A arte do efêmero: carnavalescos e mediação cultural no Rio de ...

A arte do efêmero: carnavalescos e mediação cultural no Rio de ... A arte do efêmero: carnavalescos e mediação cultural no Rio de ...

poiesis.uff.br
from poiesis.uff.br More from this publisher
24.10.2014 Views

A arte do efêmero: carnavalescos e mediação cultural no Rio de Janeiro Nilton Santos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, 198 p. Patrícia Reinheimer * Ainda que uma tese de doutorado não seja, em geral, marcada pela descontração e o despojamento, típicos da vivência do carnaval, A arte do efêmero: carnavalescos e mediação cultural no Rio de Janeiro, de Nilton Silva dos Santos, apresenta de forma leve e agradável as motivações, interesses e paixões dos carnavalescos no processo de construção de suas identidades sócio-profissionais. O livro é a publicação, sem alterações ou atualizações, de sua tese de doutoramento, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da UFRJ. O pano de fundo contra o qual o autor constrói sua interpretação sobre o carnaval carioca é a metrópole, onde se encontram grupos sociais com regimes de grandeza diferenciados. Nessa interpretação, o autor trabalha com a noção de mediadores como figuras centrais na operação de transformações ou traduções entre os distintos conjuntos de valores em jogo no que ele denomina “mundo do samba carioca”. A etnografia realizada durante três anos de investigação mostra que o carnaval, como qualquer manifestação artística, é reconhecido como tal graças a uma rede complexa de cooperação entre atores sociais: os patronos, a mídia, os foliões, o público, entre outros. No carnaval das escolas de samba, entretanto, a figura do carnavalesco, transformando o enredo em linguagem visual nas fantasias e alegorias, parece hoje central para o processo de transformação da “festa popular” em “arte do efêmero”. O livro procura mostrar como, desde a década de 1960 principalmente, a categoria “carnavalesco” vai se sobressaindo como atribuição de um único indivíduo que responde cada vez menos pelo aprendizado técnico e o pertencimento à “comunidade” e cada vez mais, como criador independente que leva à escola de samba sua “assinatura”. A assinatura do carnavalesco é, no carnaval das escolas de samba, lócus da particularização e da marca da expressão do 261A arte do efêmero: carnavalescos e mediação... *Patrícia Reinheimer é doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

A <strong>arte</strong> <strong>do</strong> efêmero: <strong>carnavalescos</strong> e mediação<br />

<strong>cultural</strong> <strong>no</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro<br />

Nilton Santos. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Apicuri, 2009, 198 p.<br />

Patrícia Reinheimer *<br />

Ainda que uma tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> não seja, em geral, marcada pela <strong>de</strong>scontração e o <strong>de</strong>spojamento,<br />

típicos da vivência <strong>do</strong> carnaval, A <strong>arte</strong> <strong>do</strong> efêmero: <strong>carnavalescos</strong> e mediação <strong>cultural</strong><br />

<strong>no</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong> Nilton Silva <strong>do</strong>s Santos, apresenta <strong>de</strong> forma leve e agradável as motivações,<br />

interesses e paixões <strong>do</strong>s <strong>carnavalescos</strong> <strong>no</strong> processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

sócio-profissionais. O livro é a publicação, sem alterações ou atualizações, <strong>de</strong> sua tese <strong>de</strong><br />

<strong>do</strong>utoramento, <strong>de</strong>fendida <strong>no</strong> Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia <strong>do</strong><br />

Instituto <strong>de</strong> Filosofia e Ciências Sociais, da UFRJ.<br />

O pa<strong>no</strong> <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> contra o qual o autor constrói sua interpretação sobre o carnaval carioca é a<br />

metrópole, on<strong>de</strong> se encontram grupos sociais com regimes <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za diferencia<strong>do</strong>s. Nessa<br />

interpretação, o autor trabalha com a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> media<strong>do</strong>res como figuras centrais na operação<br />

<strong>de</strong> transformações ou traduções entre os distintos conjuntos <strong>de</strong> valores em jogo <strong>no</strong> que ele<br />

<strong>de</strong><strong>no</strong>mina “mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> samba carioca”.<br />

A et<strong>no</strong>grafia realizada durante três a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> investigação mostra que o carnaval, como qualquer<br />

manifestação artística, é reconheci<strong>do</strong> como tal graças a uma re<strong>de</strong> complexa <strong>de</strong> cooperação<br />

entre atores sociais: os patro<strong>no</strong>s, a mídia, os foliões, o público, entre outros. No carnaval das<br />

escolas <strong>de</strong> samba, entretanto, a figura <strong>do</strong> carnavalesco, transforman<strong>do</strong> o enre<strong>do</strong> em linguagem<br />

visual nas fantasias e alegorias, parece hoje central para o processo <strong>de</strong> transformação da<br />

“festa popular” em “<strong>arte</strong> <strong>do</strong> efêmero”.<br />

O livro procura mostrar como, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1960 principalmente, a categoria “carnavalesco”<br />

vai se sobressain<strong>do</strong> como atribuição <strong>de</strong> um único indivíduo que respon<strong>de</strong> cada vez<br />

me<strong>no</strong>s pelo aprendiza<strong>do</strong> técnico e o pertencimento à “comunida<strong>de</strong>” e cada vez mais, como<br />

cria<strong>do</strong>r in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte que leva à escola <strong>de</strong> samba sua “assinatura”. A assinatura <strong>do</strong> carnavalesco<br />

é, <strong>no</strong> carnaval das escolas <strong>de</strong> samba, lócus da particularização e da marca da expressão <strong>do</strong><br />

261A <strong>arte</strong> <strong>do</strong> efêmero: <strong>carnavalescos</strong> e mediação...<br />

*Patrícia Reinheimer é <strong>do</strong>utora em Antropologia Social pelo Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Antropologia Social <strong>do</strong> Museu Nacional<br />

da UFRJ e professora da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Rural <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro.


262 - Revista Poiésis, n 14, p. 275-277, Ago. <strong>de</strong> 2009<br />

artista. Como nas <strong>arte</strong>s plásticas, faz p<strong>arte</strong> <strong>de</strong>ssa personalização a transgressão <strong>do</strong>s códigos<br />

e convenções, tornan<strong>do</strong> inevitável o recurso à interiorida<strong>de</strong> das <strong>de</strong>terminações e a fuga às réplicas<br />

ou manipulação <strong>do</strong>s câ<strong>no</strong>nes (daí, por exemplo, o relato <strong>de</strong> Maria Augusta sobre o fato<br />

<strong>de</strong> Joãozinho Trinta i<strong>no</strong>var procuran<strong>do</strong> materiais em lugares antes impensa<strong>do</strong>s, como o Saara).<br />

É assim que, apesar <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> artistas que participa da produção <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sfiles <strong>de</strong><br />

cada escola, somente alguns são promovi<strong>do</strong>s ao posto <strong>de</strong> <strong>carnavalescos</strong>, reconheci<strong>do</strong>s como<br />

artistas singulares, com assinatura própria.<br />

Para apresentar essas transformações, o autor recorreu à trajetória <strong>de</strong> Maria Augusta<br />

Rodrigues, como uma personagem emblemática <strong>do</strong> surgimento <strong>do</strong> carnavalesco como um<br />

<strong>no</strong>me a zelar, um cria<strong>do</strong>r in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. A posição <strong>de</strong> Luiz Fernan<strong>do</strong> Ribeiro <strong>do</strong> Carmo, o Laíla<br />

aparece como uma espécie <strong>de</strong> confirmação <strong>de</strong>ssa tendência. Apesar <strong>de</strong> procurar transformar<br />

a interpretação <strong>do</strong>minante sobre o papel <strong>do</strong> carnavalesco na história <strong>do</strong> carnaval carioca ao<br />

incluir outros profissionais como responsáveis pela narração visual e rítmica <strong>do</strong>s enre<strong>do</strong>s,<br />

Laila não abre mão da construção pública <strong>de</strong> sua individualida<strong>de</strong> como cria<strong>do</strong>r. Assim, ainda<br />

que haja uma disputa pela melhor forma <strong>de</strong> conceber a singularida<strong>de</strong> <strong>do</strong> carnavalesco – com<br />

ou sem a participação <strong>de</strong> uma equipe na construção <strong>do</strong> sucesso da escola <strong>de</strong> samba – é <strong>no</strong><br />

indivíduo qualitativo que se assenta a representação <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> profissional.<br />

Como nas <strong>arte</strong>s plásticas, os <strong>carnavalescos</strong> assumem uma representação na qual suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

sociais passam a dar ênfase a <strong>no</strong>ções como sensibilida<strong>de</strong> e vocação em <strong>de</strong>trimento <strong>do</strong><br />

aprendiza<strong>do</strong> técnico. Por outro la<strong>do</strong>, Nilton Santos não se propõe a estudar as representações<br />

sobre o carnavalesco, mas sua “realida<strong>de</strong>”, suas ações concretas na vida cotidiana. Assim,<br />

enquanto as <strong>arte</strong>s plásticas construíram a representação sobre o artista mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> em p<strong>arte</strong><br />

através <strong>de</strong> um <strong>de</strong>slocamento temporal da relação com a dimensão econômica (a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

prosperida<strong>de</strong> trocada pela <strong>de</strong> posterida<strong>de</strong>), o autor mostra nesse estu<strong>do</strong> que o dinheiro, apesar<br />

<strong>de</strong> não ser o único media<strong>do</strong>r nesse processo <strong>de</strong> construção da reputação <strong>do</strong> carnavalesco,<br />

é uma dimensão importante que <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada.<br />

Os enre<strong>do</strong>s anualmente seleciona<strong>do</strong>s para serem plasticamente narra<strong>do</strong>s nas alegorias e fantasias<br />

e musicalmente <strong>no</strong>s sambas são o eixo <strong>de</strong> uma competição que tem da<strong>do</strong> relevância aos<br />

<strong>de</strong>sfiles <strong>carnavalescos</strong> das escolas <strong>de</strong> samba <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>, geran<strong>do</strong> conflitos e<br />

colaborações das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interação, anualmente refeitas. Na medida em que o carnavalesco<br />

se apresenta como um profissional, um emprega<strong>do</strong> da indústria <strong>do</strong> carnaval que utiliza sua formação<br />

escolar ou prática para obter seu sustento, ele se opõe à representação vocacional <strong>do</strong>s<br />

artistas plásticos mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s. Em outras palavras, enquanto na representação <strong>do</strong> artista mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong><br />

a lógica é a <strong>de</strong> viver para sua <strong>arte</strong>, a “realida<strong>de</strong>” <strong>do</strong> carnavalesco é a <strong>de</strong> viver <strong>de</strong> sua <strong>arte</strong>.


Entretanto, o caráter flui<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse ofício oferece dificulda<strong>de</strong>s. O carnavalesco, enquanto categoria<br />

sócio-profissional foge aos critérios clássicos <strong>de</strong> pertencimento a uma profissão - diplomas,<br />

rendimento, pertencimento a associações profissionais (nesse quesito, assemelhan<strong>do</strong>se<br />

ao artista mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>). Essa flui<strong>de</strong>z torna-se ainda mais instável <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à inexistência <strong>de</strong><br />

contratos que fixem direitos e <strong>de</strong>veres, para cada um <strong>do</strong>s contratantes, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com regras<br />

juridicamente estabelecidas.<br />

Apesar <strong>do</strong> caráter flui<strong>do</strong> <strong>do</strong> ofício, o cálculo racional é p<strong>arte</strong> importante <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> carnavalesco,<br />

que precisa também lidar com os <strong>de</strong>safios <strong>de</strong> fazer caber o enre<strong>do</strong> <strong>no</strong> orçamento da escola;<br />

ou ainda, negociar o enre<strong>do</strong> à luz <strong>do</strong>s objetivos <strong>do</strong> patrocina<strong>do</strong>r. O circuito monetário percorri<strong>do</strong><br />

pelo dinheiro <strong>no</strong> carnaval das escolas <strong>de</strong> samba colocaria em cena traços <strong>do</strong> que o autor<br />

relaciona, por um la<strong>do</strong>, a um “tradicionalismo personalista” <strong>de</strong> outros próprios das relações<br />

impessoais <strong>do</strong> contrato, por outro. No entanto, o próprio autor oferece subsídios para relativizarmos<br />

essas <strong>no</strong>ções <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” e “tradição” em relação ao uso <strong>do</strong> dinheiro, ao mostrar<br />

que o caráter <strong>de</strong> mediação <strong>do</strong> dinheiro só po<strong>de</strong>r ser analisa<strong>do</strong> em relação ao contexto <strong>no</strong> qual se<br />

dá sua utilização. Nesse senti<strong>do</strong>, o trabalho <strong>de</strong> Nilton Santos contribui para percebermos como<br />

a <strong>no</strong>ção simmeliana <strong>de</strong> que o dinheiro amplia o círculo <strong>de</strong> relações sociais e a liberda<strong>de</strong> <strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

da individualida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser pensada sem referência a outras dimensões <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> como, por exemplo, as formas como os contratos são estabeleci<strong>do</strong>s.<br />

Para trabalhar com os <strong>carnavalescos</strong> como um grupo, o autor recorreu à imagem criada pelo<br />

funda<strong>do</strong>r da antropologia mo<strong>de</strong>rna, Bronislaw Mali<strong>no</strong>wski, apresentan<strong>do</strong> a trajetória <strong>de</strong> seu<br />

encontro com o <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> como o início da busca pelo “carnavalesco <strong>de</strong> carne e osso”.<br />

Ainda que tenha chama<strong>do</strong> atenção para o fato <strong>de</strong>ssa não ser uma busca pela “pureza” <strong>de</strong><br />

um “outro” com pouca ou nenhuma relação com o universo conheci<strong>do</strong>, o autor levou em<br />

consi<strong>de</strong>ração algumas dificulda<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s encontros iniciais para pensar <strong>no</strong> contato com a re<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> relações da qual fazem p<strong>arte</strong> os <strong>carnavalescos</strong> como o ingresso em um universo <strong>de</strong> relações<br />

e valores distintos <strong>do</strong>s seus. Quer dizer, se por um la<strong>do</strong>, ele não li<strong>do</strong>u com uma i<strong>de</strong>ia<br />

pré-concebida <strong>do</strong> que seria, como agiriam e o que pensariam os <strong>carnavalescos</strong>, por outro,<br />

a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s <strong>carnavalescos</strong> “<strong>de</strong> carne e osso” se apresentou <strong>de</strong> fato diferente daquela<br />

<strong>do</strong> próprio pesquisa<strong>do</strong>r. Somos assim convida<strong>do</strong>s a participar um pouco <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong><br />

transformação <strong>do</strong> senso comum <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r e chegamos ao final <strong>do</strong> livro com a sensação<br />

<strong>de</strong> que, se o “mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> carnaval carioca” não é uma “realida<strong>de</strong> à p<strong>arte</strong>”, tem especificida<strong>de</strong>s<br />

que merecem investigações como essa empreendida por Nilton Santos.<br />

263A <strong>arte</strong> <strong>do</strong> efêmero: <strong>carnavalescos</strong> e mediação...

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!