ano a ano – por volta de 1200 eram entre cinco e seis<br />

mil camel<strong>os</strong> que transportavam esse sal para o sul. Outro bom exemplo é o rei de<br />

Mali, Mansa Mussa (1312-1332): negro e muçulmano, quando chegou ao Cairo em<br />

peregri<strong>na</strong>ção a Meca em 1324, trouxe consigo quinhent<strong>os</strong> escrav<strong>os</strong>, também<br />

negr<strong>os</strong>, cada um com uma bola de ouro <strong>na</strong> mão (tratarei mais adiante de Mansa<br />

Mussa) (HEERS, 1983: 79; DE BONI, 2003: 317-333).<br />

*<br />

Por fim, a base alimentar do povo do reino do Tekrur era o milhete (um tipo de<br />

milho pequeno), peixe e leite (ROSENBERGER, 1998: 338-358.). Vestiam lã (<strong>os</strong><br />

mais poder<strong>os</strong><strong>os</strong>) e algodão (a maior parte da população). Seu primeiro rei a<br />

converter-se ao Islamismo foi War Jabi Ndiaye. Com ele, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> súdit<strong>os</strong> também<br />

se converteram (Jabi Ndiaye morreu em 1040) (KI-ZERBO, s/d: 133).<br />

V. Civilizações negras ao sul do Saara (2): o Império de Ga<strong>na</strong> (c. 300-<br />

1075)<br />

25. O Império de Ga<strong>na</strong>


O reino de Ga<strong>na</strong> é chamado assim por causa do título de seus soberan<strong>os</strong>. Era<br />

também chamado de Ugadu (país d<strong>os</strong> rebanh<strong>os</strong>). Nessa época, o clima era<br />

bastante úmido, o que favorecia a criação de gado e a agricultura. Por volta do<br />

século IX, viviam <strong>na</strong> região do Hodh e do Auker pastores de origem berbere e<br />

cultivadores negr<strong>os</strong> sedentári<strong>os</strong> que, com o passar do tempo, se mesclaram. Em<br />

876, outro cronista muçulmano, Iacub, escreveu: “O rei de Ga<strong>na</strong> é um grande rei.<br />

No seu território encontram-se mi<strong>na</strong>s de ouro e ele tem sob sua domi<strong>na</strong>ção um<br />

grande número de rein<strong>os</strong>” (citado por KI-ZERBO, s/d: 135).<br />

V.1. Ga<strong>na</strong> re<strong>na</strong>sce <strong>na</strong> descrição de Al-Bakri<br />

Em 970 o viajante muçulmano Ibn Hawkal viajou de Bagdá até a margem do rio<br />

Níger, e não hesitou em dizer do imperador de Ga<strong>na</strong>: “É o mais rico do mundo por<br />

causa do ouro” (citado por KI-ZERBO, s/d: 133). Um século depois, outro cronista,<br />

Al-Bakri n<strong>os</strong> dá informações mais precisas, como disse, em sua obra Descrição da<br />

África (de 1087). É esse texto, essa fonte que a partir de agora abrim<strong>os</strong> espaço<br />

para descrever o reino de Ga<strong>na</strong>. (Al-Bakri’s online guide to Gha<strong>na</strong> Empire)<br />

26. A mesquita de Djenne (Jenne, Dje<strong>na</strong>), no Mali


A mesquita de Djenne era um d<strong>os</strong> principais centr<strong>os</strong> de peregri<strong>na</strong>ção islâmica <strong>na</strong>s regiões meridio<strong>na</strong>is do<br />

Saara e a cidade um importante entrep<strong>os</strong>to comercial entre a África do Norte e a África Sudanesa. Djenne fica<br />

localizada no centro-sul do Mali, próxima a um d<strong>os</strong> vales do rio Níger.<br />

V.1.1. O reino de Ga<strong>na</strong><br />

Al-Bakri n<strong>os</strong> conta:<br />

O reino de Ga<strong>na</strong> está povoado pel<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> de Soninke, que chamam sua terra de Wagadugu ou Wagadu. O<br />

nome Ga<strong>na</strong> é o título do rei que gover<strong>na</strong> aquele império. O Estado de Soninke é forte, e seu rei controla<br />

200.000 soldad<strong>os</strong>, 40.000 d<strong>os</strong> quais arqueir<strong>os</strong> que protegem as rotas de comércio de Ga<strong>na</strong>. O poder do rei de<br />

Ga<strong>na</strong> provém do monopólio da enorme quantidade de ouro produzida em seu reino. Esta riqueza permite a<strong>os</strong><br />

de Soninke construir e manter enormes cidades, além de uma capital com uma população estimada entre<br />

15.000 e 20.000 habitantes. Soninke também usa sua riqueza para desenvolver outras atividades econômicas,<br />

tais como a tecelagem, a ferraria e a produção agrícola.<br />

27. Arqueiro de terracota, de Mali (séc. XIII-XV?)


61,9 cm de altura<br />

V.1.2. A capital de Ga<strong>na</strong><br />

A capital de Ga<strong>na</strong> é chamada Kumbi Saleh. A cidade consiste <strong>na</strong> reunião de duas cidades que se unem em<br />

uma planície, a maior delas habitada por muçulman<strong>os</strong> e com doze mesquitas (ver imagem 28). Kumbi Saleh<br />

p<strong>os</strong>sui também um grande número de juízes e de homens instruíd<strong>os</strong>. Ao redor de ambas as cidades há poç<strong>os</strong><br />

de água doce e potável, e próxim<strong>os</strong> a eles, terras cultiva<strong>das</strong> com vegetais. A cidade habitada pelo rei está a<br />

seis milhas da outra cidade (muçulma<strong>na</strong>) e é chamada de Al-Gha<strong>na</strong>. A área entre as duas cidades é coberta<br />

com casas feitas de pedra e de madeira. O rei tem um palácio e choças de formato cônico, cerca<strong>das</strong> por<br />

paredes. Na cidade do rei, não muito longe da corte de justiça real, há uma mesquita. Os muçulman<strong>os</strong> que<br />

vêem em missões ao rei podem rezar ali. Há ainda uma grande avenida, que cruza a cidade de leste a oeste.<br />

28. Figura eqüestre de terracota, de Mali (séc. XIII-XV?)


70,5 cm de altura<br />

V.1.3. O rei de Ga<strong>na</strong><br />

O rei ador<strong>na</strong> a si mesmo como se f<strong>os</strong>se uma mulher, usando colares ao redor do pescoço e braceletes em seus<br />

antebraç<strong>os</strong>. Quando se senta diante do povo, fica sobre uma elevação decorada com ouro e se veste com um<br />

turbante de pano fino. A corte de apelação fica em um pavilhão abobadado, com dez caval<strong>os</strong> estacio<strong>na</strong>d<strong>os</strong> e<br />

cobert<strong>os</strong> com um tecido bordado com ouro. Atrás do rei ficam dez pajens segurando escud<strong>os</strong> e espa<strong>das</strong>,<br />

ambas decora<strong>das</strong> com ouro. À sua direita ficam <strong>os</strong> filh<strong>os</strong> d<strong>os</strong> vassal<strong>os</strong> do país do rei, vestindo esplêndi<strong>das</strong><br />

roupas e com <strong>os</strong> cabel<strong>os</strong> trançad<strong>os</strong> com ouro. O gover<strong>na</strong>dor da cidade senta-se <strong>na</strong> terra diante do rei e <strong>os</strong><br />

ministr<strong>os</strong> ficam do mesmo modo, sentad<strong>os</strong> ao redor. Na porta do pavilhão estão cães de excelente pedigree e<br />

que dificilmente saem do lugar de onde o rei está, pois estão ali para protegê-lo. Os cães usam ao redor de<br />

seus pescoç<strong>os</strong> colares de ouro e de prata chei<strong>os</strong> de sin<strong>os</strong> com o mesmo metal. A audiência é anunciada pela<br />

batida em um longo cilindro oco que se chama daba. Quando <strong>os</strong> pov<strong>os</strong> que professam a mesma religião se<br />

aproximam do rei, caem de joelh<strong>os</strong> e polvilham suas cabeças com pó, uma forma de m<strong>os</strong>trar respeito por ele.<br />

Quanto a<strong>os</strong> muçulman<strong>os</strong>, eles cumprimentam-no somente batendo suas mã<strong>os</strong>. (Al-Bakri’s online guide to<br />

Gha<strong>na</strong> Empire)<br />

29. Vila de Songo, no Mali, com peque<strong>na</strong> mesquita ao centro


Os tip<strong>os</strong> de “casas cônicas” descritas por Al-Bakri em sua obra ainda podem ser vistas no Mali, como m<strong>os</strong>tra a<br />

fotografia acima da Vila de Songo, no Mali.<br />

V.1.4. A economia e a justiça em Ga<strong>na</strong><br />

O rei cobra o imp<strong>os</strong>to de um di<strong>na</strong>r de ouro para cada carga de asno com sal que entra em seu país, e dois<br />

di<strong>na</strong>res de ouro para cada carga de sal que sai. (di<strong>na</strong>r era uma moeda de ouro criada pel<strong>os</strong> califas<br />

muçulman<strong>os</strong>; seu equivalente em peso era o mitkal - 4,722 gramas). Os imp<strong>os</strong>t<strong>os</strong> são cobrad<strong>os</strong> também pelo<br />

cobre e qualquer outra mercadoria que entra e sai do Império. O melhor ouro do país vem de Ghiaru, uma<br />

cidade distante da capital 18 dias de viagem. To<strong>das</strong> as peças de ouro que são <strong>na</strong>tivas e encontra<strong>das</strong> <strong>na</strong>s<br />

mi<strong>na</strong>s do Império pertencem ao soberano, embora ele deixe o povo ter um pouco de ouro em pó, isso<br />

certamente com o conhecimento de tod<strong>os</strong>. Sem essa precaução, o ouro não só se tor<strong>na</strong>ria abundante como<br />

praticamente perderia seu valor. Quando um homem é acusado de negar um crime, um chefe pega um barril<br />

fino de madeira ácida e amarga de provar e coloca nela um pouco de água. Depois disso, ele dá essa bebida<br />

ao réu para que a beba. Se o homem vomita, sua inocência é reconhecida e ele é felicitado. Se não vomita e a<br />

bebida permanece em seu estômago, a acusação é aceita e justificada.<br />

30. Mesquita de Bandiagra, no Mali<br />

Bandiagra: quatro mulheres da etnia d<strong>os</strong> dogons, com seus trajes típic<strong>os</strong>, em frente à mesquita, tendo à<br />

frente um sorridente homem com uma coroa e vestido com um tecido cor de vinho. Tod<strong>os</strong> estão descalç<strong>os</strong>.


Observe o belo contraste entre as cores d<strong>os</strong> perso<strong>na</strong>gens e o tom amarelo-tijolo do cenário.<br />

V.1.5. A religião em Ga<strong>na</strong><br />

Ao redor da cidade do rei há choupa<strong>na</strong>s abobada<strong>das</strong> e b<strong>os</strong>ques onde vivem <strong>os</strong> feiticeir<strong>os</strong>, homens<br />

encarregad<strong>os</strong> de seus cult<strong>os</strong> religi<strong>os</strong><strong>os</strong>. Ali se encontram também <strong>os</strong> ídol<strong>os</strong> e <strong>os</strong> túmul<strong>os</strong> d<strong>os</strong> reis. Estes<br />

b<strong>os</strong>ques são guardad<strong>os</strong>: ninguém pode entrar ou descobrir seus recipientes. As prisões d<strong>os</strong> viv<strong>os</strong> também<br />

estão ali, e se alguém é aprisio<strong>na</strong>do lá, nunca mais se ouve falar dele. Quando o rei morre, constroem uma<br />

enorme abóbada de madeira no lugar do enterro. Então trazem-no em uma cama levemente coberta e<br />

colocam-no dentro da abóbada. A seu lado colocam seus or<strong>na</strong>ment<strong>os</strong>, suas armas, e <strong>os</strong> recipientes que ele<br />

usava para comer e beber. A serpente é a guardiã do Estado e vive em uma caver<strong>na</strong> que lhe é devotada.<br />

Quando o rei morre, seus p<strong>os</strong>síveis sucessores se reúnem em uma assembléia, e a serpente é trazida para<br />

picar um deles com seu focinho. Essa pessoa é então chamada para ser o novo rei.<br />

A descrição de Al-Bakri é sucinta e clara. A população de Ga<strong>na</strong>, rodeada de hortas,<br />

pepin<strong>os</strong>, palmeirais e figueiras, vivia assim em uma espécie de oásis protetor <strong>na</strong><br />

fronteira sul do deserto. Como disse acima, a mesquita de Djenne tor<strong>na</strong>va a região<br />

um importante centro islâmico, com um comércio bastante próspero. Al-Bakri n<strong>os</strong><br />

diz a respeito: “A criação de carneir<strong>os</strong> e de bois é aí particularmente próspera. Por<br />

um simples mitkal (moeda de ouro equivalente ao di<strong>na</strong>r – 4,722 gramas) podemse<br />

comprar pelo men<strong>os</strong> dez carneir<strong>os</strong>. Encontra-se muito mel, que vem do país<br />

d<strong>os</strong> Negr<strong>os</strong>. As gentes vivem desafogadamente e p<strong>os</strong>suem muit<strong>os</strong> bens” (citado<br />

em KI-ZERBO, s/d: 136).<br />

O escritor muçulmano não se esquece da cozinha e a graça <strong>das</strong> moças da terra:<br />

“Encontram<strong>os</strong> também jovens com uma linda cara, tez clara, corpo esbelto, sei<strong>os</strong><br />

direit<strong>os</strong>, cintura fi<strong>na</strong>, ombr<strong>os</strong> larg<strong>os</strong>, ancas abundantes, sexo estreito, etc” (citado<br />

em KI-ZERBO, s/d: 136).<br />

Embora devam<strong>os</strong> ter uma prudência em relação a<strong>os</strong> text<strong>os</strong> d<strong>os</strong> cronistas<br />

muçulman<strong>os</strong>, pois, como disse, alguns deles foram redigid<strong>os</strong> com base em<br />

<strong>na</strong>rrativas orais e consulta a obras, não no local, a obra de Al-Bakri n<strong>os</strong> sugere um<br />

grau de islamização ainda bastante fraco <strong>das</strong> populações negras (André Miquel é<br />

ainda mais rigor<strong>os</strong>o: “No Ghâ<strong>na</strong>, de resto directamente atingido pelo choque<br />

almorávida, tanto o povo como o rei ter-se-iam mantido pagã<strong>os</strong>, sòmente sendo<br />

tocad<strong>os</strong> pelo Islame <strong>os</strong> intérpretes e cert<strong>os</strong> funcionári<strong>os</strong>...”. MIQUEL, 1971: 216).<br />

Tanto o rei, que ainda era escolhido com base em tradições animistas – a picada<br />

da deusa-serpente –, quanto uma parte do povo teriam ainda se mantid<strong>os</strong> pagã<strong>os</strong><br />

(embora se deva observar que a cidade com maior densidade demográfica descrita<br />

por Al-Bakri era a muçulma<strong>na</strong>, com suas doze mesquitas). Segundo Ki-Zerbo, esse<br />

era o culto do deus-serpente do Uagadu (Uagadu-Bida), antepassado-totem d<strong>os</strong><br />

Cissés: “Segundo a lenda, saía da toca no dia da entronização d<strong>os</strong> reis e recebia<br />

em sacrifício anualmente a mais bela rapariga da terra. Um dia, diz-se, Maghan,<br />

vendo a sua noiva, a jovem virgem Sai, entregue à serpente, matou o réptil. Mas o<br />

pitão era o deus da fecundidade. Teria sido o seu desaparecimento que<br />

desencadeara a desertificação do país” (KI-ZERBO, s/d: p. 138). Deve-se ainda<br />

atentar para o fato de o Império ter, segundo as estimativas d<strong>os</strong> especialistas,<br />

cerca de um milhão de habitantes (DAVIDSON, 1992: 147).<br />

De resto, Al-Bakri parece ter delimitado bastante bem a separação entre as duas<br />

culturas religi<strong>os</strong>as <strong>na</strong>quele momento: um bom exemplo disso é a saudação <strong>das</strong><br />

pessoas quando se aproximavam do rei. Os animistas jogavam terra em sua<br />

cabeça em si<strong>na</strong>l de respeito, <strong>os</strong> muçulman<strong>os</strong> batiam palmas, notável e marcante<br />

diferença que m<strong>os</strong>tra o ainda baixo grau de penetração islâmica junto ao rei e à<br />

corte de Ga<strong>na</strong>. Em suma, sabem<strong>os</strong> da existência desse rico império negro e<br />

escravocrata graças a<strong>os</strong> viajantes islâmic<strong>os</strong> e à presença muçulma<strong>na</strong> <strong>na</strong> região,<br />

com seu grupo letrado, mas que ainda não se misturara efetivamente com a<br />

população autóctone, nem conseguira penetrar <strong>na</strong> casa real, ainda de forte


tradição animista.<br />

Para fi<strong>na</strong>lizar, como eram fisicamente <strong>os</strong> homens de Ga<strong>na</strong>? Outro cronista islâmico<br />

que viveu duzent<strong>os</strong> an<strong>os</strong> depois de al-Bakri, o historiador al-Umari (1301-1349),<br />

n<strong>os</strong> informa que o povo era “alto, de compleição preta retinta e cabel<strong>os</strong><br />

encrespad<strong>os</strong>”. Um d<strong>os</strong> informantes de al-Umari lhe disse que “o ouro é extraído<br />

cavando-se burac<strong>os</strong> <strong>na</strong> profundidade que chegam à altura de um homem e são<br />

encontrad<strong>os</strong> embutid<strong>os</strong> <strong>na</strong>s laterais d<strong>os</strong> burac<strong>os</strong>, ou às vezes no fundo deles”<br />

(DAVIDSON, 1992: 148).<br />

Os sécul<strong>os</strong> IX e X viram o apogeu do império negro de Ga<strong>na</strong>. No entanto, no<br />

século XI, com o avanço almorávida, aqueles territóri<strong>os</strong> foram teatro de grandes<br />

convulsões, como verem<strong>os</strong> a seguir.<br />

VI. A gesta d<strong>os</strong> almorávi<strong>das</strong> (c. 1056-1147)<br />

31. O Império Almorávida em sua maior extensão (c. 1110)<br />

Os almorávi<strong>das</strong>, cuja di<strong>na</strong>stia começou em 448 (20 de março de 1056), eram formad<strong>os</strong> por várias trib<strong>os</strong> que<br />

se diziam descender de Himyar. As mais célebres são as de lamtu<strong>na</strong> (ou lemtu<strong>na</strong>), da qual o príncipe d<strong>os</strong><br />

crentes Ali ibn Taxufin faz parte, e <strong>os</strong> chadala. Saí<strong>das</strong> do Yêmen n<strong>os</strong> temp<strong>os</strong> de Abu Bakr Siddiq, que as<br />

enviou para a Síria, elas passaram depois para o Egito e depois se transferiram para o Magreb, com Musa ibn<br />

Nusayr. Seguiram depois para Tariq até o Tanger, mas seu g<strong>os</strong>to pelo isolamento as empurraram para o<br />

interior e ali habitaram até a época que vam<strong>os</strong> tratar (Kamil fi-l-Tarij, de Ibn al-Athir. In: SÁNCHEZ-<br />

ALBORNOZ, 1986, tomo II: 108).<br />

No século XI, do Saara Espanhol ao Marroc<strong>os</strong>, surgiu um poder<strong>os</strong>o movimento<br />

berbere islâmico que varreu a c<strong>os</strong>ta setentrio<strong>na</strong>l da África até chegar à Península<br />

Ibérica, conferindo um novo caráter e dramaticidade tanto às culturas da África do<br />

Norte quanto à Reconquista Ibérica cristã. Para entendê-lo, é preciso levar em<br />

conta que, durante muito tempo, <strong>os</strong> berberes, como vim<strong>os</strong>, foram reticentes com o<br />

Islã, mas depois de terem se convertido transformaram-se em uma <strong>das</strong> etnias<br />

africa<strong>na</strong>s que abraçaram a fé do Corão com mais força.<br />

No entanto, no século X, o Islamismo ainda era praticado em muitas áreas<br />

orientais africa<strong>na</strong>s de maneira bastante permissiva. Isso ocorria especialmente<br />

com muitas trib<strong>os</strong> de chefes berberes da c<strong>os</strong>ta atlântica da Mauritânia, como <strong>os</strong><br />

sanhadjas. Por exemplo, eles cumpriam a obrigação da peregri<strong>na</strong>ção a Meca<br />

somente como uma formalidade política. Assim, ao retor<strong>na</strong>r de Meca e parar em<br />

Kairuan, Yaya ibn-Ibrahim, chefe d<strong>os</strong> djoddalas, foi se consultar com um sábio


muçulmano de nome Abu Amiru (de Fez) e foi repreendido por este por sua<br />

ignorância em relação à fé. O sábio, chocado com o baixo nível de conhecimento<br />

da Lei corânica d<strong>os</strong> djoddalas, decidiu procurar um teólogo para instigá-lo a ir até<br />

àquele povo berbere e guiá-lo à luz da verdade sagrada. Encontrou Abdallah ibn<br />

Yacine, um grande letrado da cidade de Sidjilmasa, que aceitou ir pregar entre <strong>os</strong><br />

djoddalas.<br />

Contudo, <strong>os</strong> berberes o receberam muito mal. Não g<strong>os</strong>taram nem um pouco <strong>das</strong><br />

práticas ascéticas de Yacine, queimaram sua casa e o expulsaram. Yacine então se<br />

retirou (cerca de 1030) com dois discípul<strong>os</strong> da etnia berbere d<strong>os</strong> lemtu<strong>na</strong>s, Yaya<br />

ibn Omar e seu irmão Abu Bakr (não confundir com o califa do mesmo nome do<br />

século VII), para algum lugar desconhecido da c<strong>os</strong>ta atlântica. Foi então que<br />

começaram a receber adept<strong>os</strong>. Quando chegaram ao milhar, Ibn Yacine batizou-<strong>os</strong><br />

de Al-Morabetin (aqueles do ribat), palavra que deu origem a almorávida.<br />

O ribat era uma espécie de convento militar muçulmano erguido <strong>na</strong>s fronteiras do<br />

dar al-islan (a “<strong>Casa</strong> do Islã”) e que acolhia voluntári<strong>os</strong> pied<strong>os</strong><strong>os</strong> que desejavam se<br />

retirar do mundo e que ali ficavam sob as ordens de um veterano (sheikh) para se<br />

purificar e sair em missões conforme o desejo do sheikh (DEMURGER, 2002: 43.<br />

Demurger define o ribat em uma obra dedicada às ordens militares cristãs porque<br />

muit<strong>os</strong> historiadores consideram o ribat o antecessor islâmico <strong>das</strong> ordens militares<br />

e o autor discute essa tese, da qual discorda).<br />

A idéia de p<strong>os</strong>to de vigília e m<strong>os</strong>teiro fortificado foi mais tarde valorizada pelo<br />

sufismo:<br />

Os sufis levavam um modo de vida que buscava a união com Deus por meio do<br />

amor, do conhecimento baseado <strong>na</strong> experiência e ascese que levaria a uma união<br />

estática com o Criador bem-amado. Essa invocação tinha o objetivo de desviar a<br />

alma <strong>das</strong> distrações munda<strong>na</strong>s para libertá-la até o vôo da união com Deus. Uma<br />

<strong>das</strong> formas do dhikr era um ritual coletivo chamado justamente de hadra: <strong>os</strong><br />

participantes repetiam constantemente o nome de Alá, cada vez mais rapidamente<br />

até se chegar a um transe e perda da consciência do mundo sensível” (COSTA,<br />

2002: 73-74).<br />

No tempo d<strong>os</strong> almorávi<strong>das</strong> não se têm notícias desse sentido preciso de guarnição<br />

religi<strong>os</strong>a. Nessa época, a palavra ribat significava “sua seita, seu corpo, suas<br />

forças, sua guerra santa”. O único autor que empregou a palavra precisa de rabita<br />

(fortaleza) foi Ibn Abi Zar, em sua obra Rawd al Qirtas (de 1326), portanto,<br />

duzent<strong>os</strong> an<strong>os</strong> depois do período de Yacine (KI-ZERBO, s/d: 143).<br />

A missão d<strong>os</strong> almorávi<strong>das</strong> era impor a verdadeira fé pela força a<strong>os</strong> não-crentes. A<br />

partir de 1042, eles se lançaram em uma furi<strong>os</strong>a jihad a partir <strong>das</strong> regiões do<br />

Adrar e do Tagant, ambas hoje no coração do Saara Espanhol, contra <strong>os</strong> djoddalas<br />

e <strong>os</strong> lemtu<strong>na</strong>s, tendo Yacine como chefe espiritual e Yaya como general. Negr<strong>os</strong> do<br />

Tekrur logo se juntaram a eles, desej<strong>os</strong><strong>os</strong> de se opor ao Império de Ga<strong>na</strong>. Yaya foi<br />

expulso do exército, por não concordar com <strong>os</strong> saques e violações cometid<strong>os</strong> por<br />

seus soldad<strong>os</strong>. Após um breve e novo retiro espiritual, ele conseguiu novas<br />

adesões de discípul<strong>os</strong> e se lançou novamente no deserto. Isso, somado à pregação<br />

religi<strong>os</strong>a de Yacine, fez com que as forças almorávi<strong>das</strong> ganhassem uma grande<br />

adesão de soldad<strong>os</strong> (cerca de 30.000 homens armad<strong>os</strong> de lanças, machad<strong>os</strong>,<br />

maças, a pé, a cavalo e em camel<strong>os</strong>). Esse motivado exército religi<strong>os</strong>o varreu todo<br />

o Sudão ocidental.<br />

Yaya morreu em 1056 em uma batalha contra <strong>os</strong> djoddalas próxima a Atar. Yacine<br />

atacou o Marroc<strong>os</strong> (Maghreb el-Acsa) e morreu no ano seguinte, quando <strong>os</strong>


almorávi<strong>das</strong> passaram a ser dirigid<strong>os</strong> pelo emir Abu Bakr. Este fundou em 1062 a<br />

cidade de Marrakech, apoderou-se de Fez, Tlemcen (capital d<strong>os</strong> ze<strong>na</strong>tas) e alargou<br />

seu poder até Argel. Depois disso, Abu Bakr retornou para o sul e se instalou no<br />

Tagant, decidido a atacar e submeter o Império negro de Ga<strong>na</strong>.<br />

32. Mesquita de Koutoubia, Marrakech (séc. XII)<br />

VI.1. Os almorávi<strong>das</strong> <strong>na</strong> Península Ibérica<br />

Mas antes de tratar do declínio de Ga<strong>na</strong> e de sua derrota para as forças<br />

almorávi<strong>das</strong>, abro um pequeno parêntese à conquista almorávida da Península<br />

Ibérica (1092-1094), devido à sua importância para o processo da Reconquista<br />

cristã. Nas palavras do conde D. Pedro de Portugal, filho bastardo do rei D. Dinis e<br />

fam<strong>os</strong>o cronista do século XIV, <strong>os</strong> almorávi<strong>das</strong> eram “<strong>os</strong> melhores cavaleir<strong>os</strong> que<br />

<strong>os</strong> mour<strong>os</strong> tinham” (Crónica Geral de Espanha de 1344, 1990, vol. IV, cap.<br />

DLXVIII: 34). Esses monges-soldad<strong>os</strong> muçulman<strong>os</strong> haviam declarado uma guerra<br />

santa contra “<strong>os</strong> muçulman<strong>os</strong> depravad<strong>os</strong> d<strong>os</strong> rein<strong>os</strong> ibéric<strong>os</strong>” (CAHEN, 1992:<br />

295).<br />

33. O movimento almorávida – do Saara Espanhol à Península Ibérica (c. 1042-1087)


In: KI-ZERBO, J<strong>os</strong>eph. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 144.<br />

Mesmo antes da invasão almorávida <strong>na</strong> Península Ibérica, <strong>os</strong> gover<strong>na</strong>ntes d<strong>os</strong><br />

rein<strong>os</strong> de taifas, mais tolerantes com a convivência e a afinidade entre moçárabes<br />

e andaluzes, já não se interessavam pela guerra santa. A palavra taifa (que<br />

significa “partido, facção”) desig<strong>na</strong> <strong>os</strong> principad<strong>os</strong> que se constituíram <strong>na</strong> Hispânia<br />

sobre <strong>os</strong> rest<strong>os</strong> do califado omíada de Córdoba (MIQUEL, 1971: 216). Por<br />

exemplo, o rei de Gra<strong>na</strong>da, „Abd Allãh Nãsir, conta em suas memórias que o hadjib<br />

Almançor (Muhammad ibn Abi „Amir) não conseguiu convencer <strong>os</strong> andaluzes a<br />

fazer a guerra, pois eles “...declararam-se incapazes de participar <strong>na</strong>s suas<br />

campanhas e alegaram (...) que não se achavam preparad<strong>os</strong> para combater e, por<br />

outro lado, que a sua participação <strong>na</strong>s campanhas <strong>os</strong> impediria de cultivar a terra”<br />

(MATTOSO, 1985: 194).<br />

Outro bom exemplo da nova mentalidade dicotômica desses invasores berberes é<br />

a obra Ódio a cristã<strong>os</strong> e judeus do pensador cordovês Ibn Abdun (séc. XII):<br />

Um muçulmano não deve fazer massagem em um judeu nem em um cristão, nem tirar suas sujeiras ou limpar<br />

suas latri<strong>na</strong>s, pois o judeu e o cristão são mais indicad<strong>os</strong> para essas atividades, que são tarefas para gentes<br />

vis (…) Deve proibir-se às mulheres muçulma<strong>na</strong>s que entrem <strong>na</strong>s abomináveis igrejas, pois <strong>os</strong> clérig<strong>os</strong> são<br />

libertin<strong>os</strong>, fornicadores e sodomitas” (Tratado de Ibn Abdun. In: SÁNCHEZ-ALBORNOZ, tomo II: 219).<br />

Curi<strong>os</strong>amente, <strong>os</strong> almorávi<strong>das</strong> praticavam a cinofagia – morte de cães – uma<br />

prática e hábito culinário pré-islâmico presente em um hadith do profeta: “Os<br />

anj<strong>os</strong> não entram em uma casa onde há um cão”:<br />

A Hadith consiste <strong>na</strong> tradição oral <strong>das</strong> trib<strong>os</strong> que habitavam a Arábia mais <strong>os</strong> ensi<strong>na</strong>ment<strong>os</strong> de Maomé que não<br />

foram para o Livro, mas que foram se formando através d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>. Esta tradição é que conta a história do<br />

Profeta, d<strong>os</strong> sant<strong>os</strong> e d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> profetas menores, entre estes Jesus. Os mulçuman<strong>os</strong> acreditam também n<strong>os</strong><br />

gêni<strong>os</strong>, fa<strong>das</strong>, n<strong>os</strong> espírit<strong>os</strong> bons e maus, em práticas mágicas e outras coisas que, proibi<strong>das</strong> a<strong>os</strong> fiéis, podem<br />

ser usa<strong>das</strong> pel<strong>os</strong> descrentes (KHALIDI, 2001: 16-17).


Eles também inovaram a sociedade d<strong>os</strong> nômades berberes e as <strong>das</strong> fronteiras do<br />

mundo negro, trazendo inovações táticas no modo de se fazer a guerra.<br />

Acrescentaram a<strong>os</strong> exércit<strong>os</strong> regulares três fileiras de arqueir<strong>os</strong> – precedendo a<br />

Europa cristã em quase dois sécul<strong>os</strong> <strong>na</strong> superioridade da infantaria de arqueir<strong>os</strong><br />

sobre a cavalaria. Além disso, numa revolução ideológica d<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> mentais do<br />

conflito, incluíram grup<strong>os</strong> com grandes tambores, com o intuito de aterrorizar <strong>os</strong><br />

inimig<strong>os</strong>.<br />

34. Exército muçulmano partindo para o ataque (1237)<br />

Iluminura <strong>das</strong> “Estações de Hariri” (1237), manuscrito da Biblioteca Nacio<strong>na</strong>l de Paris. Esta ce<strong>na</strong> representa<br />

uma peque<strong>na</strong> paragem antes do ataque decisivo, quando tocam as trombetas e rufam <strong>os</strong> tambores. Ela pode<br />

estar se referindo a uma <strong>das</strong> primeiras batalhas do Islão <strong>na</strong> Península Ibérica. No entanto, <strong>os</strong> trajes d<strong>os</strong><br />

guerreir<strong>os</strong> e <strong>os</strong> jaezes <strong>das</strong> monta<strong>das</strong> apontam para uma origem oriental e para a época em que a iluminura foi<br />

elaborada. In: MATTOSO, J<strong>os</strong>é (dir.). História de Portugal. Antes de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, s/d,<br />

p. 399.<br />

Este novo estilo de guerra, mais agressivo, era marcado basicamente pela<br />

fundamentação religi<strong>os</strong>a (MATTOSO, 1985: 194). Isto <strong>os</strong> distinguia d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong><br />

islamitas andaluzes da Península, desprezad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> berberes almorávi<strong>das</strong>. Assim,<br />

aconteceu a partir do século XI uma “inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lização” do conflito <strong>na</strong> Península<br />

Ibérica. De um lado, cristã<strong>os</strong> peninsulares ligad<strong>os</strong> ideologicamente ao restante da<br />

Europa, especialmente ao reino franco; de outro, muçulman<strong>os</strong> ibéric<strong>os</strong> d<strong>os</strong> rein<strong>os</strong><br />

de taifas auxiliad<strong>os</strong> pelo conjunto de aliad<strong>os</strong> da África do Norte, por sua vez<br />

intransigentes <strong>na</strong> ortodoxia. Nesse contexto deram-se as vitórias portuguesas do<br />

primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, <strong>na</strong> batalha de Ourique (1146), e <strong>na</strong><br />

tomada da cidade de Lisboa (1147), com o auxílio de cruzad<strong>os</strong> vind<strong>os</strong> do norte<br />

europeu.<br />

VI.2. A queda do Império de Ga<strong>na</strong> (1203)<br />

Até esse avanço almorávida, o Império de Ga<strong>na</strong> conseguira suportar <strong>os</strong> ataques<br />

estrangeir<strong>os</strong>, tanto de trib<strong>os</strong> inimigas quanto d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> berberes, graças ao seu


exército comp<strong>os</strong>to de guerreir<strong>os</strong> soldad<strong>os</strong>, cavaleir<strong>os</strong> e arqueir<strong>os</strong> – citad<strong>os</strong> por Al-<br />

Bakri em sua obra, como vim<strong>os</strong>. No entanto, apesar de uma forte resistência, eles<br />

foram derrotad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> almorávi<strong>das</strong> e sua capital, Kumbi Saleh, foi tomada e<br />

saqueada, por volta de 1076. Com essa vitória, <strong>os</strong> almorávi<strong>das</strong> receberam um<br />

poder<strong>os</strong>o reforço, devido às conversões d<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> de Ga<strong>na</strong>. Disso n<strong>os</strong> informa o<br />

cronista Al-Zuhuri: “As gentes do Ga<strong>na</strong> tor<strong>na</strong>ram-se muçulma<strong>na</strong>s em 1076 sob a<br />

influência d<strong>os</strong> lemtu<strong>na</strong>s” (citado por KI-ZERBO, s/d: 147).<br />

Abu Bakr pr<strong>os</strong>seguia em sua tentativa de unificar as trib<strong>os</strong> berberes e com elas<br />

atacar Ga<strong>na</strong>. No entanto, morreu em uma escaramuça por causa de uma flecha<br />

envene<strong>na</strong>da (1087). Ga<strong>na</strong> reconquistou sua independência, mas após a<br />

devastação e saque de sua capital, dez an<strong>os</strong> antes, o reino negro nunca mais<br />

conseguiu recuperar seu antigo poderio. Pelo contrário, as carava<strong>na</strong>s passaram a<br />

se desviar <strong>das</strong> rotas que privilegiavam o coração de Ga<strong>na</strong>, e <strong>os</strong> comerciantes<br />

passaram a optar por Tombuctu, Gao e Dje<strong>na</strong>. Os muçulman<strong>os</strong> ric<strong>os</strong> se refugiaram<br />

em Walata, especialmente depois do segundo saque da capital, Kumbi, em 1203,<br />

por parte do rei s<strong>os</strong>so Sumaoro Kanté. Paralelo a esse declínio comercial<br />

aprofundou-se o processo de islamização <strong>das</strong> etnias negras, embora sem nunca<br />

atingir to<strong>das</strong> as cama<strong>das</strong> da população – e, de resto, o islamismo negro era<br />

bastante mesclado com práticas animistas.<br />

VIII. O Império de Mali (c. 1235-1500)<br />

A queda do Império de Ga<strong>na</strong> abriu um vácuo de poder. A grande questão era:<br />

quem tomaria agora o controle <strong>das</strong> rotas comerciais próximas <strong>das</strong> fontes<br />

auríferas? Os almorávi<strong>das</strong> fracassaram em sua tentativa de monopolizar o tráfico.<br />

O reino que parecia mais próximo de conseguir esse intento era o reino s<strong>os</strong>so d<strong>os</strong><br />

Kantés, ao sul de Ga<strong>na</strong>. Em 1180, surgiu um guerreiro, Diarra Kanté, de um clã de<br />

ferreir<strong>os</strong> animistas adversári<strong>os</strong> do Islão. Feiticeiro fam<strong>os</strong>o e de prestígio, Kanté<br />

conseguiu tomar a cidade de Kumbi Saleh, mas sem ocupar as jazi<strong>das</strong> de ouro,<br />

controla<strong>das</strong> agora por uma tribo de camponeses, <strong>os</strong> malinqués (“homem de Mali”).<br />

Kanté, após domi<strong>na</strong>r o Dyara, o Bakunu e o Bumbu, apoderou-se da região do<br />

Buré.<br />

35. Mapa do Império de Mali (século XIV)<br />

Kanté foi um pequeno interregno entre dois impéri<strong>os</strong>, Ga<strong>na</strong> e Mali. Quanto ao<br />

segundo, não se conhecem as origens do reino de Mali (ou Mandinga). Diferentes<br />

etnias viviam <strong>na</strong>quela região. Seus chefes se diziam “caçadores-mágic<strong>os</strong>”, tod<strong>os</strong>


com rit<strong>os</strong> iniciatóri<strong>os</strong> mais ou men<strong>os</strong> comuns. Esses clãs estavam unid<strong>os</strong> pelo<br />

chamado “parentesco de brincadeira”, isto é, um curi<strong>os</strong>o direito e dever de fazer<br />

troça uns a<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>. O chefe gozava do monopólio <strong>das</strong> pepitas de ouro. A<br />

estrutura social baseava-se em uma grande família que dispunha de um campo<br />

comunitário (foroba) próximo à aldeia. Logo um d<strong>os</strong> herdeir<strong>os</strong> s<strong>os</strong>so tomou o título<br />

de mansa (ou maghan), isto é, imperador.<br />

Paralelo a esse processo de integração por parte d<strong>os</strong> s<strong>os</strong>so acontecia a conversão<br />

ao Islamismo. Baramenda<strong>na</strong> foi o primeiro rei a se converter, graças ao pai de Abu<br />

Bakr, em 1050. A tradição conta que Baramenda<strong>na</strong> estava desesperado por causa<br />

de uma longa seca. Então se dirigiu a um devoto lemtu<strong>na</strong> que o levou a um monte<br />

para passar uma noite rezando. Pela manhã choveu, e o rei mandou destruir <strong>os</strong><br />

ídol<strong>os</strong> animistas e se converteu ao Islamismo.<br />

36. O Império de Mali com seus rein<strong>os</strong> “vassal<strong>os</strong>” (século XIV)<br />

In: KI-ZERBO, J<strong>os</strong>eph. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 165.<br />

A partir de 1150 se conhece relativamente bem a cronologia d<strong>os</strong> reis de Mali.<br />

Hama<strong>na</strong>, Djigui Bilali (1175-1200), Mussa Keita, Naré Famaghan (1218-1230) e<br />

principalmente Sundjata (ou Mari Djata, o “Leão do Mali”), tod<strong>os</strong> com estórias<br />

rechea<strong>das</strong> de len<strong>das</strong> e mit<strong>os</strong> e transmiti<strong>das</strong> também pel<strong>os</strong> griot, <strong>os</strong> “transmissores<br />

de ouvido” de cada etnia que passam de geração para geração as tradições de sua<br />

cultura.<br />

Na época de Sundjata, Mali era um reino essencialmente agrícola. Os malinqués<br />

desenvolveram a cultura do algodão, do amendoim e da papaia, além da criação<br />

de gado. Sundjata instituiu uma associação de trinta clãs (de artesã<strong>os</strong>, de<br />

guerreir<strong>os</strong>, de homens livres – que, no entanto, eram chamad<strong>os</strong> de “escrav<strong>os</strong> da<br />

coletividade”, <strong>os</strong> ton dyon). Com o crescimento do reino, a categoria d<strong>os</strong> escrav<strong>os</strong><br />

se multiplicou – recorde que sempre <strong>os</strong> rein<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> praticaram a escravidão.<br />

Com o filho de Sundjata, Mansa Ulé (1255-1270) e seus sucessores – Abubakar I,<br />

Sakura, Abubakar II – até Mansa Mussa (ou Kandu Mussa, 1312-1332), o reino de<br />

Mali passou a ser conhecido no mundo ocidental. Em 1324, Mansa Mussa realizou<br />

uma peregri<strong>na</strong>ção a Meca, passando pelo Egito e com a intenção de maravilhar <strong>os</strong>


soberan<strong>os</strong> árabes.<br />

37. Figura sentada, Mali (século XIII)<br />

Observe as feições alonga<strong>das</strong> do r<strong>os</strong>to do perso<strong>na</strong>gem, aliás, de todo o corpo. Pode-se, assim, ter uma noção<br />

do tipo físico predomi<strong>na</strong>nte então, além de uma contemplação de p<strong>os</strong>turas e gest<strong>os</strong> corporais.<br />

O Tarikh es Soudan! (1655), de autoria do mouro Es Saadi, n<strong>os</strong> informa que ele<br />

atravessou o deserto passando por Walata e pelo Tuat com 60.000 mil servidores<br />

(escrav<strong>os</strong>), evidentemente um exagero – as cifras hoje estão por volta de 500.<br />

(HEERS, 1983: 79). Chegou ao Cairo com cerca de duas tonela<strong>das</strong> de ouro (!), em<br />

pó e em pepitas. O cronista Al-Omari (†1349) n<strong>os</strong> conta:<br />

Quando da minha primeira viagem ao Cairo, ouvi falar da vinda do sultão Mussa (...) E encontrei <strong>os</strong> habitantes<br />

do Cairo tod<strong>os</strong> excitad<strong>os</strong> a contarem as largas despesas que haviam visto fazer às suas gentes. Este homem<br />

espalhou pelo Cairo on<strong>das</strong> de gener<strong>os</strong>idade. Não deixou ninguém, oficial da coroa ou titular de qualquer<br />

função sultânica, sem receber dele uma quantia em ouro. Que nobre aspecto tinha este sultão! Que dignidade<br />

e que lealdade! (citado por KI-ZERBO, s/d: 171)<br />

Mansa Mussa foi tão gener<strong>os</strong>o que ao sair do Cairo foi obrigado a pedir um<br />

empréstimo a um riquíssimo mercador de Alexandria, para que pudesse manter<br />

sua largueza até chegar a Meca...<br />

Sua peregri<strong>na</strong>ção fez o Império de Mali ser conhecido por todo o mundo, e <strong>os</strong><br />

mapas europeus passaram a citá-lo. Por exemplo, o de Angelo Dulcert Portolano<br />

(1339), e o Atlas catalão de Abraão Cresques (1375), elaborado para o rei da<br />

França Carl<strong>os</strong> V, o Sábio, que traz nitidamente o nome da capital (Ciutat de Melli),<br />

além do rei de Mali, Mansa Mussa, sentado em seu trono e segurando uma pepita<br />

de ouro.<br />

38. Mapa do Norte da África (manuscrito catalão de 1375)


Este mapa catalão do século XIV do Norte da África tem quatro reis, três african<strong>os</strong>: o rei Mansa Musa de Mali<br />

(sentado, com uma gema de ouro <strong>na</strong> mão direita), o rei de Orga<strong>na</strong>, o rei da Núbia e o rei da Babilônia.<br />

39. Detalhe do mapa do Norte da África (manuscrito catalão de 1375)<br />

Os dois númer<strong>os</strong> em vermelho marcam dois text<strong>os</strong>. São eles: 1. “Toda esta parte tem gentes que ocultam a<br />

boca; só se vêem seus olh<strong>os</strong>. Vivem em ten<strong>das</strong> e têm carava<strong>na</strong>s de camel<strong>os</strong>. Também p<strong>os</strong>suem animais de<br />

cujas peles fazem excelentes escud<strong>os</strong>”. 2. “Este senhor negro é aquele muito melhor senhor d<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> de<br />

Guiné. Este rei é o mais rico e o mais nobre senhor de toda esta parte, com abundância de ouro <strong>na</strong> sua terra”<br />

(tradução literal). Observe que embaixo do globo de ouro que o imperador Mansa Musa segura <strong>na</strong> mão direita<br />

está a representação da cidade de Tumbuctu. In: DAVIDSON, Basil. “Os Impéri<strong>os</strong> African<strong>os</strong>”, História em<br />

Revista (1300-1400). A Era da Calamidade. Rio de Janeiro: Abril Livr<strong>os</strong> / Time-Life, 1992, p. 149.<br />

De regresso para Mali, o imperador trouxe consigo um poeta-arquiteto, Abu Issak,<br />

mais conhecido como Es Saheli. Com ele, construiu a grande mesquita de Djingerber,<br />

em Tumbuctu.<br />

Os sucessores de Mansa Mussa tiveram dificuldades de manter um território tão<br />

vasto. Depois de Maghan (1332-1336), até Mussa II (1374-1387), o reino de Mali<br />

viu Tumbuctu ser saqueada, além de sucessiv<strong>os</strong> assassi<strong>na</strong>t<strong>os</strong> palacian<strong>os</strong> que<br />

enfraqueceram o império. Lentamente a hegemonia passava para o reino de Gao,<br />

que anexava uma a uma as províncias do leste, além de tomar a cidade de Dje<strong>na</strong>,<br />

metrópole comercial. No fi<strong>na</strong>l do século XV o Tekrur passou para <strong>os</strong> domíni<strong>os</strong> do<br />

estado volofo. Houve um curto período confuso entre a hegemonia do Mali e do<br />

Gao. Várias etnias foram arrasta<strong>das</strong> para o movimento d<strong>os</strong> peules do Bundu,<br />

conduzido por Tenguella I (chamado de “o Libertador”). O imperador do Mali<br />

tentou até uma aliança com D. João II de Portugal, mas nenhuma <strong>das</strong> missões<br />

portuguesas parece ter chegado a seu destino.<br />

40. Mesquita de Djinger-ber, em Tumbuctu (século XIV)


Ela preserva o mesmo estilo africano, tanto no tipo de material da construção quanto no estilo, reto, simples e<br />

vertical. Observe <strong>os</strong> paus enfiad<strong>os</strong> <strong>na</strong>s paredes (como <strong>na</strong>s outras mesquitas exibi<strong>das</strong> <strong>na</strong>s demais imagens):<br />

são andaimes usad<strong>os</strong> ao longo d<strong>os</strong> sécul<strong>os</strong> para restaurar <strong>os</strong> edifíci<strong>os</strong> de adobe e estuque, após o castigo<br />

sofrido pela construção <strong>na</strong>s concentra<strong>das</strong> e breves chuvas anuais.<br />

VIII.1. A religião em Mali<br />

Como tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> rein<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> islamizad<strong>os</strong> desse período, a religião em Mali era um<br />

misto de várias influências, especialmente as pagãs. Por exemplo, Mussa<br />

desconhecia a interdição do Corão de ter mais de quatro mulheres, e <strong>os</strong> malinqués<br />

comiam carnes proibi<strong>das</strong> pelo Islão. Sacerdotes com máscaras de aves praticavam<br />

rit<strong>os</strong> animistas <strong>na</strong> corte. Em contrapartida, as festas religi<strong>os</strong>as islâmicas eram<br />

celebra<strong>das</strong> com grande pompa. As crianças aprendiam o Alcorão, às vezes com<br />

dur<strong>os</strong> castig<strong>os</strong> – eram p<strong>os</strong>tas a ferro, por exemplo.<br />

VIII.2. O imperador e sua corte em Mali (a descrição é de Ibn Batuta)<br />

O cronista muçulmano Ibn Batuta (1307-1377), um d<strong>os</strong> maiores viajantes da<br />

Idade Média, chegou a Mali quinze an<strong>os</strong> depois da morte de Mansa Musa, entre <strong>os</strong><br />

an<strong>os</strong> 1352-1353. Em um belo texto medieval, esse notável cronista muçulmano<br />

n<strong>os</strong> informa o fausto da corte do imperador de Mali (o texto explicativo em<br />

parênteses é de minha autoria):<br />

O sultão tem uma cúpula elevada, cuja porta se encontra no interior de seu palácio e onde ele se senta com<br />

freqüência. Tem do lado <strong>das</strong> audiências três janelas em arco, de madeira, cobertas de placas de prata, e por<br />

baixo delas três outras guarneci<strong>das</strong> de lâmi<strong>na</strong>s de ouro ou de prata dourada. Estas janelas têm corti<strong>na</strong>d<strong>os</strong> de<br />

lã que são levantad<strong>os</strong> no dia da audiência do sultão <strong>na</strong> cúpula (...) Da porta do castelo saem trezent<strong>os</strong><br />

escrav<strong>os</strong>, uns com arc<strong>os</strong> <strong>na</strong> mão, outr<strong>os</strong> com peque<strong>na</strong>s lanças e escud<strong>os</strong>. Uns estão sentad<strong>os</strong>, outr<strong>os</strong> de pé. À<br />

chegada do rei, três escrav<strong>os</strong> precipitam-se para chamar o seu lugar-tenente. Chegam <strong>os</strong> comandantes, assim<br />

como o pregador, <strong>os</strong> sábi<strong>os</strong> juristas, que se sentam à esquerda e à direita, diante d<strong>os</strong> homens de armas. À<br />

porta, de pé, o intérprete dougha em grande aparato.<br />

Está soberbamente vestido, em seda fi<strong>na</strong>. O seu turbante está or<strong>na</strong>do de franjas, que estas gentes sabem<br />

fazer admiravelmente. Tem um sabre a tiracolo, cuja bainha é de ouro. N<strong>os</strong> pés botas e esporas (...) Tem <strong>na</strong><br />

mão duas lanças curtas. Uma é de prata, a outra é de ouro. As pontas são de ferro. Os militares, o<br />

gover<strong>na</strong>dor, <strong>os</strong> pajens ou eunuc<strong>os</strong> e <strong>os</strong> mesufitas (mercadores berberes e sarakholés) estão sentad<strong>os</strong> no<br />

exterior do lugar <strong>das</strong> audiências, numa longa rua, vasta e com árvores. Cada comandante tem diante de si <strong>os</strong><br />

seus homens, com as suas lanças, <strong>os</strong> seus arc<strong>os</strong>, <strong>os</strong> seus tambores, as suas trompas, enfim, com <strong>os</strong> seus<br />

instrument<strong>os</strong> de música feit<strong>os</strong> com caniç<strong>os</strong> e cabaças, em que se bate com baquetas e que dão um som<br />

agradável (as trompas eram feitas de marfim <strong>das</strong> presas de elefantes). Cada um d<strong>os</strong> comandantes tem sua<br />

aljava às c<strong>os</strong>tas. Tem o seu arco à mão e anda a cavalo (...) No interior da sala de audiências e <strong>na</strong>s janelas<br />

vê-se um homem de pé. Quem desejar falar ao rei dirige-se primeiro ao dougha. Este fala ao dito perso<strong>na</strong>gem<br />

que está de pé e este último ao soberano.<br />

Instala-se então um grande estrado com três degraus debaixo de uma árvore. É o pempi. (segundo Al-Omari,<br />

o pempi era uma grande cadeira de ébano, parecida com um trono, com as medi<strong>das</strong> adequa<strong>das</strong> a uma<br />

perso<strong>na</strong>gem alta e gorda. De cada lado, uma defesa de elefante a cobri-lo, uma em frente da outra). É


coberto de seda e guarnecido de almofa<strong>das</strong>. Por cima instala-se o guarda-sol, que parece uma cúpula de seda,<br />

no alto da qual se vê uma ave do tamanho de um gavião. O rei sai por uma porta aberta num ângulo do<br />

castelo. Tem o seu arco à mão e a aljava às c<strong>os</strong>tas. Traz <strong>na</strong> cabeça um solidéu de ouro, fixado por uma<br />

peque<strong>na</strong> faixa também de ouro, cujas extremidades são pontiagu<strong>das</strong> como facas e com mais de um palmo de<br />

comprimento. Na maioria <strong>das</strong> vezes, traz uma túnica vermelha e felpuda, feita com tecid<strong>os</strong> de fabricação<br />

européia chamad<strong>os</strong> mothanfas. Diante dele saem <strong>os</strong> cantores, tendo <strong>na</strong> mão um ka<strong>na</strong>bir de ouro e de prata (O<br />

ka<strong>na</strong>bir era uma calhandra, isto é, uma espécie de cotovia, sabiá-do-campo).<br />

Atrás dele encontram-se cerca de trezent<strong>os</strong> escrav<strong>os</strong> armad<strong>os</strong>. O soberano caminha lentamente. Aproxima-se<br />

devagar e pára mesmo de vez em quando. Chegado ao pempi, deixa de caminhar e olha para <strong>os</strong> assistentes.<br />

Em seguida, sobe lentamente o estrado, como o pregador sobe ao púlpito. Uma vez sentado, tocam-se <strong>os</strong><br />

tambores e fazem-se soar as trompas e as trombetas. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 176-177.)<br />

Alguns d<strong>os</strong> pajens escrav<strong>os</strong> do rei eram comprad<strong>os</strong> no Cairo. Era expressamente<br />

proibido espirrar em sua presença. Os cortesã<strong>os</strong> vestiam-se de branco, com<br />

tecid<strong>os</strong> de algodão cultivado <strong>na</strong> própria terra. As jovens e mulheres escravas, em<br />

contrapartida, andavam completamente nuas, para escândalo de Ibn Batuta. Ele<br />

ainda estranhou a comida: “Dez dias depois de n<strong>os</strong>sa chegada, comem<strong>os</strong> um<br />

mingau que eles preferem a qualquer outra comida. Na manhã seguinte,<br />

estávam<strong>os</strong> tod<strong>os</strong> doentes”. (citado por DAVIDSON, op. cit.: 150)<br />

VIII.3. A organização política e a vida econômica<br />

VIII.3. A organização política e a vida econômica<br />

No século XVI, tempo de Mahmud Kati, historiador e conselheiro do Askia<br />

Mohammed, o império tinha cerca de quatrocentas cidades e vilas. O sistema de<br />

governo era descentralizado. Era dividido em províncias, administra<strong>das</strong> por um<br />

dyamani tigui (ou farba). As províncias eram subdividi<strong>das</strong> em conselh<strong>os</strong> (kafo) e<br />

aldeias (dugu). A autoridade da aldeia poderia ser bicéfala: um chefe político,<br />

outro religi<strong>os</strong>o. O farba recolhia imp<strong>os</strong>t<strong>os</strong> e requisitava tropas, caso necessário.<br />

Havia ainda rein<strong>os</strong> subordi<strong>na</strong>d<strong>os</strong> que reconheciam a hegemonia do imperador,<br />

enviando regularmente presentes.<br />

Um d<strong>os</strong> segred<strong>os</strong> do Império de Mali foi a maleabilidade de seu sistema político,<br />

única lógica p<strong>os</strong>sível em uma estrutura sem burocracia, além da tolerância<br />

religi<strong>os</strong>a. Pov<strong>os</strong> tão variad<strong>os</strong> como <strong>os</strong> tuaregues, <strong>os</strong> songais, <strong>os</strong> malinqués e <strong>os</strong><br />

peules, reconheceram, durante mais de cem an<strong>os</strong>, a soberania do imperador de<br />

Mali. Há um elogio do cronista Ibn Batuta que expressa bem esse sentimento de<br />

confiança no funcio<strong>na</strong>mento da estrutura do império:<br />

*<br />

Não é necessário andar de carava<strong>na</strong>. A segurança é completa e geral em todo o país (...) O sultão não perdoa<br />

a ninguém que se torne culpado de injustiça (...) O viajante, tal como o homem sedentário, não tem a temer<br />

<strong>os</strong> malfeitores, nem <strong>os</strong> ladrões, nem <strong>os</strong> que vivem de pilhagem. Os pret<strong>os</strong> não confiscam <strong>os</strong> bens d<strong>os</strong> homens<br />

branc<strong>os</strong> que venham a morrer <strong>na</strong>s suas terras, ainda mesmo que se trate de tesour<strong>os</strong> imens<strong>os</strong>. Dep<strong>os</strong>itamn<strong>os</strong>,<br />

pelo contrário, em mã<strong>os</strong> de um homem de confiança dentre <strong>os</strong> branc<strong>os</strong>, até que se apresentem aqueles a<br />

quem revertam por direito e tomem conta deles. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 180)<br />

Esse é um belo testemunho da grandeza do Mali, feito pelo maior viajante da<br />

época.<br />

IX. O Império Songai (de Gao)<br />

41. Máxima extensão do Império de Songai (século XVI)


Uma <strong>das</strong> características mais perenes <strong>das</strong> sociedades pré-industriais e iletra<strong>das</strong><br />

(ou semiletra<strong>das</strong>) é a existência de mit<strong>os</strong> de origem relacio<strong>na</strong>d<strong>os</strong> à cultura e<br />

especialmente ao poder monárquico, além de suas manifestações sociais, tod<strong>os</strong><br />

mit<strong>os</strong> originári<strong>os</strong> <strong>das</strong> tradições orais africa<strong>na</strong>s (Controversial Origins). Além disso,<br />

<strong>os</strong> homens <strong>das</strong> sociedades pré-industriais também tinham uma forma bastante<br />

distinta de se relacio<strong>na</strong>r com o mundo (a <strong>na</strong>tureza) e com seus animais. O caso do<br />

Império de Songai (ou de Gao) é um deles. Sua estória começa com o mito do<br />

feiticeiro Faran Makan Boté. Ele <strong>na</strong>sceu de um pai sorko e uma “mãe-fada ligada<br />

a<strong>os</strong> espírit<strong>os</strong> <strong>das</strong> águas”. Ao subir o rio, Makan Boté se aliou a<strong>os</strong> caçadores gows e<br />

pescadores sork<strong>os</strong>, e passou a exercer as funções de grande sacerdote (kanta)<br />

junto a camponeses <strong>na</strong> região de Tillabery. Assim teriam <strong>na</strong>scido as energias<br />

mágicas do Songai. (KI-ZERBO, op. cit.: 181)<br />

Mas a lenda não pára aqui. Por volta do ano 500, príncipes berberes chegaram às<br />

margens da curva do rio Níger e libertaram <strong>os</strong> pescadores sork<strong>os</strong> e camponeses<br />

gabibis do terror de um peixe-feiticeiro (seria um descendente de Makan Boté). O<br />

autor da façanha teria sido Za Aliamen, e a partir de então sua di<strong>na</strong>stia rei<strong>na</strong>ria<br />

em Kukya até 1335 (no mapa acima, a região assi<strong>na</strong>lada entre Tumbuctu e Gao).<br />

Por volta de 1009, Diá K<strong>os</strong>soi, décimo-quinto rei da di<strong>na</strong>stia fundada por Za<br />

Aliamen, fixou sua capital em Gao. Ele foi o primeiro rei a se converter ao<br />

Islamismo. Já no século XI, Gao rivalizava com a cidade de Kumbi, capital de Mali.<br />

Esse surto de desenvolvimento despertou a cobiça d<strong>os</strong> malinqués: em 1325, Gao<br />

foi conquistada pelo Império de Mali, mas em 1337, dois irmã<strong>os</strong> e príncipes<br />

songaleses – Ali Kolen (ou Golon) e Suleiman Nar – conseguiram se desvencilhar<br />

da domi<strong>na</strong>ção mali, e Ali Kolen fundou a nova di<strong>na</strong>stia d<strong>os</strong> Sis (ou Sonnis).<br />

Suleiman Daman (ou Dandi), décimo-oitavo rei da di<strong>na</strong>stia Sonni, teria<br />

conquistado a cidade de Mesma, mas foi com Sonni Ali (1464-1493), ou Ali Ber (o<br />

Grande), ou ainda Dali (o Altíssimo), imperador songai e grande feiticeiro, é que o<br />

império se afirmou definitivamente. Sonni Ali conquistou Tumbuctu – então sob o<br />

domínio tuaregue –, realizando um verdadeiro massacre (1468), motivo pelo qual<br />

<strong>os</strong> escritores muçulman<strong>os</strong> terem-no apresentado como um tirano sanguinário, um<br />

ímpio. (Sunni Ali)<br />

42. Representação de Sonni Ali, o Grande (1464-1493)


Ali também conquistou Djenne (1473), após noventa e nove tentativas (!) d<strong>os</strong><br />

malinqués de se apoderar de volta da cidade, além do centro de Maci<strong>na</strong>, um pouco<br />

mais ao norte. Abriu ainda um ca<strong>na</strong>l d‟água a oeste do lago Faguibine (ver imagem<br />

42) e ordenou a redação <strong>das</strong> atas oficiais do reino. Com sua morte, em 1492, seu<br />

filho Sonni Bakary assumiu a coroa, mas reinou somente um ano.<br />

Em seguida, houve uma tomada do poder: o filho de Sonni renegou a fé islâmica e<br />

um lugar-tenente chamado Mohammed Torodo, assumiu o trono, com o nome de<br />

Askia Mohammed, com a ajuda d<strong>os</strong> ulemás, corpo de estudi<strong>os</strong><strong>os</strong>. (HOURANI, op.<br />

cit.: 77)<br />

Como Mussa, Askia também realizou uma luxu<strong>os</strong>a peregri<strong>na</strong>ção a Meca em 1496,<br />

com quinhent<strong>os</strong> cavaleir<strong>os</strong> e mil homens a pé. Esse mini-exército de escrav<strong>os</strong> e<br />

homens livres levava consigo 300.000 peças de ouro, um terço distribuído em<br />

esmolas durante a viagem. No Hedjaz, Askia conseguiu do califa o título de “califa<br />

do Sudão”: Khalifatu biladi al-Tekrur.<br />

Do califa Mohammed até Askia Ishak I (1539-1549), o império adquiriu cada vez<br />

mais territóri<strong>os</strong>, graças às guerras – e apesar <strong>das</strong> intrigas e assassi<strong>na</strong>t<strong>os</strong> polític<strong>os</strong><br />

palacian<strong>os</strong>. Por exemplo, no tempo de Askia Mohammed Bunkan (1531-1537), o<br />

imperador de Songai tinha uma grande corte com um harém, seus cortesã<strong>os</strong><br />

recebiam roupas de fazenda e braceletes (mantendo a tradição medieval do<br />

soberano vestir, literalmente, seus convivas) e uma orquestra, com nov<strong>os</strong><br />

instrument<strong>os</strong> (trombetas e tambores) acompanhava o príncipe em suas viagens. A<br />

guarda pessoal do soberano era comp<strong>os</strong>ta de 1.700 homens. O império então se<br />

estendia por mais de dois mil quilômetr<strong>os</strong>, de Teghazza ao país d<strong>os</strong> m<strong>os</strong>si (norte a<br />

sul), de Agades a Tekrur (leste a oeste)<br />

43. Mapa do Império de Songai (Gao) e de seus vassal<strong>os</strong> (século XVI)


In: KI-ZERBO, op. cit.: 181.<br />

Mais bem organizado e estruturado que o império de Mali, Songai estava fundado<br />

em torno da pessoa do imperador. No dia de sua entronização, ele recebia um<br />

selo, uma espada e um Corão, além de conservar dois atribut<strong>os</strong> mágic<strong>os</strong> antig<strong>os</strong>:<br />

o tambor e o fogo sagrado (dinturi). A corte obedecia a um rígido protocolo: por<br />

exemplo, o cuspe do príncipe não podia cair no chão, sendo recolhido <strong>na</strong>s mangas<br />

de qualquer um d<strong>os</strong> setecent<strong>os</strong> homens vestid<strong>os</strong> de seda que o acompanhavam.<br />

Como em Mali, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> que se aproximavam dele deveriam cobrir a cabeça de pó,<br />

com raras exceções (no caso do general do exército, este utilizava farinha).<br />

A formação do exército, dividido por sua vez em vári<strong>os</strong> corp<strong>os</strong>, reestruturou a<br />

sociedade: isento de ir à guerra, o povo trabalhava <strong>na</strong> terra, <strong>na</strong> produção<br />

artesa<strong>na</strong>l e no comércio. A “burocracia” era muito estratificada (citem<strong>os</strong> ape<strong>na</strong>s<br />

alguns carg<strong>os</strong>): <strong>os</strong> alt<strong>os</strong> funcionári<strong>os</strong> (<strong>os</strong> koy, <strong>os</strong> fari), ministr<strong>os</strong> e gover<strong>na</strong>dores<br />

<strong>das</strong> montanhas (tondi-fari), feiticeiras (que tinham a permissão de dirigirem-se ao<br />

imperador pelo nome), o gover<strong>na</strong>dor da província (gurma-fari) que era o celeiro<br />

agrícola do império, o ministro da <strong>na</strong>vegação fluvial (hi-hoy), o chefe d<strong>os</strong><br />

cobradores de imp<strong>os</strong>t<strong>os</strong> (fari-mondyo), o sacerdote do culto a<strong>os</strong> antepassad<strong>os</strong><br />

(horé-farima), o inspetor <strong>das</strong> florestas (sao-farima), o chefe d<strong>os</strong> pescadores (hokoy),<br />

e ministro encarregado d<strong>os</strong> homens branc<strong>os</strong> residentes no império (koreyfarima).<br />

Tod<strong>os</strong> eram nomead<strong>os</strong> e demitid<strong>os</strong> pelo imperador a seu bel-prazer.<br />

A economia songai é hoje calculada com base no número de escrav<strong>os</strong> disponíveis<br />

para o trabalho no campo. Por exemplo, uma terra com duzent<strong>os</strong> escrav<strong>os</strong> deveria<br />

produzir cerca de 250 tonela<strong>das</strong> de arroz por ano (1.000 sunus). O historiador Ki-<br />

Zerbo descarta a p<strong>os</strong>sibilidade de comparação desse sistema escravocrata com o<br />

feudalismo europeu, embora defenda um princípio semelhante para o caso<br />

africano: a existência do sistema religi<strong>os</strong>o-simbólico de dádiva e contra-dádiva<br />

atenuava a opressão escravocrata. Pois o que interessava ao senhor da terra era<br />

ter o maior número de famílias e aldeias de serv<strong>os</strong>, não ape<strong>na</strong>s a exploração<br />

econômica. (KI-ZERBO, op. cit.: 187-188)<br />

Isso certamente é um caráter análogo ao sistema sócio-econômico vigente cerca<br />

de quatrocent<strong>os</strong> an<strong>os</strong> antes <strong>na</strong> Europa medieval. Esse sistema, também chamado<br />

de dom e contra-dom, está bem expresso em um documento, escrito pelo<br />

historiador soninké de Tumbuctu, Mahmud Kati (Tarikh el-Fettach – a Crônica do<br />

Buscador – obra escrita em 1520). Nele, há um interessante e expressivo diálogo<br />

em que o imperador Askia Daud concede a liberdade a uma escrava. Ela, por sua<br />

vez, sentindo-se presa a ele, declara:


É necessário que eu te traga um tributo para que, com ele, te lembres de mim. Será de duas barras de sabão<br />

no princípio de cada ano.<br />

Então o imperador respondeu:<br />

E eu também quero, para obter o perdão do Altíssimo e a Sua indulgência, mandar-te pagar um tributo, que<br />

receberás de mim no princípio de cada ano e que será constituído por uma barra inteira de sal e por um<br />

grande pano preto. Aceita-o, pelo amor de Deus. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 188)<br />

44. Pági<strong>na</strong> de um manuscrito de Mahmud Kati (1485)<br />

Observe <strong>os</strong> comentári<strong>os</strong> do próprio autor escrit<strong>os</strong> <strong>na</strong>s margens.<br />

O ouro e o sal serviam de moeda corrente em Songai, mas a principal moeda eram<br />

<strong>os</strong> cauris, conchas de molusc<strong>os</strong> utiliza<strong>das</strong> como moeda de troca até mead<strong>os</strong> do<br />

século XIX – e isso do Sudão à Chi<strong>na</strong>. De qualquer modo, <strong>os</strong> imperadores Askias<br />

procederam a uma unificação de pes<strong>os</strong> e medi<strong>das</strong> para evitar fraudes.<br />

As cidades do império eram bastante popul<strong>os</strong>as, e parece que suas gentes se<br />

orgulhavam disso. Um trecho da mesma obra de Mahmud Kati ilustra muito bem<br />

esse sentimento de auto-estima:<br />

Tendo surgido uma contenda entre as gentes de Gao e as de Cano quanto a saber qual <strong>das</strong> duas cidades era a<br />

mais popul<strong>os</strong>a, frementes de impaciência, jovens de Tombuctu e alguns habitantes de Gao intervieram e,<br />

pegando em papel, em tinta e em pe<strong>na</strong>s entraram <strong>na</strong> cidade de Gao e puseram-se a contar <strong>os</strong> grup<strong>os</strong> de<br />

casas, começando pela primeira habitação a oeste da cidade, e a inscrevê-las uma após a outra, “casa de<br />

fulano”, “casa de sicrano”, até chegarem às últimas construções da cidade, do lado leste. A operação levou<br />

três dias e contaram-se 7.626 casas, sem incluir as cubatas construí<strong>das</strong> de palha. (citado por KI-ZERBO, op.<br />

cit.: 189)<br />

Esse certamente é um d<strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> cens<strong>os</strong> conhecid<strong>os</strong> em África, talvez mesmo<br />

um d<strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> do fim da Idade Média européia. Com ele, <strong>os</strong> historiadores<br />

puderam calcular uma população citadi<strong>na</strong> de cerca de 100.000 habitantes.<br />

IX.1. Tumbuctu re<strong>na</strong>sce <strong>na</strong> pe<strong>na</strong> de Al-Hasan (1483-1554)<br />

45. Mesquita songai de Tumbuctu (séc. XVI)


To<strong>das</strong> essas cidades eram grandes centr<strong>os</strong> de estud<strong>os</strong>, especialmente d<strong>os</strong> text<strong>os</strong><br />

religi<strong>os</strong><strong>os</strong> e de Direito (notadamente a jurisprudência). Em sua obra Descrição da<br />

África (1526), o gra<strong>na</strong>dino Al Hasan, chamado de Leão, o Africano (al-Hasan ibn<br />

Muhammad al Wazzân az-Zayâtî, 1483-1554), n<strong>os</strong> dá preci<strong>os</strong>as e claras<br />

informações sobre a cidade de Tumbuctu (<strong>os</strong> comentári<strong>os</strong> em parênteses são<br />

meus):<br />

O reino recebeu recentemente esse nome, depois que uma cidade foi construída por um rei chamado Mansa<br />

Suleyman, no ano 610 da Hégira (1232), próxima doze milhas de uma filial do rio Níger (Mansa Suleiman<br />

reinou n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 1336-1359. Na verdade, a cidade de Tumbuctu foi provavelmente fundada no século XI pel<strong>os</strong><br />

tuaregues, e antes foi capital do reino de Mali em 1324).<br />

As casas de Tombuctu são choupa<strong>na</strong>s feitas de pau-a-pique de argila, cobertas com telhad<strong>os</strong> de palha. No<br />

centro da cidade há um templo construído de pedra e de almofariz por um arquiteto de nome Gra<strong>na</strong>ta. (Ishak<br />

es Sahili el-Ghar<strong>na</strong>ti, trazido para Tumbuctu por Mansa Suleiman)<br />

Além do templo, há um grande palácio também construído pelo mesmo arquiteto, onde o rei vive. As lojas d<strong>os</strong><br />

artesã<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> comerciantes, e, especialmente, as d<strong>os</strong> tecelões de pano de algodão, são muito numer<strong>os</strong>as. As<br />

telas são importa<strong>das</strong> da Europa para Tombuctu, carrega<strong>das</strong> por comerciantes da Barbária. (Por carava<strong>na</strong>s de<br />

camel<strong>os</strong> que passavam pelo deserto do Saara vin<strong>das</strong> da África do Norte)<br />

As mulheres da cidade mantêm o c<strong>os</strong>tume de vendar seus r<strong>os</strong>t<strong>os</strong>, com exceção d<strong>os</strong> escrav<strong>os</strong>, que vendem<br />

tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> gêner<strong>os</strong> alimentíci<strong>os</strong>. Os habitantes são tão ric<strong>os</strong>, especialmente <strong>os</strong> estrangeir<strong>os</strong> que se<br />

estabeleceram no país, que o rei atual deu duas de suas filhas a dois irmã<strong>os</strong>, amb<strong>os</strong> homens de negóci<strong>os</strong>, pois<br />

era ciente de suas riquezas. (O autor se refere a Omar ben Mohammed Naddi, que não era de fato o rei, mas<br />

um representante do rei de Songai)<br />

Há muit<strong>os</strong> poç<strong>os</strong> que contêm água doce em Tumbuctu. Além disso, quando o rio Níger está cheio, ca<strong>na</strong>is<br />

levam a água para a cidade. Grã<strong>os</strong> e animais são abundantes, de modo que o consumo de leite e de manteiga<br />

é considerável. Contudo, o fornecimento de sal é fraco, porque ele é levado daqui para Tegaza, que fica cerca<br />

de 500 milhas de Tumbuctu. Eu mesmo estava <strong>na</strong> cidade no momento em que uma carga de sal foi vendida<br />

por oito ducad<strong>os</strong>. O rei tem um rico tesouro rico de moe<strong>das</strong> e pepitas de ouro. Uma dessas pepitas pesa 970<br />

libras. (Como vim<strong>os</strong>, <strong>os</strong> escritores muçulman<strong>os</strong> mencio<strong>na</strong>m freqüentemente as fabul<strong>os</strong>as pepitas de ouro<br />

africa<strong>na</strong>s, mas atualmente há a tendência de se considerar <strong>os</strong> tamanh<strong>os</strong> descrit<strong>os</strong> por eles um exagero)<br />

A corte real é magnífica e muito bem organizada. Quando o rei vai de uma cidade a outra com as gentes de<br />

sua corte, monta um camelo e <strong>os</strong> caval<strong>os</strong> são conduzid<strong>os</strong> manualmente por serv<strong>os</strong>. Se a luta é necessária, <strong>os</strong><br />

serv<strong>os</strong> montam <strong>os</strong> camel<strong>os</strong> e tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> soldad<strong>os</strong> montam <strong>na</strong>s c<strong>os</strong>tas d<strong>os</strong> caval<strong>os</strong>. Quando alguém desejar falar<br />

com o rei, deve ajoelhar-se diante dele e curvar-se ao chão; mas isto é exigido somente daqueles que nunca<br />

falaram nem com o rei, nem com seus embaixadores.<br />

O rei tem aproximadamente 3.000 cavaleir<strong>os</strong> e uma infinidade de soldad<strong>os</strong> de infantaria, tod<strong>os</strong> armad<strong>os</strong> com<br />

arc<strong>os</strong> feit<strong>os</strong> de funcho selvagem, e com o qual disparam setas envene<strong>na</strong><strong>das</strong>. (Funcho é uma planta aromática<br />

e ram<strong>os</strong>a, de grande importância medici<strong>na</strong>l)<br />

Este rei faz a guerra somente contra <strong>os</strong> inimig<strong>os</strong> vizinh<strong>os</strong> e contra aqueles que não aceitam lhe pagar tributo.<br />

Quando obtêm uma vitória, ele vende tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> inimig<strong>os</strong>, inclusive as crianças, no mercado em Tumbuctu.<br />

Os pobres caval<strong>os</strong> <strong>na</strong>scem pequen<strong>os</strong> neste país. Os comerciantes usam-n<strong>os</strong> para suas viagens e <strong>os</strong> cortesã<strong>os</strong><br />

para mover-se <strong>na</strong> cidade. Os bons caval<strong>os</strong> vêem da Barbária. Chegam em uma carava<strong>na</strong> e, dez ou doze dias


mais tarde, são conduzid<strong>os</strong> ao soberano, que, caso g<strong>os</strong>te, <strong>os</strong> exami<strong>na</strong> e paga apropriadamente por eles.<br />

O rei é um inimigo declarado d<strong>os</strong> judeus. Ele não permitirá que nenhum deles viva <strong>na</strong> cidade. Caso ouça que<br />

um comerciante da Barbária anda ou faz negócio com eles, o rei confisca seus bens. Há numer<strong>os</strong><strong>os</strong> juízes em<br />

Tumbuctu, professores e sacerdotes, tod<strong>os</strong> bem nomead<strong>os</strong> pelo rei, que honra muito as letras. Muit<strong>os</strong> livr<strong>os</strong><br />

escrit<strong>os</strong> à mão e importad<strong>os</strong> da Barbária são vendid<strong>os</strong>. Há mais lucro nesse comércio do que em toda a<br />

mercadoria restante.<br />

Ao invés de dinheiro, são usa<strong>das</strong> pepitas puras de ouro como moeda de troca. Para compras peque<strong>na</strong>s,<br />

escud<strong>os</strong> de cauris trazid<strong>os</strong> da Pérsia; quatrocent<strong>os</strong> cauris igualam um ducado. Seis ducad<strong>os</strong> e dois terç<strong>os</strong><br />

correspondem a uma onça roma<strong>na</strong> de ouro. (Como vim<strong>os</strong>, <strong>os</strong> cauris eram conchas de molusc<strong>os</strong> utiliza<strong>das</strong><br />

como moeda, desde o Sudão até a Chi<strong>na</strong>; um ducado de ouro sudanês deveria pesar cerca de 15 gramas)<br />

Os pov<strong>os</strong> do Tumbuctu são de <strong>na</strong>tureza calma. Têm um c<strong>os</strong>tume quase regular de caminhar à noite pela<br />

cidade (com exceção daqueles que vendem ouro), entre dez e uma hora da madrugada, tocando instrument<strong>os</strong><br />

musicais e dançando. Os cidadã<strong>os</strong> têm muit<strong>os</strong> escrav<strong>os</strong> a seu serviço, tanto homens quanto mulheres.<br />

A cidade corre muito perigo de incêndi<strong>os</strong>. Quando eu estava lá em minha segunda viagem (provavelmente em<br />

1512), metade da cidade queimou no espaço de cinco horas. Com medo de o vento violento levar o fogo para<br />

a outra metade da cidade e também queimá-la, <strong>os</strong> habitantes começaram a tirar seus pertences.<br />

Não há nenhum jardim ou pomar <strong>na</strong> área que cerca Tumbuctu. (Leo Africanus: Description of Timbuktu, from<br />

The Description of Africa [1526])<br />

IX.2. A educação no Império de Songai<br />

Como em todo o mundo urbano islâmico, a educação era muito incentivada pel<strong>os</strong><br />

potentad<strong>os</strong> locais. Tumbuctu e as demais cidades do Império de Songai tinham<br />

muit<strong>os</strong> professores e uma antiga tradição de centr<strong>os</strong> de estud<strong>os</strong>. Em Tumbuctu,<br />

por exemplo, a universidade de Sankore, organizada em torno de três mesquitas<br />

(Jingaray Ber, Sidi Yahya e Sankore), abrigava já no século XII cerca de 25.000<br />

estudantes, isso em uma população de cerca de 100.00 pessoas, como vim<strong>os</strong>. (ver<br />

University of Timbuktu)<br />

46. Universidade de Sankore, construída por volta do século IX<br />

Doutores atravessavam o deserto para ministrar seus curs<strong>os</strong> ou assistir a alguma<br />

discipli<strong>na</strong> de um colega. O cádi (juiz) de Tumbuctu, Mahmud, inspirava reverência<br />

d<strong>os</strong> Askias e de seus ministr<strong>os</strong> - suas funções eram distintas <strong>das</strong> do gover<strong>na</strong>dor,<br />

pois não tinha deveres polític<strong>os</strong> ou fi<strong>na</strong>nceir<strong>os</strong>, cabendo-lhe somente decidir<br />

conflit<strong>os</strong> e tomar decisões à luz do sistema islâmico de leis (HOURANI, op. cit.: 56)<br />

Muitas vezes o cádi censurava abertamente o imperador n<strong>os</strong> conselh<strong>os</strong>, quando se<br />

sentavam ao lado d<strong>os</strong> generais. Por exemplo, novamente segundo Mahmud Kati<br />

em sua obra Tarikh el-Fettach (1520) – e se acreditarm<strong>os</strong> <strong>na</strong> sinceridade de seu<br />

relato - ele teria dito pessoalmente ao Askia Mohammed, de quem era conselheiro:<br />

Esqueceste ou finges esquecer o dia em que me f<strong>os</strong>te procurar em casa e me pegaste pelo pé e pelas roupas,


dizendo-me “Venho colocar-me sob a tua proteção e confiar-te a minha pessoa para que me livres do fogo do<br />

Inferno”? Foi por esse motivo que pus fora <strong>os</strong> teus enviad<strong>os</strong>. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 190)<br />

Como se vê – e Ki-Zerbo destaca muito bem isso em sua obra – a soberba<br />

universitária tem longa tradição mundo afora, e aqui se misturava ao clericalismo<br />

vigente no século XVI.<br />

47. Universidade de Sankore, construída por volta do século IX (2)<br />

48. Dois professores em Tumbuctu e uma turma corânica em aula<br />

Desse celeiro de estudi<strong>os</strong><strong>os</strong> de Songai, o mais ilustre sem dúvida foi Ahmed Baba<br />

(c. 1556-1620). Nascido em Arauane (dez dias de marcha de Tumbuctu a Tuat),<br />

Baba teria escrito setecentas obras (!), dentre elas um dicionário d<strong>os</strong> sábi<strong>os</strong> do rito<br />

malekita e um tratado sobre as populações do Sudão ocidental. Seus estud<strong>os</strong><br />

abrangiam praticamente todo o campo d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong> islâmic<strong>os</strong> da época: Língua<br />

Árabe, Retórica, Exegese corânica e Jurisprudência. Sua biblioteca tinha cerca de<br />

1.600 obras.<br />

49. Representação de Ahmed Baba


Mahmud Kati escreveu com entusiasmo sobre esse ambiente cultural efervescente<br />

no Império de Songai, e com ele termino minha <strong>na</strong>rrativa da expansão muçulma<strong>na</strong><br />

<strong>na</strong> África e o surgimento d<strong>os</strong> impéri<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> ao sul do Saara:<br />

Naquele tempo, Tombuctu era sem igual entre as cidades do país d<strong>os</strong> Negr<strong>os</strong> pela solidez <strong>das</strong> instituições,<br />

pelas liberdades políticas, pela pureza d<strong>os</strong> c<strong>os</strong>tumes, pela segurança <strong>das</strong> pessoas e d<strong>os</strong> bens, pela clemência e<br />

compaixão para com <strong>os</strong> pobres e <strong>os</strong> estrangeir<strong>os</strong>, pela cortesia em relação a<strong>os</strong> estudantes e a<strong>os</strong> homens de<br />

ciência e pela assistência prestada a estes últim<strong>os</strong>. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 191)<br />

Assim, até o século XVI, o Império de Songai, como o restante da África negra,<br />

conheceu um grande desenvolvimento e expansão. No entanto, a partir de então,<br />

<strong>os</strong> estad<strong>os</strong> muçulman<strong>os</strong> passariam a um expansionismo brutal (o primeiro deles o<br />

reino de Marroc<strong>os</strong>, muito interessado <strong>na</strong>s mi<strong>na</strong>s de sal do outro lado do deserto).<br />

Somado a isso, a Europa passou a conhecer a África e utilizá-la para seus fins<br />

igualmente expansionistas. “É o começo de uma aventura sombria”, afirma Ki-<br />

Zerbo. (KI-ZERBO, op. cit.: 251)<br />

50. Homem do povo de Dogon (Mali) de pé (séc. XVI?)


Essa escultura de madeira pati<strong>na</strong>da (com verniz oxidado pelo tempo e pela luz) é uma boa metáfora de<br />

encerramento de n<strong>os</strong>sa <strong>na</strong>rrativa. A partir de então – século XVI – a África se ajoelhou e se rendeu a seus


conquistadores muçulman<strong>os</strong> e europeus, cada vez mais ávid<strong>os</strong> de homens e riquezas, cada vez mais<br />

aproveitadores, tanto do sistema escravocrata vigente entre <strong>os</strong> muçulman<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> e berberes quanto de<br />

suas rotas de comércio e exploração de metais e produt<strong>os</strong>.<br />

*<br />

Este trabalho é dedicado ao querido Professor Mário Maestri Filho, que n<strong>os</strong><br />

distantes id<strong>os</strong> de 1983 ministrou a então inédita discipli<strong>na</strong> "História da África" no<br />

curso de História da Universidade Santa Úrsula, curso que tive a honra de assistir<br />

como aluno e que me fez despertar o interesse pelas culturas negras medievais<br />

africa<strong>na</strong>s.<br />

X. Fontes utiliza<strong>das</strong><br />

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1986.<br />

Sunni Ali (r. 1464-1492).

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