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O REBELDE: VOZES QUE RECONTAM A CABANAGEM Livia ...

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429<br />

Maio 2009<br />

www.revistaliteris.com.br<br />

O <strong>REBELDE</strong>: <strong>VOZES</strong> <strong>QUE</strong> <strong>RECONTAM</strong> A <strong>CABANAGEM</strong><br />

<strong>Livia</strong> Sousa da Cunha 1<br />

(UFPA)<br />

Resumo: O conto “O Rebelde”, da obra Contos Amazônicos (1893), de Inglês de Sousa,<br />

juntamente com os contos “Voluntário” e “A Quadrilha de Jacó Patacho”, tem como<br />

conflito central acontecimentos da história brasileira a Guerra do Paraguai, no primeiro<br />

conto, a Cabanagem e momentos que antecedem a mesma, nos dois outros. É a partir da<br />

verificação desse fato histórico, a Cabanagem no conto “O Rebelde”, que se desenvolve<br />

o artigo em questão, atentando para o jogo estabelecido entre o real e o ficcional, ou<br />

seja, como um fato histórico, a Cabanagem, foi recriado por meio das muitas vozes que<br />

o recontam no plano ficcional. Essas vozes são reveladoras de várias visões das classes<br />

sociais envolvidas no movimento cabano.<br />

Palavras-chave: Cabanagem, vozes, classes sociais, ficção, real.<br />

Abstract: The tale “O Rebelde” of book Contos Amazônicos (1893), written by Inglês<br />

de Sousa, together how tales “Voluntário” and “A Quadrilha de Jacó Patacho” have the<br />

central conflict happening of Brazilian’s history, Paraguay war, in the first tale,<br />

Cabanagem and moments before Cabanagem, in two others tales. These happenings are<br />

center from this study, Cabanagem in the tale “O Rebelde”. We observe the game<br />

between real and fiction, or how one historic fact was recreate through voices that<br />

recount in fiction environment. This expose different social classes that participated in<br />

Cabanagem.<br />

Word-key: Cabanagem, voices, social class, fiction, real.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Este artigo tem como objeto de estudo o conto “O Rebelde” do livro Contos<br />

Amazônico, de Inglês de Sousa, publicado em 1893, no Rio de Janeiro, dedicado a<br />

Silvio Romero, amigo do escritor. A obra traz em sua composição nove histórias, que<br />

segundo Sylvia Perlingeiro Paixão (2005), na introdução da terceira edição de Contos<br />

Amazônicos, podem ser consideradas quase como crônicas de costumes, ou um<br />

documento social construído a partir da observação de aspectos da região amazônica.<br />

De maneira geral a narrativa apresenta a história do personagem Luís, ainda<br />

criança; mostra a amizade entre Luís, Júlia e Paulo da Rocha, um homem desprezado<br />

1 <strong>Livia</strong> Sousa da Cunha mestranda do Curso de Mestrado em Letras. Áreas de Estudos Literários, linha de pesquisa:<br />

literatura, cultura e história, da Universidade Federal do Pará, entrada 2008, orientada pelo Professor Dr. José<br />

Guilherme dos Santos Fernandes. Possui graduação em Letras, Licenciatura em Língua Portuguesa, pela<br />

Universidade Federal do Pará (2007). Bolsista da FAPESPA. E-mail:lilicunha15@yaoo.com.br


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por toda a população de Vila Bela, pelo fato de ter participado da revolta de 1817 em<br />

Pernambuco. O assunto que atravessa toda a narrativa é a Cabanagem i , fato que gera um<br />

clima tenso na região, bem como um sentimento de medo nos moradores pela ameaça<br />

de invasão dos cabanos. A situação se complica quando a ameaça se concretiza, os<br />

cabanos invadem Vila Bela e matam o juiz de paz Guilherme da Silveira. Luís e sua<br />

mãe Mariquinhas são salvos por Rocha e fogem juntamente com o padre João e Júlia<br />

para o sítio de Andresa.<br />

O texto segue contando as várias situações vivenciadas pelos personagens no<br />

sítio. O personagem de Paulo da Rocha mostra-se ao longo da narrativa um grande<br />

amigo e protetor dos refugiados. Como último problema, Paulo tem sua filha capturada<br />

pelos revoltosos, que propõem uma troca da jovem pelo filho do juiz, e mais uma vez<br />

Luís é salvo, pois Paulo não faz a troca. O conto termina com Luís já adulto<br />

reencontrando Paulo que havia sido preso como um dos revoltosos, Luís consegue a<br />

liberdade de seu amigo, mas Paulo morre logo em seguida.<br />

Em “O Rebelde” o tema central, o problema que impulsiona a narrativa, é a<br />

Cabanagem, assunto que envolve os personagens e direciona toda a narrativa. Neste<br />

sentido, são apresentados por meio das vozes do narrador e dos personagens vários<br />

posicionamentos e visões sobre este movimento. Estas vozes trazem versões sobre a<br />

situação social, sobre os motivos da revolta, além do posicionamento da igreja, do<br />

português, do estado, do homem marginalizado e desfavorecido, com relação às ações<br />

praticadas durante a revolta.<br />

É por meio dessas vozes presentes no texto que se fará a leitura do conto,<br />

atentando para a organização da narrativa, dos discursos que se entrecruzam e se<br />

contrapõe como portugueses versus brasileiros; brancos versus tapuios; favorecidos<br />

versus desfavorecidos; estado versus revoltosos.<br />

PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES<br />

O primeiro aspecto que merece atenção é o próprio título do conto “O Rebelde”,<br />

pois quando lemos esse título nos perguntamos: Quem é o rebelde? Por que é rebelde?<br />

Essas perguntas são respondidas ao longo do texto através do comportamento e atitudes<br />

dos personagens.<br />

A primeira resposta para essas perguntas é que Paulo da Rocha é o rebelde, pois<br />

participou da revolta de Pernambuco e, é visto pela sociedade de Vila Bela como um


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velho rebelde “Paulo da Rocha era pernambucano e fora um dos rebeldes de 1817, um<br />

soldado fiel do capitão Domingos José Martins, o espírito-santense.” ii . Depois é possível<br />

também entender que o narrador, o personagem de Luís, é o rebelde, pois o garoto<br />

mostra-se possuidor de um espírito rebelde ao se interessar por tudo que é desprezado,<br />

incluindo a amizade dedicada ao homem marginalizado pela população de Vila, Paulo,<br />

como se verifica no trecho abaixo:<br />

Desde a mais tenra infância, vivi sempre em contradição de<br />

sentimentos e de idéias com os que me cercavam: gostava do<br />

que os outros não queriam, e tal era a predisposição malsã do<br />

meu espírito rebelde e refratário a toda a disciplina que o<br />

melhor título de um homem ou de um animal à minha afeição<br />

era ser desprezado por todos. iii<br />

Os dois amigos, Luís e Paulo, têm em comum um espírito rebelde, essa é a<br />

grande marca dos personagens. No entanto o personagem de grande destaque no conto é<br />

Paulo da Rocha, que aparece como uma voz de experiência (ele é um homem velho); ele<br />

representa o conhecimento (tinha o hábito de ler) e a rebeldia (participou da revolta em<br />

Pernambuco e apóia de certa forma a luta dos cabanos); é também o velho do outro<br />

mundo (comparado ao murucututu, figura lendária das cantigas usadas pelas mães de<br />

Vila para acalentar seus filhos) e um presságio funesto para o pai de Luís (quando<br />

aparece na porta da casa antes da invasão dos cabanos). Mas acima de tudo, Paulo da<br />

Rocha é um grande herói da narrativa, apresentado como um homem honesto, simples,<br />

que tem consciência de sua situação social e que é capaz de renunciar muitas coisas para<br />

salvar um grupo de amigos. Essa idéia será retomada mais tarde, quando será falado<br />

mais especificamente do personagem Paulo da Rocha.<br />

Esta narrativa traz duas visões sobre o movimento cabano: uma que condena a<br />

revolta, visão dos brancos, portugueses, pessoas que detinham o poder; e outra que<br />

mostra ser justa a luta dos cabanos, visão defendida pelos grupos excluídos,<br />

diferentemente do conto “A Quadrilha de Jacó Patacho”, que traz um recorte da invasão<br />

de um grupo de revoltosos à casa da família do português Félix Salvaterra. Neste conto<br />

é ressaltado o papel de vítima dos portugueses, quando qualifica a família de Félix<br />

Salvaterra como “honrada” e possuidora de uma “consciência honesta”, e o papel de<br />

vilão dos cabanos, quando descreve os revoltosos como um aspecto feio e repugnante,<br />

“figura baixa e beixigosa”, “nariz roído de bexigas”, “boca imunda e servil”.


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Nesta narrativa é mostrado apenas um lado da revolta, a violência praticada<br />

pelos cabanos, o clima de medo e terror instaurado na região amazônica durante este<br />

período, sem mostrar o porquê da revolta, a situação de exclusão social e miséria vivida<br />

por uma parcela da população paraense. O narrador conta as ações criminosas dos<br />

revoltosos, mas não mostra a violência cometida pelos guardas do governo ao conter a<br />

revolta. Já o conto “O Rebelde”, como foi dito anteriormente, nos possibilita a visão dos<br />

dois lados envolvidos na cabanagem, dos portugueses, brancos, da classe mais<br />

favorecida e a visão dos revoltosos e excluídos.<br />

O texto deixa bem marcado as posições opostas tomadas pelos brancos e os<br />

caboclos, que se personificam nas figuras de Guilherme da Silveira e Matias Paxiúba. O<br />

primeiro assume o papel de dominador, conquistador e civilizado enquanto o outro é<br />

relegado ao papel de dominado, conquistado e incivilizado, ressaltando o ódio cultivado<br />

e mantido pelas duas “raças”, vejamos um trecho:<br />

O certo é que o branco e o caboclo se haviam jurado um ódio<br />

eterno. Naqueles tempos de fortes paixões, em que todos os<br />

sentimentos tinham uma possança e uma pureza extrema, ódios<br />

arraigados e entranháveis eram comuns. Matias Paxiúba, o<br />

brasileiro, e Guilherme da Silveira, o marinheiro, tinham-se<br />

sempre encontrado inimigos – desde a primeira vez que se<br />

viram, parecia que todo o ódio das duas raças, a<br />

conquistadora e a indígena, se tinha personificado naqueles<br />

dois homens, cujos nomes eram o grito de guerra de cada um<br />

dos partidos adversos. iv (Grifos meus).<br />

É sobre estas duas visões que traçaremos um panorama dos discursos dos<br />

personagens, primeiro observar-se-á os personagens que condenam veementemente a<br />

revolta, seguida dos personagens que defendem e por último o personagem que faz a<br />

ponte, um equilíbrio entre os dois lados o personagem Paulo.<br />

<strong>VOZES</strong> <strong>QUE</strong> <strong>RECONTAM</strong> A <strong>CABANAGEM</strong>: <strong>VOZES</strong> DOS DOMINADORES<br />

É importante dizer que, não afirmamos ser a literatura um retrato fiel de fatos<br />

históricos, não a tomamos aqui como um documento histórico, pois a obra literária não<br />

se afirma como prova de acontecimentos, mas possui uma outra natureza, a ficcional,<br />

que se apropria de fatos e experiências do mundo real e os reconstrói num novo<br />

ambiente. O texto literário não é, portanto, a verdade real, mas a representação do real.


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O discurso produzido no plano literário não anula o plano da realidade, mas<br />

penetra no jogo ficcional, criando um desdobramento, que mescla o real e o ficcional. É<br />

o que aponta Luiz Costa Lima:<br />

Afirmamos, sim, que o discurso literário não se apresenta como<br />

prova, documento, testemunho do que houve, portanto o que<br />

nele está se mescla com o que poderia ter havido; o que nele há<br />

se combina com o desejo do que estivesse; e que por isso passa<br />

a haver e estar. v<br />

Clifford Geertz, em A interpretação das culturas (1989), afirma que, os textos<br />

produzidos a partir de estudos antropológicos são interpretação de segunda e terceira<br />

mão, competindo somente a quem está inserido ou faz parte da realidade apresentada,<br />

realizar a interpretação de primeira mão. Desta forma, conclui-se que todas as<br />

interpretações produzidas de segunda e terceira mão são ficções, “(...) no sentido de que<br />

são “algo construído”, “algo modelado”— o sentido original de fictio — não que sejam<br />

falsas, não-fatuais ou apenas experimento.” vi O mesmo podemos dizer dos textos<br />

literários, que abordam a sociedade de uma determinada época ou um fato ocorrido em<br />

um certo momento histórico, pois o texto literário aparece como uma versão, uma<br />

interpretação de tal contexto social e histórico, sendo portanto, uma ficção, não como<br />

discurso falso, mas como um discurso construído.<br />

No conto encontramos muitas vozes que contam a Cabanagem, a do narrador<br />

adulto que conta sua experiência durante a infância com a revolta; a voz de Paulo da<br />

Rocha, homem marginalizado pela sociedade, participante da revolução de 1817 em<br />

Pernambuco; a voz de Guilherme da Silveira, juiz de paz; a voz de João da Costa do<br />

Amaral, padre e português; a voz de Mariquinhas, mãe de Luís e esposa de Guilherme<br />

da Silveira (voz que pouco aparece); a voz dos cabanos e de um dos líderes Matias<br />

Paxiúba. Essas vozes caracterizam posicionamentos políticos, representam pontos de<br />

vistas de classes sociais e marcam as relações de poder entre dominados e dominadores,<br />

compondo um painel da sociedade de meados do século XIX na Amazônia.<br />

A voz do narrador Luís por vezes se posiciona com uma voz que condena os<br />

revoltosos chamando-os de “corja de bandidos”, de “fanáticos” possuidores de “uma<br />

alucinação religiosa e patriótica”, bem como mostra as crueldades praticadas a homens,<br />

mulheres e crianças


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Os viajantes que passavam por Vila Bela narravam a meia voz<br />

as façanhas desses fanáticos caboclos, vítimas de uma dupla<br />

alucinação religiosa e patriótica, e o faziam com tal exagero<br />

que infundiam terror aos mais destemidos. Diziam de homens<br />

queimados vivos, de mulheres violadas e esfoladas e do terrível<br />

correio, suplício que inventara a feroz imaginação de um chefe.<br />

Consistia em amarrar solidamente aos pés e as mãos da vítima e<br />

embarcá-la assim em uma canoa que, entregue à correnteza do<br />

rio, abria água em poucos minutos. [...] vii (Grifos meus).<br />

A voz de Luís é essa voz que traz consigo a visão da classe em que ele está<br />

inserido, a classe favorecida e dominadora, possuidora de bens e de cargos públicos (o<br />

pai de Luís era juiz de paz), como aponta o próprio narrador “Meu pai representava a<br />

civilização, a ordem, a luz, a abastança.” viii , que via na luta dos cabanos uma forte<br />

ameaça para a continuação de sua dominação, o que explica o motivo dos “tapuios”<br />

serem apontados como fanáticos.<br />

A voz do padre João representa um discurso que contradiz o seu próprio<br />

posicionamento dentro da sociedade, o de ter sempre a fé, a confiança na “Providência<br />

Divina”, pelo fato de que em alguns momentos ele declara não poder fica esperando<br />

pela providência<br />

“[...] Não podemos ficar de braços cruzados, à mercê da<br />

Providência [...] De que vale ser ministro do altar? Para esses<br />

fanáticos sanguinários, a minha antiga nacionalidade é crime<br />

que tudo faz esquecer!”. ix<br />

e em outros ele apenas se entrega a essa possibilidade, vejamos a fala do personagem, ”<br />

– Entreguemo-nos à Divina Providência, o melhor amparo dos que padecem.” x<br />

Padre João representa a voz da Igreja, de uma classe favorecida na sua condição<br />

de representante de Deus, da moral e da ordem, além de representar também o<br />

português, o branco e o colonizador. Essa voz aparece na narrativa condenando as ações<br />

dos revoltosos, “fanáticos sanguinários”, é uma voz marcada pelo medo da invasão a<br />

Vila, pelo medo do encontro com os revoltosos e que se esconde num discurso de<br />

preocupação com o povo, vejamos um trecho:<br />

[...] — Oh! – continuou ele (padre João), depois de uma pausa,<br />

e como receando que fossem mal interpretadas as suas palavras.<br />

– Deus me é testemunha de que não temo por mim, mas por


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estes povos infelizes, que serão vítima da minha involuntária<br />

culpa. xi<br />

A voz de Mariquinhas soma-se à voz de Luís e a do padre João, pois é a voz de<br />

uma mulher ligada à classe social mais favorecida, voz de quem ocupa um papel de<br />

destaque, esposa do juiz de paz da região. É importante observar que essa personagem<br />

pouco fala ao longo de toda a narrativa, mas num momento de desespero desabafa e<br />

expõe sua visão obre a revolta, condenando os cabanos, apontando a luta como uma<br />

mera vontade de roubar e matar “— Isso dizem os cabanos para esconder os seus torpes<br />

motivos. O que eles querem é matar e roubar.[...]” xii .<br />

Mariquinhas é uma personagem que traz consigo o preconceito de cor e de<br />

posicionamento social, pois mesmo depois de Paulo da Rocha lhe ter salvo, a<br />

personagem não consegue confiar no mulato “[...] Não posso explicar uma tal<br />

desconfiança, mas minha mãe, principalmente, não se soubera despir de antigos<br />

preconceitos, nem podia olhar com segurança para o mulato.” xiii . Como podemos<br />

verificar esta personagem esta arraigada em suas origens e em todos os preconceitos de<br />

sua classe, fato este notável na sua relação de desconfiança com Paulo, um homem<br />

simples, pobre e participante da revolta de Pernambuco.<br />

O texto também revela a crueldade dos guardas, que fazem um cerco ao grupo<br />

de Matias Paxiúba, matam homens, mulheres e crianças. Os guardas também acham<br />

natural todas as brutalidades cometidas contra os revoltosos e só lamentam ter<br />

conseguido um único prisioneiro. Como é percebido na fala do tenente-coronel<br />

Miranda:<br />

Atirando-se à água. Muitos deles foram mortos a tiro, outros se<br />

afogaram, alguns foram comidos de jacarés. Quando descobri a<br />

fuga mandei ativar o fogo. Ardeu das palhoças. [...] – Os que<br />

não se atiraram à água foram poucos. Mulheres e crianças<br />

morreram queimadas. Era natural. Nós não lhes podíamos<br />

acudir. O que é lamentável é que só se fizesse um prisioneiro,<br />

mas esse era de muita importância. xiv<br />

Todas essas vozes convergem para um único ponto: mostrar a situação instável<br />

durante a revolta Cabanagem a partir do olhar da classe social mais abastada, dos<br />

portugueses, dos brancos, em outras palavras, de como uma classe social que detinha o<br />

poder político e econômico da região enxergou a revolta.


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<strong>VOZES</strong> DOS DOMINADOS<br />

A situação dos revoltos é contada pela voz do narrador e de outros personagens,<br />

como foi verificado nas observações acima, mas há ainda um acréscimo, pois em um<br />

certo momento da narrativa o próprio cabano ganha voz e expõe a sua visão sobre os<br />

fatos que o levaram a começar a luta, fato que surge como um diferencial dentro do<br />

texto inglesiano, “[...] — Branco mata e rouba o tapuio aos bocadinhos. Tapuio mata o<br />

branco de uma vez, porque o branco é maçom e furta o que o tapuio ganha.” xv . Nesta<br />

fala um dos “tapuios” tenta mostrar que o “branco” não é melhor que os revoltosos,<br />

visto que ambos matam, no entanto a diferença está na forma, o “branco” mata aos<br />

poucos por meio da exploração e o “tapuio” mata “de uma vez”, logo ambos estão<br />

cometendo os mesmos crimes só que de formas diferentes.<br />

Esta fala surge dentro de todo o contexto da narrativa como uma força poderosa,<br />

capaz de apontar toda a situação de luta do “tapuio” em vencer a exploração que há anos<br />

lhe tinha sido imposta pelo “branco”, e por toda uma sociedade comandada pelos<br />

conquistadores portugueses, apesar da aparente liberdade alcançada pelo brasileiro com<br />

a independência do país.<br />

Um dos lideres da revolta Matias Paxiúba também ganha voz no texto,<br />

personagem que é temido pelos portugueses, adjetivado pelo narrador como “feroz”,<br />

“cruel” e “desapiedado”, possuidor de uma “voz de trovão”, que aparece como uma<br />

figura quase mítica dentro da narrativa, traz a voz da vingança, de toda a revolta que<br />

impulsiona um desejo de acerto de contas entre o colonizado e o colonizador “— O<br />

filho dessa gente maldita – disse o tapuio em tom resoluto, - o filho de Guilherme da<br />

Silveira não pode viver. Tens que entregá-lo à vingança dos teus patrícios.” xvi .<br />

Dentro dessa fala há o conflito racial e social, traz-se à cena a relação<br />

conquistador versus conquistado, o personagem de Guilherme da Silveira, juiz de paz,<br />

português, representado a essa altura pelo filho e único herdeiro, versus o de Paxiúba, o<br />

brasileiro. Esses personagens caracterizam bem essa luta entre o conquistador,<br />

representando a “civilização”, a “ordem”, a “luz”, a “abastança”, e o conquistado<br />

representando a “ignorância”, a “superstição”, o “fanatismo”,<br />

Outro momento em que a voz dos revoltosos se faz presente no texto, está<br />

justamente no momento da invasão de Vila Bela, em que ecoa o grito de guerra da<br />

Cabanagem “— Mata marinheiro, mata, mata!” xvii , mostrando a força e o desejo de


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vingança dos revoltosos. Este grito quando é ouvido pelos portugueses gera pânico e<br />

desespero, é também um dos barulhos que acorda Luís, ainda menino, em sua casa<br />

durante a invasão. É um grito que traz consigo uma ação “matar”, um desejo e ao<br />

mesmo tempo uma ordem, um imperativo “mata”, e o alvo dessa ação é o “marinheiro”,<br />

simbolizando neste contexto a figura do juiz de paz e outros portugueses representantes<br />

da injustiça, na visão dos revoltosos.<br />

Os revoltosos apesar de terem voz na narrativa e de exporem seus motivos em<br />

algumas falas, ainda são poucos os personagens do lado dos “tapuios” que ganham voz<br />

no texto se comparados ao número de personagens representantes dos brancos,<br />

portugueses, que condenam o movimento. Isso pode ser explicado pelo fato de que o<br />

narrador, já adulto, conta a história que vivenciou durante infância, e que foi<br />

prejudicado pela ação dos cabanos perdendo a casa, o pai e os amigos Rocha e Júlia.<br />

Além de todas as vozes dos dominadores e dominados, há no texto uma voz<br />

diferenciada, a voz do personagem Paulo da Rocha que media de certa forma as outras<br />

vozes, uma voz que analisa a situação social do país no contexto histórico em que ele<br />

está inserido. Fala da miséria enfrentada pelas populações inferiores, da escravidão dos<br />

índios, da proclamação da independência, destaca o porquê da revolta dos cabanos, a<br />

situação de marginalização e miséria dos revoltosos mostrando um conhecimento e uma<br />

consciência política. Vejamos este momento da narrativa:<br />

Paulo da Rocha dissertou longamente sobre as causas da<br />

cabanagem, a miséria originária das populações inferiores, a<br />

escravidão dos índios, a crueldade dos brancos, os<br />

inqualificáveis abusos com que esmagam o pobre tapuio, a<br />

longa paciência destes. Disse da sujeição em que jaziam os<br />

brasileiros, apesar da proclamação da independência do país,<br />

que fora um ato puramente político, precisando de seu<br />

complemento social. Mostrou que os portugueses continuavam<br />

a ser senhores do Pará, dispunham do dinheiro, dos cargos<br />

públicos, da maçonaria, de todas as fontes de influência, nem<br />

na política, nem no comércio o brasileiro nato podia concorrer<br />

com eles. Que, enquanto durasse o predomínio despótico do<br />

estrangeiro, o negro no sul e o tapuio no norte continuariam<br />

vítimas de todas as prepotências, pois que eram brasileiros, e<br />

como tais condenados a sustentar com o suor do rosto a raça<br />

dos conquistadores. [...] xviii<br />

Nesta fala de Paulo recontada pelo narrador, o personagem cria diante do leitor<br />

um panorama da sociedade brasileira, fazendo com que sejam conhecidos os problemas


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vividos durante o século XIX no Brasil. É feito uma crítica a organização do país, pois<br />

aponta a própria proclamação de independência como um ato político, que não possuiu<br />

um desdobramento social. Expõe a dominação ainda existente do português sobre o<br />

brasileiro, em que o primeiro detinha os cargos públicos e de governo enquanto que o<br />

segundo continuava como vítima da exploração do estrangeiro.<br />

Este personagem a meu ver ganha mais profundidade, pois não defende somente<br />

o seu lado marginal, ou tenta justificar os problemas com mais problemas, pelo<br />

contrário ele é capaz de descrever toda a situação social e política de sua região e até<br />

mesmo do país. Para Fábio Lucas, em O caráter social da ficção no Brasil (1987),<br />

afirma que um personagem ganha um caráter social quando o seu destino ou ações<br />

convergem para um quadro maior, a sociedade; é o que acontece com Rocha, pois é por<br />

meio dele que o leitor vê o quadro maior, de um lado dominados e de outro<br />

dominadores, como resultado a situação vivida na Amazônia e no Brasil durante este<br />

período.<br />

O personagem Rocha também faz algumas considerações sobre a cabanagem,<br />

aponta o movimento paraense como uma extensão da Revolução de 7 de abril, e se<br />

questiona porque o governo do Rio de Janeiro, nascido de uma manifestação popular<br />

perseguia o povo do Pará . É interessante observar que, o personagem apesar de<br />

defender a luta e a causa dos revoltosos, apontando a situação de marginalização social,<br />

[...] Bater os cabanos! Uns pobres diabos que a miséria levou à<br />

rebelião! Uns pobres homens cansados de viver sobre o<br />

despotismo duro e cruel de uma raça desapiedada! Uns<br />

desgraçados que não sabem ler e que não tem pão... e cuja<br />

culpa é só terem sido despojados de todos os bens e de todos os<br />

direitos [...] e quem disse ao senhor padre João que eu, Paulo da<br />

Rocha, o desprezado de todos em Vila Bela, seria capaz de<br />

pegar em armas contra os cabanos? [...] xix<br />

também condena os crimes, as mortes e violências praticadas contra mulheres e crianças<br />

“— Senhor padre João, estou longe de provar os morticínios que têm feito os brasileiros<br />

por toda a parte [...]”. xx<br />

Em alguns momentos da narrativa Rocha é visto pelo narrador como um herói,<br />

uma figura agigantada, e uma figura quase mítica“[...] uma voz oculta me indicava um<br />

herói das antigas lendas [...] um homem como eu sonhava nos meus devaneios infantis”.<br />

xxi


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Os raios do sol cadente, penetrando na humilde habitação,<br />

vinham ferir em cheio o crânio seminu do pernambucano, que,<br />

alto, ereto, agigantado e estranho, parecia outro homem, sem<br />

rugas no rosto, sem cansaço na voz, sem a habitual tristeza na<br />

fisionomia. xxii<br />

O personagem de Paulo é visto na narrativa de diversas formas, em alguns<br />

momentos ele é adjetivado como o pernambucano, o rebelde de 1817, o velho do outro<br />

mundo, o mulato, o velho feiticeiro, o sineiro da matriz ou estranho sineiro da Matriz,<br />

mas acima de todas essas características que lhes são atribuídas, ele é apresentado como<br />

o grande herói da história, capaz de ariscar a sua própria vida e a de sua filha para salvar<br />

a vida de um amigo e manter a palavra dada a Guilherme da Silveira. O resultado de<br />

tudo é apresentado no final do conto, ele passa muitos anos preso na cadeia, confundido<br />

como um dos cabanos, e quando ganha a liberdade morre sem condenar seus algozes,<br />

dono de uma grande bondade, fato que leva o narrador a compará-lo a Jesus de Nazaré<br />

no alto da cruz.<br />

O pernambucano parecia ter mais de cem anos. Rugas<br />

profundas cortavam-lhe o bronzeado rosto em todos os<br />

sentidos. O corpo era de uma magreza extrema de vida que se<br />

esvai. Só lhe ficara o olhar, o olhar sereno e claro, e um sorriso<br />

de resignação e de bondade, o sorriso que teve Jesus de Nazaré<br />

no alto da cruz. [...] levei-o para minha casa, onde dois dias<br />

depois expirou nos meus braços. Voou aquela sublime alma<br />

para o céu sem murmurar contra os seus algozes. xxiii<br />

Paulo da Rocha juntamente com os outros personagens trazem a voz da exclusão<br />

social, possibilitando ao leitor a oportunidade de conhecer um outro lado da revolta, o<br />

lado dos que foram marginalizados pelo governo, pelos portugueses, pela população<br />

detentora de maior poder aquisitivo, bem como a situação política e social do Brasil no<br />

período pós-independência nacional.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

De maneira geral o conto “O Rebelde” de Inglês de Sousa conta as ações<br />

praticadas pelos cabanos, pelos guardas do governo e por outras pessoas envolvidas,<br />

reconfigurando no plano ficcional fatos do mundo real. Neste sentido, é possível por


REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429<br />

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meio das vozes dos personagens e do próprio narrador conhecer os efeitos da<br />

Cabanagem na vida da população de Vila bela.<br />

Através da observação das vozes dos personagens, dominadores e dominados,<br />

buscou-se verificar o posicionamento de reprovação e aprovação das classes sociais<br />

sobre a revolta, tendo em vista que, essas vozes expõem ao leitor a situação política do<br />

país, a situação de miséria da população local (os chamados tapuios), bem como a<br />

exploração da população brasileira mantida pelo estrangeiro detentor de cargos públicos<br />

e do próprio governo.<br />

A narrativa expõe os dois lados da revolta, as violências cometidas pelos<br />

cabanos e as cometidas pelo governo, diferentemente de outros textos e documentos<br />

históricos que mostram apenas a visão da classe dominante. Em “O Rebelde” é possível<br />

vê a denúncia na voz de Paulo da Rocha e outros personagens, que a Cabanagem não foi<br />

uma revolta sem objetivos ou motivos, pelo contrário, é exposta a situação insustentável<br />

de miséria e exclusão social que vivia o tapuio, explicando o porquê das ações violentas<br />

e da revolta como um todo, não se resumindo a um relato de guerra pelo poder, mas<br />

mostra-se como um texto revelador de uma história da sociedade da Amazônia.<br />

REFERÊNCIAS<br />

CORRÊA. Paulo Maués. Inglês de Sousa em Todas as Letras. Belém: Paka – Tatu,<br />

2004.<br />

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.<br />

LIMA, Luiz Costa. Sociedade e Discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.<br />

LUCAS, Fábio. O Caráter Social da ficção do Brasil. 2.ed. São Paulo: Ática, 1987.<br />

SOUSA, Inglês. Contos Amazônicos. PAIXÃO, Sylvia Perlingeiro (Org). 3.ed. São<br />

Paulo: Martins Fontes, 2005.<br />

i<br />

Revolta ocorrida durante o século XIX, que teve início em 7 de janeiro de 1835 com a invasão de Belém<br />

por uma multidão liderada por Francisco Pedro Vinagre, e o desfecho em 25 de março de 1840, quando o<br />

último grupo liderado por Gonçalo Jorge de Magalhães se rendeu.<br />

ii Contos Amazônicos, 2005, p.130.<br />

iii Idem, 2005, p. 131


REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429<br />

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iv Idem, 2005, p.150<br />

v Sociedade e discurso ficcional, 1986, p.195.<br />

vi A Interpretação das culturas, 1989, p.25-26.<br />

vii Ibidem, 2005, p .148.<br />

viii<br />

Ibidem, 2005, p.150.<br />

ix Ibidem, 2005, p. 141-142.<br />

x Ibidem, 2005, p.170.<br />

xi Ibidem, 2005, p.142.<br />

xii<br />

Ibidem, 2005, p.168.<br />

xiii Ibidem, 2005, p.166.<br />

xiv Ibidem, 2005, p.196.<br />

xv Ibidem, 2005, p.180.<br />

xvi Ibidem, 2005, p.188.<br />

xvii Ibidem, 2005, p.158.<br />

xviii Ibidem, 2005, p.166-167.<br />

xix Ibidem, 2005, p.144.<br />

xx Ibidem, 2005, p.147.<br />

xxi Ibidem, 2005, p. 132.<br />

xxii Ibidem, 2005, p.146.<br />

xxiii Ibidem, 2005, p.198-199.

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