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CENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIA<br />

ENTIDADE MANTENEDORA:<br />

INSTITUTO FILADÉLFIA DE LONDRINA<br />

Diretoria:<br />

Sra. Ana Maria Moraes Gomes ......................Presidente<br />

Sr. Edson Aparecido Moreti .......................... Vice-Presidente<br />

Dr. Claudinei João Pelisson ......................... 1º Secretário<br />

Sra. Edna Virgínia C. Monteiro de Melo ....... 2ºVice-Secretário<br />

Sr. Alberto Luiz Candido Wust .................... 1º Tesoureiro<br />

Sr. José Severino ......................................... 2º Vice-Tesoureiro<br />

Dr. Osni Ferreira (Rev.) ................................ Chanceler<br />

Dr. Eleazar Ferreira ...................................... Reitor


REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong><br />

Ano IV – nº 4 – 2007<br />

Órgão de Divulgação Científica do<br />

Curso de Direito <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong> - Centro Universitário Filadélfia<br />

COORDENADOR DO COLEGIADO DO CURSO DE DIREITO:<br />

Prof. Dr. Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICAS JURÍDICAS:<br />

Prof. Ms. José Valdemar Jaschke<br />

PRESIDENTE DO CONSELHO EDITORIAL:<br />

Prof. Dr. Marcos Antônio Striquer Soares<br />

SUPERVISORA EDITORIAL:<br />

Profª. Ms.Érika Juliana Dmitruk<br />

REVISORA:<br />

Profª. Dra. Maria Cristina Viecili<br />

BIBLIOTECÁRIA<br />

Neiva Correa França Nakai<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Prof. Dr. Marcos Antonio Striquer Soares Profª. Ms. Érika Juliana Dmitruk<br />

Prof. Dr. Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

Prof. Ms. José Valdemar Jaschke<br />

Prof. Dr. Cézar Bueno de Lima<br />

Profª. Dra. Rozane <strong>da</strong> Rosa Cachapuz<br />

Prof. Dr. Everaldo Pinto Conceição<br />

Prof. Ms. Ademir Simões<br />

Profª. Dra. Maria Cristina Viecili<br />

Profª. Ms. Renata Cristina O. A. Silva<br />

Prof. Ms. Antonio Carlos Lovato<br />

Profª. Ms. Maria de Fátima G. Rossetto<br />

Profª. Ms. Sandra Cristina M. N. G. de Paula Prof. Ms. Mario Sergio Lepre<br />

Profª. Ms. Luciana Mendes P. Roberto Prof. Ms. João Luiz Martins Esteves<br />

Profª. Ms. Deborah Lídia Lobo Muniz<br />

Profª. Drª. Martha Asuncion E. Prado<br />

Profª. Ms. Ana Claudia Duarte Pinheiro Prof. Ms. Henrique Afonso Pipolo<br />

Profª. Ms. Maria Eduvirge Marandola<br />

3<br />

CONSELHO CONSULTIVO<br />

Min. José Augusto Delgado (UFRN) Prof. Dr. Gilberto Giacóia (FANORPI)<br />

Prof. Dr. Luiz F. Bellinetti (UEL) Profª. Drª. Maria de Fátima Ribeiro (UEL)<br />

Profª. Drª. Gisel<strong>da</strong> Hironaka (USP) Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)<br />

Prof. Dr. Arnaldo de M. Godoy (UEL) Profª. Drª. Jussara S. A. B. N. Ferreira (UEL)<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


CENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIA<br />

REITOR:<br />

Dr. Eleazar Ferreira<br />

PRÓ-REITOR DE ENSINO DE GRADUAÇÃO:<br />

Prof. MSc. Reynaldo Camargo Neves<br />

COORDENADORA DE CONTROLE ACADÊMICO:<br />

Profª. Esp. Helena Fumiko Morioka<br />

COORDENADORA DE AÇÃO ACADÊMICA:<br />

Laura Maria dos Santos Maurano<br />

PRÓ-REITOR DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO:<br />

Profª. Dra. Damares Tomasin Diazin<br />

COORDENADOR DE PROJETOS ESPECIAIS E ASSESSOR DO REITOR:<br />

Prof. MSc. Reynaldo Camargo Neves<br />

COORDENADOR DE PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS:<br />

Prof. Dr. Leandro Henrique Magalhães<br />

COORDENADORES DE CURSOS DE GRADUAÇÃO:<br />

Administração<br />

Prof. Luís Marcelo Martins<br />

Arquitetura e Urbanismo Prof. Ivan Prado Junior<br />

Biomedicina<br />

Prof. Eduardo Carlos Ferreira Tonani<br />

Ciências Biológicas Prof. João Antônio Cyrino Zequi<br />

Ciências Contábeis Prof. Eduardo Nascimento <strong>da</strong> Costa<br />

Ciência <strong>da</strong> Computação Prof. Sérgio Akio Tanaka<br />

Direito<br />

Prof. Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

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Prof. Pedro Lanaro Filho<br />

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Profª.Lenita Brunetto Bruniera<br />

Fisioterapia<br />

Profª.Suhaila Mahmoud Smaili Santos<br />

Nutrição<br />

Profª.Ivoneti Barros Nunes de Oliveira<br />

Pe<strong>da</strong>gogia<br />

Profª.Marta Regina Furlan de Oliveira<br />

Psicologia<br />

Profª.Denise Hernandes Tinoco<br />

Secretariado Executivo Profª.Izabel Fernandes Garcia Souza<br />

Sistema de Informação Prof. Sérgio Akio Tanaka<br />

Teologia<br />

Prof. Joaquim José de Moraes Neto<br />

Turismo<br />

Profª.Michelle Ariane Novaki<br />

Rua Alagoas, nº 2.050 - CEP 86.020-430<br />

Fone: (0xx43) 3375-7400 - Londrina - Paraná<br />

www.unifil.br


SUMÁRIO<br />

Linha de Pesquisa “Dogmática Jurídica, Desenvolvimento e Responsabili<strong>da</strong>de<br />

Social”<br />

TRABALHO, MEDO E SOFRIMENTO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ASSÉDIO MORAL ...... 1 3<br />

Ana Paula Sefrin Saladini<br />

DEVER DE DOCUMENTAÇÃO, ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO E SUA PROPRIEDADE. UMA<br />

PERSPECTIVA EUROPÉIA ...................................................................................................................... 2 5<br />

André Gonçalo Dias Pereira<br />

COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA ........................................................................ 3 6<br />

Demétrius Coelho Souza<br />

Vera Cecília Gonçalves Fontes<br />

A TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS .......................................... 5 1<br />

Hylea Maria Ferreira<br />

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE E PROPAGANDA DO GOVERNO ........... 6 4<br />

Marcos Antônio Striquer Soares<br />

O PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO NO DIREITO TRIBUTÁRIO .................................................... 7 7<br />

Mary Silvea Santana Vieira<br />

O CONTEMPT OF COURT (desacato à ordem judicial) NO BRASIL ................................................ 9 1<br />

Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

CONTRATO: DO TRADICIONAL A CELEBRAÇÃO ELETRÔNICA – ASPECTOS FORMAIS .. 112<br />

Simone Vinhas de Oliveira<br />

Valkíria A. Lopes Ferraro<br />

Vinicius Franco <strong>da</strong> Silva<br />

Wesley Tomaszweski<br />

7<br />

Linha de Pesquisa “Teorias do Direito do Estado e Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia”<br />

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER CONSTITUINTE ..................................................................127<br />

Ana Carolina Miiller Lopes<br />

Ana Karina Ticianelli Möller<br />

A INFLUÊNCIA DA TÓPICA NO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE E O SEU CONCEITO DE<br />

INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ............................................................................................134<br />

Carolina V. Ribeiro de A. Bastos<br />

Eder Fernandes Mônica<br />

Samia Mo<strong>da</strong> Cirino<br />

O PRINCÍPIO DA INTEGRIDADE COMO MODELO DE INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DI-<br />

REITO EM RONALD DWORKIN .........................................................................................................144<br />

Erika Juliana Dmitruk<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Estudos de Casos<br />

PROTEÇÃO DA CRIANÇA EM FACE DA PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS INFANTIS1 .... 159<br />

Ester Okamoto Della Costa<br />

Raquel Sanchez de Lima<br />

O PROCESSO DE ELABORAÇÃO E A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PLANOS DIRETORES DE<br />

ASSAÍ/PR E DE BELA VISTA DO PARAÍSO/PR ...............................................................................176<br />

Miguel Etinger de Araujo Junior<br />

Resenha<br />

RESENHA - DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpreta<strong>da</strong> ...187<br />

Luciana Mendes Pereira Roberto<br />

RESENHA - Resenha <strong>da</strong> obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman ................................................192<br />

Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

8<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


EDITORIAL<br />

O instante de <strong>da</strong>r ao público um novo número <strong>da</strong> Revista Jurídica <strong>da</strong><br />

<strong>UniFil</strong> é sempre um momento de reflexão e revisão dos trabalhos desenvolvidos<br />

pelo Conselho Editorial na publicação de ca<strong>da</strong> número. É sempre uma<br />

satisfação reunir textos sobre assuntos de relevante interesse para o Curso<br />

de Direito <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, assim como aceitar o convite de debate que ca<strong>da</strong> texto<br />

provoca. Essa alegria de elaboração e conclusão de ca<strong>da</strong> número, entretanto,<br />

vem conjuga<strong>da</strong> com a responsabili<strong>da</strong>de de se produzir um novo número a<br />

ser publicado em um futuro próximo. A Revista Jurídica <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong> , agora, já<br />

no quarto ano de publicação, provoca a renova do ânimo para a produção de<br />

um novo número, com novos textos, novos assuntos, novos debates. É a alegria<br />

pela continui<strong>da</strong>de dos trabalhos acadêmicos, no intuito de aperfeiçoamento<br />

do Curso de Direito, <strong>da</strong> Instituição onde ele se realiza, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

No presente número <strong>da</strong> Revista, foi estabeleci<strong>da</strong> uma divisão nova dos<br />

trabalhos apresentados. Os artigos científicos foram divididos entre as duas<br />

linhas de pesquisa do Curso de Direito <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>: 1.- Dogmática Jurídica,<br />

Desenvolvimento e Responsabili<strong>da</strong>de Social; e 2.- Teorias do Direito do Estado<br />

e Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. Entre os artigos encontram-se trabalhos de ex-alunos do<br />

Curso de Direito <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, o que muito honra a todos. Como terceira parte,<br />

dessa nova divisão, foram incluídos estudos de caso, apropriados para uma<br />

área do conhecimento aloca<strong>da</strong> entre as chama<strong>da</strong>s Ciências Sociais Aplica<strong>da</strong>s.<br />

E uma quarta parte foi reserva<strong>da</strong> a resenha.<br />

Fica mais uma vez o convite a to<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong>de acadêmica volta<strong>da</strong> ao<br />

conhecimento jurídico para participar não só dos debates e questionamentos,<br />

como também do próximo número <strong>da</strong> Revista Jurídica <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong><br />

9<br />

Conselho Editorial<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Linha de Pesquisa “Dogmática Jurídica, Desenvolvimento e Responsabili<strong>da</strong>de<br />

Social”


Ana Paula Sefrin Saladini<br />

TRABALHO, MEDO E SOFRIMENTO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO<br />

ASSÉDIO MORAL<br />

Ana Paula Sefrin Saladini*<br />

O medo destrói a saúde mental dos trabalhadores de modo progressivo e<br />

inelutável, como o carvão que asfixia os pulmões do mineiro com silicose.<br />

(Dejours).<br />

RESUMO<br />

O presente trabalho abor<strong>da</strong> o problema do assédio moral no ambiente de trabalho. Partindo-se <strong>da</strong><br />

definição do tema, é feita uma análise do panorama nacional <strong>da</strong> questão, abor<strong>da</strong>ndo, ain<strong>da</strong>, as<br />

perspectivas legislativas. Na seqüência, analisa-se a responsabili<strong>da</strong>de do empregador. Discutemse<br />

questões pertinentes ao medo e ao sofrimento inerentes ao trabalho, e do medo utilizado como<br />

instrumento pelo empregador, ora visando o incremento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de, ora como mero exercício<br />

arbitrário de poder. Por fim, verificam-se as conseqüências do medo e do sofrimento na saúde do<br />

trabalhador.<br />

Palavras-chave: Assédio Moral. Medo. Sofrimento. Abuso de Poder. Saúde.<br />

WORK, FEAR AND SUFFERING: CONSIDERINGS CONCERNING THE<br />

MORAL SIEGE<br />

ABSTRACT<br />

13<br />

The present work approaches the problem of the moral siege in the work environment. Breaking<br />

itself of the definition of the subject, an analysis of the national panorama of the question is made,<br />

approaching, still, the legislative perspectives. In the sequence, it is analyzed responsibility of the<br />

employer. Pertinent questions to the inherent fear and the suffering to the work, and of the used<br />

fear are argued as instrument for the employer, however aiming at the increment of the productivity,<br />

however as mere arbitrary exercise of being able. Finally, the consequences of the fear and the<br />

suffering in the health of the worker are verified.<br />

Keywords: Moral Siege. Fear. Suffering. Abuse of Being Able. Health.<br />

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

O presente estudo visa distinguir duas situações específicas que podem desencadear<br />

transtornos mentais e de comportamento relacionados com o trabalho: o medo e o sofrimento<br />

psíquico no ambiente de trabalho.<br />

Ain<strong>da</strong> que, em algumas profissões, essas circunstâncias sejam inerentes ao<br />

trabalho, as práticas empresariais modernas, muitas vezes, têm incrementado a cultura do medo e<br />

sofrimento nas relações de trabalho, ora como meio de incremento de produtivi<strong>da</strong>de, ora como<br />

mero exercício arbitrário de poder.<br />

* Juíza do Trabalho Titular <strong>da</strong> Vara do Trabalho de Jacarezinho-Paraná. Especialista em Direito do Trabalho. Especialista em<br />

Direito Civil e Processo Civil. Professora de Graduação e Pós-Graduação.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral<br />

Esse panorama leva ao desenvolvimento de doenças mentais relaciona<strong>da</strong>s com<br />

o trabalho, causando, a médio e longo prazo, per<strong>da</strong> de capaci<strong>da</strong>de produtiva. Além disso, as situações<br />

de medo e sofrimento criados pelo empregador têm sido qualifica<strong>da</strong>s pela doutrina e jurisprudência<br />

como práticas de assédio moral, capazes de gerar dever de indenizar.<br />

2 ASSÉDIO MORAL<br />

2.1 Definição<br />

O assédio moral também é conhecido como mobbing (GUEDES, 2003, p.<br />

162) 1 ou psicoterror. Uma <strong>da</strong>s maiores autori<strong>da</strong>des internacionais no assunto é a psicanalista francesa<br />

Marie-France Hirigoyen, que assim define assédio moral (HIRIGOYEN, 2003, p. 65):<br />

Por assédio em um local de trabalho temos que entender to<strong>da</strong> e qualquer<br />

conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras,<br />

atos, gestos, escritos que possam trazer <strong>da</strong>nos à personali<strong>da</strong>de, à<br />

digni<strong>da</strong>de ou à integri<strong>da</strong>de física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo<br />

seu emprego ou degra<strong>da</strong>r o ambiente de trabalho.<br />

Heinz Leymann (apud MENEZES, 2003, p. 291), considerado pioneiro no assunto,<br />

identificou como doença profissional enfermi<strong>da</strong>des de natureza psicossomática, deriva<strong>da</strong>s<br />

do mobbing, e definiu a figura do assédio moral nos seguintes moldes:<br />

14<br />

...a delibera<strong>da</strong> degra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s condições de trabalho através do estabelecimento<br />

de comunicações não éticas (abusivas), que se caracterizam pela repetição,<br />

por um longo tempo, de um comportamento hostil de um superior ou<br />

colega(s) contra um indivíduo que apresenta, como reação, um quadro de<br />

miséria física, psicológica e social duradoura.<br />

Destaca-se, de tais conceitos, a necessi<strong>da</strong>de de a conduta ofensiva ser reitera<strong>da</strong>:<br />

fatos isolados, ain<strong>da</strong> que ofensivos à integri<strong>da</strong>de moral do empregado, não configuram o assédio<br />

moral. Isso porque o próprio termo assédio tem a conotação de insistência impertinente, perseguição<br />

constante, estabelecimento de um cerco com a finali<strong>da</strong>de de exercer o domínio sobre a<br />

pessoa assedia<strong>da</strong>.<br />

A prática tem propagação insidiosa, normalmente agregando abuso de poder e<br />

manipulação. Existe tanto na mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de horizontal (entre colegas do mesmo nível hierárquico)<br />

quanto na vertical ascendente (assédio do subordinado ao superior hierárquico) e na vertical descendente<br />

(cerco do superior em relação ao subordinado). A situação mais comum é essa última,<br />

quando o superior agride ao subordinado, que, com medo de perder o emprego, acaba submetendose<br />

ao assédio, e termina por imputar a si mesmo a causa do cerco, acreditando na desqualificação<br />

promovi<strong>da</strong> pelo empregador, e atribuindo a si mesmo rótulo de incompetente, incapaz, despreparado,<br />

etc.<br />

1 Segundo Márcia Guedes, o termo mobbing foi empregado pela primeira vez pelo etiologista Heinz Lorenz, ao definir o<br />

comportamento de certos animais que, circun<strong>da</strong>ndo ameaçadoramente outro membro do grupo, provocam sua fuga por<br />

medo de ataque.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Ana Paula Sefrin Saladini<br />

2.2 Panorama Nacional<br />

Não obstante a doutrina indique que as práticas de assédio moral são tão antigas<br />

quanto o próprio trabalho organizado. No Brasil, até recentemente, a questão era pouco debati<strong>da</strong>,<br />

sendo, muitas vezes, confundi<strong>da</strong> com situações gerais de estresse e conflitos naturais entre<br />

empregados (SALVADOR, 2002, p. 66) 2 . Após a promulgação <strong>da</strong> Carta Constitucional de 1988,<br />

que assegurou de forma expressa a indenização decorrente de <strong>da</strong>nos morais (art. 5º, X), o assunto<br />

passou a ser objeto de estudos que começam a <strong>da</strong>r a real dimensão do problema.<br />

Atualmente, a figura do assédio moral já se tornou conheci<strong>da</strong> dos trabalhadores<br />

brasileiros, em razão de políticas agressivas e cruéis de gerenciamento, podendo ser vista como<br />

sintomática desta época. Conforme Há<strong>da</strong>ssa Dolores Bonilha Ferreira, o assédio moral (apud<br />

FERRARI, 2005, p. 82).<br />

...é fruto de um conjunto de fatores, tais como a globalização econômica<br />

pre<strong>da</strong>tória, vislumbradora somente <strong>da</strong> produção e do lucro, e a atual organização<br />

do trabalho, marca<strong>da</strong> pela competição agressiva e pela opressão dos<br />

trabalhadores através do medo e <strong>da</strong> ameaça. Esse constante clima de terror<br />

psicológico gera, na vítima assedia<strong>da</strong> moralmente, um sofrimento capaz de<br />

atingir diretamente sua saúde física e psicológica, criando uma predisposição<br />

ao desenvolvimento de doenças crônicas, cujos resultados a acompanharão<br />

por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.<br />

Em início de 2002, a médica do trabalho Margari<strong>da</strong> Barreto divulgou o resultado<br />

de uma pesquisa nacional sobre o assunto, desenvolvi<strong>da</strong> para sustentar sua tese de doutorado na<br />

PUC-SP, que foi publica<strong>da</strong> no Jornal Folha de São Paulo, suplemento especial Folha Equilíbrio, em<br />

21.02.02, recebendo, ain<strong>da</strong>, intensa divulgação em outros órgãos de informação e na rede mundial<br />

de computadores. No estudo, que serve como referência a diversos trabalhos posteriores sobre o<br />

tema, foram ouvidos 4.718 trabalhadores, dos quais 68% declararam que sofriam assédio no ambiente<br />

de trabalho várias vezes por semana 20% relataram que o assédio ocorria em média uma vez<br />

por semana, e 12% afirmou que a prática era sofri<strong>da</strong> uma vez por mês. Esses números indicam que<br />

o assédio vem fazendo parte <strong>da</strong> rotina de trabalho do brasileiro. Dentre as principais ações de<br />

assédio apresenta<strong>da</strong>s na pesquisa, destacaram-se: <strong>da</strong>r instruções confusas e imprecisas, atribuir<br />

erros imaginários, ignorar a presença do empregado em frente a outras pessoas, não cumprimentálo<br />

e não dirigir a palavra a ele, insinuar que o empregado tem problema mental ou familiar. Segundo<br />

a pesquisa, 89% <strong>da</strong>s agressões partem do superior hierárquico.<br />

No campo <strong>da</strong> prática cotidiana, o aumento do número de queixas é evidente:<br />

em 2002 foram registrados, nas delegacias regionais do trabalho brasileiras, 231 atendimentos em<br />

razão de queixas de assédio moral; o ano de 2004 apontou um aumento de cerca de 110%, com<br />

registro de 484 queixas (ANCHISES, 2006, p. 47).<br />

Os trabalhadores trazem aos tribunais variado número de casos de abuso psicológico,<br />

através <strong>da</strong>s reclamações judiciais. Destacam-se <strong>da</strong>s notícias relata<strong>da</strong>s pela mídia algumas<br />

situações revoltantes: ridicularização pelo chefe em decorrência de características do empregado<br />

(tique nervoso, opção sexual, peso, altura, etc.); gerente que instala, por conta própria, câmara<br />

filmadora no banheiro reservado às emprega<strong>da</strong>s, pretensamente para evitar furtos; insinuações<br />

sobre a manutenção do emprego depender de um “teste íntimo sobre as habili<strong>da</strong>des com sexo<br />

oral”; submissão de empregados a detector de mentiras.<br />

15<br />

2 Luiz Salvador ressalta que essa perspectiva impedia práticas de diagnóstico e prevenção <strong>da</strong>s situações de assédio moral.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral<br />

Outras situações relata<strong>da</strong>s por empregados: o chefe que, chegando ao setor<br />

com a garrafa de café fresco, in<strong>da</strong>ga se os subordinados desejam tomar café; com a resposta<br />

afirmativa, em frente a todos, despeja o café quente no ralo <strong>da</strong> pia; o superior hierárquico que, a<br />

pretexto de aumento de produtivi<strong>da</strong>de, faz o empregado vendedor que menos se destacou durante<br />

o expediente usar, por ocasião <strong>da</strong> reunião diária com a equipe de ven<strong>da</strong>s, um “chapéu de burro”, do<br />

tipo cônico, permanecendo sentado em um banco alto; o coordenador de equipe que man<strong>da</strong> “pagar<br />

pren<strong>da</strong>s” como <strong>da</strong>nçar uma música ridícula e com conotação sexual, fazer flexões ao estilo do<br />

exército, e uma gama de ativi<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s ora por uma mente perversa e arbitrária que busca<br />

apenas se divertir à custa do sofrimento alheio, e que justifica sua conduta como técnica de<br />

“implemento de produção, técnica de ven<strong>da</strong> ou treinamento de recursos humanos”. 3<br />

O problema não nasceu aqui, e nem é limitado ao Brasil. Num mundo<br />

globalizado, as práticas de gestão também são generaliza<strong>da</strong>s. Assim, nem mesmo a Organização<br />

Internacional do Trabalho escapa de críticas: a <strong>revista</strong> semanal Época, edição de 27.09.2004, noticiou<br />

que a ONU acolheu queixa de assédio moral feita por empregado em face <strong>da</strong> OIT, sua<br />

empregadora.<br />

Como forma de cientificar os trabalhadores, criando mecanismos de identificação<br />

do problema e estratégias de defesa, diversos sindicatos, a exemplos dos sindicatos dos bancários<br />

e dos sindicatos dos servidores públicos federais, vêm elaborando e distribuindo aos integrantes<br />

<strong>da</strong> categoria profissional cartilhas alertando quanto às práticas de assédio.<br />

2.3 Perspectivas Legislativa<br />

16<br />

Embora endêmica, a questão relativa ao assédio moral ain<strong>da</strong> carece de regulamentação<br />

legal, no Brasil. Três importantes projetos de lei estão em trâmite na Câmara dos Deputados,<br />

para regulamentação e punição do assédio moral. O Projeto de Lei 5.970/01 altera dispositivos<br />

<strong>da</strong> CLT, e os Projetos de Lei 4.591/01 e 5.972/01 modificam dispositivos <strong>da</strong> Lei 8.112/90<br />

(Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis <strong>da</strong> União, <strong>da</strong>s Autarquias e <strong>da</strong>s Fun<strong>da</strong>ções Públicas<br />

Federais).<br />

O Projeto de Lei 4.591/01 dispõe sobre a aplicação de penali<strong>da</strong>des à prática de<br />

assédio moral por parte de servidores públicos <strong>da</strong> União, <strong>da</strong>s autarquias e <strong>da</strong>s fun<strong>da</strong>ções públicas<br />

federais a seus subordinados, ve<strong>da</strong>ndo aos servidores públicos praticarem atitudes de cerco contra<br />

seus subordinados, e estabelecendo penali<strong>da</strong>des disciplinares que se estendem de advertência até<br />

demissão, progressivamente, considera<strong>da</strong> a reincidência e a gravi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação. O projeto conceitua<br />

como assédio moral todo tipo de ação, gesto ou palavra que atinja, pela repetição, a auto-estima e<br />

a segurança de um indivíduo, fazendo-o duvi<strong>da</strong>r de si e de sua competência, implicando em <strong>da</strong>no ao<br />

ambiente de trabalho, à evolução profissional ou à estabili<strong>da</strong>de física, emocional e funcional do<br />

servidor, incluindo, dentre outras: marcar tarefas com prazos impossíveis; passar alguém de uma<br />

área de responsabili<strong>da</strong>de para funções triviais; tomar crédito de idéias de outros; ignorar ou excluir<br />

um servidor só se dirigindo a ele através de terceiros; sonegar informações necessárias à elaboração<br />

de trabalhos de forma insistente; espalhar rumores maliciosos; criticar com persistência; segregar<br />

fisicamente o servidor, confinando-o em local inadequado, isolado ou insalubre; subestimar<br />

esforços.<br />

Dentre as justificativas apresenta<strong>da</strong>s no projeto quanto à necessi<strong>da</strong>de de<br />

regulação <strong>da</strong> questão, destaca-se o seguinte:<br />

3 Essas situações foram relata<strong>da</strong>s por testemunhas à autora, em casos diversos, em sua experiência como Juíza do Trabalho.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Ana Paula Sefrin Saladini<br />

Sabe-se que o mundo do trabalho vem mu<strong>da</strong>ndo constantemente nos últimos<br />

anos. Novas formas de administração, reengenharia, reorganização administrativa,<br />

entre outras, são palavras que aos poucos tornaram-se<br />

freqüentes em nosso meio. No entanto, pouco se fala sobre as formas de<br />

relação no trabalho. O problema do ‘assédio moral’ (ou tirania nas relações<br />

do trabalho, como é chamado nos Estados Unidos) atinge milhares de trabalhadores<br />

no mundo inteiro. Pesquisa pioneira <strong>da</strong> Organização Mundial do<br />

Trabalho, realiza<strong>da</strong> em 1996, constatou que pelo menos 12 milhões de europeus<br />

já sofriam desse drama. Em nossa cultura competitiva, onde todos<br />

procuram vencer a qualquer custo, urge adotarmos limites legais que preservem<br />

a integri<strong>da</strong>de física e mental dos indivíduos, sob pena de perpetuarmos<br />

essa ‘guerra invisível’ nas relações de trabalho. E para combatermos de<br />

frente o problema do “assédio moral” nas relações de trabalho, faz-se necessário<br />

tirarmos essa discussão dos consultórios de psicólogos e tratá-lo no<br />

universo do trabalho.<br />

O Projeto de Lei 5.972/01 também visa alterar dispositivos do Estatuto dos<br />

Servidores Públicos Civis <strong>da</strong> União, a fim de estabelecer proibição expressa ao servidor público de<br />

coagir moralmente subordinado através de atos ou expressões reitera<strong>da</strong>s que tenham por objetivo<br />

atingir a sua digni<strong>da</strong>de ou criar condições de trabalho humilhantes ou degra<strong>da</strong>ntes, abusando <strong>da</strong><br />

autori<strong>da</strong>de conferi<strong>da</strong> pela posição hierárquica.<br />

Especificamente quanto ao empregado submetido ao regime <strong>da</strong> CLT, o projeto<br />

de lei visa estabelecer, como motivo para a rescisão indireta do contrato de trabalho, a prática, pelo<br />

empregador ou seus prepostos, de coação moral, através de atos ou expressões que tenham por<br />

objetivo ou efeito atingir sua digni<strong>da</strong>de e/ou criar condições de trabalho humilhantes ou degra<strong>da</strong>ntes,<br />

abusando <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de que lhe conferem suas funções, autorizando que o empregado permaneça<br />

ou não no serviço até final <strong>da</strong> decisão do processo.<br />

O projeto também prevê uma indenização pré-tarifa<strong>da</strong>, quando demonstra<strong>da</strong> a<br />

coação moral, acrescentado à CLT o art. 484-A, que tem p<strong>revista</strong> a seguinte re<strong>da</strong>ção: “se a<br />

rescisão do contrato de trabalho foi motiva<strong>da</strong> pela prática de coação moral do empregador ou de<br />

seus prepostos contra o trabalhador, o juiz aumentará, pelo dobro, a indenização devi<strong>da</strong> em caso de<br />

culpa exclusiva do empregador”.<br />

Destacam-se, <strong>da</strong>s justificativas do projeto, os seguintes argumentos:<br />

17<br />

O art. 7º, I, <strong>da</strong> Constituição Federal, assevera que é direito do trabalhador<br />

uma ‘relação de trabalho protegi<strong>da</strong> contra despedi<strong>da</strong> arbitrária ou sem justa<br />

causa’, prevendo a estipulação legal de indenização compensatória, com<br />

essa finali<strong>da</strong>de. Nenhuma despedi<strong>da</strong> é mais arbitrária e injusta do que aquela<br />

que força o trabalhador a pedir, ele mesmo, a sua demissão, por lhe ter sido<br />

tornado insuportável o ambiente de trabalho, pela perseguição sistemática e<br />

pela sua submissão a comportamentos vexatórios, humilhantes e degra<strong>da</strong>ntes,<br />

pelo que estamos convencidos <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de aprovação, neste<br />

Parlamento, de normas que protejam o trabalhador dos efeitos deletérios<br />

desses atos dos patrões ou de seus prepostos.<br />

As justificativas apresenta<strong>da</strong>s pelos autores dos projetos de lei bem indicam a<br />

gravi<strong>da</strong>de do problema e a urgência de adoção de medi<strong>da</strong>s de contenção e prevenção de <strong>da</strong>nos.<br />

2.4 Responsabili<strong>da</strong>de Patronal<br />

A falta de dispositivo legal específico não impediu o desenvolvimento <strong>da</strong> doutrina<br />

e <strong>da</strong> jurisprudência em torno <strong>da</strong> questão do assédio moral, nem tem servido como barreira para<br />

a aplicação de penali<strong>da</strong>des aos empregadores que assim procedem ou que permitem esses proce-<br />

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Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral<br />

dimentos por parte de seus prepostos, principalmente no âmbito <strong>da</strong> fixação de indenização ao<br />

empregado lesionado.<br />

O assédio moral é ato cuja responsabili<strong>da</strong>de deve ser imputa<strong>da</strong> ao empregador,<br />

que, como detentor do poder disciplinar, tem a obrigação de administrar tanto o conflito existente<br />

entre empregados do mesmo grau hierárquico quanto o decorrente <strong>da</strong>s próprias relações hierárquicas.<br />

Conforme Márcia Guedes (GUEDES, 2003, p. 162):<br />

...tanto a administração rigi<strong>da</strong>mente hierarquiza<strong>da</strong>, domina<strong>da</strong> pelo medo e<br />

pelo silêncio, quanto a administração frouxa, onde reina a total insensibili<strong>da</strong>de<br />

para com valores éticos, permitem o desenvolvimento de comportamentos<br />

psicológicos doentes, que dão azo à emulação e à criação de bodes<br />

expiatórios.<br />

18<br />

No âmbito internacional, têm sido deferi<strong>da</strong>s indenizações de grande monta.<br />

Relata o advogado Luiz Salvador (SALVADOR, 2002, p. 68) que o assédio moral, no ambiente de<br />

trabalho, tem gerado, nos EUA, indenizações milionárias em favor dos assediados, transformandose<br />

em um dos principais riscos financeiros <strong>da</strong>s empresas. Cita os seguintes exemplos: a rede Wal-<br />

Mart foi condena<strong>da</strong> a pagar 50 milhões de dólares a uma emprega<strong>da</strong> assedia<strong>da</strong> moralmente, em<br />

decorrência de observações chocantes quanto a seus dotes físicos; a Chevron foi condena<strong>da</strong> a<br />

uma indenização superior a dois milhões de dólares a empregados por agressões ocorri<strong>da</strong>s no<br />

ambiente de trabalho; no Estado <strong>da</strong> Flóri<strong>da</strong> uma empresa foi condena<strong>da</strong> a pagar indenização de<br />

237 mil dólares a um gerente que foi assediado por seu chefe. 4<br />

Embora seja tradição do direito brasileiro o deferimento de indenizações em<br />

valores muito mais modestos, o cotidiano demonstra o crescimento do número de ações trabalhistas<br />

que denunciam a utilização de práticas de assédio como ferramentas de gestão e controle<br />

empresarial.<br />

3 MEDO, SOFRIMENTO E TRABALHO<br />

3.1 Medo e Sofrimento Inerentes ao Trabalho<br />

O medo está presente em todos os tipos de ocupação profissional. Em algumas<br />

ativi<strong>da</strong>des, o risco à integri<strong>da</strong>de física é inerente ao próprio trabalho desenvolvido, como nos casos de<br />

trabalhadores <strong>da</strong> área de segurança (policiais, agentes penitenciários, vigilantes, transportadores de<br />

valores), trabalhadores <strong>da</strong> construção civil, bombeiros, etc. Em outras funções, o medo é mais personalizado<br />

pelas condições a que está exposto o trabalhador. Os riscos profissionais típicos são causa de<br />

insegurança e medo no trabalho. Esse medo, implícito e impossível de deixar de existir, quando se<br />

trata de trabalho perigoso ou insalubre, implica desequilíbrio na carga psíquica do trabalho. As más<br />

condições de trabalho trazem prejuízos ao corpo e ao espírito, citando-se, como exemplo, a ansie<strong>da</strong>de<br />

resultante <strong>da</strong>s ameaças à integri<strong>da</strong>de física, classifica<strong>da</strong> como “seqüela psíquica” do risco que a<br />

nocivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s condições de trabalho impõe ao corpo (DEJOURS,1991, p. 78).<br />

Paralelamente ao medo, encontra-se o sofrimento psíquico experimentado pelo<br />

trabalhador em razão de dificul<strong>da</strong>des características <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de profissional exerci<strong>da</strong>. Essa ativi<strong>da</strong>de<br />

profissional pode ser estressante por si própria, ou ter como fator gerador do estresse e<br />

sofrimento a frustração causa<strong>da</strong> pelo trabalho monótono, repetitivo ou desgastante. Exemplo <strong>da</strong><br />

primeira mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de é o caso dos controladores de vôo, que demonstraram à nação o grau de<br />

desgaste dos integrantes <strong>da</strong> carreira depois do acidente aéreo fatal ocorrido em setembro de 2006<br />

4 Ressalte-se que no Brasil as indenizações são de montante tímido, quando compara<strong>da</strong>s com a máquina judiciária americana,<br />

célebre por suas condenações milionárias em razão <strong>da</strong> teoria dos <strong>da</strong>nos punitivos.<br />

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Ana Paula Sefrin Saladini<br />

e que vitimou 154 pessoas. Exemplo de trabalho desgastante e que gera frustração é relatado por<br />

Dejours, quando se refere à categoria profissional de telefonista, que tem a frustração do profissional<br />

explorado pela organização do trabalho, com canalização para a produtivi<strong>da</strong>de: a frustração se<br />

transforma em agressivi<strong>da</strong>de; a agressivi<strong>da</strong>de é canaliza<strong>da</strong> para o atendimento rápido do interlocutor,<br />

empurrando-o a desligar mais depressa; esse procedimento leva a aumentar a produtivi<strong>da</strong>de, o que<br />

deixa o profissional ain<strong>da</strong> mais exasperado, e, assim sucessivamente, num círculo vicioso que, à<br />

custa de prejudicar a saúde mental do trabalhador, faz aumentar a produtivi<strong>da</strong>de em prol <strong>da</strong> empresa<br />

de telefonia (DEJOURS, 1991, p. 96-115).<br />

A sociologia do trabalho indica que o processo de moderni<strong>da</strong>de vem acarretando<br />

a piora do meio ambiente de trabalho. A automação, a adoção de sistemas de trabalho taylorista,<br />

mecanizado, dividido, submisso, controlado, repetitivo e vazio aumenta a angústia do trabalhador,<br />

que não vê coerência nem resultado no trabalho desenvolvido, trazendo repercussões negativas a<br />

seu equilíbrio mental, e, por conseqüência, à sua saúde como um todo. Saindo de um panorama<br />

taylorista, na pós-moderni<strong>da</strong>de são adotados novos sistemas gerenciais que continuam a produzir<br />

estresse ocupacional.<br />

Sidnei Machado observa, com proprie<strong>da</strong>de, que (MACHADO, 2001, p. 46):<br />

...O modo de produção capitalista, paradoxalmente, ao mesmo tempo que faz<br />

exaltação do trabalho, por meio <strong>da</strong> organização de seu processo, controla a<br />

ativi<strong>da</strong>de produtiva inibindo o enriquecimento <strong>da</strong>s tarefas. A mecanização,<br />

inicialmente, e depois a automação impostas pela organização do trabalho,<br />

delimitando ritmos, cadências e tempo, vão revelar uma falta de a<strong>da</strong>ptação<br />

do homem às modernas condições de trabalho e produção. Esse ambiente de<br />

produção tornou-se um fator de risco à saúde física e mental dos trabalhadores.<br />

As novas formas de organização do trabalho e a introdução de novas<br />

tecnologias tendem a intensificar ain<strong>da</strong> mais os fatores de risco no trabalho<br />

em todo o mundo...<br />

Essa reali<strong>da</strong>de de medo e sofrimento não pode ser nega<strong>da</strong>. Apesar do implemento<br />

de novas técnicas de recursos humanos, não se têm desenvolvido práticas para melhorar as condições<br />

de trabalho. Ao contrário, a assustadora reali<strong>da</strong>de tem sido nega<strong>da</strong>, ou, muitas vezes, as<br />

situações de medo e sofrimento são detecta<strong>da</strong>s e têm sua energia canaliza<strong>da</strong> para melhorar os<br />

índices de produtivi<strong>da</strong>de empresarial, através de condutas que geram ain<strong>da</strong> mais sofrimento.<br />

19<br />

3.2 O Medo como Meio de Incremento de Produtivi<strong>da</strong>de<br />

Embora o medo e o sofrimento sejam inerentes a alguns tipos de trabalho,<br />

existem situações em que são condições de trabalho cria<strong>da</strong>s pelo empregador, visando, com sua<br />

exploração, o incremento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de individual e o aumento dos ganhos do capital. Conforme<br />

Dejours, a erosão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mental individual do trabalhador é útil para a implantação de um comportamento<br />

condicionado favorável à produção, e o sofrimento mental aparece como intermediário<br />

necessário à submissão do corpo (DEJOURS, 1994, p. 96).<br />

No mundo atual, infligir injustiça a outrem já é forma banaliza<strong>da</strong> de gestão; a<br />

questão do mal hoje se coloca de maneira totalmente nova, com o surgimento de condutas iníquas<br />

generaliza<strong>da</strong>s, em contextos organizacionais diferentes do sistema fordiano, nota<strong>da</strong>mente no quadro<br />

dos novos métodos de administração de empresas e gerenciamento (DEJOURS, 1999, p. 98):<br />

Júlio Rocha adverte, no que diz respeito às relações humanas no meio ambiente<br />

de trabalho, que são ca<strong>da</strong> vez mais importantes as análises acerca de elementos psicológicos como<br />

a pressão para o desempenho <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de, que desencadeia a depressão e distúrbios emocionais<br />

(apud MELO, 2004, p. 278).<br />

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Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral<br />

Analisando a obra de Dejours, Leonardo Wandelli (2004, p. 99) diagnostica<br />

a manipulação do medo e do sofrimento do trabalhador como instrumentos úteis aos fins<br />

empresariais:<br />

Manipulação do medo e do sofrimento: este é um processo que envolve a<br />

ampliação <strong>da</strong> vulnerabili<strong>da</strong>de social, já menciona<strong>da</strong>, mas articula<strong>da</strong> no interior<br />

<strong>da</strong> empresa de maneira que ela sirva de instrumento à consecução dos<br />

objetivos pretendidos pela organização. A ameaça vela<strong>da</strong> ou expressa como<br />

base de política de pessoal. O medo, assim, não é só o resultado <strong>da</strong> ameaça<br />

ou <strong>da</strong> vulnerabili<strong>da</strong>de, mas o ponto de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> banalização do mal. (...)<br />

Enquanto se trabalha, além <strong>da</strong> ameaça de precarização, há o medo diante dos<br />

riscos de acidente ou doença do trabalho; o medo de não corresponder às<br />

expectativas dos superiores e consumidores; de ser descartado como inapto.<br />

A pressão por resultados aumenta...<br />

20<br />

Essa manipulação do medo e do sofrimento inicialmente serve ao fim empresarial<br />

de incremento de produtivi<strong>da</strong>de: o empregado amedrontado e abalado psicologicamente acaba<br />

por acatar qualquer ordem, ain<strong>da</strong> que contrária ao seu próprio senso de ética; o abalo em seu<br />

sistema nervoso pode acarretar um estado de confusão mental que chega a impedir o empregado<br />

de discernir o certo do errado. Dejours, depois de afirmar que não encontra diferenças entre a<br />

banalização do mal no sistema neoliberal e no sistema nazista, identifica entre ambos os sistemas<br />

“as etapas de um processo capaz de atenuar a consciência moral em face do sofrimento infligido a<br />

outrem e de criar um estado de tolerância ao mal” (DEJOURS, 1999, p. 139).<br />

Com a criação de um ambiente de trabalho hostil e a desestabilização emocional<br />

do trabalhador, este se torna dócil e menos reivindicativo, mol<strong>da</strong>do aos desejos do capital.<br />

Segundo estudo promovido pela Socie<strong>da</strong>de Cubana de Direito do Trabalho e Seguri<strong>da</strong>de Social<br />

(SALVADOR, 2002, p. 67), isso acontece porque, em uma empresa orienta<strong>da</strong> para o mercado,<br />

requer-se uma competitivi<strong>da</strong>de empresarial superior para poder sobreviver à pressão <strong>da</strong> economia,<br />

o que faz o empregador buscar os melhores talentos, assim como o pessoal mais dócil, manejável,<br />

capaz de assumir funções sem protestar.<br />

Na jurisprudência, ca<strong>da</strong> dia são mais freqüentes os casos de condenação de<br />

empregadores em razão de atos decorrentes <strong>da</strong> utilização do medo e do sofrimento como meios de<br />

incremento de produtivi<strong>da</strong>de. A título ilustrativo são citados dois exemplos:<br />

1. O TRT Capixaba condenou uma empresa de comunicação por se utilizar de<br />

“dinâmicas de grupo”, em treinamentos e no dia-a-dia de trabalho, que eram considera<strong>da</strong>s vexatórias,<br />

como “<strong>da</strong>nçar a <strong>da</strong>nça <strong>da</strong> boquinha <strong>da</strong> garrafa e o bonde do tigrão”. Nessa ocasião o Regional<br />

entendeu que:<br />

...o empregador é responsável pela saúde emocional de seus empregados e<br />

não pode permitir que meros instrutores utilizem, de modo absolutamente<br />

temerário, uma ferramenta científica própria <strong>da</strong> psicologia, cuja conseqüência<br />

é tão-somente a humilhação e o constrangimento do trabalhador. (...) Os<br />

atos praticados pela recorri<strong>da</strong> ultrapassam os limites profissionais, porque<br />

minam a saúde física e mental <strong>da</strong> vítima e na<strong>da</strong> têm de modernos (TRT, 17 a<br />

Região, RO 01294.2002.007.17.00.9 – Ac. 23.10.03 – Relatora Juíza Sônia <strong>da</strong>s<br />

Dores Dionísio – LTr 68-03, março de 2004, p. 356-359).<br />

2. O TRT do Rio Grande do Sul apurou a utilização, como política de incremento<br />

de produtivi<strong>da</strong>de, de humilhações e constrangimentos impostos a trabalhador que não cumpria<br />

metas estabeleci<strong>da</strong>s. As alegações do empregado incluíam o relato de práticas como ser obrigado<br />

“vestir uma saia e desfilar em cima de uma mesa, enquanto os colegas gritavam ‘veado’”. Na<br />

análise <strong>da</strong> prova, o Regional constatou o seguinte:<br />

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...a segun<strong>da</strong> testemunha informou que quando os vendedores chegavam<br />

atrasados, esqueciam uniformes, não atingiam as metas, pagavam pren<strong>da</strong>s;<br />

que eram chamados de ‘filhos <strong>da</strong> p...’, ‘mer<strong>da</strong>’; que tinham apertado suas<br />

nádegas em corredor polonês, que isso acontecia quando o empregado não<br />

sabia responder ao ‘pinga fogo’...(TRT, 04 a Região, RO 00887.2003.015.04.00.4<br />

– Ac. 8 a Turma – Relator Juiz Carlos Alberto Robinson – DJRS 16.07.04.)<br />

Embora tais práticas sejam utiliza<strong>da</strong>s a pretexto de aumento de produtivi<strong>da</strong>de, é<br />

fato constatado pela psicologia que em médio e longo prazo produzem efeito contrário ao pretendido.<br />

O empregado, desgastado psicologicamente, vê diminuir sua capaci<strong>da</strong>de de trabalho e produtivi<strong>da</strong>de;<br />

o cansaço emocional favorece o desenvolvimento de doenças, algumas decorrentes de um<br />

processo de somatização, o que acarreta ausências ao serviço, inclusive afastamentos com autorização<br />

médica (HIRIGOYEN, 2003, p. 66). 5 Algumas doenças, como estresse agudo, alcoolismo e<br />

síndrome de bournout, podem ser decorrentes <strong>da</strong> exposição reitera<strong>da</strong> ao medo e sofrimento no<br />

ambiente de trabalho.<br />

3.3 O Medo Criado como Mero Exercício Arbitrário de Poder<br />

Além do medo e do sofrimento utilizados como meio de incremento de produtivi<strong>da</strong>de<br />

não é raro depararmos com indivíduos perversos que, identificados como “empreendedores<br />

e pró-ativos”, são alçados a cargos de chefia e utilizam dessa posição para <strong>da</strong>r vazão à cruel<strong>da</strong>de.<br />

De acordo com levantamentos <strong>da</strong> OIT, a ca<strong>da</strong> dia cresce a violência no ambiente<br />

de trabalho, com destaque para a pressão psicológica, consistente em atitudes como observações<br />

e críticas destrutivas, segregação de pessoas do convívio social, difusão de rumores ou informações<br />

falsas.<br />

Práticas perversas e reitera<strong>da</strong>s de gestão abusiva são identifica<strong>da</strong>s como assédio<br />

moral. Hirigoyen qualifica o indivíduo maldoso como “perverso”, vez que utiliza procedimentos<br />

semelhantes aos que eram usados nos campos de concentração, “atando” psicologicamente a<br />

vítima, que fica impedi<strong>da</strong> de reagir. O agressor criva a vítima de críticas e censuras, vigia, cronometra,<br />

deixando-a sem saber como agir e sem compreender o que acontece. Os instrumentos utilizados<br />

de forma mais freqüente são a recusa à comunicação direta, a desqualificação através de comunicação<br />

não verbal (suspiros, levantar de ombros, olhares, silêncios) e “brincadeiras” perversas<br />

(ironias, zombaria, sarcasmo). O indivíduo que assedia leva a pessoa a desacreditar de si; provoca<br />

o isolamento do empregado, não o convocando para reuniões, privando-o de informações, “arquivando”<br />

a pessoa sem lhe <strong>da</strong>r o que fazer (DEJOURS, 1991, p. 77), 6 condutas que geram mais<br />

estresse que a mera sobrecarga física de trabalho. Também é prática usual a utilização de procedimentos<br />

vexatórios, como confiar à vítima tarefas inúteis ou humilhantes ou induzir o empregado<br />

ao erro. Não se descartam, ain<strong>da</strong>, as situações de assédio de caráter sexual, que também imprimem<br />

sofrimento à vítima (HIRIGOYEN, 2003, p. 76-81).<br />

Outra forma bem dissemina<strong>da</strong> de assédio, e particularmente bem aceita por<br />

parte dos coman<strong>da</strong>dos, em razão de questões sociológicas, constitui na escolha dos empregados<br />

“favoritos” do chefe, que levam pequenas e reitera<strong>da</strong>s vantagens no dia a dia empresarial: são<br />

beneficiados na distribuição <strong>da</strong>s tarefas, na opção de períodos de férias, na concessão de folgas e<br />

opção por compensação de horas de trabalho, o que provoca uma divisão desigual do trabalho.<br />

Conforme Dejours, a desigual<strong>da</strong>de na divisão do trabalho é uma arma de que se servem os chefes<br />

21<br />

5 Não se morre diretamente de to<strong>da</strong>s essas agressões, mas perde-se uma parte de si mesmo. Volta-se para casa, a ca<strong>da</strong> noite,<br />

exausto, humilhado, deprimido. E é difícil recuperar-se.<br />

6 DEJOURS relata o caso de fábricas de automóveis, na França, que para isolar os empregados organizavam as linhas de<br />

montagem intercalando empregados de diversas nacionali<strong>da</strong>des diferentes (um árabe, um iugoslavo, um francês, um turco,<br />

um espanhol, um italiano, um português, etc.), de modo a, com o obstáculo <strong>da</strong> língua, impedir to<strong>da</strong> a comunicação durante<br />

o horário de trabalho.<br />

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Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral<br />

a bel-prazer <strong>da</strong> própria agressivi<strong>da</strong>de, hostili<strong>da</strong>de ou perversi<strong>da</strong>de. Essa discriminação <strong>da</strong> hierarquia<br />

com relação aos trabalhadores faz parte integrante <strong>da</strong>s táticas “guerrilheiras” de comando,<br />

uma vez que a criação de rivali<strong>da</strong>des e a discriminação asseguram um grande poder à supervisão<br />

(DEJOURS, 1991, p. 75-76).<br />

3.4 Efeitos do Medo e do Sofrimento na Saúde do Trabalhador<br />

Medo e sofrimento no trabalho são agentes desencadeadores de doenças psíquicas,<br />

como estresse e depressão. O resultado <strong>da</strong> soma de sofrimentos psíquicos, muitas vezes,<br />

vem a ser a ruptura do equilíbrio psíquico, o que vai desencadear a psicopatologia.<br />

Fiorelli e Malha<strong>da</strong>s (2003, p. 38), no estudo conjunto <strong>da</strong> psicologia e do direito<br />

do trabalho, indicam os seguintes efeitos dessa ruptura do equilíbrio psíquico:<br />

Aqueles empregados que (...) não conseguem superar as situações de risco,<br />

real ou imaginário, por eles percebi<strong>da</strong>s, mostram-se potencialmente capazes<br />

de desenvolver estados continuados de tensão, predispondo-se a diversos<br />

tipos de patologias ou psicopatologias. Daí resultam hipertensões, crises de<br />

gastrite, úlceras, taquicardias e outras complicações; no campo psíquico,<br />

encontram-se a ansie<strong>da</strong>de, a depressão, a propensão à drogadição, etc. A<br />

tensão continua<strong>da</strong> contribui para a redução <strong>da</strong>s defesas do organismo, facilitando<br />

as ações de vírus e bactérias.<br />

22<br />

Wandelli (2004, p. 101) adverte que a prática <strong>da</strong> exploração tem como conseqüência<br />

uma soma de sofrimentos: ao sofrimento psíquico decorrente de um mal padecido pelo<br />

sujeito soma-se o sofrimento ético, “aquele experimentado pelo sujeito ao cometer atos que ele<br />

próprio condena moralmente”.<br />

Há estudos demonstrando que o processo do assédio moral pode levar “à total<br />

alienação do indivíduo do mundo social que o cerca, julgando-se inútil e sem forças e levando,<br />

muitas vezes, ao suicídio” (NASCIMENTO, 2004, p. 922). Na Suécia, estima-se que esse tipo de<br />

pressão é causa de 10 a 15% dos suicídios (OLIVEIRA, 2002, p. 189). No Japão, já se criou um<br />

vocábulo próprio, karoshi, para designar a morte pelo excesso de trabalho. Esse trabalhar até a<br />

exaustão e morte pode ser decorrente, também, de práticas de assédio moral, utiliza<strong>da</strong>s como<br />

forma de pressão por melhores resultados no trabalho.<br />

A vítima fica indefesa: se tenta reagir, provoca a contra-reação do agressor,<br />

através de uma hostili<strong>da</strong>de declara<strong>da</strong>, visando sua destruição moral, o que pode levar a seu<br />

total aniquilamento psíquico, ou, em casos extremos, até mesmo ao suicídio. Se não reage,<br />

paulatinamente tem destruído seu amor próprio e segurança para desenvolver até mesmo<br />

trabalhos rotineiros.<br />

4 CONCLUSÃO<br />

O assédio moral tem sido objeto de diversos estudos em relação às suas hipóteses<br />

e sintomatologia. Muitas vezes, entretanto, falta questionar o que leva o empregador a admitir<br />

ou até incentivar tais práticas, bem como analisar os efeitos disso na vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> do empregado.<br />

Na atual cultura empresarial, o medo e o sofrimento do trabalhador têm sido<br />

utilizados ora como meios de incremento <strong>da</strong> produção, sob o rótulo de sistema de gestão, ora como<br />

mera demonstração arbitrária de poder por parte de chefias desprepara<strong>da</strong>s e que utilizam tais<br />

práticas como válvula de escape <strong>da</strong> própria perversi<strong>da</strong>de e agressivi<strong>da</strong>de.<br />

A rotina de causar medo e sofrimento pode configurar assédio moral. Diversos<br />

projetos de lei estão em tramitação, buscando regular o assunto. Não obstante, a falta de legislação<br />

específica não serviu de empecilho ao desenvolvimento de ampla doutrina e jurisprudência a respeito<br />

<strong>da</strong> questão.<br />

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Caso demonstra<strong>da</strong> a conduta de cerco por parte do empregador ou seus<br />

prepostos, seja pelo incentivo, seja pela tolerância, estará caracteriza<strong>da</strong> a culpa empresarial. Em<br />

havendo nexo de causali<strong>da</strong>de entre a conduta do empregador e o sofrimento causado no empregado,<br />

este terá direito à percepção de indenização. Os tribunais trabalhistas pátrios têm reconhecido,<br />

reitera<strong>da</strong>mente, a existência do problema, inclusive com condenação de empregadores ao pagamento<br />

de indenizações.<br />

O prejuízo social é ain<strong>da</strong> maior, uma vez que o trabalhador submetido à tortura<br />

no trabalho pode perder sua capaci<strong>da</strong>de laboral de forma temporária ou permanente. A socie<strong>da</strong>de<br />

não pode permanecer inerte diante dessas situações, assistindo ao desmonte <strong>da</strong> saúde do trabalhador<br />

que busca ganhar seu pão. E não basta que o Poder Judiciário defira o pagamento de indenizações<br />

às vítimas. Urge sejam toma<strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s visando suprimir esse círculo vicioso de mal<strong>da</strong>de e<br />

sofrimento.<br />

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VILAS BOAS, Sérgio. Perseguição no Trabalho é Assédio Moral. Jornal Folha de São Paulo.<br />

Suplemento Folha Equilíbrio. São Paulo: 21.02.2002, p. 08-11.<br />

WANDELLI, Leonardo Vieira. Despedi<strong>da</strong> Abusiva: o direito (do trabalho) em busca de uma<br />

nova racionali<strong>da</strong>de. São Paulo: LTr, 2004.<br />

24<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


André Gonçalo Dias Pereira<br />

DEVER DE DOCUMENTAÇÃO, ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO E SUA<br />

PROPRIEDADE. UMA PERSPECTIVA EUROPÉIA<br />

André Gonçalo Dias Pereira*<br />

RESUMO<br />

Neste texto apresentam-se os fun<strong>da</strong>mentos, as finali<strong>da</strong>des e os objectivos que presidem ao dever<br />

de documentação dos médicos. Estu<strong>da</strong>-se o regime de vários ordenamentos jurídicos europeus de<br />

acesso ao processo clínico, verificando-se que a maioria <strong>da</strong>s legislações admite o acesso directo<br />

do doente ao processo. Relativamente à questão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de do processo clínico, observa-se<br />

hoje uma nova compreensão <strong>da</strong> questão, na medi<strong>da</strong> em que a informação de saúde carece de<br />

cautelas suplementares de protecção face aos avanços <strong>da</strong> genómica, pelo que, em Portugal, a Lei<br />

12/2005, de 26 de janeiro, outorgou a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> informação de saúde ao paciente, sendo as<br />

uni<strong>da</strong>des do sistema de saúde meras depositárias do processo clínico.<br />

Palavras-chave: Processo Clínico. Acesso à Ficha Clínica. Proprie<strong>da</strong>de do Processo Clínico.<br />

DOCUMENTATION DUTY, ACCESS TO MEDICAL FILE AND ITS<br />

OWNERSHIP. A EUROPEAN OUTLOOK<br />

ABSTRACT<br />

This paper discusses the reasons, goals and objectives of the doctor’s duty to register. Secondly,<br />

the system of access to medical records in different European countries is analysed. Increasingly<br />

the patient has the right to access directly to his/her medical file. Finally, taking into consideration<br />

the challenges of genomics, a new perspective of the ownership of medical files is discussed. In<br />

that respect, recent Portuguese law (Law 12/2005, 26 January) states that medical information is<br />

owned by the patient.<br />

25<br />

Keywords: Medical <strong>da</strong>ta. Access to Medical File. Ownership of Medical Records.<br />

1 FUNDAMENTOS E FINALIDADES DO PROCESSO CLÍNICO<br />

É doutrina e jurisprudência segura por to<strong>da</strong> a Europa que os médicos e os hospitais<br />

estão obrigados a proceder à documentação e registo <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de clínica. 1 Os fun<strong>da</strong>mentos<br />

desta obrigação podem ser encontrados quer no plano do direito contratual, quer delitual, nomea<strong>da</strong>mente<br />

através dos direitos de personali<strong>da</strong>de (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p. 481-482). 2<br />

No plano contratual, entende-se que há um dever lateral (Nebenpflicht) resultante<br />

do contrato médico de realizar uma documentação minuciosa, pormenoriza<strong>da</strong>, cui<strong>da</strong>dosa e<br />

<strong>completa</strong> <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de médica, cirúrgica e dos cui<strong>da</strong>dos de enfermagem.<br />

* Assistente <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Coimbra. Pós-graduado em Direito Civil e em Direito <strong>da</strong> Medicina pela<br />

Universi<strong>da</strong>de de Coimbra; Mestre e Doutorando em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universi<strong>da</strong>de de Coimbra. Secretário<br />

Científico do Centro de Direito Biomédico; Membro do Conselho Nacional de Medicina Legal.<br />

1 Numa análise muito resumi<strong>da</strong>, podemos afirmar que os principais deveres dos médicos face aos doentes são: (1) respeitar as<br />

leges artis e assegurar cui<strong>da</strong>dos de saúde de quali<strong>da</strong>de; (2) informar o paciente e obter o seu consentimento livre e esclarecido;<br />

(3) guar<strong>da</strong>r sigilo e salvaguar<strong>da</strong>r a protecção de <strong>da</strong>dos pessoais e (4) fazer uma boa documentação clínica.<br />

2 Na formulação do BGH (Supremo Tribunal Federal alemão), o dever de documentação tem origem delitual e contratual e é<br />

um requisito fun<strong>da</strong>mental para a segurança do paciente no tratamento. Destarte, o dever de documentar impõe-se mesmo<br />

que entre o médico e o paciente não se tenha estabelecido uma relação contratual.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Dever <strong>da</strong> Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Proprie<strong>da</strong>de. Uma Perspectiva Européia<br />

26<br />

A obrigação de levar a cabo um perfeito registo <strong>da</strong> história clínica resulta também<br />

de um dever de cui<strong>da</strong>do do médico, de uma obrigação inserta nas leges artis<br />

(Therapiepflicht). Para que os cui<strong>da</strong>dos de saúde sejam zelosos e organizados, impõe-se que o<br />

médico proce<strong>da</strong> ao registo e à documentação <strong>da</strong>s consultas, exames, diagnósticos e tratamentos<br />

efectuados, sob pena de incorrer em responsabili<strong>da</strong>de civil.<br />

As principais finali<strong>da</strong>des do dever de documentação consistem em garantir a<br />

segurança do tratamento, a obtenção <strong>da</strong> prova, o controlo dos custos de saúde e a facili<strong>da</strong>de<br />

de fun<strong>da</strong>mentação dos honorários (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.481).<br />

Relativamente à segurança do tratamento, deve-se ter em conta que hoje se<br />

pratica uma medicina de equipa, com eleva<strong>da</strong> tecnologia, pelo que o adequado registo <strong>da</strong>s informações<br />

médicas permite evitar acidentes graves. Pense-se no caso dramático <strong>da</strong> amputação de um<br />

membro saudável devido a má comunicação entre o médico e o cirurgião. O direito a uma segun<strong>da</strong><br />

consulta ou a uma segun<strong>da</strong> opinião também contribui para a maior exigência relativamente<br />

ao dever de documentação.<br />

A importância do processo clínico ou prontuário como meio de prova vem-se<br />

afirmando ca<strong>da</strong> vez mais, seja nas acções de negligência médica, seja nas acções de consentimento<br />

informado. Nas primeiras, é sabido que só a reconstituição do iter do tratamento permite<br />

averiguar <strong>da</strong> culpa do médico; quanto às segun<strong>da</strong>s, ca<strong>da</strong> vez mais a doutrina apela a uma boa<br />

documentação <strong>da</strong> informação e do consentimento em detrimento do burocratizado e estan<strong>da</strong>rdizado<br />

formulário para consentimento (PEREIRA DIAS, 2004, p. 187, s. E 525 e s.).<br />

Quanto ao controlo dos custos de saúde, um adequado registo <strong>da</strong> história<br />

clínica pode permitir grandes poupanças. Na ver<strong>da</strong>de, uma <strong>da</strong>s principais causas do exponencial<br />

aumento dos custos de saúde é a multiplicação de exames supérfluos e repetidos sobre o mesmo<br />

paciente.<br />

Finalmente, a existência de uma boa documentação clínica facilita a fun<strong>da</strong>mentação<br />

dos honorários (Rechenschaftslegung).<br />

A facili<strong>da</strong>de probatória e o facto de a documentação constituir um instrumento<br />

para cobrança de honorários são finali<strong>da</strong>des critica<strong>da</strong>s por alguma doutrina neste contexto; to<strong>da</strong>via,<br />

parece que é razoável e pragmático aceitar que estas são efectivamente finali<strong>da</strong>des importantes<br />

e legítimas do dever de documentação. Este dever tanto favorece o médico como o paciente e<br />

permite uma melhor execução do contrato (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.485).<br />

Finalmente, pode-se sintetizar os grandes objectivos <strong>da</strong> existência do processo<br />

clínico: (1) melhorar os cui<strong>da</strong>dos de saúde prestados ao doente; (2) partilhar informação clínica<br />

entre os profissionais de saúde; (3) diminuir o erro; (4) melhorar a forma como a informação é<br />

obti<strong>da</strong>, regista<strong>da</strong> e disponibiliza<strong>da</strong>; (5) garantir a mobili<strong>da</strong>de e acesso remoto; (6) melhorar o suporte<br />

à decisão clínica; (7) acesso fácil a stan<strong>da</strong>rds terapêuticos; e, por último, (8) a racionalização de<br />

recursos.<br />

2 O DEVER DE DOCUMENTAÇÃO NO DIREITO PORTUGUÊS<br />

No direito português, Guilherme de Oliveira defende que está previsto o dever<br />

jurídico de documentação. Este dever encontra-se vertido no art. 77º, n.º 1 Código Deontológico<br />

<strong>da</strong> Ordem dos Médicos, que tem a seguinte re<strong>da</strong>cção:<br />

O médico, seja qual for o Estatuto a que submeta a sua acção profissional,<br />

tem o direito e o dever de registar cui<strong>da</strong>dosamente os resultados que considere<br />

relevantes <strong>da</strong>s observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando-as<br />

ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do<br />

segredo profissional.<br />

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André Gonçalo Dias Pereira<br />

Essa norma deontológica tem a virtuali<strong>da</strong>de heurística de densificar o conteúdo<br />

normativo do art. 7º, al. e) do Decreto-Lei n.º 373/79, de 8 de Setembro (Estatuto do Médico),<br />

segundo o qual o médico tem o dever de “contribuir com a criação e manutenção de boas condições<br />

técnicas e humanas de trabalho para a eficácia dos serviços” (OLIVEIRA, Guilherme de.<br />

SD, p. 36).<br />

Outra base legal encontra-se nos artigos 573º e 575º CC, que regulam a obrigação<br />

de “informação” e de “apresentação de documentos” (FIGUEIREDO DIAS; SINDE<br />

MONTEIRO, 1984, p.42). A afirmação desse dever de documentação tem também influência<br />

na distribuição <strong>da</strong> carga probatória (VÁZQUEZ FERREYRA; TALLONE. 2000). 3 O médico<br />

fica prejudicado no plano probatório não apenas se subtrair ou alterar documentos que têm<br />

importância para esclarecer a controvérsia (art. 344.º, n.º2 do Código Civil), mas também se a<br />

re<strong>da</strong>cção dos actos médicos for inexacta ou in<strong>completa</strong>. De qualquer modo, convém reiterar que<br />

o processo clínico não constitui sempre uma ver<strong>da</strong>de irrefutável e absoluta, pelo que deve ser<br />

avalia<strong>da</strong> conjuntamente com os restantes elementos probatórios presentes no processo (GALÁN<br />

CORTÉS, 2001, p. 152).<br />

Efectivamente, entende-se que o processo clínico pode ter uma importância<br />

decisiva num processo de responsabili<strong>da</strong>de médica. Entre nós, o art. 344º, n.º 2, CC estabelece a<br />

inversão do ónus <strong>da</strong> prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova<br />

à parte onera<strong>da</strong>. 4 O médico deve ser o primeiro a ter interesse em ser zeloso na conservação e no<br />

adequado registo <strong>da</strong> ficha clínica (TEIXEIRA DE SOUSA, 1996, p. 131).<br />

Em suma, o processo ou ficha clínica é de grande importância na boa relação<br />

médico–paciente e, simultaneamente, pode aju<strong>da</strong>r a controlar os ‘galopantes’ custos de saúde.<br />

Nesse sentido, as legislações modernas 5 exigem que o médico registe as consultas e organize um<br />

processo onde deve incluir, entre outros, os exames, as análises, os apontamentos <strong>da</strong>s consultas,<br />

formulários do consentimento, etc (DUPUY, 2002, p. 15 s.).<br />

3 O CONTEÚDO DO DEVER DE DOCUMENTAÇÃO<br />

27<br />

O adequado cumprimento dever de documentação pressupõe o registo de vários<br />

itens, como, por exemplo: a anamnese, o diagnóstico, a terapia, os métodos de diagnóstico<br />

utilizados, o doseamento <strong>da</strong> medicação, o dever de informar para o consentimento, o relatório <strong>da</strong>s<br />

operações; os acontecimentos inesperados, a mu<strong>da</strong>nça de médico ou de cirurgião, a passagem<br />

pelos cui<strong>da</strong>dos intensivos, o abandono do hospital contra a indicação médica, etc..<br />

A forma <strong>da</strong> documentação também deve ser objecto do maior cui<strong>da</strong>do. Os<br />

hospitais vão uniformizando e sistematizando os prontuários, o que é salutar enquanto demonstra o<br />

rigor e o cui<strong>da</strong>do nesta tarefa; por outro lado, nos tempos modernos, assume especial atenção a<br />

documentação electrónica.<br />

3 A Cámara Civil y Comercial de Junín (Argentina), na decisão de 15-12-1994, decidiu que “constitui uma presunção contra<br />

o profissional a inexistência <strong>da</strong> história clínica ou a existência de irregulari<strong>da</strong>des na mesma”. A falta do processo clínico priva<br />

de um elemento valioso para a prova <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de médica e deve prejudicar a quem era exigível como dever de<br />

colaboração na difícil activi<strong>da</strong>de probatória e esclarecimento dos factos. Através <strong>da</strong> prova por presunções, uma história<br />

clínica insuficiente constitui mais um indício que deverá ser tomado em consideração pelo tribunal na hora de analisar a<br />

conduta dos profissionais. Mas a necessária relação causal não pode deduzir-se apenas <strong>da</strong> existência de uma história clínica<br />

irregular..<br />

4 Artigo 344.º, n.º2 do Código Civil – (Inversão do ónus <strong>da</strong> prova): “Há também inversão do ónus <strong>da</strong> prova, quando a parte<br />

contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo <strong>da</strong>s sanções que a lei de processo mande<br />

especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”<br />

5 No plano histórico, encontram-se os primeiros documentos, com informações relativas aos pacientes, nos hospitais de<br />

Bag<strong>da</strong>d nos séculos IX, X e XI <strong>da</strong> nossa era.<br />

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Dever <strong>da</strong> Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Proprie<strong>da</strong>de. Uma Perspectiva Européia<br />

O registo <strong>da</strong> história clínica deve ser feito em devido tempo. Deve verificar-se<br />

uma relação imediata com o tratamento ou com a intervenção médica. Com efeito, se a documentação<br />

for realiza<strong>da</strong> semanas ou meses depois <strong>da</strong> intervenção, pode-se defender, no caso de um<br />

processo de responsabili<strong>da</strong>de médica, uma inversão do ónus <strong>da</strong> prova, tal como nos casos de<br />

ausência ou insuficiente documentação. A jurisprudência alemã entende que há uma relação de<br />

proporcionali<strong>da</strong>de entre a gravi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> intervenção e a exigência de documentar com brevi<strong>da</strong>de.<br />

Assim, por exemplo, uma cirurgia de alto risco deve ser objecto de um registo minucioso e imediato;<br />

intervenções de rotina podem ser regista<strong>da</strong>s passado algum tempo (LAUFS; UHLENBRUCK,<br />

2002, p. 487).<br />

4 O ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO<br />

28<br />

O processo clínico pode ser um instrumento importante na relação médico–<br />

paciente e também como meio de prova <strong>da</strong> informação forneci<strong>da</strong> e do consentimento obtido. 6 É<br />

mister considerar apenas a comunicação do processo clínico ao paciente (MONIZ, 1997).<br />

O acesso à ficha clínica, por parte do paciente, pode ter um regime diferente<br />

consoante se esteja numa fase extra-processual, pré-processual ou já em fase processual.<br />

A doutrina alemã distingue: a) a fase extra-processual, em que a consulta<br />

pode estar sujeita a algumas limitações temporais e objectivas (para protecção do interesse do<br />

médico em não ver devassa<strong>da</strong>s as suas anotações pessoais e de terceiras pessoas); b) a fase préprocessual,<br />

em que o paciente pretende preparar uma acção de honorários ou de responsabili<strong>da</strong>de<br />

civil (havendo também limitações para protecção do médico e de terceiros, bem como por razões<br />

terapêuticas, sendo admissível limitar o aceso a paciente com problemas psiquiátricos que seriam<br />

gravemente prejudicados com o conhecimento integral do seu ficheiro clínico, devendo este ser<br />

acompanhado e aconselhado por um médico); c) o direito de consulta durante um litígio em<br />

tribunal, em que a ficha clínica assume uma importância decisiva na clarificação dos factos, podendo<br />

mesmo ser requeri<strong>da</strong> ex officio pelo próprio tribunal. Quando seja entregue, 7 a ficha clínica<br />

passa a ser considera<strong>da</strong> como documento integrante do processo (Teil der Prozessakte) e não há<br />

razões de índole terapêutica que justifiquem uma limitação ao direito de consulta do processo<br />

(LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p. 491).<br />

Podemos acrescentar, à face do direito português, que, em caso de litígio, o<br />

médico tem o dever de cooperação para a descoberta <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de (art. 519º, n.º1 CPC), “o<br />

qual impõe a obrigação de facultar à contraparte e ao tribunal os documentos que estão em seu<br />

poder. Quando preten<strong>da</strong> fazer uso desses documentos, o paciente requererá que o médico deman<strong>da</strong>do<br />

seja notificado para os apresentar dentro do prazo que o tribunal designar (art. 528º,<br />

n.º1 CPC); se o médico se recusar a fazê-lo, o tribunal apreciará livremente a sua conduta para<br />

efeitos probatórios (art. 529º CPC), isto é, poderá, se assim o entender, <strong>da</strong>r como provados os<br />

factos que o paciente se propunha demonstrar através desses documentos” (TEIXEIRA DE<br />

SOUSA , SD, p. 134 e FIGUEIREDO DIAS/ SINDE MONTEIRO, SD, p. 28 e 32). Porém,<br />

terceiros (mesmo com interesses patrimoniais directos) têm direito de acesso ao processo apenas<br />

na medi<strong>da</strong> em que os seus interesses tenham um valor superior ao direito de autodeterminação<br />

informativa do paciente.<br />

Neste trabalho será apresentado apenas um breve quadro <strong>da</strong> legislação de<br />

alguns países europeus no que respeita ao acesso ao dossier médico numa situação extra-judicial.<br />

6 A Declaração dos Direitos dos Pacientes prescreve que “à saí<strong>da</strong> de um estabelecimento de tratamento, os pacientes deveriam<br />

poder, a seu pedido, obter um resumo escrito do diagnóstico, tratamento e cui<strong>da</strong>dos que a ele dizem respeito” (2.9.)<br />

7 Contudo, este é um processo complexo em que deve ser ouvi<strong>da</strong> a Ordem dos Médicos, nos termos do art. 69.º e 73.º do Código<br />

Deontológico.<br />

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4.1 O Direito de Consulta do Processo Clínico<br />

Nesta fase o paciente não está em litígio nem pretende intentar uma acção<br />

contra o facultativo. Os fun<strong>da</strong>mentos do direito de consulta encontram-se no contrato médico e na<br />

protecção dos direitos de personali<strong>da</strong>de. O doente deve apresentar uma justificação para consultar<br />

o processo, porém essa justificativa não carece de revestir um especial interesse de protecção.<br />

4.1.1 Posição Tradicional: O Acesso Indirecto<br />

A maior parte <strong>da</strong>s ordens jurídicas nos países latinos admitiam o acesso à história<br />

clínica, mas apenas através de um médico nomeado pelo paciente. Era o chamado sistema do<br />

acesso indirecto.<br />

Em Portugal, mantém-se o acesso limitado, na medi<strong>da</strong> em que só pode ser<br />

efectuado por intermédio de um médico. Consagra-se assim o acesso mediato ou indirecto à ficha<br />

clínica. Esse direito de acesso indirecto à informação clínica, encontra-se previsto no art. 11º, n.º<br />

5 <strong>da</strong> Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei de Protecção dos Dados Pessoais) e na Lei n.º 94/99,<br />

de 16 de Julho (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos [LADA]). A Lei n.º 12/2005, de<br />

26 de Janeiro, Informação genética pessoal e informação de saúde) mantém esse regime,<br />

prescrevendo o artigo 3.º, n.º3: “O acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou de<br />

terceiros com o seu consentimento, é feito através de médico, com habilitação própria, escolhido<br />

pelo titular <strong>da</strong> informação.”<br />

Esse sistema não é contrário ao art. 10º, n.º 3, <strong>da</strong> Convenção dos Direitos do<br />

Homem e a Biomedicina (DIÁRIO DA REPUBLICA, 2001), já que esta Convenção confere a<br />

possibili<strong>da</strong>de de os Estados parte adoptarem este modelo mais paternalista, “a título excepcional e<br />

no interesse do paciente.” Essa mediação tem em vista proteger o paciente de informações que<br />

poderiam afectar gravemente a sua saúde. Este regime encontra evidente paralelismo com o privilégio<br />

terapêutico, pelo que, após a Reforma do Código Penal de 1995 deveremos ser muito<br />

restritivos na limitação <strong>da</strong> informação ao doente. Assim, esta limitação só se justifica “se isso<br />

implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conheci<strong>da</strong>s pelo paciente, poriam em perigo<br />

a sua vi<strong>da</strong> ou seriam susceptíveis de lhe causar grave <strong>da</strong>no à saúde, física o psíquica.”<br />

Com efeito, o art. 3.º, n.º 2 <strong>da</strong> Lei 12/2005, prevê que: “O titular <strong>da</strong> informação<br />

de saúde tem o direito de, querendo, tomar conhecimento de todo o processo clínico que lhe diga<br />

respeito, salvo circunstâncias excepcionais devi<strong>da</strong>mente justifica<strong>da</strong>s e em que seja inequivocamente<br />

demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial, ou de o fazer comunicar a quem seja<br />

por si indicado.”<br />

Na esteira do direito alemão, porém, no acesso à documentação deve distinguir-se<br />

entre “os elementos que contêm <strong>da</strong>dos objectivos e aqueles que implicam valorações<br />

subjectivas, bem como a notícia de <strong>da</strong>dos fornecidos por terceiros (cônjuge ou parentes), em<br />

relação aos quais não existe o direito de apresentação” (SINDE MONTEIRO, 1990, p. 427). 8<br />

Pelo que o médico que proce<strong>da</strong> à transmissão <strong>da</strong> informação ao paciente deve ter em conta os<br />

interesses do médico e de terceiros. 9<br />

29<br />

8 No mesmo sentido, cfr. as leis de Espanha e <strong>da</strong> Bélgica.<br />

9 Adiante este ponto será desenvolvido.<br />

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Dever <strong>da</strong> Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Proprie<strong>da</strong>de. Uma Perspectiva Européia<br />

4.1.2 Nova Orientação: O Acesso Directo<br />

30<br />

As recentes leis de direitos dos pacientes, nos países latinos, têm vindo a<br />

admitir o acesso de forma mais liberal.<br />

Em Espanha, a Ley 41/2002, de 14 de Novembro, 10 regula o acesso à história<br />

clínica, consagrando o direito de acesso livre e directo e o direito de obter cópia destes <strong>da</strong>dos.<br />

Salvaguar<strong>da</strong>ndo, porém, os direitos de terceiras pessoas à confidenciali<strong>da</strong>de dos <strong>da</strong>dos, o interesse<br />

terapêutico do paciente e o direito dos profissionais à reserva <strong>da</strong>s suas anotações<br />

subjectivas. 11<br />

A lei francesa de 4 de Março de 2002 12 confere aos pacientes o direito de<br />

aceder às informações médicas conti<strong>da</strong>s no seu processo clínico. Mais concretamente, essa lei –<br />

quebrando a tradição gaulesa – consagra a possibili<strong>da</strong>de para o paciente de aceder directamente<br />

à ficha clínica que lhe diz respeito. Anteriormente, o doente só podia tomar conhecimento dessas<br />

informações através do intermédio de um médico.<br />

A consagração do direito de acesso directo ao processo clínico é a resposta do<br />

legislador às reivindicações <strong>da</strong>s associações de utentes. Contudo, certamente assistiremos a alguma<br />

resistência por parte de alguns médicos. Para além de verem a sua ‘privaci<strong>da</strong>de’ profissional<br />

devassa<strong>da</strong> por esta lei, os médicos temem que o paciente fique mais exposto aos riscos de pressão<br />

dos empregadores e seguradores no sentido de conhecerem os seus prontuários (DUPUY, 2002,<br />

p.6). 13<br />

O legislador salvaguardou, porém, certas hipóteses para as quais este direito de<br />

acesso será indirecto. Assim acontece no caso de uma hospitalização compulsiva. Esta limitação<br />

justifica-se pela necessi<strong>da</strong>de para o médico de dispor de um poder de controlo <strong>da</strong> difusão de<br />

informação sobre a patologia ao seu paciente. Por outro lado, o direito de consulta do processo<br />

relativo a um menor não emancipado é exercido pelos titulares <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de parental. Contudo,<br />

também pode ter lugar a pedido do menor por intermédio do médico. O menor que quiser manter<br />

segredo de determinado tratamento pode-se opor a que o médico comunique ao titular <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de<br />

parental as informações relativas a essa intervenção. O médico deve fazer menção escrita<br />

dessa oposição (DUPUY, 2002, p. 8).<br />

Também na Bélgica se aceita, actualmente, o acesso directo ao seu processo.<br />

O art. 9, §2 <strong>da</strong> Lei Belga sobre Direitos dos Pacientes de 2002, 14 reconhece o direito de consultar<br />

a história clínica, mas considera que as anotações pessoais do profissional de saúde e os <strong>da</strong>dos<br />

relativos a terceiros não são abrangidos por esse direito de consulta.<br />

10 Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en<br />

materia de información y documentación clínica.<br />

11 Artículo 18. Derechos de acceso a la historia clínica.: “1. El paciente tiene el derecho de acceso, con las reservas señala<strong>da</strong>s<br />

en el apartado 3 de este artículo, a la documentación de la historia clínica y a obtener copia de los <strong>da</strong>tos que figuran en ella.<br />

Los centros sanitarios regularán el procedimiento que garantice la observancia de estos derechos. 2. El derecho de acceso del<br />

paciente a la historia clínica puede ejercerse también por representación debi<strong>da</strong>mente acredita<strong>da</strong>. 3. El derecho al acceso del<br />

paciente a la documentación de la historia clínica no puede ejercitarse en perjuicio del derecho de terceras personas a la<br />

confidenciali<strong>da</strong>d de los <strong>da</strong>tos que constan en ella recogidos en interés terapéutico del paciente, ni en perjuicio del derecho<br />

de los profesionales participantes en su elaboración, los cuales pueden oponer al derecho de acceso la reserva de sus<br />

anotaciones subjetivas. 4. clínica de los pacientes fallecidos a las personas vincula<strong>da</strong>s a él, por razones familiares o de hecho,<br />

salvo que el fallecido lo hubiese prohibido expresamente y así se acredite. En cualquier caso el acceso de un tercero a la<br />

historia clínica motivado por un riesgo para su salud se limitará a los <strong>da</strong>tos pertinentes. No se facilitará información que<br />

afecte a la intimi<strong>da</strong>d del fallecido ni a las anotaciones subjetivas de los profesionales, ni que perjudique a terceros.”<br />

12 Loi no 2002-303 du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à la qualité du système de santé.<br />

13 To<strong>da</strong>via, o art. 45 do Code de Déontologie médicale dispõe que “independentemente do dossier clínico previsto na lei, o<br />

médico deve ter para ca<strong>da</strong> paciente uma parte de observações que lhe é pessoal; essa ficha é confidencial e inclui os elementos<br />

actualizados, necessários às decisões diagnósticas e terapêuticas”. Alguns autores entendem que essas fichas também são<br />

comunicáveis se o paciente o solicitar. Outros entendem que tal medi<strong>da</strong> apenas iria sobrecarregar o processo de informação<br />

médica. Que o doente possa, se quiser, aceder à informação médica que lhe diz respeito, parece adequado, mas seria mais<br />

judicioso ater-se ao espírito <strong>da</strong> norma do Código Deontológico, isto é à sagaci<strong>da</strong>de do médico.Jean-Marie Clément, receia<br />

que se caminhe para uma formalização excessiva <strong>da</strong>s relações médico–paciente quando nesta relação deveria presidir a<br />

confiança. “Le droit des usagers devient un droit des consommateurs de soins et à ce titre, on verse d’une confiance à une<br />

défiance, avec toutes les conséquences d’une telle modification”.<br />

14 Loi relative aux droits du patient du 22 août 2002.<br />

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André Gonçalo Dias Pereira<br />

Nos países do norte <strong>da</strong> Europa, o acesso directo ao processo clínico é já tradicional.<br />

Nos Países Baixos (segundo o art. 456 BWB – Código Civil holandês), 15 odireito de acesso<br />

à totali<strong>da</strong>de do processo é reconhecido ao paciente, exceptuando as informações susceptíveis de<br />

lesar a vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> de terceiras pessoas (CLÉMENT, JM. 2002, p. 16).<br />

Na Dinamarca, o direito de acesso ao processo clínico abrange to<strong>da</strong>s as informações,<br />

incluindo as notas pessoais ou, por exemplo, os comentários a uma radiografia, mas<br />

ca<strong>da</strong> pedido é examinado e a consulta pode ser directa ou com a aju<strong>da</strong> de um médico.<br />

Na Alemanha, a lei autoriza o acesso directo aos “<strong>da</strong>dos objectivos” do processo<br />

(resultados de exames, radiografias, troca de correspondência entre médicos) mas restringe<br />

à autorização dos médicos o acesso aos elementos subjectivos (anotações pessoais, por exemplo).<br />

Assim, o acesso ao “dossier” pode estar sujeita a algumas limitações temporais e objectivas<br />

(para protecção do interesse do médico em não ver <strong>da</strong>vassa<strong>da</strong>s as suas anotações pessoais e de<br />

terceiras pessoas). O BGH (Bundesgerischtshof) – Tribunal Federal alemão – limita o direito de<br />

acesso aos resultados de índole objectiva, científica e às referências a tratamentos, especialmente<br />

no domínio <strong>da</strong> medicação e relatórios sobre cirurgias. Está ve<strong>da</strong>do o direito de acesso a valorações<br />

subjectivas do médico, como a reprodução de impressões pessoais sobre o paciente ou sobre os<br />

seus familiares. O médico e/ou o hospital/ clínica têm o direito de esconder essas observações,<br />

desde que seja notório que isso se verificou (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.489).<br />

Também no Reino Unido se consagra o direito de acesso do paciente à informação<br />

de saúde. To<strong>da</strong>via, a lei mantém uma excepção, na medi<strong>da</strong> em que o acesso pode ser<br />

condicionado caso a informação possa causar um grave <strong>da</strong>no ao paciente (‘likely to cause serious<br />

harm’) (MASON & Mc CALL SMITH, 1999, p. 210).<br />

Podemos concluir que a evolução no direito comparado vai no sentido de conceder<br />

ao paciente o direito de acesso directo ou imediato ao processo clínico (Luis MARTINÉZ-<br />

CALCERRADA; LORENZO, 2001). 16<br />

Vejamos o seguinte quadro comparativo:<br />

31<br />

15 Nos Países Baixos, o contrato médico está regulado no Código Civil de 1992, no livro 7 referente aos contratos em<br />

especial. Veja-se Ewoud HONDIUS/ Annet van HOOFT, “The New Dutch Law on Medical Services”, Netherlands International<br />

Law Review, XLIII, 1-17, 1996. Sobre o direito holandês, cfr., tb., Loes MARKENSTEIN, “Country Report The Netherlands”,<br />

in Jochen TAUPITZ (Ed.), Regulations of Civil Law to Safeguard the Autonomy of The Patient…, pp. 741 e ss.<br />

16 Sobre esta matéria, na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, cfr. Decisões de 28-1-2000; 7-12-99; 9-<br />

6-1998; 27-8-1997; 25-2-1997.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Dever <strong>da</strong> Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Proprie<strong>da</strong>de. Uma Perspectiva Européia<br />

5 A QUESTÃO DA PROPRIEDADE DO PROCESSO CLÍNICO<br />

32<br />

A questão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ficha clínica dá origem a freqüentes dificul<strong>da</strong>des<br />

terminológicas e confusões conceptuais. O termo “proprie<strong>da</strong>de” é aqui usado em sentido amplo,<br />

querendo significar titulari<strong>da</strong>de ou domínio sobre a informação conti<strong>da</strong> no processo.<br />

Normalmente a lei não se pronuncia claramente sobre essa questão. Por isso, a<br />

doutrina costuma analisar este problema tendo em conta os seguintes aspectos: a quem incumbe a<br />

conservação do “dossier”? Tem o doente direito de acesso directo ao processo clínico (DUPUY,<br />

2002, p. 192)? Tem o médico direito de proprie<strong>da</strong>de intelectual sobre os registos clínicos (MASON<br />

& Mc CALL SMITH, 1999, p. 211)?<br />

No direito francês, a questão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de do dossier é muito controversa.<br />

Para Dupuy, (2002, p. 9) a uni<strong>da</strong>de de saúde está obriga<strong>da</strong> ao dever de conservação, o que lhe<br />

confere uma responsabili<strong>da</strong>de liga<strong>da</strong> à sua obrigação de arquivamento em boas condições e de<br />

comunicação ao paciente quando este o desejar. Mas este dever não é assimilável às prerrogativas<br />

(próprias do direito de proprie<strong>da</strong>de) de fructus, de usus e de abusus sobre o “dossier”. O médico,<br />

por seu turno, tem o direito de proprie<strong>da</strong>de intelectual de uma parte variável do seu conteúdo<br />

e nomea<strong>da</strong>mente <strong>da</strong>s suas notas pessoais; contudo não é considerado depositário do “dossier”.<br />

Por outro lado, o paciente não tinha, tradicionalmente direito de acesso directo ao “dossier”, o que<br />

constituía uma limitação importante. Actualmente, segundo Olivier Dupuy, (2002) e à luz <strong>da</strong> Lei<br />

francesa de 4 de Março de 2002, que cria a regra de acesso livre e directo do paciente ao “dossier<br />

médical”, o paciente deve ser considerado o proprietário do processo clínico.<br />

Em sentido contrário, a Lei <strong>da</strong> Galiza, 17 que admite o acesso directo ao processo<br />

clínico, diz claramente que a Administração de Saúde é proprietária <strong>da</strong> “história clínica” 18 .<br />

Assim, ao contrário do que defende Dupuy, não parece que se possa extrapolar do regime de<br />

acesso à história clínica a resposta para a questão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de. 19<br />

Em Portugal, onde o acesso é indirecto, este argumento serviria para afirmar<br />

que o médico ou o Hospital são os proprietários. Neste sentido, aliás, o art. 77º, n.º 2 do Código<br />

Deontológico <strong>da</strong> Ordem dos Médicos afirma que “a memória escrita do médico pertence-lhe”. 20<br />

Na opinião do Conselho Regional do Sul <strong>da</strong> Ordem dos Médicos, “a informação constante do<br />

ficheiro clínico é um direito do doente que em qualquer momento pode solicitar que lhe seja forneci<strong>da</strong><br />

ou envia<strong>da</strong> a médico à sua escolha. O ficheiro, em si, é proprie<strong>da</strong>de do médico sendo a única<br />

17 A Comuni<strong>da</strong>de Autónoma <strong>da</strong> Galiza regula esta matéria na Ley 3/2001, de 28 de mayo, com as modificações introduci<strong>da</strong>s<br />

pela Ley 3/2005, de 7 de marzo, de modificación de la Ley 3/2001, de 28 de mayo, reguladora del consentimiento<br />

informado y de la historia clínica de los pacientes. Estas modificações visam a<strong>da</strong>ptar a lei <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de Autónoma à<br />

legislação nacional do Reino de Espanha: Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la autonomía del<br />

paciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica.<br />

18 O artigo 19 prescreve: “1. El paciente tiene el derecho de acceso a la documentación de la historia clínica y a obtener copia<br />

de los <strong>da</strong>tos que figuran en la misma. Los centros sanitarios regularán el procedimiento que garantice la observancia de estos<br />

derechos. Este derecho de acceso podrá ejercitarse por representación debi<strong>da</strong>mente acredita<strong>da</strong>. 2. En los supuestos de<br />

procedimientos administrativos de exigencia de responsabili<strong>da</strong>d patrimonial o en las denuncias previas a la formalización de<br />

un litigio sobre la asistencia sanitaria se permitirá que el paciente tenga acceso directo a la historia clínica, en la forma y con<br />

los requisitos que se regulen legal o reglamentariamente. (…) 4. El derecho al acceso del paciente a la documentación de la<br />

historia clínica no puede ejercitarse en perjuicio del derecho de terceras personas a la confidenciali<strong>da</strong>d de los <strong>da</strong>tos que<br />

constan en ella recogidos en interés terapéutico del paciente, ni en perjuicio del derecho de los profesionales participantes<br />

en su elaboración, los cuales pueden oponer al derecho de acceso la reserva de sus anotaciones subjetivas.<br />

19 Afirma o artigo 15 relativo à “Propie<strong>da</strong>d y Custodia:” “1. Las historias clínicas son documentos confidenciales propie<strong>da</strong>d<br />

de la Administración sanitaria o enti<strong>da</strong>d titular del centro sanitario, cuando el medico trabaje por cuenta e bajo la<br />

dependencia de una institución sanitaria. En caso contrario, la propie<strong>da</strong>d corresponde al medico que realiza la atención<br />

sanitaria.” 2. La enti<strong>da</strong>d o el facultativo propietario es responsable de la custodia de las historias clínicas y deberá adoptar<br />

to<strong>da</strong>s las medi<strong>da</strong>s precisas para garantizar la confidenciali<strong>da</strong>d de los <strong>da</strong>tos o de la información conteni<strong>da</strong> en ellas. (…)<br />

20 Artigo 77.º (Processo ou Ficha clínica e exames complementares): “1. O Médico, seja qual for o Estatuto a que se submeta<br />

a sua acção profissional, tem o direito e o dever de registar cui<strong>da</strong>dosamente os resultados que considere relevantes <strong>da</strong>s<br />

observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando-as ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do<br />

segredo profissional. 2. A ficha clínica do doente, que constitui a memória escrita do Médico, pertence a este e não àquele,<br />

sem prejuízo do disposto nos Artigos 69.º e 80.º 3. Os exames complementares de diagnóstico e terapêutica, que constituem<br />

a parte objectiva do processo do doente, poderão ser-lhe facultados quando este os solicite, aceitando-se no entanto que o<br />

material a fornecer seja constituído por cópias correspondentes aos elementos constantes do Processo Clínico.”<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


André Gonçalo Dias Pereira<br />

forma de preservar a liber<strong>da</strong>de de transcrição e o registo de elementos de uso pessoal, e que<br />

o médico pretende salvaguar<strong>da</strong>r de qualquer exposição de outra pessoa./ Nas organizações<br />

complexas, públicas ou priva<strong>da</strong>s, em que vários médicos registam no mesmo processo clínico, este<br />

é <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de do Director Clínico <strong>da</strong> instituição nos termos do Código Deontológico em<br />

vigor.” To<strong>da</strong>via, os novos ventos que sopram na medicina poderão vir a impor um reequacionamento<br />

do problema. A informação genética poderá conduzir a uma nova perspectiva <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

informação de saúde e do processo clínico.<br />

Com efeito, um novo argumento para a discussão prende-se com o facto de,<br />

actualmente, a nova medicina preditiva ou predizente impor a necessi<strong>da</strong>de de tutela reforça<strong>da</strong> dos<br />

<strong>da</strong>dos de saúde, em especial a informação genética, já que a informação de saúde se afirma como<br />

um objecto de exploração comercial. Essa nova perspectiva pode justificar o regime inovador<br />

previsto na Lei n.º12/2005, de 26 de Janeiro (Informação genética pessoal e informação de<br />

saúde), que no seu artigo 3º, n.º 1 dispõe:<br />

A informação de saúde, incluindo os <strong>da</strong>dos clínicos registados, resultados<br />

de análises e outros exames de subsidiários, intervenções e diagnósticos, é<br />

proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pessoa, sendo as uni<strong>da</strong>des do sistema de saúde os depositários<br />

<strong>da</strong> informação, a qual não pode ser utiliza<strong>da</strong> para outros fins que não<br />

os <strong>da</strong> prestação de cui<strong>da</strong>dos e investigação em saúde e outros estabelecidos<br />

em lei.<br />

Parece paradoxal que uma lei que mantém, como vimos, o regime conservador<br />

de acesso indirecto ao processo clínico afirme peremptoriamente que o utente é proprietário <strong>da</strong><br />

informação. Assim, a ligação que DUPUY faz entre acesso directo e proprie<strong>da</strong>de também não se<br />

verifica aqui.<br />

Ademais, importa ter em conta a subtileza <strong>da</strong> Lei 12/2005: não se afirma que o<br />

paciente é proprietário do dossier, qua tale, mas sim <strong>da</strong> informação de saúde.<br />

Na Socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Informação em que se vive, a informação de saúde, em especial<br />

a informação genética são um valor mercantil importante, pelo que as ameaças à autodeterminação<br />

informacional se fazem sentir com particular importância. Na nova economia – domina<strong>da</strong><br />

pelo investimento na genética, na genómica, na seqüenciação do genoma humano e suas aplicações<br />

médicas – as informações de saúde podem converter-se num “produto” apetecível<br />

(FUKUYAMA, 2002). Basta pensar nas bases de <strong>da</strong>dos genéticos <strong>da</strong> Islândia, <strong>da</strong> Estónia ou de<br />

Taiwan, ou nos problemas levantados pelo já clássico caso Moore, decidido pelo Supremo Tribunal<br />

<strong>da</strong> Califórnia. 21 Assim sendo, compreende-se que, partindo <strong>da</strong> distinção entre processo clínico e<br />

informação de saúde, se defen<strong>da</strong> que esta última é proprie<strong>da</strong>de do paciente(MASON & Mc<br />

CALL SMITH, p. 211). 22<br />

Trata-se de uma opção legislativa controversa. 23 Por outro lado, o legislador<br />

parece não ter tomado em consideração a necessi<strong>da</strong>de de conciliar os interesses do paciente com<br />

os interesses do médico e de terceiros.<br />

Com efeito, a lei apenas admite que se não apresente todo o processo clínico<br />

em “circunstâncias excepcionais devi<strong>da</strong>mente justifica<strong>da</strong>s e em que seja inequivocamente<br />

demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial.” 24<br />

33<br />

21 Moore v. Regents of the University of California, 793 P.2d 479 (Cal. 1990).<br />

22 Fica assim comprometido o entendimento tradicional segundo o qual o médico seria titular do direito de proprie<strong>da</strong>de<br />

intelectual sobre as informações regista<strong>da</strong>s. “…the ownership of the contained intellectual property – ie the copyright – is<br />

held by the person who has created the notes or his employer, an not by the subject of those notes.”<br />

23 O Código Deontológico, no art. 77.º, n.º 3 já distinguia a informação objectiva relativa ao paciente, prevendo que: “Os<br />

exames complementares de diagnóstico e terapêutica, que constituem a parte objectiva do processo do doente, poderão ser-<br />

Ihe facultados quando este os solicite, aceitando-se no entanto que o material a fornecer seja constituído por cópias<br />

correspondentes aos elementos constantes do Processo Clínico.”<br />

24 Segundo o art. 3.º, n.º2: “O titular <strong>da</strong> informação de saúde tem o direito de, querendo, tomar conhecimento de todo o<br />

processo clínico que lhe diga respeito, salvo circunstâncias excepcionais devi<strong>da</strong>mente justifica<strong>da</strong>s e em que seja inequivocamente<br />

demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial, ou de o fazer comunicar a quem seja por si indicado.<br />

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Dever <strong>da</strong> Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Proprie<strong>da</strong>de. Uma Perspectiva Européia<br />

Não parece, pois, ter em conta os interesses do médico e de terceiros, tal<br />

como acontece, por exemplo, na lei belga, que prescreve (art. 9, §2): “as anotações pessoais do<br />

profissional de saúde e os <strong>da</strong>nos relativos a terceiros não entram no quadro do direito de consulta.”<br />

25<br />

Poderemos interpretar extensivamente essa excepção de forma a respeitar os<br />

interesses do médico de manter reserva sobre as suas anotações pessoais e a confidenciali<strong>da</strong>de de<br />

informações de saúde de terceiras pessoas?<br />

Se considerarmos que a pessoa tem o “direito de proprie<strong>da</strong>de” sobre a sua<br />

informação de saúde – “incluindo os <strong>da</strong>dos clínicos registados, resultados de análises e outros<br />

exames subsidiários, intervenções e diagnósticos” – como prescreve o n.º1 do art. 3.º,<br />

parece razoável afirmar que neste conceito não se incluem informações de saúde relativas a<br />

terceiros, nem as anotações pessoais do médico.<br />

Esta interpretação faz jus à necessi<strong>da</strong>de de “concordância prática” entre valores<br />

constitucionais conflituantes 26 e pode ser defendi<strong>da</strong> à luz do art. 18.º, n.º2 <strong>da</strong> Constituição <strong>da</strong><br />

República, 27 na medi<strong>da</strong> em que só assim se respeita o princípio <strong>da</strong> proporcionali<strong>da</strong>de e o respeito<br />

pelo “núcleo essencial” (CANOTILHO, 192, p. 628) do direito à intimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> e<br />

familiar de terceiros (art. 26.º, nº1 CRP) e do próprio médico (LAUFS/ UHLENBRUCK, 2002,<br />

p. 491).<br />

6 CONCLUSÃO<br />

34<br />

O cabal cumprimento dever de documentação constitui um dos pilares essenciais<br />

nos quais assenta a relação médico-paciente e encontra-se consagrado no direito português,<br />

nomea<strong>da</strong>mente no art. 77.º, n.º1, do Código Deontológico <strong>da</strong> Ordem dos Médicos.<br />

Por to<strong>da</strong> a Europa, incluindo nos países latinos, vem-se confirmando o direito<br />

de acesso directo do paciente ao processo clínico, abandonando-se um certo paternalismo médico<br />

que ain<strong>da</strong> vigora em Portugal.<br />

A questão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de tem vindo a ser evita<strong>da</strong> pela maioria dos legisladores,<br />

mas alguns vão-se pronunciando (por exemplo, na Galiza e em Portugal) em sentidos divergentes.<br />

A doutrina deve tomar em consideração os <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> nova economia e <strong>da</strong> nova medicina, intimamente<br />

influenciados pelos avanços na genética, na genómica e na farmacogenética e compreender<br />

que a tese <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de do paciente sobre a informação médica talvez seja a que melhor<br />

protege o ci<strong>da</strong>dão perante as ameaças que se vão fazendo sentir ao seu direito à autodeterminação<br />

informacional.<br />

Finalmente, há que se a avançar com uma interpretação do n.º 2 do art. 3.º <strong>da</strong><br />

Lei 12/2005, de 26 de Janeiro, que visa conciliar os interesses e valores constitucionais em conflito,<br />

garantindo a protecção do direito à intimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> e familiar de terceiros e do próprio<br />

médico.<br />

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1992.<br />

25 Cfr. também o art. 18.3 lei espanhola de direitos dos pacientes (Ley 41/2002, de 14 de Novembro).<br />

26 Ou, numa perspectiva juscivilística, a colisão de direitos que é regula<strong>da</strong> no art. 335.º do Código Civil: “1. Havendo colisão<br />

de direitos iguais ou <strong>da</strong> mesma espécie, devem os titulares ceder na medi<strong>da</strong> do necessário para que todos produzam igualmente<br />

o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer <strong>da</strong>s partes.”<br />

27 A lei só pode restringir os direitos, liber<strong>da</strong>des e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as<br />

restrições limitar-se ao necessário para salvaguar<strong>da</strong>r outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


André Gonçalo Dias Pereira<br />

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REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Compromisso de Ajustamento de Conduta<br />

COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA<br />

Demétrius Coelho Souza*<br />

Vera Cecília Gonçalves Fontes*<br />

RESUMO<br />

O presente texto visa destacar alguns aspectos mais importantes em torno do chamado termo de<br />

ajustamento de conduta, que é um dos métodos alternativos para a solução de conflitos, nota<strong>da</strong>mente<br />

na área ambiental, visando, por conseguinte, a fazer com que o causador do <strong>da</strong>no assuma obrigação<br />

de <strong>da</strong>r, fazer ou não-fazer, sempre objetivando a evitar mal maior, ou seja, a lesão a bem<br />

jurídico.<br />

Palavras-chave: Termo. Ajustamento. Conduta. Solução. Conflitos. Proteção. Bem Jurídico.<br />

COMMITMENT OF BEHAVIOR ADJUSTMENT<br />

ABSTRACT<br />

The present text aims to point some of the relevant aspects involving the institute known as conduct<br />

adjustment term, that is one of the methods of solving legal issues, mainly in the environmental<br />

area. Through this institute, the <strong>da</strong>mage author must assume an obligation to repare the <strong>da</strong>mage in<br />

order to avoid a higher prejudice, that is, the lesion of a legal good.<br />

36<br />

Keywords: Term. Adjustment. Conduct. Solution. Conflicts. Protection. Legal Good.<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

O presente estudo pretende abor<strong>da</strong>r e fazer algumas considerações em torno<br />

do instituto conhecido como compromisso ou termo de ajustamento de conduta, justamente por se<br />

constituir em um método alternativo à solução de conflitos nos quais estejam inseridos interesses<br />

difusos, coletivos e individuais homogêneos, quer na fase pré-processual (inquérito civil), quer na<br />

processual, ou seja, quando já há ação civil pública em an<strong>da</strong>mento. Não se pretende, pois, esgotar<br />

o assunto em sua plenitude, mas tão somente trazer à tona alguns tópicos para reflexão. Assim,<br />

cabe inicialmente destacar que o compromisso ou termo de ajusta-mento de conduta foi introduzido<br />

no ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 211 do Estatuto <strong>da</strong> Criança e do Adolescente (Lei nº<br />

8.069/90) ao afirmar que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso<br />

de ajustamento de sua conduta às exigências legais, o qual terá eficácia de título executivo<br />

extrajudicial”, segundo magistério de Luis Roberto Proença (2001, p. 120-1).<br />

* Especialista em Direito Empresarial (UEL) e em Filosofia Jurídica e Política (UEL). Mestrando em Direito pela UEM.<br />

Professor de Direito Civil na PUCPR, Campus Londrina e na <strong>UniFil</strong>. Advogado.<br />

* Bacharel em Direito. Especialista em Direito Ambiental (UEM). Mestran<strong>da</strong> em Direito pela UEM.<br />

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Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes<br />

Logo em segui<strong>da</strong>, aproveitando-se desse mesmo dispositivo, o art. 113 do Código<br />

de Defesa do Consumidor 1 (Lei nº 8.078/90) introduziu um parágrafo, o sexto, ao art. 5º <strong>da</strong> Lei<br />

<strong>da</strong> Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), passando a viger com a seguinte re<strong>da</strong>ção: “Os órgãos<br />

públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta<br />

às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”.<br />

Comparando-se ambos os textos legais, percebe-se que houve, com a alteração<br />

introduzi<strong>da</strong> pelo art. 113 do CDC, o acréscimo do termo “cominações”, justamente para viabilizar<br />

a previsão de sanções para os casos de descumprimento <strong>da</strong>s obrigações assumi<strong>da</strong>s no instrumento,<br />

compromisso ou termo de conduta. 2 Aliás, ensina José dos Santos Carvalho Filho (2001, p. 208)<br />

que “para haver efetivi<strong>da</strong>de jurídica, é obrigatório (e nunca facultativo!) que no instrumento de<br />

formalização esteja p<strong>revista</strong> a sanção para o caso de não cumprimento <strong>da</strong> obrigação”.<br />

O compromisso ou termo de ajustamento de conduta (TAC) se fez presente,<br />

ain<strong>da</strong>, em alguns outros textos legais, mencionando, a título exemplificativo, a Lei nº 8.884/94, que<br />

dispôs sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica e a Lei nº 9.605/98,<br />

que dispôs sobre as sanções penais e administrativas deriva<strong>da</strong>s de condutas e ativi<strong>da</strong>des lesivas ao<br />

meio ambiente. 3<br />

De qualquer sorte, o compromisso de ajustamento de conduta consagra a “hipótese<br />

de transação, pois destina-se a prevenir o litígio (propositura de ação civil pública) ou a pôrlhe<br />

fim (ação em an<strong>da</strong>mento), e ain<strong>da</strong> dotar os legitimados ativos de título executivo extrajudicial ou<br />

judicial, respectivamente, tornando líqui<strong>da</strong> e certa a obrigação” (MILARÉ, 2004, p. 819).<br />

Essa transação, porém, não deve ser analisa<strong>da</strong> à luz <strong>da</strong>s normas de direito civil<br />

(CC, arts. 1025-1035), justamente por não versar sobre direitos patrimoniais disponíveis. Alguns<br />

autores, nesse particular, chegam até mesmo a afirmar não ser correta a utilização do termo “transação”,<br />

nem dizer tratar-se de uma revisitação ao instituto, sob pena de restar altera<strong>da</strong> a natureza<br />

<strong>da</strong> transação. Trata o instituto, portanto, “de um comprometimento ao ajuste de conduta às exigências<br />

legais, instituto novo, que existe per se, com suas próprias características” (FIORILLO,<br />

RODRIGUES e NERY, 1996, p. 177).<br />

Como justificar, então, a possibili<strong>da</strong>de de se transacionar direitos indisponíveis?<br />

Realmente, em um primeiro momento não há que se falar em disponibili<strong>da</strong>de dos direitos ou interesses<br />

difusos, coletivos e individuais homogêneos quando objeto de defesa coletiva. No entanto, a<br />

reali<strong>da</strong>de demonstrou ser mais interessante, em alguns casos, a celebração de um acordo entre o<br />

ente legitimado e aquele que está violando o interesse protegido pela norma do que o enfrentamento<br />

de um processo judicial, o que é sabi<strong>da</strong>mente moroso e custoso para ambas as partes. Daí o<br />

surgimento do compromisso de ajustamento de conduta como uma ver<strong>da</strong>deira opção no sentido de<br />

se buscar uma solução mais rápi<strong>da</strong> e eficaz para os problemas apresentados, constituindo o termo<br />

ou compromisso, ain<strong>da</strong>, ver<strong>da</strong>deira tentativa de desafogar o Poder Judiciário. Diante desse quadro,<br />

37<br />

1 Neste particular, observa Édis Milaré que “quando <strong>da</strong> edição do Código de Defesa do Consumidor, vetou-se o § 3º do art. 82<br />

(que introduzia o compromisso de ajustamento em matéria de relações de consumo) e promulgou-se o art. 113 (que<br />

introduziu o mesmo compromisso em matéria de quaisquer interesses individuais), o que acabou por suscitar dúvi<strong>da</strong> quanto<br />

à vigência do atual § 6º do art. 5º <strong>da</strong> Lei 7.347/85. Segundo Hugo Nigro Mazzilli, o argumento usado pelos que sustentavam<br />

o veto a tal parágrafo fundou-se no fato de que teria havido equívoco na promulgação do art. 113 em sua íntegra, pois era<br />

manifesta a vontade do Presidente <strong>da</strong> República de vetar o compromisso de ajustamento, intento este exteriorizado por<br />

expresso nas razões do veto a outro dispositivo <strong>da</strong> mesma lei (o parágrafo único do art. 92). Esse argumento, ain<strong>da</strong> que<br />

ver<strong>da</strong>deiro no tocante à mens legislatoris, não é, porém, suficiente para induzir à existência do veto do instituto constante<br />

no art. 113, pois este dispositivo foi regularmente sancionado e promulgado, em sua íntegra, como se pode aferir do exame<br />

<strong>da</strong> publicação oficial <strong>da</strong> Lei 8.078, de 11.09.1990, publicado no Diário Oficial <strong>da</strong> União do dia imediato, em edição<br />

extraordinária” (Notas sobre o compromisso de ajustamento de conduta. In: Antônio Herman Benjamin (Org.). Direito,<br />

água e vi<strong>da</strong>. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, p. 571 e 572). In: Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência,<br />

glossário. 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 818-819.<br />

2 Explica Hugo Nigro Mazzilli que o compromisso de ajustamento de conduta é também conhecido por “termo de ajustamento<br />

de conduta” justamente por ser tomado a termo. In: A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente,<br />

consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 19 ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 367.<br />

3 Dispõe o art. 79-A <strong>da</strong> Lei nº 9.605/98 que “os órgãos ambientais integrantes do SISNAMA [...] ficam autori-zados a celebrar,<br />

com força de título executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela<br />

construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e ativi<strong>da</strong>des utilizadores de recursos ambientais,<br />

considerados efetiva ou potencialmente poluidores”.<br />

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Compromisso de Ajustamento de Conduta<br />

José dos Santos Carvalho Filho (2001, p. 202) elabora um conceito em torno do termo ou compromisso<br />

de ajustamento de conduta: “é o ato jurídico pelo qual a pessoa, reconhecendo implicitamente<br />

que sua conduta ofende interesse difuso ou coletivo, assume o compromisso de eliminar a ofensa<br />

através <strong>da</strong> adequação de seu comportamento às exigências legais”.<br />

A título eluci<strong>da</strong>tivo, menciona-se o seguinte exemplo: determina<strong>da</strong> empresa, ao<br />

celebrar um compromisso de ajustamento de conduta, compromete-se a não mais depositar resíduos<br />

sólidos (lixo) em local não apropriado e sem as mínimas condições de higiene, evitando, com<br />

isso, a possibili<strong>da</strong>de de poluir manancial de água e contribuir para a má quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

população local. Um outro exemplo pode igualmente servir para o esclarecimento do assunto: o<br />

Ministério Público do Trabalho celebra compromisso de ajusta-mento de conduta com determinado<br />

município com vistas a fazer com que o ente público adote medi<strong>da</strong>s para evitar o trabalho infantil<br />

em determina<strong>da</strong> locali<strong>da</strong>de, protegendo, assim, a criança e o adolescente em to<strong>da</strong>s as suas possíveis<br />

formas.<br />

Deste modo, com a celebração do ajuste de conduta (e com alusão ao primeiro<br />

exemplo acima <strong>da</strong>do), o ente legitimado não mais promoverá ação civil pública em desfavor <strong>da</strong><br />

empresa (muito embora os demais co-legitimados ain<strong>da</strong> possam fazê-lo). Esse fato, por si só, pode<br />

ser benéfico para o causador do <strong>da</strong>no à medi<strong>da</strong> que evitará gastos e naturais preocupações advin<strong>da</strong>s<br />

de um processo judicial. Em contraparti<strong>da</strong>, caso o acordo não seja cumprido, valerá o mesmo como<br />

título executivo extrajudicial (§ 6º, art. 5º <strong>da</strong> LACP), podendo o ente legitimado executá-lo com<br />

base nas normas p<strong>revista</strong>s no Código de Processo Civil, ocasião em que se farão incidir as<br />

“cominações” previamente estabeleci<strong>da</strong>s.<br />

2 INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS<br />

38<br />

Como já mencionado, o termo ou ajustamento de conduta é utilizado no<br />

sentido de buscar soluções para questões envolvendo diretos difusos, coletivos e individuais homogêneos.<br />

Daí a importância, antes de se seguir adiante, de algum delineamento em torno desses<br />

direitos ou interesses. 4<br />

Segundo se depreende do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, a defesa<br />

dos interesses ou direitos difusos dos consumidores e vítimas poderá ser exerci<strong>da</strong> individualmente<br />

ou a título coletivo. E seu parágrafo único determina que a defesa coletiva será exerci<strong>da</strong><br />

quando se tratar de:<br />

I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código,<br />

os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas<br />

indeter-mina<strong>da</strong>s e liga<strong>da</strong>s por circunstâncias de fato.<br />

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste<br />

Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo,<br />

categoria ou classe de pessoas liga<strong>da</strong>s entre si ou com a parte contrária por<br />

uma relação jurídica base.<br />

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os<br />

decorrentes de origem comum.<br />

4 Muito embora possa haver alguma distinção entre os termos “interesse” e “direito”, serão aqui utilizados como sinônimos.<br />

Em relação ao conceito de interesse, aliás, observa Marcelo Abelha Rodrigues que o “interesse é uma relação entre um<br />

sujeito e um objeto. Relação essa que tem por pontos de contato a aspiração do homem acerca de determinados bens que<br />

sejam aptos à satisfação de uma exigência sua. Feita essa dissecação do conceito de interesse, fica claro que no seu esqueleto<br />

estão presentes: um sujeito com necessi<strong>da</strong>de e um objeto idôneo para satisfazer essa mesma necessi<strong>da</strong>de”. In: Instituições<br />

de Direito Ambiental: parte geral. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 20-21. Rodolfo de Camargo Mancuso, de sua<br />

parte, observa que “o interesse interliga uma pessoa a um bem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, em virtude de um determinado valor que esse bem<br />

possa representar para aquela pessoa. A nota comum é sempre a busca de uma situação de vantagem, que faz exsurgir um<br />

interesse na posse ou fruição <strong>da</strong>quela situação”. In: Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed., São<br />

Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 19-20.<br />

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Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes<br />

Percebe-se <strong>da</strong> simples leitura desses incisos, portanto, que os direitos difusos<br />

são metaindividuais (ou transindividuais), isto é, transcendem à pessoa, com indeterminação absoluta<br />

de titulares, sendo o objeto indivisível e estando as pessoas liga<strong>da</strong>s entre si por uma situação de<br />

fato. É o que ocorre, por exemplo, em relação ao meio ambiente (CF/88, art. 225) 5 , exemplo<br />

clássico de interesse ou direito difuso, até porque todos temos o direito de viver em um meio<br />

ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, alheio às mais diversas degra<strong>da</strong>ções humanas.<br />

Nos direitos ou interesses coletivos, o objeto é também indivisível (tal como nos<br />

direitos difusos), mas a origem encontra fun<strong>da</strong>mento em uma relação jurídica base comum, sendo<br />

o grupo determinável. É o que ocorre, por exemplo, com o “direito de classe dos advogados de ter<br />

representante na composição dos Tribunais (CF, art. 94)”, como bem aponta Teori Albino Zavascki<br />

(2006, p. 45).<br />

Aliás, a re<strong>da</strong>ção do inc. II (interesses coletivos), supra transcrito, faz crer que<br />

o titular é um grupo, categoria ou classe de pessoas. O vínculo que permite identificar (rectius =<br />

determinar) vem descrito <strong>da</strong> seguinte maneira na norma em comento: liga<strong>da</strong>s entre si ou com a<br />

parte contrária por uma relação jurídica base. Significa dizer que o grupo, a categoria ou a classe<br />

de pessoas estão ligados entre si (relação institucional como uma associação, um sindicato, uma<br />

federação etc.) ou, alternativamente, é possível que esse vínculo jurídico emane <strong>da</strong> própria relação<br />

jurídica existente com a parte contrária. Imagine-se, nesse sentido, o seguinte exemplo: o sindicato<br />

de determina<strong>da</strong> classe de trabalhadores propõe ação judicial visando compelir o dono de uma<br />

empresa a fornecer aparelhos auriculares a seus funcionários por conta do barulho excessivo<br />

provocado pelas máquinas ali existentes. A ação é julga<strong>da</strong> procedente e o dono <strong>da</strong> empresa, então,<br />

passa fornecer tais aparelhos, não apenas, porém, àqueles trabalhadores sindicalizados, mas sim a<br />

todos que necessitam dos aparelhos, justa-mente por versar a questão sobre direitos coletivos,<br />

abrangendo a decisão judicial to<strong>da</strong> a classe, categoria ou grupo de pessoas liga<strong>da</strong>s entre si.<br />

Por fim, os direitos individuais homogêneos, onde o grupo é determinável, o<br />

objeto divisível e a origem é comum. É o que ocorre em relação ao direito dos adquirentes a<br />

abatimento proporcional do preço pago na aquisição de mercadoria vicia<strong>da</strong> (CDC, art. 18, §1º, inc.<br />

III). No entanto, não se pode perder de vista que o direito individual homogêneo, embora admita<br />

uma defesa coletiva, que se justifica por sua origem comum, permanece sempre um direito individual,<br />

podendo a pessoa, se assim o desejar, manejar ação individual na defesa de seus interesses.<br />

To<strong>da</strong>via, como bem observa Teori Albino Zavascki (2006, p. 46), “nem sempre<br />

são perceptíveis com clareza as diferenças entre os direitos difusos e os direitos coletivos, ambos<br />

transindividuais e indivisíveis [...]”. Nesse particular, não se poderia deixar de reproduzir a precisa<br />

lição de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 55-6):<br />

39<br />

Para identificar corretamente a natureza de interesses transindividuais ou de<br />

grupos, devemos, pois, responder a essas questões: a) O <strong>da</strong>no provocou<br />

lesões divisíveis, individualmente variáveis e quantificáveis? Se sim, estaremos<br />

diante de interesses individuais homogêneos; b) O grupo lesado é<br />

indeterminável e o proveito repara-tório, em decorrência <strong>da</strong>s lesões, é<br />

indivisível? Se sim, estaremos diante de interesses difusos; c) O proveito<br />

pretendido em decorrência <strong>da</strong>s lesões é indivisível, mas o grupo é<br />

determinável, e o que une o grupo é apenas uma relação jurídica básica<br />

comum, que deve ser resolvi<strong>da</strong> de maneira uniforme para todo o grupo? Se<br />

sim, então estaremos diante de interesses coletivos.<br />

Nesse mesmo sentido, leciona Marcelo Abelha Rodrigues (2004, p. 36):<br />

5 O art. 225 <strong>da</strong> Constituição Federal de 1988 está redigido nos seguintes termos: “todos têm direito ao meio ambiente<br />

ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>, impondo-se ao Poder Público<br />

e à coletivi<strong>da</strong>de o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.<br />

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Compromisso de Ajustamento de Conduta<br />

O legislador brasileiro optou por conceituar os interesses coletivos lato<br />

sensu, distinguindo-os em difusos, coletivos propriamente ditos e individuais<br />

homogêneos. Essa conceituação se deu no art. 81, parágrafo único, incs.<br />

I, II e III do Título III do CDC. No caso <strong>da</strong> alínea a, temos que uma soma de<br />

necessi<strong>da</strong>des individuais sobre objetos vários ou divisíveis configura a soma<br />

de interesses individuais que podem alcançar, dependendo <strong>da</strong> situação, uma<br />

feição coletiva (entre nós é o interesse individual homogêneo). Portanto,<br />

não é na sua essência um direito coletivo, porque resulta <strong>da</strong> soma de interesses<br />

individuais. O seu tratamento jurídico é que pode vir a ser coletivo,<br />

dependendo <strong>da</strong>s razões políticas do legislador. No caso <strong>da</strong> alínea b, temos<br />

que os sujeitos possuem as necessi<strong>da</strong>des individuais comuns por causa <strong>da</strong><br />

indivisibili<strong>da</strong>de do bem que os irá satisfazer. Neste caso estaremos diante<br />

dos interesses essencialmente coletivos, que, por sua vez, se esgalham em<br />

difusos e coletivos. [...]<br />

Pode-se concluir, pela rasa leitura dos incs. I e II do art. 81, parágrafo único<br />

do CDC, que o divisor de águas entre o interesse difuso e o interesse coletivo<br />

é o aspecto subjetivo. Assim, se o critério objetivo foi o determinante para<br />

colocá-los na vala comum dos interesses essencialmente coletivos, foi o<br />

critério subjetivo que o legislador adotou para diferenciar um de outro.<br />

40<br />

Cabe por fim destacar, consoante os ensinamentos de Nelson Nery Junior e<br />

Rosa Maria de Andrade Nery (1995, p. 112), que “o que determina a classificação de um direito<br />

como difuso, coletivo, individual puro ou individual homogêneo é o tipo de tutela jurisdicional que se<br />

pretende quando se propõe a competente ação judicial”, o que leva a crer que o mesmo fato pode<br />

<strong>da</strong>r ensejo à pretensão difusa, coletiva ou individual. Esse pensamento, porém, não é compartilhado<br />

por to<strong>da</strong> a doutrina.<br />

Feitas essas breves considerações em torno dos chamados direitos difusos,<br />

coletivos e individuais homogêneos, volta-se ao tema anteriormente proposto, sem perder de vista<br />

que o termo ou ajustamento de conduta é um meio previsto em lei para que as partes cheguem a<br />

um acordo, obrigando-se uma a respeitar ou não mais violar direitos ou interesses dessa natureza e<br />

outra a não propor ação judicial, justamente por conta <strong>da</strong> celebração desse acordo, o que evitaria<br />

dissabores naturais advindos de um processo judicial.<br />

3 NATUREZA JURÍDICA<br />

Qual a natureza jurídica do termo ou compromisso de ajustamento de conduta?<br />

A doutrina pátria ain<strong>da</strong> não é pacífica em torno do assunto. Para alguns, como é o caso de Fernando<br />

Grella Vieira (2002, p. 270), o compromisso de ajustamento de conduta seria uma espécie de<br />

transação, com peculiari<strong>da</strong>des próprias e distintas <strong>da</strong> figura comum aplicável às obrigações meramente<br />

patrimoniais, de natureza priva<strong>da</strong>. Para outros, como é o caso de Hugo Nigro Mazzilli (2006,<br />

p. 366), o compromisso de ajustamento seria “um título executivo extrajudicial, por meio do qual um<br />

órgão público legitimado toma do causador do <strong>da</strong>no o compromisso de adequar sua conduta às<br />

exigências <strong>da</strong> lei”. E continua o autor:<br />

Como tem natureza bilateral e consensual, poderíamos ser tentados a<br />

identificá-lo como uma transação do direito civil. Não seria correto, porém,<br />

esse raciocínio. Se tivesse mesmo a natureza de transação ver<strong>da</strong>deira e própria,<br />

seria um contrato, porque suporia o poder de disposição dos contraentes,<br />

que, por meio de concessões mútuas, preveniriam ou terminariam o litígio<br />

(CC, art. 840).<br />

Entretanto, o compromisso de ajustamento de conduta não é um contrato;<br />

nele o órgão público legitimado não é o titular do direito<br />

transindividual, e, como não pode dispor do direito material, não pode<br />

fazer concessões quanto ao conteúdo material <strong>da</strong> lide. Nem se diga que o<br />

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Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes<br />

compromisso teria natureza contratual porque o órgão público nele também<br />

assumiria uma obrigação, qual seja a de fiscalizar o seu cumprimento. Essa<br />

obrigação decorre do poder de polícia <strong>da</strong> Administração, não tendo caráter<br />

contratual, tanto que, posto omiti<strong>da</strong> qualquer cláusula a respeito no instrumento,<br />

mesmo assim subsistiria por inteiro o poder de fiscalizar.<br />

É, pois, o compromisso de ajustamento de conduta um ato administrativo<br />

negocial por meio do qual só o causador do <strong>da</strong>no se compromete; o órgão<br />

público que o toma, a na<strong>da</strong> se compromete, exceto, implicitamente, a não<br />

propor ação de conhecimento para pedir aquilo que já está reconhecido no<br />

título.<br />

Há, porém, aqueles que entendem ser o compromisso de ajustamento uma<br />

figura jurídica própria que não se confundiria com a transação. Nessa linha (e parece-nos mais<br />

acerta<strong>da</strong>mente), encontram-se Celso Antônio Pacheco Fiorillo, Marcelo Abelha Rodrigues, Rosa<br />

Maria de Andrade Nery e Luis Roberto Proença. Por fim, e de forma bem singela, afirma José dos<br />

Santos Carvalho Filho (2001, p. 202) que “a natureza jurídica do instituto é, pois, a de ato jurídico<br />

unilateral quanto à manifestação volitiva, e bilateral somente quanto à formalização, eis que nele<br />

intervêm o órgão público e o promitente”.<br />

4 CARACTERÍSTICAS<br />

Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 366-7) aponta as principais características do<br />

compromisso ou termo de ajustamento de conduta: a) é tomado por termo por um dos órgãos<br />

públicos legitimados à ação civil pública; b) não há concessões de direito material por parte do<br />

órgão público legitimado, mas sim a assunção de obrigações por parte do agente causador do <strong>da</strong>no<br />

(obrigações de fazer ou não fazer); c) dispensam-se testemunhas instrumentárias e participação<br />

de advogados; d) o compromisso constitui título executivo extrajudicial; e) não é colhido nem homologado<br />

em juízo; f) o órgão público legitimado pode tomar o compromisso de qualquer causador<br />

do <strong>da</strong>no, mesmo que este seja outro ente público (só não pode tomar compromisso de si mesmo);<br />

g) é preciso haver no próprio título as cominações cabíveis, embora não necessariamente a imposição<br />

de multa.<br />

Realmente, em que pese na<strong>da</strong> dispor a lei sobre o assunto, o compromisso de<br />

ajustamento não pode ser celebrado de forma verbal ou tácita, até por conta do princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de<br />

(CF, art. 37), que tem como uma de suas manifestações a instrumentalização formal <strong>da</strong>s<br />

manifestações de vontade. O compromisso, por conseguinte, deve ser escrito e devi<strong>da</strong>mente formalizado.<br />

Em relação às obrigações de fazer e não fazer, Luis Roberto Proença (2001, p.<br />

127) chama atenção para o também possível acordo em relação às obrigações de <strong>da</strong>r, justamente<br />

por não existir óbice legal algum.<br />

Em relação às testemunhas, afigura-se possível a celebração do ajuste sem sua<br />

participação, até por conta do teor do próprio § 6º do art. 5º <strong>da</strong> Lei <strong>da</strong> Ação Civil Pública. To<strong>da</strong>via,<br />

questão interessante é trazi<strong>da</strong> a lume pelo trecho do acórdão abaixo reproduzido, o qual informa<br />

que um município, ao celebrar um termo ou ajustamento de conduta, por exemplo, não pode ao<br />

depois alegar eventual dificul<strong>da</strong>de financeira para justificar seu eventual descumprimento. Essa<br />

alegação, como sói esclarecer, não tem o condão de afastar a exigibili<strong>da</strong>de do título, veja-se:<br />

41<br />

O termo de compromisso de ajustamento firmado entre o Ministério Público<br />

e a Municipali<strong>da</strong>de, com o fim de solucionar problemas constatados no<br />

sistema de drenagem urbana do Município, é título executivo, consoante<br />

dispõe o art. 5º, § 6º, <strong>da</strong> Lei nº 7.347/85 (ação civil pública), incluído pela Lei<br />

nº 8.078/90 (Código do Consumidor). Precedentes do TJRGS e do STJ.<br />

Descumprimento <strong>da</strong>s obrigações constantes no termo. Dificul<strong>da</strong>des financeiras<br />

do município. A alegação de dificul-<strong>da</strong>des financeiras do Município<br />

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Compromisso de Ajustamento de Conduta<br />

para justificar o descumprimento do termo não tem o condão de afastar a<br />

executivi<strong>da</strong>de do título, firmado espontaneamente pelo Prefeito Municipal,<br />

que detinha competência para tal. Obras e estudos de sanea-mento básico,<br />

medi<strong>da</strong>s de interesse <strong>da</strong> saúde pública, somado à circunstância de que a sua<br />

não-realização pode comprometer o patrimônio histórico <strong>da</strong>quele Município.<br />

Apelação desprovi<strong>da</strong>, por maioria (Apelação Cível nº 70013257944, 22ª<br />

Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relator<br />

Desembargador Eduardo Zietlow Duro, julgado em 15.12.05).<br />

Em relação à participação dos advogados, com todo o respeito à lição do Prof.<br />

Hugo Nigro Mazzilli, sua ausência pode ser temerária aos fins objetivados pelo TAC. Ora, se é<br />

certo que compromisso de ajuste de conduta é pactuado para a prevenção ou reparação do <strong>da</strong>no a<br />

interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, é igualmente certo que o<br />

compromitente (aquele que se obriga a adequar sua conduta às exigências <strong>da</strong> lei) necessita de uma<br />

boa assessoria jurídica até mesmo para saber se as medi<strong>da</strong>s necessárias à adequação não infringem<br />

outra lei. Em outros termos, de na<strong>da</strong> adiantará ao compromitente celebrar um compromisso<br />

de ajustamento de conduta se, para honrar seu cumprimento, violar outras tantas disposições legais.<br />

Portanto, a assessoria jurídica se revela extremamente importante, justificando-a a própria<br />

importância dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.<br />

Há, também, a hipótese de o compromisso ser colhido e homologado em juízo.<br />

Realmente, observa Édis Milaré (2004, p. 819) que<br />

42<br />

apesar de a norma referir-se a ajuste extrajudicial (realizado no inquérito civil<br />

ou em procedimento avulso, sem homologação judicial), na<strong>da</strong> obsta seja<br />

efetiva<strong>da</strong> também em juízo (realizado no processo ou levado em procedimento<br />

avulso à homologação judicial). Na primeira hipótese, o compromisso<br />

implica o arquivamento implícito do inquérito, com sua homologação pelo<br />

Conselho Superior do Ministério Público, qualificando-se como título executivo<br />

extrajudicial. Na segun<strong>da</strong> hipótese, a homolo-gação <strong>da</strong> transação é<br />

feita pelo juiz e obtém-se título executivo judicial.<br />

Digno de nota, ain<strong>da</strong>, a possibili<strong>da</strong>de de se prever, no próprio corpo do compromisso<br />

de ajuste de conduta, a cominação cabível em caso de descumprimento <strong>da</strong> obrigação assumi<strong>da</strong>,<br />

sendo a mais comum a imposição de multa diária, denomina<strong>da</strong> pela doutrina francesa de<br />

“astreintes”. Assim é que o compromisso de ajustamento, por ter eficácia de título executivo<br />

extrajudicial, substitui a fase processual de conhecimento, restando <strong>da</strong>í a possibili<strong>da</strong>de de prever<br />

pena pecuniária diária em caso de descumprimento <strong>da</strong> obrigação assumi<strong>da</strong>. Nesse sentido, observa<br />

Luis Roberto Proença (2001, p. 132) que<br />

Dentre os novos poderes assegurados ao juiz <strong>da</strong> execução, previu o art. 645<br />

do Código de Processo Civil, possa ele fixar, ao despachar a inicial de execução<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em título extrajudicial, multa diária pelo atraso no cumprimento<br />

de obrigação de fazer ou de não fazer. Assim, não se exige a fixação desta<br />

multa no compromisso, para que este tenha eficácia. Por outro lado, se não é<br />

necessária, é sempre útil prevê-la expressamente no termo do ajuste, como<br />

meio psicológico de obtenção voluntária dos compromissos assumidos.<br />

Um cui<strong>da</strong>do, porém, se impõe: o de imposição de cominações eleva<strong>da</strong>s ou<br />

excessivas. De fato, a multa tem caráter pe<strong>da</strong>gógico e preventivo, prestando-se não apenas a<br />

fazer com que a obrigação assumi<strong>da</strong> seja cumpri<strong>da</strong>, mas também a dissuadir o compromitente de<br />

outras práticas irregulares ou ilícitas no futuro. E, revelando-se excessiva, pode o magistrado reduzir<br />

seu valor. É o que restou decidido no seguinte acórdão:<br />

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Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes<br />

A multa diária acor<strong>da</strong><strong>da</strong> em termo de ajustamento firmado perante o Ministério<br />

Público, em caso de inadimplemento de obrigação de fazer decorrente de<br />

<strong>da</strong>no ambiental, pode ser reduzi<strong>da</strong> pelo juiz se excessiva. Art. 645 do CPC.<br />

Hipótese em que a multa diária correspondente a dois salários mínimos se<br />

mostra desproporcional à ren<strong>da</strong> do compromitente. As normas do Código de<br />

Defesa do Consumidor não se aplicam ao termo de ajustamento de conduta<br />

em matéria ambiental. Recurso provido. Voto vencido (Apelação Cível nº<br />

70007750243, 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,<br />

relatora Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza, julgado em<br />

11.05.04).<br />

Assim, em sendo excessiva a multa constante no TAC, revela-se possível sua<br />

diminuição pelo magistrado. Tal redução, porém, “deve ser prudentemente estabeleci<strong>da</strong> pelo juiz<br />

em face <strong>da</strong>s peculiari<strong>da</strong>des do caso” (DINAMARCO, 1998, p. 294), justamente para que não<br />

motive o devedor a continuar inadimplente com sua obrigação. Nesta perspectiva,<br />

não haveria justificativa para reduzir o juiz a multa fixa<strong>da</strong> no compromisso de<br />

ajustamento, se mesmo ela não se mostre suficiente para fazer o devedor<br />

realizar aquilo a que se comprometeu. Assim, deve aquela possibili<strong>da</strong>de de<br />

redução de multa ser utiliza<strong>da</strong> com ponderação pelo juiz, tendo em vista as<br />

circunstâncias do caso concreto e, sempre, o objetivo de <strong>da</strong>r efetivi<strong>da</strong>de ao<br />

ordenamento jurídico (PROENÇA, 2001, p. 136).<br />

Luis Roberto Proença (2001, p. 136-7) sustenta, ain<strong>da</strong>, a possibili<strong>da</strong>de de o<br />

magistrado aumentar o valor <strong>da</strong> multa caso enten<strong>da</strong> ser insuficiente o valor constante no compromisso<br />

de ajustamento de conduta. Para tanto, justifica seu entendimento com base na efetivi<strong>da</strong>de<br />

do processo, ou seja,<br />

43<br />

se é do propósito <strong>da</strong>s reformas realiza<strong>da</strong>s em nossa sistemática processual<br />

obter a efetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> jurisdição, conferindo ao juiz poderes para garanti-la,<br />

dentre os quais o de suprir, ex officio, o omissão <strong>da</strong> previsão de multa nos<br />

casos de títulos extra-judiciais (art. 645 do CPC), e o de aumentá-la, se considerar<br />

insuficiente aquela fixa<strong>da</strong> nos títulos judiciais (art. 644 do CPC), não há<br />

razão para que se enten<strong>da</strong> não poder fazê-lo no caso de execução basea<strong>da</strong><br />

em títulos extrajudiciais.<br />

Por derradeiro, em que pese não terem sido menciona<strong>da</strong>s por Hugo Nigro<br />

Mazzilli, aponta Luis Roberto Proença duas outras características em relação ao assunto em apreço:<br />

a primeira relaciona<strong>da</strong> a um princípio de congruência e a segun<strong>da</strong> relaciona<strong>da</strong> ao objeto do<br />

compromisso de ajustamento de conduta, podendo ser parcial ou total. Em relação a um princípio<br />

de congruência, diz o autor que<br />

a atuação dos órgãos públicos em geral deve obedecer a um princípio de<br />

congruência entre as suas competências ou atribuições e o objeto do compromisso<br />

de ajustamento. Assim, por exemplo, parece claro que a intenção<br />

<strong>da</strong>s normas ora comenta<strong>da</strong>s é a de que um município possa firmar a avença<br />

com um infrator, nos assuntos que lhe toca. Não haveria sentido, e, deste<br />

modo, mostrar-se-ia inválido tal instrumento, se, por exemplo, um determinado<br />

município pactuasse com infrator de normas urbanísticas de outro município<br />

(PROENÇA, 2001, p. 123).<br />

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Compromisso de Ajustamento de Conduta<br />

O próprio autor, porém, vislumbra a possibili<strong>da</strong>de de, em casos de suma importância,<br />

como a preservação do meio ambiente, por exemplo, um município celebrar um compromisso<br />

de ajustamento de conduta com empresa situa<strong>da</strong> em outro município, o que seria plenamente<br />

justificável pelo interesse maior a ser protegido e resguar<strong>da</strong>do.<br />

Por fim, deve-se registrar que o compromisso de ajustamento pode ser integral<br />

ou parcial. Integral será quando esgotar to<strong>da</strong>s as conseqüências jurídicas de um conjunto de fatos.<br />

Parcial, ao contrário, será o compromisso referente a apenas alguns dos fatos ou conseqüências<br />

advin<strong>da</strong>s desses fatos, relegando-se o restante para o prosseguimento <strong>da</strong>s investigações no inquérito<br />

civil ou para a propositura <strong>da</strong> ação civil pública.<br />

A esta última hipótese, Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 369) também atribui o<br />

nome de “compromissos preliminares”, fazendo menção, inclusive, à Súmula nº 20 do Conselho<br />

Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, redigi<strong>da</strong> nos seguintes termos:<br />

Quando o compromisso de ajustamento tiver a característica de ajuste preliminar,<br />

que não dispense o prosseguimento de diligências para uma solução<br />

definitiva, salientado pelo órgão do Ministério Público que o celebrou, o<br />

Conselho Superior homologará somente o compromisso, autorizando o prosseguimento<br />

<strong>da</strong>s investigações.<br />

5 OS LEGITIMADOS À CONFECÇÃO DO AJUSTAMENTO<br />

44<br />

O rol dos legitimados ativos à ação civil pública ou coletiva encontra-se previsto<br />

no artigo 5º, § 6º <strong>da</strong> Lei 7.347/85 (LACP), combinado com o artigo 82 <strong>da</strong> Lei 8.078/90 (Código<br />

de Defesa do Consumidor). To<strong>da</strong>via, nem todos os legitimados podem firmar compromisso de<br />

ajustamento de conduta do agente causador do <strong>da</strong>no a interesses meta-individuais. Nesse particular,<br />

observa Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 363) que<br />

só podem tomar o compromisso de ajustamento de conduta os órgãos públicos<br />

legitimados à ação civil pública ou coletiva .Quais são esses órgãos<br />

públicos legitimados? Para alguns, são todos os legitimados à ação<br />

civil pública, excetua<strong>da</strong> apenas a associação civil. Numa outra interpretação,<br />

grosso modo, poderíamos dizer que estão autoriza<strong>da</strong>s a celebrar compromissos<br />

de ajustamento as pessoas jurídicas de direito público interno e seus<br />

órgãos, não as socie<strong>da</strong>des civis , nem as fun<strong>da</strong>ções priva<strong>da</strong>s, nem os sindicatos,<br />

nem as enti<strong>da</strong>des <strong>da</strong> administração indireta, nem as pessoas jurídicas<br />

que, posto com participação acionária do Estado, tenham regime jurídico<br />

próprio de empresas priva<strong>da</strong>s. Assim, a rigor, não estariam incluídos na condição<br />

de “órgãos públicos legitimados”: a) as associações civis; b) os sindicatos;<br />

c) as socie<strong>da</strong>des de economia mista; d) as fun<strong>da</strong>ções priva<strong>da</strong>s; e)<br />

as empresas públicas.<br />

Tem-se, assim, que com relação à legitimação dos órgãos públicos para celebrar<br />

termo ou compromisso de ajustamento de conduta, há que se analisar se agem na quali<strong>da</strong>de de<br />

prestadores ou de exploradores de serviço público com finali<strong>da</strong>de lucrativa, em condições de empresas<br />

de mercado. Nesse passo, na tentativa de apontar uma solução para a controvérsia, Hugo<br />

Nigro Mazzilli (2006, p. 363) relaciona três categorias de legitimados, a partir do exame do rol<br />

acima mencionado, veja-se:<br />

a) a <strong>da</strong>queles legitimados que, incontroversamente podem tomar compromisso<br />

de ajustamento: Ministério Público, União, Estados, Municípios, Distrito<br />

Federal e Órgãos Públicos, ain<strong>da</strong> que sem personali<strong>da</strong>de jurídica, especificamente<br />

destinados à defesa de interesses difusos, coletivos e individu-<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes<br />

ais homogêneos. São os órgãos pelos quais o Estado administra o interesse<br />

público, ain<strong>da</strong> que integrem a chama<strong>da</strong> administração indireta (como<br />

autarquias, fun<strong>da</strong>ções públicas ou empresas públicas), na<strong>da</strong> obsta a que<br />

tomem compromissos de ajustamento quando ajam na quali<strong>da</strong>de de entes<br />

estatais.<br />

b) a dos legitimados que, incontroversamente não podem tomar o compromisso:<br />

as associações civis, os sindicatos e as fun<strong>da</strong>ções priva<strong>da</strong>s;<br />

c) a dos legitimados em relação aos quais cabe discutir à parte se podem ou<br />

não tomar compromisso de ajustamento de conduta, como as fun<strong>da</strong>ções<br />

publicas e as autarquias, ou até as empresas públicas e as socie<strong>da</strong>des de<br />

economia mista.<br />

Ain<strong>da</strong> com relação aos legitimados para celebrar o TAC vale registrar a crítica<br />

feita por José Emmanuel Burle Filho e Wallace Paiva Martins Júnior, que, sendo citados por Édis<br />

Milaré (2005, p. 902), assim se manifestam:<br />

[...] a melhor interpretação, que se ajusta ao sistema jurídico vigente, é a que<br />

encontra na expressão órgãos públicos (mercê <strong>da</strong> má técnica legislativa) a<br />

indicação de to<strong>da</strong>s as enti<strong>da</strong>des que compõem a Administração Pública direta,<br />

indireta ou fun<strong>da</strong>cional, e que, independentemente <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de jurídica<br />

de ca<strong>da</strong> uma, desenvolvam precipuamente ativi<strong>da</strong>des de interesse público,<br />

o que permite incluir as socie<strong>da</strong>des de economia mista e as empresas<br />

públicas como detentoras <strong>da</strong> prerrogativa de firmar compromisso de ajustamento<br />

de conduta desde (é claro) que esta esteja inseri<strong>da</strong> entre os objetivos<br />

legais e estatutários do ente, de modo a prevenir litígio para o qual estava<br />

legitima<strong>da</strong>. Excluir-se, tout court , as enti<strong>da</strong>des paraestatais <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de<br />

de firmarem compromissos de ajustamento de conduta é equipará-las à [sic]<br />

enti<strong>da</strong>des genuinamente priva<strong>da</strong>s (como as associações co-legitima<strong>da</strong>s), o<br />

que não se adequa ao ordenamento jurídico.<br />

45<br />

Daniel Roberto Fink (2002, p. 128), de sua parte e com relação ao especial<br />

enfoque dos órgãos públicos legitimados (especificamente as empresas públicas e as socie<strong>da</strong>des<br />

de economia mista) igualmente assevera que:<br />

Burle e Martins admitem que essas pessoas jurídicas possam celebrar ajustamento<br />

de conduta baseados no argumento de que, se é ver<strong>da</strong>de que têm<br />

regime jurídico de empresas priva<strong>da</strong>s, não é menos certo que o Estado participa<br />

de sua criação e gerenciamento, marcando-lhes com o signo público. É<br />

certo, ain<strong>da</strong>, que prestam serviços de utili<strong>da</strong>de pública e realizam ativi<strong>da</strong>des<br />

que envolvem o interesse público, ain<strong>da</strong> que seja uma ativi<strong>da</strong>de econômica,<br />

mas sempre de interesse coletivo. Em abono a seu argumento, ajuntam uma<br />

série de restrições impostas a seu funciona-mento, exatamente tendo em<br />

vista a participação do Estado na realização <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de (por exemplo, restrições<br />

a privilégios fiscais; submissão a licitação pública; investidura em empregos<br />

mediante concurso, entre outros ).<br />

A seguir, o posicionamento de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 103):<br />

Parece-nos que, quando se tratar de órgãos pelos quais o Estado administra<br />

o interesse público, ain<strong>da</strong> que <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> administração indireta (como<br />

autarquias, fun<strong>da</strong>ções públicas ou empresas públicas), na<strong>da</strong> obsta a que<br />

tomem compromissos de ajustamento de conduta quando ajam na quali<strong>da</strong>de<br />

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Compromisso de Ajustamento de Conduta<br />

de entes estatais (quando prestem serviço público). Contudo, para aqueles<br />

órgãos dos quais o Estado participe, quando concorram na ativi<strong>da</strong>de<br />

econômica em condições empresariais, não se lhe pode conceder essa prerrogativa<br />

de tomar compromissos de ajustamento de conduta, sob pena de<br />

estimular desigual<strong>da</strong>des afrontosas à ordem jurídica, como é o caso <strong>da</strong>s<br />

socie<strong>da</strong>des de economia mista ou <strong>da</strong>s empresas públicas, quando ajam em<br />

condições de empresas de mercado.<br />

To<strong>da</strong>via, há na doutrina quem reconheça legitimi<strong>da</strong>de também às associações:<br />

é o caso do posicionamento adotado por Fernando Grella Vieira (2002, p. 271), para quem<br />

A associação terá legitimi<strong>da</strong>de se a questão lhe for pertinente. Não é possível<br />

que uma enti<strong>da</strong>de associativa que tenha por finali<strong>da</strong>de, segundo seus<br />

estatutos, por exemplo, a proteção do meio ambiente ponha-se a tutelar<br />

interesse atinente à esfera do consumidor, de deficientes, etc. Da mesma<br />

forma, a pertinência e os limites <strong>da</strong> ofensa é que nortearão a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

fun<strong>da</strong>ções, empresas públicas e socie<strong>da</strong>des de economia mista, em ca<strong>da</strong><br />

caso, diante do que dispuser seus atos constitutivos quanto à finali<strong>da</strong>de<br />

institucional ou objeto social.<br />

46<br />

Afirma ain<strong>da</strong> Fernando Grella Vieira (2002, p. 272) que em razão de a Lei<br />

7.347/85 (LACP) permitir a assistência (art. 5º, § 2º), “a mesma colaboração pode formalizar-se<br />

na toma<strong>da</strong> de compromisso extrajudicial”, o que somente corrobora a afirmação anterior-mente<br />

feita no sentido de se permitir a participação de advogados quando <strong>da</strong> confecção do TAC. E, em<br />

relação à legitimação do Ministério Público, menciona ain<strong>da</strong> o mesmo Fernando Grella Vieira<br />

(2002, p. 272-3) duas limitações decorrentes de sua quali<strong>da</strong>de de legitimado, a primeira decorrente<br />

do federalismo e a segun<strong>da</strong> <strong>da</strong> destinação institucional do próprio Ministério Público, veja-se:<br />

Há duas limitações, entretanto, ao exercício dessa competência pelo Ministério<br />

Público: A primeira decorre do federalismo. Os Ministérios Públicos<br />

estaduais têm a competência limita<strong>da</strong> à esfera <strong>da</strong> respectiva Uni<strong>da</strong>de<br />

Federa<strong>da</strong>. Bem por isso a Lei 7.347/85, quando trata <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de ativa,<br />

expressa que será admitido o “litisconsórcio facultativo entre os Ministérios<br />

Públicos <strong>da</strong> União, do Distrito Federal e dos Estados na defesa dos interesses<br />

e direitos de que cui<strong>da</strong> esta Lei”. Se os interesses ofendidos são de<br />

âmbito regional, dizendo respeito a mais de um Estado, ou se são de âmbito<br />

nacional, não pode determinado Ministério Público estadual, ain<strong>da</strong> que também<br />

interessado, com exclusivi<strong>da</strong>de, promover isola<strong>da</strong>mente a tutela. A segun<strong>da</strong><br />

restrição prende-se à destinação institucional do Ministério Público,<br />

defini<strong>da</strong> na Constituição Federal, de órgão defensor de interesses sociais e<br />

individuais indisponíveis, o que vale dizer que nem sempre os interesses<br />

coletivos ou os chamados interesses individuais homogêneos poderão ser<br />

tutelados pela Instituição, se deles não despontar a presença de interesse<br />

público primário (art. 127, caput, c/c o art. 129, IX, <strong>da</strong> CF).<br />

A defesa de interesses de grupos determinados de pessoas só pode ser feita<br />

pelo Ministério Público quando restar evidenciado o interesse de to<strong>da</strong> a coletivi<strong>da</strong>de. É o que<br />

ocorre, por exemplo, quando o Ministério Público ajuíza ação civil pública na defesa de alguns<br />

idosos pleiteando vaga em determinado hospital público. E, com base em Hugo Nigro Mazzilli,<br />

conclui Fernando Grella Vieira que, se não houver interesse <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de, a defesa dos interesses<br />

individuais deveria ser feita através <strong>da</strong> própria legitimação ordinária (que é, aliás, a regra no<br />

direito processual civil brasileiro), devendo ca<strong>da</strong> qual ajuizar ação autônoma, sob pena de ferir-se a<br />

destinação institucional do Ministério Público. Ao apontar o outro aspecto limitador <strong>da</strong> atuação do<br />

Ministério Público, prossegue o autor (2002, p. 273):<br />

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Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes<br />

De outro lado, sob o ponto de vista <strong>da</strong> natureza do interesse difuso, há<br />

limitação material absoluta quanto à possibili<strong>da</strong>de de transação quando se<br />

trata de patrimônio público e <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de administrativa, na forma <strong>da</strong> Lei<br />

8.429, de 02.06.1992, que dispõe “sobre as sanções aplicáveis aos agentes<br />

públicos nos casos de enriqueci-mento ilícito no exercício de man<strong>da</strong>to, cargo,<br />

emprego, função na Administração Pública direta, indireta e fun<strong>da</strong>cional.<br />

A última limitação aponta<strong>da</strong> esclarece, assim, que os atos passíveis de serem<br />

tipificados como atos de improbi<strong>da</strong>de, nos termos <strong>da</strong> Lei 8.429/92 com penas que vão desde a<br />

multa até a per<strong>da</strong> do cargo, man<strong>da</strong>to ou função, suspensão dos direitos políticos e proibição de<br />

contratar com o Poder Público etc., são atos cuja punição constitui-se em ativi<strong>da</strong>de privativa <strong>da</strong><br />

jurisdição.<br />

To<strong>da</strong>via alguns autores chegam a sustentar a tese de que o ajustamento de<br />

conduta deve ser aceito em casos envolvendo certos atos de improbi<strong>da</strong>de administrativa. É o caso,<br />

por exemplo, do agente político que se arrepende de ter auferido determina<strong>da</strong> vantagem ilícita e, de<br />

livre e espontânea vontade, resolver devolver o numerário recebido aos cofres públicos. O entendimento,<br />

porém, é rechaçado por vários outros doutrinadores pátrios.<br />

5.1 O Artigo 79-A <strong>da</strong> Lei 9.605/98<br />

Por força <strong>da</strong> Medi<strong>da</strong> Provisória nº 1.949-22, de 30.03.2000, foi inserido na Lei<br />

9.605/98 o artigo 79-A, informando ser possível aos<br />

órgãos ambientais integrantes do Sisnama, responsáveis pela execução de<br />

programas e projetos e pelo controle e fiscalização dos estabelecimentos e<br />

ativi<strong>da</strong>des suscetíveis de degra<strong>da</strong>rem a quali<strong>da</strong>de ambiental, celebrar, com<br />

força de titulo executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoas<br />

físicas ou jurídicas responsáveis pela construção, instalação, ampliação e<br />

funcionamento de estabeleci-mentos e ativi<strong>da</strong>des utilizadoras de recursos<br />

ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidoras.<br />

47<br />

Nesse particular, entende o Promotor de Justiça do Meio Ambiente em São<br />

Paulo, Daniel Roberto Fink, tratar-se de nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de termo de ajustamento de conduta,<br />

para o qual estão legitimados os órgãos integrantes do SISNAMA (Sistema Nacional do Meio<br />

Ambiente – lei 6938/81). Sustenta o autor (FINK, 2002, p. 129): “Evidentemente estamos diante de<br />

uma nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de termos de ajustamento de conduta, que, se é o mesmo na natureza<br />

jurídica transacional, guar<strong>da</strong> muita dessemelhança em outros aspectos”.<br />

Aliás, entende o referido doutrinador que a expressão “enti<strong>da</strong>des” abriga as<br />

enti<strong>da</strong>des paraestatais (socie<strong>da</strong>des de economia mista, empresas públicas, fun<strong>da</strong>ções e autarquias),<br />

desde que destina<strong>da</strong>s à execução de programas e projetos e ao controle e fiscalização dos estabelecimentos<br />

e ativi<strong>da</strong>des suscetíveis de degra<strong>da</strong>rem a quali<strong>da</strong>de ambiental. Conclui, pois, o autor<br />

(FINK, 2002, p. 130): “o dispositivo novo ampliou o rol de partes capaz de celebrar o ajustamento<br />

de conduta em defesa do interesse público transindividual penal”.<br />

Com a devi<strong>da</strong> vênia, o dispositivo acrescentado à Lei nº 9605/98 apenas e tão<br />

somente explicitou os entes que já possuíam legitimi<strong>da</strong>de ativa para a celebração do ajustamento<br />

de conduta, não tendo o condão de acrescentar novi<strong>da</strong>de no que diz respeito à legitimi<strong>da</strong>de ativa<br />

para a celebração de um TAC.<br />

6 PUBLICIDADE DO COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA<br />

Em relação à publici<strong>da</strong>de, posiciona-se Paulo Affonso Leme Machado (2005,<br />

p. 364) no sentido de que o acordo deverá tornar-se público antes de ser assinado. Eis suas palavras:<br />

“um dos pilares fun<strong>da</strong>mentais do Direito Ambiental é a informação ampla, veraz, rápi<strong>da</strong> e<br />

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Compromisso de Ajustamento de Conduta<br />

institucionaliza<strong>da</strong>. Havendo transparência, os interessados poderão trazer para os órgãos públicos<br />

envolvidos outros subsídios ou a opinião de segmentos sociais diversos.” Na seqüência, prossegue<br />

o autor:<br />

não se conseguiu ain<strong>da</strong> a publicação prévia do termo de ajustamento de<br />

conduta. Mas já se caminhou, de forma expressiva, para o acesso ao conteúdo<br />

do termo de ajustamento de conduta – TAC. A Lei 10.650, de 16.04.2003,<br />

determina que a lavratura de termos de compromisso de ajustamento de<br />

conduta seja publica<strong>da</strong> no Diário Oficial (art. 4º, IV). Não se trata de publicar<br />

um resumo do termo, mas sua integrali<strong>da</strong>de. A divergência de pontos de<br />

vista não impedirá o acordo em primeira instância administrativa. A via do<br />

recurso à instância administrativa – como o Conselho Superior do Ministério<br />

Público –, contudo, não ficará fecha<strong>da</strong> aos discor<strong>da</strong>ntes.<br />

Há, ain<strong>da</strong>, o posicionamento de Geisa de Assis Rodrigues (2006) que, em artigo<br />

intitulado “A Participação <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de Civil na Celebração do Termo de Ajustamento de Conduta”,<br />

afirma que a transparência revela a face democrática do ajuste, manifestando-se nos seguintes<br />

termos:<br />

A publici<strong>da</strong>de é fun<strong>da</strong>mental para garantir o controle de seus termos pela<br />

socie<strong>da</strong>de e permitir que se averigúe se ele não representou nenhum tipo de<br />

limitação ao direito protegido, bem como para garantir sua eficácia, porque<br />

todos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de podem contribuir na fiscalização do cumprimento <strong>da</strong>s<br />

cláusulas avença<strong>da</strong>s.<br />

48<br />

Frise-se que não há previsão legal no sentido de se impor a obrigatorie<strong>da</strong>de de<br />

instrumentos de participação para elaboração e celebração do ajuste. Porém, tal como se afirmou,<br />

a observância <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de pode ser justifica<strong>da</strong> ante a necessi<strong>da</strong>de de se observar o Princípio<br />

Democrático. Também de se salientar que a decisão defini<strong>da</strong> acerca do ajuste será sempre do<br />

órgão legitimado, vez que a norma não prevê qualquer espécie de submissão desta decisão à<br />

deliberação – quando e se houver – <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, até por uma questão de se evitar a possibili<strong>da</strong>de<br />

de manipulação. Em síntese, pode-se dizer que o que se defende é a participação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil<br />

– à qual se <strong>da</strong>rá publici<strong>da</strong>de – na elaboração do ajustamento, não se deixando de lado ain<strong>da</strong> a<br />

participação de grupos cujos interesses coletivos estejam envolvidos no ajuste.<br />

7 A (DES)NECESSIDADE DE SER O COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO<br />

HOMO-LOGADO PELO CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO<br />

É controversa na doutrina a exigibili<strong>da</strong>de ou não de homologação do compromisso<br />

de ajustamento de conduta pelo Conselho Superior do Ministério Público. O que é de todo<br />

recomendável, porém, é que o órgão que celebrou o ajuste fiscalize seu cumprimento, justamente<br />

para que o teor do acordo seja efetivamente observado e cumprido. Nesse sentido, a lição de Édis<br />

Milaré (2005, p. 904):<br />

De qualquer forma, havendo ou não previsão na lei local quanto à necessi<strong>da</strong>de<br />

de homologação do compromisso pelo Conselho superior, é recomendável,<br />

sempre, que o órgão que o celebrou fiscalize o seu efetivo cumprimento,<br />

para que não se protele, em nome do controle interno, a defesa do bem<br />

jurídico de interesse coletivo.<br />

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Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes<br />

Aqui, não se deve olvi<strong>da</strong>r as questões de ordem prática, ou seja, será que todos<br />

os termos de ajustamento devem ser levados, necessariamente, ao conhecimento do Conselho<br />

Superior do Ministério Público? Parece que não. Isto não quer dizer, porém, que aquele que celebrou<br />

o TAC não fique atento ao seu fiel cumprimento e faça cumprir, via tutela jurisdicional, as<br />

determinações nele conti<strong>da</strong>s. Assim, parece não haver a necessi<strong>da</strong>de de ser o compromisso homologado,<br />

mas, em contraparti<strong>da</strong>, é imperioso que o órgão legitimado fique atento ao seu fiel cumprimento,<br />

sob pena de o ajuste perder suas próprias características e finali<strong>da</strong>des. Nesse sentido, a<br />

lição de Luis Roberto Proença (2001, p. 130-1), para quem<br />

Se não houver a previsão na respectiva Lei Orgânica do Ministério Público<br />

<strong>da</strong> homologação do compromisso de ajustamento pelo Conselho Superior,<br />

como condição de sua eficácia, então bastará a sua pactuação pelo órgão de<br />

execução, para que tenha eficácia imediata, restando ao Conselho Superior<br />

apreciar, em reexame, eventual ocorrência de ‘arquivamento implícito’.<br />

No mesmo sentido, ensina Fernando Grella Vieira (2002, p. 284-5) que “o controle<br />

pelo Conselho Superior é dispensável, seja sob o enfoque de que o inquérito – por ter atingido<br />

sua finali<strong>da</strong>de – reclamaria formal arquivamento, seja quanto à eficácia e à exeqüibili<strong>da</strong>de do<br />

compromisso firmado”. O tema, to<strong>da</strong>via, pode ser objeto de regula-mentação pelas normas que<br />

disciplinam a forma de atuação e as atribuições dos órgãos do Ministério Público. Assim, não é<br />

indispensável que o compromisso seja remetido, sempre, ao Conselho Superior do Ministério Público,<br />

na<strong>da</strong> impedindo, porém, que haja determinação expressa nesse sentido, o que deverá constar<br />

na Lei Orgânica do Ministério Público.<br />

8 CONCLUSÕES<br />

Como se viu no primeiro tópico deste trabalho, o termo ou ajustamento de<br />

conduta é um modo pelo qual é <strong>da</strong><strong>da</strong> ao autor do <strong>da</strong>no a oportuni<strong>da</strong>de de cumprir as obrigações<br />

estabeleci<strong>da</strong>s, comprometendo-se o ente legitimado, de sua parte, a não propor ação civil pública<br />

ou a pôr-lhe fim, caso esta já esteja em an<strong>da</strong>mento. Com isto, busca-se evitar processos extremamente<br />

custosos, desgastantes e morosos para ambas as partes, fazendo com que o autor do <strong>da</strong>no<br />

pratique ou se abstenha de praticar o ato inquinado de lesivo, sempre com vistas a atender o bem<br />

maior objeto do acordo. Assim, desde que cumprido o ajuste, terá o compromisso alcançado seu<br />

objetivo, sem a necessi<strong>da</strong>de de se movimentar to<strong>da</strong> a máquina judiciária. É, portanto, um meio<br />

rápido e eficaz para a solução de problemas. E, na hipótese de não ser cumprido o TAC, poderá o<br />

mesmo ser executado desde logo, eis que constitui título executivo extrajudicial, revelando-se desnecessária<br />

qualquer outra discussão em torno dos comportamentos que o instituíram.<br />

49<br />

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2006.<br />

RODRIGUES, Marcelo Abelha. Instituições de Direito Ambiental: parte geral. São Paulo: Max<br />

Limonad, 2002.<br />

______. Ação Civil Pública e Meio Ambiente. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,<br />

2004.<br />

SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.<br />

VIEIRA, Fernando Grella. A Transação na Esfera <strong>da</strong> Tutela dos Interesses Difusos e Coletivos:<br />

Compromisso de Ajustamento de Conduta. Ação Civil Pública: lei 7.347/1985 – 15 anos. MILARÉ,<br />

Édis (Coord.). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.<br />

ZAVASCKI, Teoria Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e<br />

tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Hylea Maria Ferreira<br />

A TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS*<br />

Hylea Maria Ferreira**<br />

RESUMO<br />

Análise do instituto <strong>da</strong> antecipação de tutela no ordenamento jurídico brasileiro com ênfase na sua<br />

aplicabili<strong>da</strong>de, face aos juizados especiais cíveis – estaduais e federais – apresentando os requisitos<br />

essenciais para sua concessão e abor<strong>da</strong>ndo as principais divergências doutrinárias a fim de<br />

contribuir com uma possível solução para os conflitos <strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong> lei especial.<br />

Palavras-chave: Tutela Antecipa<strong>da</strong>. Juizados Especiais Cíveis Federais. Juizados Especiais Cíveis<br />

Estaduais.<br />

THE ANTICIPATED GUARDIANSHIP IN HEADQUARTERS OF SPECIAL<br />

COURTS CIVIL COURT JURISDICTION<br />

ABSTRACT<br />

Analysis about the institute of anticipated judicial protection in brazilian juridical order tiring its<br />

aplicability face to the Small-Claim Civil Courts – statual and federal – introducing the essencial<br />

requirements for its judicial concession and approaching the principal doutrinaries divergences in<br />

order to contribute with a possible resolution for the existents disagreement of especial law’s<br />

aplication.<br />

51<br />

Keywords: Anticipated Judicial Protection. Small-Claim Federal Civil Courts. Small-Claim State<br />

Civil Courts.<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

A evolução social aproximou as relações entre as pessoas. Conseqüentemente,<br />

de algumas dessas relações restaram litígios, os quais, não sendo resolvidos de modo pacífico,<br />

levam os litigantes a invocar o Poder Judiciário. Com o número crescente dessas relações, tornouse<br />

crescente também o número <strong>da</strong>s deman<strong>da</strong>s judiciais, fator contribuinte para a morosi<strong>da</strong>de processual.<br />

O reclamante, que visa ao reconhecimento de seu direito, resta prejudicado com a demora<br />

do desenrolar dos procedimentos, enquanto para o reclamado, a lentidão torna-se cômo<strong>da</strong>.<br />

Com o advento <strong>da</strong> Lei 8.952/94, surge a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> antecipação de tutela<br />

nas diferentes sortes de processos, a exemplo de outros países que lograram sucesso com a adoção<br />

do instituto. O objetivo maior era não só o de atualizar o Código de Processo Civil vigente, mas<br />

também de garantir maior efetivi<strong>da</strong>de à prestação jurisdicional. Assim, o novo instituto inserido no<br />

Código de Processo Civil, em seu art. 273, deu legali<strong>da</strong>de à antecipação dos efeitos <strong>da</strong> sentença,<br />

obedecendo aos requisitos (i) <strong>da</strong> existência de prova inequívoca, (ii) <strong>da</strong> verossimilhança <strong>da</strong>s alegações,<br />

(iii) do fun<strong>da</strong>do receio de <strong>da</strong>no irreparável ou de difícil reparação, (iv) do abuso de direito de<br />

defesa ou do manifesto propósito protelatório do réu.<br />

*O presente artigo é resultado de monografia de conclusão do curso de graduação em Direito, escrita sob a orientação do prof.<br />

Ms. Henrique Afonso Pipolo.<br />

**Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Filadélfia – <strong>UniFil</strong> – e pós-graduan<strong>da</strong> em Filosofia Moderna e Contemporânea:<br />

Aspectos Éticos e Políticos pela Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina – UEL. E-mail: hyleamf@hotmail.com<br />

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A Tutela Antecipa<strong>da</strong> em Sede de Juizados Especiais Cíveis<br />

Com efeito, objetivando semelhante efetivi<strong>da</strong>de aos trâmites processuais, foi<br />

promulga<strong>da</strong> a Lei 9.099/95 que rege os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Essa lei inovadora<br />

traz em seu conteúdo a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ações menos complexas e de menor valor serem processa<strong>da</strong>s<br />

de uma maneira mais célere e informal, sem a necessi<strong>da</strong>de do cumprimento <strong>da</strong>s formali<strong>da</strong>des<br />

do rito ordinário.<br />

Ao entender que grande parte <strong>da</strong>s ações cíveis, ajuiza<strong>da</strong>s atualmente, são justamente<br />

aquelas de caráter menos complexo e cujos valores discutidos não ultrapassam a alça<strong>da</strong><br />

legal, então, é de se entender também que, apesar de regidos por todos os princípios norteadores,<br />

os Juizados Especiais Cíveis são passíveis <strong>da</strong> morosi<strong>da</strong>de processual.<br />

A Lei 9.099/95 silenciou a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> antecipação <strong>da</strong> tutela em sede de<br />

Juizados Especiais. Ain<strong>da</strong>, quedou-se silente quanto à aplicação subsidiária do CPC quando aquela<br />

for omissa. Assim, provoca-se a in<strong>da</strong>gação quanto à possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> antecipação <strong>da</strong> tutela junto<br />

aos Juizados. A doutrina tem se mostrado positiva, bem como os juízes têm aplicado positivamente<br />

a tutela antecipa<strong>da</strong> nos Juizados Especiais.<br />

Em 2001 foi promulga<strong>da</strong> a Lei 10.259 que dispõe sobre a instituição dos Juizados<br />

Especiais Cíveis e Criminais no âmbito <strong>da</strong> Justiça Federal. A nova lei aproveitou as disposições <strong>da</strong><br />

Lei 9.099/95 e traz, no seu texto, as adequações do procedimento já existente ao âmbito <strong>da</strong> Justiça<br />

Federal.<br />

2 DOS REQUISITOS<br />

52<br />

Para que seja admissível a concessão do tutela antecipa<strong>da</strong>, a lei versou sobre<br />

cinco requisitos que devem estar presentes na causa – (i) <strong>da</strong> existência de prova inequívoca, (ii) <strong>da</strong><br />

verossimilhança <strong>da</strong>s alegações (iii) do fun<strong>da</strong>do receio de <strong>da</strong>no irreparável ou de difícil reparação,<br />

(iv) do abuso de direito de defesa ou (v) do manifesto propósito protelatório do réu. Não é necessário<br />

que todos estejam presentes para que seja possível a aplicação do instituto, mas como fun<strong>da</strong>mento<br />

do pedido <strong>da</strong> tutela, devem estar expostos no processo, concorrentes entre si ou não.<br />

Primeiramente, analisa-se a prova inequívoca, que pode ser entendi<strong>da</strong> como o<br />

resultado produzido por iniciativa do réu, que exprime condições claras e irrefutáveis, não sendo<br />

possível admitir-se erro ou engano quanto à sua apreciação.<br />

Carreira Alvim ensina que prova inequívoca será aquela que apresente alto<br />

grau de convencimento, afastando de si qualquer dúvi<strong>da</strong> razoável ou, em outros termos, cuja autentici<strong>da</strong>de<br />

ou veraci<strong>da</strong>de seja provável (apud CARNEIRO, 2002, p. 21).<br />

Importante salientar que a prova inequívoca tampouco se confunde com o fumus<br />

boni iuris do processo cautelar. Na lição de Kazue Watanabe (apud CARNEIRO, 2002, p. 22),<br />

o juízo fun<strong>da</strong>do em prova inequívoca, em prova que convença bastante, que<br />

não apresente dubie<strong>da</strong>de, é seguramente mais intenso que o juízo assentado<br />

em simples ‘fumaça’, que somente permite a visualização de mera silhueta ou<br />

contorno sombreado de um direito.<br />

A rigor, deve-se entender que não existe prova perfeitamente inequívoca, no<br />

aspecto de ser irrefragável, pois com o decorrer do processo a prova pode recair em dúvi<strong>da</strong>, com<br />

o advento de novas provas ou fatos que comprovem com mais severi<strong>da</strong>de aspectos contrários à<br />

prova anteriormente ofereci<strong>da</strong>. Também, não há que falar <strong>da</strong> prova inequívoca sem associá-la à<br />

verossimilhança dos fatos alegados, uma vez que as provas ofereci<strong>da</strong>s têm por finali<strong>da</strong>de a demonstração<br />

<strong>da</strong> veraci<strong>da</strong>de dos fatos apresentados. A verossimilhança consiste então na plausibili<strong>da</strong>de,<br />

na perspectiva de que os fatos são possíveis ou reais, ain<strong>da</strong> quando descabidos de provas específicas<br />

(SANTORO, 2000, p. 11).<br />

Trata-se este de um elemento subjetivo que complementa a prova apresenta<strong>da</strong><br />

para convencer o magistrado <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> concessão <strong>da</strong> tutela antecipa<strong>da</strong>. O Juiz deve<br />

analisar não somente se a prova é inequívoca, de onde não se resta dúvi<strong>da</strong>s, mas deve considerar<br />

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Hylea Maria Ferreira<br />

também se a prova tem nexo com as alegações e que estas sejam cabíveis e possam ser toma<strong>da</strong>s<br />

como ver<strong>da</strong>deiras (SANTORO, 2000, p. 11). Assim sendo, pode-se dizer que o processo requer<br />

uma ver<strong>da</strong>de formal, que deve ser alcança<strong>da</strong> com a verossimilhança <strong>da</strong>s alegações e a prova<br />

inequívoca, ao passo que a ver<strong>da</strong>de real é quase sempre inatingível, posto que um só fato pode<br />

comportar várias interpretações.<br />

Quanto ao terceiro requisito - o receio de <strong>da</strong>no irreparável ou de difícil reparação<br />

– tem-se que não se confundi-lo com a ameaça, propriamente dita. A primeira impressão que<br />

se tem sobre o conceito de ameaça é que esta é ocasiona<strong>da</strong> por ação do réu, que visa prejudicar o<br />

ameaçado, através de coação física ou moral, direta ou indireta. Eis então por que aqui não se fala<br />

em ameaça de <strong>da</strong>no, mas tão somente em receio, pois este pode vir a ser conseqüência de culpa do<br />

réu, quando este age sem o animus (MIRABETE, 2000, p. 139-140) 1 de provocar a situação, mas<br />

acaba por <strong>da</strong>r ensejo à situação que, conseqüentemente, gera a insatisfação do autor. Mesmo que<br />

o desprazer do autor seja ocasionado pela má-fé do réu, o receio é mais como um temor subjetivo<br />

<strong>da</strong> parte, que advém de atos concretos que o colocam em situação de desconforto na iminência de<br />

que lhe seja causado prejuízo (THEODORO JR., 2000, p. 415).<br />

Cumpre ressaltar que o receio de <strong>da</strong>no experimentado pelo autor não parte<br />

somente em face de ação ou omissão do requerido, mas também dos inconvenientes <strong>da</strong> demora<br />

que toma o impulso processual, que, a seu turno, também poderia gerar <strong>da</strong>nos que comprometam<br />

substancialmente os direitos <strong>da</strong> parte autora.<br />

Já o abuso do direito de defesa vislumbra-se quando o réu deduz pretensão<br />

contra fato incontroverso ou opõe resistência infun<strong>da</strong><strong>da</strong> contra direito expresso e indubitável do<br />

autor (SANTORO, 2000, p. 15), ou ain<strong>da</strong>, empregando meios ilícitos ou escusos para urdir situação<br />

de defesa e protelar o deslinde <strong>da</strong> deman<strong>da</strong>, se beneficiando com a manutenção do status quo<br />

(CARNEIRO, 2002, p. 33).<br />

Aqui, o réu está mais próximo <strong>da</strong> postura de litigante de má-fé, assumindo<br />

comportamento que corrobora com a sua intenção de retar<strong>da</strong>r o pleito, evitando a solução do<br />

conflito. Como dito anteriormente, enquanto este conflito gera irrefragável condição de desconforto<br />

ao autor, para o réu traz uma situação de extrema comodi<strong>da</strong>de.<br />

Este quarto requisito ain<strong>da</strong> apresenta um desdobramento – o abuso do direito<br />

de recorrer – resultante <strong>da</strong> interposição de recursos com intuitos protelatórios. Mesmo que ao réu<br />

seja garantido seu direito de recorrer <strong>da</strong> sentença, o recurso, por motivos legais, há de prosperar<br />

ante à apresentação de fun<strong>da</strong>mentos compatíveis com a causa, caso diverso do que se verifica na<br />

grande parte dos recursos existentes, onde implicitamente, identifica-se seu objetivo protelatório.<br />

Diante dessas possibili<strong>da</strong>des, a tutela antecipa<strong>da</strong> também pode ser considera<strong>da</strong><br />

uma mantenedora <strong>da</strong> ética e dos bons costumes, posto que sana a má-fé do réu que pretende<br />

retirar o impulso natural do processo, trazendo o autor mais próximo do seu direito (CARNEIRO,<br />

2002, p. 34).<br />

Há quem defen<strong>da</strong> a tese de que o manifesto propósito protelatório e o abuso de<br />

defesa do réu são situações homônimas. Não obstante, entre ambos os requisitos paira uma tênue<br />

diferenciação. O abuso de direito de defesa pode ser caracterizado pela resistência infun<strong>da</strong><strong>da</strong> que<br />

se contrapõe ao direito do autor, ou pelo emprego de meios ilícitos ou dispensáveis para forjar<br />

situação de defesa com o intuito de protelar a pretensão do autor (THEODORO JR., 2000, p. 414).<br />

Já o manifesto propósito protelatório do réu abrange os atos do réu com maior amplitude. Não é<br />

caracterizado pelo abuso, posto que o réu utiliza ao seu favor direitos previstos em lei.<br />

O manifesto propósito protelatório do réu se caracteriza então pela utilização<br />

de direito próprio com o objetivo de retar<strong>da</strong>r o an<strong>da</strong>mento processual, inclusive quando ciente de<br />

que o ato por si praticado não é passível de reconhecimento, ante à jurisprudência, súmulas e texto<br />

de leis existentes (ALVIM apud CARNEIRO, 2002, p. 35). Tem-se então uma conduta temerária,<br />

que se exprime além <strong>da</strong> via processual, materializa<strong>da</strong> pelos atos de direito que não atingem diretamente<br />

o processo.<br />

53<br />

1 Em sua obra Manual de Direito Penal, Mirabete, ao tratar <strong>da</strong>s teorias sobre o dolo, traz uma análise crítica em relação à<br />

concepção psicodinâmica, inspira<strong>da</strong> em Freud, que vem a definir o dolo como uma atitude interior de adesão aos próprios<br />

impulsos intrapsíquicos anti-sociais, onde predomina a idéia do animus, que vem a ser, neste caso, a má-fé criminosa do<br />

agente.<br />

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A Tutela Antecipa<strong>da</strong> em Sede de Juizados Especiais Cíveis<br />

3 DA REVOGAÇÃO E MODIFICAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA<br />

A tutela antecipa<strong>da</strong> tem caráter provisório, conforme § 3º. do art. 273 do CPC.<br />

Esse caráter é também evidenciando ante à possibili<strong>da</strong>de de revogação ou modificação do provimento<br />

antecipado a qualquer tempo, disposto no § 4º. do referido codex.<br />

A sentença de mérito não está condiciona<strong>da</strong> à decisão interlocutória que concedeu<br />

a antecipação <strong>da</strong> tutela, de modo que, após instrução, é permitido ao juiz outro convencimento,<br />

de forma que o pleito possa ser improcedente ou procedente somente em parte. (MARINONI,<br />

1997, p. 158). Se improcedente, revogam-se os efeitos concedidos em sede de antecipação, restabelecendo<br />

o status quo ante, com a decorrente responsabili<strong>da</strong>de objetiva do autor pelos prejuízos<br />

que a providência tenha eventualmente causado ao deman<strong>da</strong>do. Caso a sentença seja parcialmente<br />

procedente, esta pode modificar a abrangência do provimento antecipado, seja diminuindo ou<br />

aumentando os direitos antecipados ao autor.<br />

4 OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS<br />

54<br />

Além de estabelecerem to<strong>da</strong> uma estrutura principiológica singular, os Juizados<br />

especiais também contemplam rito e procedimento diversos <strong>da</strong>queles apresentados pelo CPC<br />

(MARINONI; ARENHART, 2003, p. 714).<br />

Houve quem discutisse que a lei dos Juizados, na ver<strong>da</strong>de, estaria a criar um<br />

novo órgão do Poder Judiciário, uma espécie de tribunal inferior, de forma que a Lei 9.099/95<br />

deveria ser considera<strong>da</strong> inconstitucional. To<strong>da</strong>via, não se observa qualquer criação, tampouco<br />

mu<strong>da</strong>nças na estrutura judiciária existente. O legislador apenas observou a necessi<strong>da</strong>de de criação<br />

de um novo órgão integrante <strong>da</strong> Justiça Ordinária, sem o vício de qualquer inconstitucionali<strong>da</strong>de<br />

(ROCHA, 2002, p. 11-12).<br />

Em 2001 foi promulga<strong>da</strong> a Lei 10.259, para regular a matéria no âmbito <strong>da</strong><br />

Justiça Federal, observando-se suas peculiari<strong>da</strong>des. A nova norma veio a complementar a Lei<br />

9.099/95, sendo a este submeti<strong>da</strong>, quando o objeto assim permitir.<br />

Atualmente, entende-se que a Lei dos Juizados criou, em ver<strong>da</strong>de, um<br />

microsistema judiciário, adequado às causas cíveis de menor complexi<strong>da</strong>de e com valores limitados,<br />

detentor de princípios e regras próprias, com a incumbência de ampliar o acesso à justiça e<br />

descarregar os demais órgãos jurisdicionais.<br />

5 OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ESTADUAIS<br />

O procedimento adotado nos Juizados é hialinamente diverso <strong>da</strong>quele adotado<br />

pelo Código de Processo Civil, pois tem como escopo fun<strong>da</strong>mental atender aos critérios informativos<br />

<strong>da</strong> Lei 9.099/95, bem como oferecer mecanismos adequados aos interesses pleiteados nestes<br />

órgãos (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 722-723).<br />

A lei autoriza a comunicação dos atos através de qualquer meio idôneo de<br />

comunicação, o que contribui com os princípios que regem os Juizados. As partes podem ser<br />

intima<strong>da</strong>s de um despacho via fax, as testemunhas arrola<strong>da</strong>s poderão ser notifica<strong>da</strong>s através de um<br />

telefonema, a citação pode ocorrer por carta registra<strong>da</strong>, mediante aviso de recebimento em mãos<br />

próprias...<br />

Quanto ao tempo, os Juizados possuem a prerrogativa do art. 12, que permite a<br />

realização de atos processuais no período noturno, devi<strong>da</strong>mente regulado pela organização judiciária<br />

competente de ca<strong>da</strong> região. Quanto ao lugar, a prática dos atos prefere o foro do órgão, porém<br />

na<strong>da</strong> impede que possam ser praticados além <strong>da</strong> sede dos Juizados, quando assim aprouver: vistorias<br />

de imóveis, colheita de depoimento <strong>da</strong>s pessoas enumera<strong>da</strong>s no art. 144 do CPC.<br />

Ain<strong>da</strong>, só são reduzidos a termo escrito os atos que se demonstrarem essenciais,<br />

afastando o formalismo que reveste o procedimento <strong>da</strong> Justiça Comum. Aliás, todo ato produzido<br />

nos autos, mesmo que revestido de vícios formais ou materiais, uma vez que atinja sua finali-<br />

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Hylea Maria Ferreira<br />

<strong>da</strong>de no processo, sem causar prejuízo para nenhuma <strong>da</strong>s partes, há de ser considerado um ato<br />

válido e legítimo.<br />

Inexistem, ain<strong>da</strong>, nos Juizados causas que tramitem em segredo de justiça, de<br />

maneira que todo e qualquer ato processual é, por força de lei, um ato público, contrariamente ao<br />

procedimento comum, onde muitas vezes, em razão <strong>da</strong> matéria, o segredo de justiça é essencial<br />

para não submergir a efetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prestação jurisdicional.<br />

As audiências também possuem procedimento especial, pois são presidi<strong>da</strong>s<br />

pela pessoa do conciliador, quando <strong>da</strong> audiência preliminar de conciliação, e pelo juiz leigo, quando<br />

<strong>da</strong> audiência de instrução e julgamento. Ain<strong>da</strong> que estes profissionais sejam assistidos a todo o<br />

momento pelo magistrado togado, são considerados auxiliares <strong>da</strong> justiça e possuem a autonomia<br />

necessária para efetivi<strong>da</strong>de dos atos aos quais foram designados.<br />

A inexistência de cobrança do pagamento de custas, taxas e emolumentos, em<br />

primeiro grau de jurisdição, também é prerrogativa dos Juizados. Em que pese no procedimento<br />

comum as partes possam requerer o benefício <strong>da</strong> justiça gratuita, salvaguar<strong>da</strong>do pela Lei 1060/50,<br />

nos Juizados o benefício independe de requerimento, ou seja, ain<strong>da</strong> que a parte tenha condições de<br />

arcar com as sucumbências, dela na<strong>da</strong> será cobrado, salvo as exceções legais, pela interposição de<br />

recurso após a sentença de primeira instância transita<strong>da</strong> em julgado, ou ain<strong>da</strong> quando condena<strong>da</strong><br />

por litigância de má-fé (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 723-724).<br />

A representação técnica através de advogado também não é exigi<strong>da</strong> em primeira<br />

instância, até o limite de vinte salários mínimos. Neste ponto a doutrina diverge quanto à<br />

capaci<strong>da</strong>de postulatória <strong>da</strong>s partes, entendendo, de um lado, que a parte poderá atuar no processo<br />

até a sentença final, enquanto outra corrente entende necessária a presença do causídico depois de<br />

frustra<strong>da</strong> a audiência conciliatória, quando passaria o processo a exigir do deman<strong>da</strong>nte conhecimento<br />

técnico inerente do profissional advogado, sem o qual poderia restar a parte em prejuízo<br />

irreparável.<br />

6 OS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS<br />

55<br />

Quase tudo que fora dito quanto aos Juizados Especiais Estaduais, também se<br />

aplicara aos Juizados Especiais Federais. Porém impende destacar as características exclusivas<br />

presentes no âmbito <strong>da</strong> Justiça Federal. Ao contrário do que se observa no procedimento comum<br />

no âmbito <strong>da</strong> Justiça Federal, nos Juizados Federais a Fazen<strong>da</strong> Pública não conta com privilégios<br />

processuais, como prazos estendidos, diante de seu caráter público (art. 9º).<br />

Também, a Lei 10.259/01 outorgou ao autor o direito de eleger um representante<br />

legal judicial, ain<strong>da</strong> que não seja necessário (art. 10). Em parte, esta permissão pode ser justifica<strong>da</strong><br />

por algumas situações costumeiras nas causas de matéria previdenciária. Primeiramente, é cediço<br />

que uma subseção judiciária federal é responsável por vários municípios. É inequívoco concluir que<br />

quase a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ações previdenciárias são pleitea<strong>da</strong>s por pessoas idosas ou inváli<strong>da</strong>s, que<br />

objetivam o benefício <strong>da</strong> aposentadoria, auxílios ou pensão. Unindo ambas as situações é fácil<br />

perceber que uma ampla quanti<strong>da</strong>de de requerentes teria dificul<strong>da</strong>des de se locomover até a sede<br />

do juizado, o que contrariaria aquele fim de garantir o acesso à justiça, de modo que se faz legítimo<br />

e eficaz a representação judicial de pessoa física que não possua a mesma investidura que a figura<br />

do causídico. Ain<strong>da</strong> na esfera federal, pode-se observar a possibili<strong>da</strong>de de realização de perícia<br />

técnica, quando o laudo pericial for essencial ao deslinde <strong>da</strong> causa.<br />

Talvez o ponto mais importante que possa ser inserido singelamente neste ponto<br />

do artigo é o permissivo do art. 8º, § 2º, que prevê a possibili<strong>da</strong>de de recebimento de petições e<br />

realização de demais atos processuais através <strong>da</strong> via eletrônica. Esta regra deu origem ao E-proc 2 ,<br />

já utilizado em todos os Juizados <strong>da</strong> 4ª região, com resultados bastante agradáveis.<br />

2 O E-proc é o Sistema de Processo Eletrônico dos Juizados Especiais Federais <strong>da</strong> 4º Região. Sua utilização tem trazido<br />

resultados excelentes, principalmente por diminuir custos, facilitar o acesso aos autos para ambas as partes e ensejar maior<br />

celeri<strong>da</strong>de nas ações abrangi<strong>da</strong>s pelos juizados. Atualmente está sendo desenvolvido um projeto em Brasília, sob o gestão de<br />

seu criador, Giscard Stephanou, que visa a implantação do E-proc em todos os JEFs do Brasil. Existem nas outras regiões <strong>da</strong><br />

Justiça Federal processos eletrônicos com funcionamento semelhante ao E-proc, mas nenhum alcançou o mesmo nível de<br />

eficiência.<br />

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A Tutela Antecipa<strong>da</strong> em Sede de Juizados Especiais Cíveis<br />

To<strong>da</strong>s as pessoas envolvi<strong>da</strong>s no processo deman<strong>da</strong>do nos Juizados Federais –<br />

advogados, servidores <strong>da</strong> justiça federal, funcionários e procuradores <strong>da</strong>s autarquias, fun<strong>da</strong>ções e<br />

empresas públicas federais – são habilitados no E-proc através <strong>da</strong> assinatura de um termo de<br />

compromisso e recebem um senha pessoal e intransferível, que deverá ser utiliza<strong>da</strong> para o acompanhamento<br />

do processo judicial.<br />

Conhecido também como juizado virtual, o procedimento do E-proc vem se<br />

demonstrando uma ver<strong>da</strong>deira “mão-na-ro<strong>da</strong>” na garantia do acesso à justiça e no cumprimento<br />

dos preceitos fun<strong>da</strong>mentais dos Juizados. O processo se torna mais célere, e, conseqüentemente,<br />

mais eficaz, diminui as despesas do cartório, pois quase extingue a utilização do papel 3 e ain<strong>da</strong><br />

facilita a vi<strong>da</strong> dos procuradores que atuam perante o órgão, que podem acompanhar os atos simultaneamente,<br />

sem ter que se deslocarem de seus escritórios e gabinetes até a sede <strong>da</strong> Justiça<br />

Federal.<br />

Nos Juizados Federais, o cumprimento pecuniário <strong>da</strong> sentença não dependerá<br />

de expedição de precatórios. Os pagamentos poderão ser feitos através de Requisição de Pagamento<br />

de Valor – RPV, no prazo máximo de sessenta dias, a contar <strong>da</strong> requisição feita pelo juiz, por<br />

ofício, sendo que este também poderá seqüestrar numerário <strong>da</strong>s contas dos entes públicos, nos<br />

casos de descumprimento (BOCHENEK. 2004. p. 172).<br />

Por fim, destaca-se o texto do art. 4º <strong>da</strong> Lei 10.259/01 que, ain<strong>da</strong> hoje, suscita<br />

grande polêmica acerca <strong>da</strong> hipótese de apreciação de medi<strong>da</strong>s cautelares em sede de Juizados,<br />

porém, tratar-se-á do tema com mais afinco, a seguir.<br />

6.1 O art. 4º <strong>da</strong> Lei 10259/01<br />

56<br />

Prescreve o dispositivo: “Art. 4 o . O Juiz poderá, de ofício ou a requerimento<br />

<strong>da</strong>s partes, deferir medi<strong>da</strong>s cautelares no curso do processo, para evitar <strong>da</strong>no de difícil reparação”.<br />

Resta entender: qual foi a ver<strong>da</strong>deira pretensão do legislador ao dispor sobre medi<strong>da</strong>s cautelares,<br />

inclusive quando é sabido que o projeto original <strong>da</strong> lei 10.259 continha a expressão “medi<strong>da</strong>s urgentes”<br />

no texto do art. 4º?<br />

As tutelas cautelares não se confundem com a tutela antecipatória. Apresentam<br />

requisitos distintos e ca<strong>da</strong> qual busca objetivos diversos.<br />

A dificul<strong>da</strong>de, porém, se encontra-se em diferenciar medi<strong>da</strong> cautelar de tutela<br />

cautelar e processo cautelar. Marília Lourido dos Santos, citando Humberto Theodoro Junior<br />

(1998)nensina que a tutela cautelar se realiza através do processo cautelar, e constitui uma nova<br />

face <strong>da</strong> jurisdição, um tertium genus que contém a um só tempo as funções do processo de<br />

conhecimento e de execução, e tem por elemento específico a prevenção. Já a medi<strong>da</strong> cautelar é<br />

mais ampla, tem a finali<strong>da</strong>de de prevenção ou precaução de outro direito, a ser invocado posteriormente.<br />

Seja qual for a nomenclatura, é certo que a doutrina é pacífica ao pronunciar<br />

que, em sendo cautelar, via de regra, será acessória e se sujeitará a um processo principal. Porém,<br />

em se tratando de Juizados, a face de seus princípios, dentre eles o <strong>da</strong> informali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> celeri<strong>da</strong>de,<br />

“não há necessi<strong>da</strong>de de autuação própria do pedido cautelar, podendo ele ser formulado por simples<br />

petição” (BOLLMAN, 2004, p. 36).<br />

Portanto, não há que se confundir a tutela cautelar com a tutela antecipatória.<br />

A primeira é p<strong>revista</strong> na lei especial e pelos fun<strong>da</strong>mentos dela deve ser procedi<strong>da</strong>, e não pelos<br />

preceitos <strong>da</strong> norma geral do CPC, que certamente exigiria a formali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> autuação aparta<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

ação principal. Outrossim, não se deve generalizar o termo “medi<strong>da</strong>s cautelares” e inserir a tutela<br />

antecipa<strong>da</strong> como sua espécie. Esta também será possível nos Juizados, como a frente se verá, mas<br />

não pelos fun<strong>da</strong>mentos no art. 4º, e sim pelos defendidos motivos <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> aplicação<br />

subsidiária do CPC em sede do órgão especial.<br />

3 Informações no site do Tribunal Regional <strong>da</strong> 4ª Região dão conta que já foram distribuídos aproxima<strong>da</strong>mente 140 mil<br />

processos virtuais, o que significa uma economia de cerca de R$ 2.800.000,00 com papel e outros insumos de cartório.<br />

Disponível em: . Acessado em: set. 2006<br />

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Hylea Maria Ferreira<br />

7 A APLICABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO CPC NOS JUIZADOS ESPECIAIS<br />

CÍVEIS<br />

É legítima a aplicação do CPC às lacunas <strong>da</strong> Lei 9099/95, por meio de analogia,<br />

observando a não contrarie<strong>da</strong>de com a norma específica. Neste sentido, defende Misael Montenegro<br />

Filho (2005, p. 68):<br />

A Lei Maior garantiu o direito de ação, abrindo as portas do judiciário para<br />

que as pessoas que se sentem lesa<strong>da</strong>s apresentem ações formais perante o<br />

representante do poder em análise, impondo a formação de um processo.<br />

Porém, evidente que o direito de ação não se limita a assegurar o acesso ao<br />

representante do Poder Judiciário. No momento em que o processo é formado,<br />

o Estado se torna devedor de uma resposta jurisdicional, não necessariamente<br />

de mérito, segundo a teoria eclética desenvolvi<strong>da</strong> por Liebman, exigindo-se<br />

do autor que preencha as condições <strong>da</strong> ação (...). Percebendo que<br />

a lei especial prega a celeri<strong>da</strong>de do processo (...) não nos parece lógico negar<br />

a antecipação <strong>da</strong> tutela no âmbito dos órgãos especiais, já que o seu deferimento<br />

estará sempre apoiado no princípio em estudo.<br />

A presente situação eluci<strong>da</strong> a necessi<strong>da</strong>de de se estu<strong>da</strong>r e praticar os métodos<br />

hermenêuticos na interpretação <strong>da</strong> lei. A análise exclusiva <strong>da</strong> letra fria <strong>da</strong> lei, tão somente quanto à<br />

sua sintática, não expressa a mens legislatoris, tendo em vista que, em se aplicando somente este<br />

método restritivo de interpretação, não seria possível buscar solução para os casos que a lei deixou<br />

de prescrever.<br />

Hans Kelsen já ensinava, em sua obra Teoria Pura do Direito, que o direito é<br />

um sistema que é, em si mesmo, bastante, pois as normas que o compõem contém em si a possibili<strong>da</strong>de<br />

de solucionar todos os conflitos levados à apreciação dos magistrados ou órgãos jurisdicionais<br />

competentes.<br />

Leciona o jurisfilósofo (1998, p. 273):<br />

57<br />

(...) uma ordem jurídica pode sempre ser aplica<strong>da</strong> por um tribunal a um caso<br />

concreto, mesmo na hipótese dessa norma jurídica, no entender do Tribunal,<br />

não conter qualquer norma geral através <strong>da</strong> qual a conduta do deman<strong>da</strong>nte<br />

ou acusado seja regula<strong>da</strong> de modo positivo. (...) quando não houver a norma<br />

jurídica singular, que expresse qual postura deverá ser adota<strong>da</strong> no caso<br />

concreto, sempre será possível a aplicação <strong>da</strong> ordem jurídica, o que é, também,<br />

a aplicação do direito.<br />

Norberto Bobbio (1999, p. 114-116), por sua vez, aperfeiçoou esse raciocínio e<br />

discorreu sobre a Completude do Ordenamento Jurídico: não existe caso que não possa ser regulado<br />

por uma norma extraí<strong>da</strong> do sistema, excluindo-se a possibili<strong>da</strong>de de haver lacunas, ou seja,<br />

falta de normas que regulem os fatos.<br />

Desta sorte, é imprescindível que se admita a hipótese de aplicação secundária<br />

do CPC ante aos Juizados Especiais Cíveis – Estaduais ou Federais - pois o que se pretende é<br />

alcançar a justiça e não impor obstáculos à sua perpetuação, diante <strong>da</strong> omissão equivoca<strong>da</strong> do<br />

legislador.<br />

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A Tutela Antecipa<strong>da</strong> em Sede de Juizados Especiais Cíveis<br />

8 CABIMENTO DA TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS<br />

CÍVEIS ESTADUAIS<br />

O motivo que talvez possa justificar mais adequa<strong>da</strong>mente a antecipação dos<br />

efeitos <strong>da</strong> sentença nos Juizados é a dinâmica do princípio <strong>da</strong> celeri<strong>da</strong>de. Esse princípio relacionase<br />

intrinsecamente com a tutela antecipa<strong>da</strong> nos Juizados, como pressuposto fun<strong>da</strong>mental. Ora, se<br />

os Juizados são competentes para processar determina<strong>da</strong> ação, mister também ousar dizer que ao<br />

juízo cumpre tomar to<strong>da</strong>s as providências devi<strong>da</strong>s para o cumprimento <strong>da</strong> função jurisdicional.<br />

Outrossim, a regra do art. 273 do CPC pode ser muito bem aplica<strong>da</strong>, com<br />

resultados satisfatórios ao que se pretende, pois não apresenta conflitos com a lei especial. Senão,<br />

veja-se a decisão:<br />

58<br />

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA - ANTECIPAÇÃO DA TUTELA -<br />

POSSIBILIDADE NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS - DECISÃO QUE NÃO<br />

SE REVELA TERATOLÓGICA - DENEGAÇÃO DA ORDEM. A antecipação<br />

<strong>da</strong> tutela é cabível nos Juizados Especiais Cíveis, tratando-se de medi<strong>da</strong> que<br />

se coaduna perfeitamente com os modernos princípios de celeri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prestação<br />

jurisdicional com justa distribuição do ônus <strong>da</strong> demora processual<br />

entre as partes. São cabíveis a tutela acautelatória e a antecipatória em sede<br />

dos Juizados Especiais Cíveis, em caráter incidental. (II Encontro Nacional<br />

dos Coordenadores de Juizados Especiais, Cuiabá, dezembro de 1997) É<br />

compatível com o rito estabelecido pela Lei nº 9.099/95 a tutela antecipatória<br />

a que alude o art. 273 do Código de Processo Civil. (Enunciado nº 06, do 1o<br />

EMJERJ) Decisão que, em antecipação de tutela determinou o bloqueio <strong>da</strong><br />

transferência de veículo perante o Detran em razão de garantia <strong>da</strong> satisfação<br />

de obrigação pelo Impetrante, é medi<strong>da</strong> acautelatória faculta<strong>da</strong> ao Juízo, que<br />

não se revela teratológica. Denega<strong>da</strong> a ordem. (TJPR. 2006.0003477-7. Rel.<br />

Jose Sebastião Fagundes Cunha. 28/07/2006).<br />

Seja sob qual posicionamento for, importa é que é hialino o entendimento de que<br />

a tutela não só é cabível nos Juizados Especiais Cíveis, como também se demonstra necessária,<br />

com o escopo de atingir a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prestação jurisdicional, ain<strong>da</strong> que no contexto <strong>da</strong>s pequenas<br />

causas.<br />

9 CABIMENTO DA TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS<br />

CÍVEIS FEDERAIS<br />

Ao tratar <strong>da</strong> tutela antecipa<strong>da</strong> no âmbito dos Juizados Especiais Federais não<br />

se deve concluir que ela encontra-se p<strong>revista</strong> na lei, diante do exposto no art. 4º <strong>da</strong> Lei 10.259/01<br />

(ver item 6.1). Aquele dispositivo trata <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s cautelares e não <strong>da</strong> medi<strong>da</strong> satisfativa que se<br />

perfaz na tutela antecipa<strong>da</strong>. Esta é igualmente possível de ser concedi<strong>da</strong> na sede do órgão especial,<br />

porém, pelos seus próprios fun<strong>da</strong>mentos.<br />

Vilian Bollmann (2004, p. 38) defende que a tutela é possível nos Juizados pelos<br />

motivos <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> aplicação supletiva do Código de Processo Civil face à lei especial,<br />

assim como ante ao princípio <strong>da</strong> celeri<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> efetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> jurisdição, pois condiz com o “espírito”<br />

dos Juizados Especiais. Assim, inexiste incompatibili<strong>da</strong>de entre os Juizados Especiais Federais<br />

e a tutela antecipa<strong>da</strong>, pois “ambos constituem mecanismos de salvaguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> efetivi<strong>da</strong>de do<br />

direito material, seja pela adoção de procedimento mais célere, seja pela produção, em tempo<br />

presente dos efeitos de uma futura sentença”.<br />

Observe também a decisão proferi<strong>da</strong> pela Turma Recursal do Estado <strong>da</strong> Bahia:<br />

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Hylea Maria Ferreira<br />

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO CONTRA DECISAO. FORNECIMENTO<br />

GRATUITO DE MEDICAÇÕES A PACIENTE PORTADOR DE HTLV-I. LEGI-<br />

TIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECES-<br />

SÁRIO COM O ESTADO E MUNICÍPIO. INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO<br />

ESPECIAL FEDERAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. ANTECIPAÇÃO DE TU-<br />

TELA NOS JUIZADOS ESPECIAIS. POSSIBILIDADE. REQUISITOS<br />

AUTORIZADORES DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONCEDIDA PRE-<br />

SENTES. RECURSO DESPROVIDO. 1. Inexiste ilegitimi<strong>da</strong>de passiva <strong>da</strong> União<br />

para o fornecimento de medicamento, pois a Constituição Federal e a Lei nº<br />

8.080, de 19.09.90, que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde, estabelece a<br />

responsabili<strong>da</strong>de solidária <strong>da</strong> União, Estados, Distrito Federal e Municípios<br />

de prover as condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde.<br />

2. Considerando-se a obrigação concorrente <strong>da</strong> União, Estado e Município<br />

de prover a atenção à saúde, na<strong>da</strong> obsta que a decisão antecipatória <strong>da</strong><br />

tutela se volte apenas contra a União, se os outros entes políticos não<br />

dispõem <strong>da</strong> medicação pleitea<strong>da</strong>. 3. Não ocorrendo nenhuma <strong>da</strong>s situações<br />

de exclusão legalmente p<strong>revista</strong>s, não há que se falar em incompetência do<br />

Juizado Especial Federal. 4. Cabível a antecipação dos efeitos <strong>da</strong> tutela nos<br />

Juizados Especiais Federais como medi<strong>da</strong> de urgência p<strong>revista</strong> no art. 273,<br />

inciso I, do CPC, efetuando-se uma interpretação não literal do art. 4º <strong>da</strong> Lei<br />

nº 10.259/2001, conforme exige o art. 5º, <strong>da</strong> Lei de Introdução ao Código<br />

Civil, como também considerando a aplicação supletiva do Código de Processo<br />

Civil. 5. Comprova<strong>da</strong> a existência nos autos de prova inequívoca <strong>da</strong><br />

doença <strong>da</strong> Recorri<strong>da</strong> (Paraparesia Espástica Tropical, causa<strong>da</strong> pelo vírus<br />

HTLV-I), bem como o fun<strong>da</strong>do receio de <strong>da</strong>no irreparável à saúde, sem o<br />

fornecimento do medicamento necessário, deve ser manti<strong>da</strong> a decisão que<br />

antecipou os efeitos <strong>da</strong> tutela. 6. Recurso desprovido (Turma Recursal dos<br />

Juizados Especiais Federais <strong>da</strong> Seção Judiciária do Estado <strong>da</strong> Bahia. Recurso<br />

Inominado. 2004.33.00.762691-0. Rel. Rosana Noya Weibel Kaufmann. 16/<br />

12/2005) (grifo nosso).<br />

59<br />

O subsistema dos Juizados Federais possui, ain<strong>da</strong>, uma característica peculiar:<br />

a de tratar de causas de natureza alimentar ou salarial, quando <strong>da</strong>s ações de direito previdenciário.<br />

Portanto, a antecipação dos efeitos do mérito se faz mais que necessária, pois<br />

o direito em questão pode estar a retirar do requerente verbas de caráter alimentar, ou seja, essenciais<br />

à própria subsistência.<br />

Nesse sentido se manifestou também J. E. Carreira Alvim (2005):<br />

A antecipação <strong>da</strong> tutela, como se vê, é realmente necessária (...) nas causas<br />

previdenciárias, em que o INSS, muitas vezes, suspende, manu militari,<br />

benefícios previdenciários regularmente concedidos ao segurado, sob mera<br />

suspeita de fraude. Certa vez, reformei uma decisão de um juiz de primeiro<br />

grau, <strong>da</strong>ndo efeito ativo a um agravo de instrumento, num caso em que fora<br />

cancelado o benefício previdenciário, e esse juiz denegara a tutela antecipa<strong>da</strong><br />

porque não vira “fumus boni juris” e o “periculum in mora”, a <strong>da</strong>rem<br />

suporte ao provimento antecipatório, como se o beneficiário não tivesse o<br />

direito de alimentar-se até que se resolvesse o mérito <strong>da</strong> causa.<br />

Com relação à sua concessão ex oficio, adota-se o entendimento de que é<br />

possível e necessário. Negar que a antecipação <strong>da</strong> tutela possa ocorrer de ofício por ato do juiz é<br />

negar, do mesmo modo, as garantias que à lei outorga ao requerente, leigo, de propor ação sem a<br />

representação judicial. Ora, não se pode exigir que a parte autora possua conhecimento técnico<br />

para apontar ao remédio legal do seu litígio, tampouco prosperará a idéia de que o magistrado não<br />

possa vir a reconhecer este remédio pelo seu próprio impulso (SANTOS, 2005).<br />

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A Tutela Antecipa<strong>da</strong> em Sede de Juizados Especiais Cíveis<br />

10 A TUTELA ANTECIPADA NO ÂMBITO RECURSAL DOS JUIZADOS<br />

ESPECIAIS CÍVEIS<br />

60<br />

Conforme preceitua a regra do art. 43 <strong>da</strong> Lei 9099/95, os recursos serão recebidos<br />

apenas do efeito devolutivo, sendo outorgado ao juiz a possibili<strong>da</strong>de de utilizar-se do efeito<br />

suspensivo somente para evitar o <strong>da</strong>no irreparável para a parte. Assim sendo, a lei dos Juizados<br />

preceitua a regra de que sempre será possível a execução provisória <strong>da</strong> sentença, salvo aqueles<br />

casos em que, mesmo em caráter provisório, a execução possa vir a acarretar prejuízos para a<br />

parte executa<strong>da</strong>.<br />

A tutela antecipa<strong>da</strong> poderá ser concedi<strong>da</strong> no âmbito recursal, face aos juizados<br />

especiais cíveis, nos casos em que, sendo julga<strong>da</strong> improcedente a ação em primeiro grau, o requerente<br />

continue a apresentar os requisitos exigidos pelo art. 273 do CPC, não apreciados às vistas do<br />

julgador <strong>da</strong> primeira instância. Portanto, uma vez observados presentes os requisitos autorizadores<br />

<strong>da</strong> concessão <strong>da</strong> tutela antecipa<strong>da</strong>, poderá ser concedi<strong>da</strong> no âmbito recursal, respeitando os limites<br />

<strong>da</strong> execução provisória.<br />

William Santos Ferreira (2000, p. 244) aduz suas justificativas para a admissão<br />

<strong>da</strong> tutela antecipa<strong>da</strong> no âmbito recursal. Entre tais fun<strong>da</strong>mentos, ensina que, no âmbito recursal, o<br />

processo é dotado de mais elementos, portanto, é mais maduro, o que traz maior segurança na<br />

verificação dos requisitos do art. 273 do CPC.<br />

Em consonância, cumpre ressaltar que, no procedimento comum, uma vez recebido<br />

o recurso somente no efeito suspensivo, contra esta decisão caberá o agravo de instrumento,<br />

requerendo o efeito ativo <strong>da</strong> tutela antecipatória. Porém, tratando a lei dos juizados de um<br />

procedimento especial, um subsistema judiciário, não é possível a interposição de agravo de instrumento,<br />

posto que a Lei 9099/95, nos arts. 41 e 42, versou sobre os recursos passíveis na sede do<br />

órgão especial, excluindo-se a referi<strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de.<br />

Para dirimir tal questão, a Turma Recursal Única do Paraná já se consolidou a<br />

respeito:<br />

MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO INOMINADO PARA A TURMA<br />

RECURSAL. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. INVIABILIDADE DE SER EXER-<br />

CIDO PELO ÓRGÃO A QUO. É cabível, excepcionalmente, a impetração de<br />

Man<strong>da</strong>do de Segurança para a Turma Recursal quando o ato judicial atacado<br />

subtraiu <strong>da</strong> sua competência o exame do recurso inominado previsto na Lei<br />

9.099/95 contra a sentença. Não é lícito ao Juízo a quo exercer o juízo de<br />

admissibili<strong>da</strong>de recursal nos Juizados Especiais Cíveis. Esse controle de<br />

admissibili<strong>da</strong>de recursal somente poderá ser exercido pelo Juízo a quo nas<br />

hipóteses de recursos manifestamente incabíveis e em processos com certidão<br />

do trânsito em julgado <strong>da</strong> sentença que se pretende revisar. SEGURANÇA<br />

CONCEDIDA. (TJDF, Classe do Processo: DIVERSOS NO JUIZADO ESPECI-<br />

AL ; Registro do Acórdão Número: 105833. Órgão Julgador: Turma Recursal<br />

dos Juizados Especiais; Rel. Angelo Canducci Passareli. DJ: 15/06/1998) .<br />

Portanto, não sendo possível a interposição de agravo de instrumento, a sua<br />

ferramenta mais próxima será o man<strong>da</strong>do de segurança, pois se trata <strong>da</strong> garantia constitucional aos<br />

atos ilegais praticados pela autori<strong>da</strong>de pública. Outra questão pertinente é quanto à competência<br />

para julgar o man<strong>da</strong>do de segurança interpelado em face <strong>da</strong> decisão do magistrado atuante nos<br />

Juizados Especiais.<br />

Com o intuito de pacificar o entendimento, o STJ proferiu a seguinte decisão:<br />

JUIZADOS ESPECIAIS. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO DE<br />

AUTORIDADE DE PRIMEIRO GRAU. Competência do órgão que, em segundo,<br />

se constitui em instancia revisora de seus atos. decisão por unanimi<strong>da</strong>de,<br />

negar provimento ao recurso ordinário. (STJ, Órgão Julgador - TER-<br />

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Hylea Maria Ferreira<br />

CEIRA TURMA Relator Ministro EDUARDO RIBEIRO ROMS 6710/SC; (96/<br />

0005778-8) Data <strong>da</strong> Decisão 08/10/1996 Fonte DJ DATA: 25/11/1996 PG: 46201).<br />

Assim, não obstante as diversas polêmicas que permeiam a questão dos recursos<br />

contra decisões interlocutórias nos Juizados, o direito existente não poderá deixar de ser apreciado<br />

por falta <strong>da</strong> previsão legal, de forma que, ain<strong>da</strong> que não seja o instrumento totalmente adequado,<br />

o man<strong>da</strong>do de segurança é a ferramenta que tem a possibili<strong>da</strong>de de garantir o direito de<br />

recurso.<br />

11 CONCLUSÃO<br />

A tutela antecipa<strong>da</strong> foi inseri<strong>da</strong> no ordenamento brasileiro ante à necessi<strong>da</strong>de<br />

de um instrumento adequado para suprir os casos práticos que demonstravam a necessi<strong>da</strong>de de um<br />

reconhecimento mais amplo e concreto do que aqueles possíveis mediante às ações cautelares,<br />

utiliza<strong>da</strong>s erroneamente nestes casos, antes <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> a lume deste ba<strong>da</strong>lado instituto.<br />

Com o seu reconhecimento, o ordenamento jurídico brasileiro viu-se diante <strong>da</strong><br />

satisfação proporciona<strong>da</strong> por um remédio há muito necessitado, utilizado perante a comprovação<br />

hábil de seus requisitos autorizadores. Não obstante, com o surgimento <strong>da</strong> Lei 9.099/95, originou-se<br />

também um novo procedimento. A nova lei criara os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, um<br />

microsistema que se apresentou para aprimorar a garantia do direito de ação e <strong>da</strong> satisfação <strong>da</strong><br />

função jurisdicional.<br />

Os Juizados Especiais se mostraram como uma ferramenta jurisdicional acessível<br />

a to<strong>da</strong> a população, antes limita<strong>da</strong> pela simplici<strong>da</strong>de de suas deman<strong>da</strong>s ou pelas burocracias e<br />

formali<strong>da</strong>des jurisdicionais. Em que pese seu amplo acesso, a morosi<strong>da</strong>de também se revelou<br />

nestes órgãos.<br />

A Lei 9099/95 omitiu-se quanto à aplicação subsidiária do CPC. Uma explicação<br />

plausível para tanto é a de que existiria certa contrarie<strong>da</strong>de entre a previsão supletiva do CPC,<br />

face aos objetivos pretendidos com a criação do órgão especial. Prever a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> aplicação<br />

do CPC antes mesmo <strong>da</strong>s instalações dos Juizados, seria considerar o sistema especial falido,<br />

antes mesmo do início de suas ativi<strong>da</strong>des. Os Juizados nasceram como um órgão autônomo, porém,<br />

a estrutura jurisdicional apresenta<strong>da</strong> não fora suficiente para conter os anseios sociais.<br />

Defende-se a tese de que é possível a aplicação <strong>da</strong> tutela antecipa<strong>da</strong> em sede<br />

dos Juizados Especiais Cíveis – Estaduais ou Federais – porquanto o instituto apresentado pela<br />

norma geral não conflita com a lei especial. Pelo contrário, contribui com a eficácia <strong>da</strong> celeri<strong>da</strong>de<br />

motivadora <strong>da</strong>queles órgãos, aproximando a parte do seu direito material.<br />

Também, defende-se a tese <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong> antecipação dos<br />

provimentos do mérito ex officio pela pessoa do magistrado. Como dito, os Juizados são norteados<br />

pelo seu próprio sistema principiológico, dentro os quais o <strong>da</strong> informali<strong>da</strong>de, que, inclusive, veio a<br />

permitir que as partes possam pleitear ação judicial desacompanha<strong>da</strong>s de advogado. Assim, permitiu<br />

a lei, em outras palavras, que aquele que não detenha conhecimento técnico jurídico possa atuar<br />

em causa própria, destarte, sem que isso lhe cause conseqüências aquém dos seus direitos.<br />

61<br />

REFERÊNCIAS<br />

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11, abril. 2002. Disponível em:<br />

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63<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Princípio Constitucional <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de e Propagan<strong>da</strong> do Governo<br />

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE E PROPAGANDA DO<br />

GOVERNO<br />

Marcos Antônio Striquer Soares*<br />

RESUMO<br />

Analisa a dimensão constitucional do princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, como publici<strong>da</strong>de obrigatória e necessi<strong>da</strong>de<br />

de publicação ou comunicação, como publici<strong>da</strong>de obrigatória sem necessi<strong>da</strong>de de publicação<br />

ou comunicação, havendo aí a possibili<strong>da</strong>de de publici<strong>da</strong>de resumi<strong>da</strong>. Constata-se a possibili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> proibição de publici<strong>da</strong>de, bem como a publici<strong>da</strong>de desnecessária ou impossível. Por fim,<br />

analisa o art. 37, § 1º <strong>da</strong> Constituição onde é encontra<strong>da</strong> a publici<strong>da</strong>de autoriza<strong>da</strong> ou propagan<strong>da</strong><br />

dos órgãos públicos.<br />

Palavras-chave: Princípio <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de. Propagan<strong>da</strong>. Princípio Republicano. Princípio Democrático.<br />

THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF THE ADVERTISING AND<br />

PROPAGANDA OF THE GOVERNMENT<br />

ABSTRACT<br />

64<br />

It analyzes the constitutional dimension of the principle of the advertising, as obligator advertising<br />

and publication necessity or communication, as obligator advertising without publication necessity<br />

or communication, having there the possibility of summarized advertising. It is evidenced possibility<br />

of the prohibition of advertising, as well as the unnecessary or impossible advertising. Finally, it<br />

analyzes art. 37, § 1º of the Constitution where the advertising authorized or propagan<strong>da</strong> of the<br />

public agencies is found.<br />

Keywords: Principle of the Advertising. Propagan<strong>da</strong>. Republican Principle. Democratic Principle.<br />

1 PUBLICIDADE DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS: A PUBLICIDADE COMO ATO DE<br />

DIVULGAR, DE TORNAR PÚBLICO<br />

Por estranho que pareça às gerações mais novas, a publici<strong>da</strong>de referente a<br />

bens e interesses públicos, no Brasil, somente nos últimos anos, vem ganhando a importância<br />

exigi<strong>da</strong> pelo princípio republicano. Antes <strong>da</strong> Constituição de 1988, embora a publici<strong>da</strong>de fosse<br />

exigi<strong>da</strong>, ela não tinha a dimensão atual.<br />

Conferir a este princípio expressão constitucional, como ocorre no sistema<br />

jurídico brasileiro, tem explicação histórica. A marcha dos fatos <strong>da</strong> história<br />

nacional deixou marcas de uma administração priva<strong>da</strong> pratica<strong>da</strong> no Estado<br />

com os recursos do povo e, pior ain<strong>da</strong>, com a esperança do povo em que o<br />

* Mestre e doutor em Direito do Estado/Direito Constitucional pela PUC/SP; professor de Direito Constitucional na <strong>UniFil</strong>;<br />

professor de Direito Constitucional na graduação, na especialização e no mestrado em Direito Negocial <strong>da</strong> UEL.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Marcos Antônio Striquer Soares<br />

quanto praticado era feito para atendimento de suas necessi<strong>da</strong>des mais primárias.<br />

(...) Por isso, a falta de limites bem definidos ou bem respeitados entre<br />

o público e o privado, no desempenho estatal <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des administrativas,<br />

justifica a inclusão expressa <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de como princípio constitucional<br />

<strong>da</strong> Administração (ROCHA, 1994, p. 239).<br />

A partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 50, acentuando-se nos anos setenta, surge o empenho<br />

em alterar a tradição de ‘secreto’ predominante na ativi<strong>da</strong>de administrativa.<br />

A prevalência do ‘secreto’ na ativi<strong>da</strong>de administrativa mostra-se contrária<br />

ao caráter democrático do Estado. A Constituição de 1988 alinha-se a essa<br />

tendência de publici<strong>da</strong>de ampla a reger as ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Administração, invertendo<br />

a regra do segredo e do oculto que predominava. O princípio <strong>da</strong><br />

publici<strong>da</strong>de vigora para todos os setores e todos os âmbitos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

administrativa (MEDAUAR, 2004, p. 149-150).<br />

Na pesquisa bibliográfica, realiza<strong>da</strong> para este trabalho, foram encontra<strong>da</strong>s poucas<br />

linhas sobre o tema em textos mais antigos, vindo a figurar com mais freqüência em textos<br />

posteriores a 1988.<br />

A origem <strong>da</strong> palavra “publici<strong>da</strong>de” é encontra<strong>da</strong> no Dicionário de Comunicação<br />

de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa (1998, p. 481), com sentido jurídico, e designa, a<br />

princípio, o “ato de divulgar, de tornar público”, vindo a adquirir, no século 19, também um significado<br />

comercial: qualquer forma de divulgação de produtos ou serviços, através de responsabili<strong>da</strong>de<br />

de um anunciante identificado. Portanto, na origem, a expressão tem um sentido jurídico e significa<br />

ato de divulgar, de tornar público. Somente depois é que veio a adquirir o sentido comercial utilizado<br />

como sinônimo de propagan<strong>da</strong>.<br />

O significado original do termo, registrado com sentido jurídico, permanece até<br />

hoje no campo <strong>da</strong> Ciência do Direito. Quando se fala em “publici<strong>da</strong>de”, nesta seara do conhecimento,<br />

esta-se referindo ao “ato de divulgar, de tornar público”. Este fato é de fun<strong>da</strong>mental importância<br />

para este estudo, pois quando a lei impõe ao administrador público o dever de publicar algo,<br />

não lhe impõe o dever de fazer propagan<strong>da</strong>, mas, simplesmente, de divulgar algo.<br />

A publici<strong>da</strong>de, no âmbito dos órgãos públicos, é exigência expressa <strong>da</strong> Constituição<br />

brasileira, em diversos dispositivos. Contudo, conforme já se pode detectar pelos textos<br />

acima citados, o termo tem mais de um significado. No caput do art. 37, ela aparece como “princípio”.<br />

No art. 84, IV, onde se encontra a competência do presidente <strong>da</strong> República para “fazer<br />

publicar as leis”, a publici<strong>da</strong>de é exigi<strong>da</strong> como condição de aperfeiçoamento <strong>da</strong> lei produzi<strong>da</strong> pelo<br />

Estado. Já no art. 93, IX, o qual determina que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário<br />

serão públicos”, excetuado o interesse público, a publici<strong>da</strong>de não tem nenhuma <strong>da</strong>s características<br />

anteriores: não é um princípio e, embora seja necessária para não haver nuli<strong>da</strong>de do julgado,<br />

não é o tipo de publici<strong>da</strong>de – ao menos no sentido exposto no dispositivo – que exija publicação<br />

(uma <strong>da</strong>s formas de publici<strong>da</strong>de). O §1º, do art. 37, traz outro tipo de publici<strong>da</strong>de, muito diferente<br />

<strong>da</strong>s examina<strong>da</strong>s, trata-se de propagan<strong>da</strong> dos órgãos públicos. “Publici<strong>da</strong>de” na Constituição de<br />

1988 é, portanto, conceito polissêmico, ou seja, a expressão é utiliza<strong>da</strong>, conforme explicação de<br />

Canotilho e Vital Moreira, em sentidos diversos no texto constitucional, cabendo ao intérprete<br />

precisar a “intenção” (sentido) com que esses conceitos são utilizados nos vários preceitos <strong>da</strong><br />

Constituição. “Perante ca<strong>da</strong> utilização de um conceito polissêmico haverá que analisar cui<strong>da</strong>dosamente<br />

qual o sentido que lhe cabe nessa circunstância” (CANOTILHO e MOREIRA, 1984, p.<br />

48). Deve-se, portanto, examinar as possibili<strong>da</strong>des de significado do termo “publici<strong>da</strong>de”.<br />

65<br />

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O Princípio Constitucional <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de e Propagan<strong>da</strong> do Governo<br />

2 PUBLICIDADE OBRIGATÓRIA: A PUBLICIDADE COMO PRINCÍPIO<br />

CONSTITUCIONAL E COMO REGRA CONSTITUCIONAL<br />

66<br />

A Constituição brasileira, conforme visto, traz a exigência de publici<strong>da</strong>de em<br />

diversos dispositivos constitucionais. Em ca<strong>da</strong> um deles, contudo, podem-se encontrar características<br />

de princípios ou de regras. Esta bipartição <strong>da</strong>s características <strong>da</strong> norma jurídica vem sendo<br />

afirma<strong>da</strong> em Direito Constitucional: princípios e regras têm sido apresentados como espécies de<br />

norma, 1 é a posição aceita por grande parte <strong>da</strong> doutrina atualiza<strong>da</strong>, encontra<strong>da</strong> nos estudos mais<br />

recentes sobre o assunto. Paulo Bonavides (202, p. 228-266) traz o desenvolvimento <strong>da</strong>s idéias que<br />

culminaram nessa teoria (princípios e regras como espécies de normas). Conforme apresente<br />

características de “princípio” ou de “regra”, a exigência de publici<strong>da</strong>de terá efeito diferente no<br />

mundo jurídico.<br />

O “princípio constitucional” é a norma jurídica caracteriza<strong>da</strong> como base do<br />

sistema jurídico, dota<strong>da</strong> de um alto grau de abstração, contém pouca densi<strong>da</strong>de semântica e maior<br />

conteúdo axiológico, dependente <strong>da</strong> ação do intérprete para sua aplicação, e tem como função<br />

expressar valores do povo e do Estado 2 , <strong>da</strong>r uni<strong>da</strong>de e harmonia ao sistema jurídico e orientar a<br />

interpretação <strong>da</strong> Constituição. Para se entender a publici<strong>da</strong>de dos órgãos públicos, deve-se destacar<br />

que o princípio é norma jurídica e, como tal, produz efeitos jurídicos, obrigando a todos; tem alto<br />

grau de abstração e pouca densi<strong>da</strong>de semântica, o que indica vários significados e várias possibili<strong>da</strong>des<br />

de interpretação e aplicação, exigindo a intermediação do intérprete, o qual utiliza a lei, a<br />

sentença, o ato administrativo, o contrato e, até mesmo, o costume para <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong> ao princípio<br />

constitucional.<br />

As regras constitucionais são normas jurídicas de maior densi<strong>da</strong>de semântica e<br />

de aplicação direta, sem necessi<strong>da</strong>de de qualquer intermediação entre ela e o fato disciplinado, já<br />

que são dota<strong>da</strong>s de conteúdo axiológico, a ser determinado pelo intérprete.<br />

De um modo geral, tratar de publici<strong>da</strong>de, no âmbito de órgãos e funções públicas,<br />

é falar de publici<strong>da</strong>de obrigatória. Em princípio, tudo o que diga respeito aos órgãos públicos e<br />

suas respectivas funções deverá ter publici<strong>da</strong>de, transparência. Duas exceções podem ser apresenta<strong>da</strong>s:<br />

a publici<strong>da</strong>de proibi<strong>da</strong> por determinação <strong>da</strong> Constituição e a publici<strong>da</strong>de desnecessária,<br />

<strong>da</strong>s quais se tratará adiante. Interessa, neste instante, esclarecer as exigências de publici<strong>da</strong>de, ou<br />

melhor, os casos de “publici<strong>da</strong>de obrigatória”.<br />

As exigências de publici<strong>da</strong>de obrigatória devem ser dividi<strong>da</strong>s em duas possibili<strong>da</strong>des:<br />

publici<strong>da</strong>de “com divulgação obrigatória” e publici<strong>da</strong>de “sem divulgação obrigatória”. Ain<strong>da</strong><br />

que a doutrina trate o assunto de um modo genérico, percebe-se que, em alguns casos, o Poder<br />

Público não tem obrigação de proceder à publicação ou comunicação de <strong>da</strong>dos retidos em seus<br />

departamentos; outras vezes, pelo contrário, o aperfeiçoamento do <strong>da</strong>do retido nos órgãos públicos<br />

depende de veiculação dele aos interessados.<br />

1 Canotilho explica: “Salienta-se, na moderna constitucionalística, que à riqueza de formas <strong>da</strong> constituição corresponde a<br />

multifuncionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s normas constitucionais. Ao mesmo tempo, aponta-se para a necessi<strong>da</strong>de dogmática de uma clarificação<br />

tipológica <strong>da</strong> estrutura normativa. [...]. A teoria <strong>da</strong> metodologia jurídica tradicional distinguia entre normas e<br />

princípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm und Grundsatz).” O autor abandona esta distinção, preferindo outra: “(1)<br />

– as regras e princípios são duas espécies de normas; (2) – a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas<br />

espécies de normas” (Direito constitucional, 6ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, p.154-166).<br />

2 Explicando a titulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> soberania, Miguel Reale escreve: “A soberania é substancialmente <strong>da</strong> Nação e só juridicamente<br />

é do Estado, o que quer dizer que, socialmente (mais quanto à fonte do poder), a soberania é <strong>da</strong> Nação, mas juridicamente<br />

(mais quanto ao exercício do poder) a soberania é do Estado” (Teoria do Direito e do Estado, 5ª ed., São Paulo, Saraiva,<br />

2000, p. 157).<br />

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Marcos Antônio Striquer Soares<br />

2.1 A publici<strong>da</strong>de como princípio constitucional e a desnecessi<strong>da</strong>de de publicação ou<br />

comunicação<br />

A publici<strong>da</strong>de como princípio contém a exigência genérica de publici<strong>da</strong>de (<strong>da</strong>r<br />

a público, veicular, informar, prestar contas). Tudo o que se refere ao Estado exige publici<strong>da</strong>de e a<br />

ausência desta é exceção encontra<strong>da</strong> na própria Constituição. A publici<strong>da</strong>de, como princípio constitucional,<br />

serve de orientação para todo e qualquer comportamento do Estado. “Comportamento”<br />

aqui tem um conteúdo importante, pois significa tudo que o Estado, ou parte dele, faz que envolva<br />

ação ou reação. 3 Envolve o conjunto de atitudes e reações dos órgãos públicos, do Estado em face<br />

do meio social. 4 “Comportamento”, aqui, envolve inclusive a omissão, já que a omissão, no Direito,<br />

pode caracterizar-se como falta de ação ou uma reação indevi<strong>da</strong> diante de uma imposição de lei. A<br />

doutrina tem utilizado os termos “ativi<strong>da</strong>de e atos <strong>da</strong> administração ou atos estatais”, entre outros,<br />

para expressar esse conjunto de ações e reações dos órgãos públicos. Sem descartar estes, prefere-se<br />

aquele termo, por ser mais abrangente.<br />

Da Constituição brasileira podem ser extraídos os seguintes princípios referentes<br />

à publici<strong>da</strong>de: <strong>da</strong> “publici<strong>da</strong>de” (art. 37, caput – afeto à função administrativa); <strong>da</strong> “publici<strong>da</strong>de<br />

e motivação <strong>da</strong>s decisões judiciais e administrativas” (art. 93, IX e X – afetos ao Poder Judiciário<br />

e às funções jurisdicional e administrativa); do “direito à informação” (art. 5º, XXXIII, pelo qual<br />

todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de<br />

interesse coletivo ou geral, que serão presta<strong>da</strong>s no prazo <strong>da</strong> lei, sob pena de responsabili<strong>da</strong>de,<br />

ressalva<strong>da</strong>s aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e do Estado – é<br />

importante ressaltar que tal direito não se restringe à informação somente de interesse do indivíduo,<br />

mas também de interesse coletivo ou geral); e <strong>da</strong> “publici<strong>da</strong>de dos atos processuais” (art. 5º, LX,<br />

pelo qual a lei só poderá restringir a publici<strong>da</strong>de dos atos processuais quando a defesa <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de<br />

ou o interesse social o exigirem).<br />

A publici<strong>da</strong>de como princípio não impõe a divulgação pelo Diário Oficial ou<br />

outro meio qualquer de publici<strong>da</strong>de 5 , de tudo o que diga respeito ao Estado a todo e qualquer<br />

indivíduo. Exige, sim, a disponibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s informações, a possibili<strong>da</strong>de de acesso às informações<br />

a todo e qualquer ci<strong>da</strong>dão. Quando surge uma lei impondo a publici<strong>da</strong>de de certo comportamento<br />

do Estado, de contrato, por exemplo, nasce a regra jurídica.<br />

Tratando do processo administrativo, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari<br />

(2001, p. 84) asseveram: salvo as ressalvas estabeleci<strong>da</strong>s e as decorrentes de razões de ordem<br />

lógica, o processo administrativo deve ser público, acessível ao público – ao público em geral e não<br />

apenas às partes diretamente envolvi<strong>da</strong>s. Salvo determinação regular de tramitação sigilosa, na<strong>da</strong><br />

pode impedir a vista de autos ou mesmo a obtenção de certidões.<br />

67<br />

3 No Dicionário Houaiss encontra-se: “2. tudo que um organismo, ou parte dele, faz que envolva ação e resposta à estimulação<br />

[...]. 3. reação de um indivíduo, de um grupo ou de uma espécie ao complexo de fatores que compõe o seu meio ambiente<br />

[...].” (Antônio Houaiss; Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss <strong>da</strong> Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001,<br />

p. 777).<br />

4 No Dicionário Aurélio encontra-se: “conjunto de atitudes e reações do indivíduo em face do meio social” (Aurélio Buarque<br />

de Holan<strong>da</strong> Ferreira, Novo dicionário <strong>da</strong> língua portuguesa, p. 441).<br />

5 Geraldo Ataliba esclarece: “Publicar um ato é fazê-lo público. A publicação mais solene que há está em mandá-lo para o Diário<br />

Oficial. Entretanto, não seria possível, nem necessário, que todos os atos administrativos fossem publicados. Muitos<br />

despachos – por circunstâncias que se ligam aos processos em que se produzem, esfera de interessados, ou outras razões –<br />

embora sejam públicos, não vão para o DO. Entretanto, públicos que são, por definição, consideram-se publicados no<br />

instante que são praticados.” Na página seguinte, <strong>completa</strong> o autor: “como todo ato administrativo é público (do conhecimento<br />

do povo, por definição) não se requer saia no Diário Oficial. Publicado ele já foi desde que prolatado. [...] O que dá<br />

eficácia ao ato é sua prolação e inserção num processo administrativo. Não a publicação no DO. Isto só se requer para atos<br />

normativos ou atos externos” (Eficácia de ato administrativo – publicação, Revista de Direito Público, São Paulo, v. 25, n.<br />

99, jul./set. 1991, p. 19 e 20).<br />

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O Princípio Constitucional <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de e Propagan<strong>da</strong> do Governo<br />

Muitas <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des dos órgãos públicos, portanto, não são publica<strong>da</strong>s ou<br />

comunica<strong>da</strong>s à socie<strong>da</strong>de ou aos ci<strong>da</strong>dãos e isto não fere o princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de. Pelo contrário,<br />

o princípio dá à Administração Pública a orientação de transparência, o que vale dizer disponibili<strong>da</strong>de<br />

dos <strong>da</strong>dos ali retidos à socie<strong>da</strong>de. No entanto, não impõe a divulgação de tudo o que ocorre no<br />

interior dos órgãos públicos. Esses <strong>da</strong>dos, que não são de publicação obrigatória, mas ficam disponíveis<br />

à consulta <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, dependem <strong>da</strong> solicitação de interessado, cabendo ao Estado prestálos<br />

nesse instante. O agente público é obrigado a prestar a informação solicita<strong>da</strong> conforme os<br />

<strong>da</strong>dos constantes do órgão público, sem omissão alguma, sob pena de ser responsabilizado criminalmente<br />

6 , além <strong>da</strong> punição administrativa cabível.<br />

A possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> legislação infraconstitucional exigir expressamente a publicação<br />

ou comunicação de determinados atos (por exemplo, as regras sobre citação e intimação<br />

conti<strong>da</strong>s no Código de Processo Civil) nasce dessa exigência genérica de publici<strong>da</strong>de dos comportamentos<br />

dos órgãos públicos, ou, precisamente, do princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de. O legislador ordinário<br />

pode, portanto, criar as regras jurídicas referentes à publici<strong>da</strong>de com base no princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de<br />

contido na Constituição. Se o princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de traz a obrigação genérica de disponibilização<br />

de <strong>da</strong>dos, de transparência dos órgãos públicos, a criação de regra cobrando publicação ou comunicação<br />

será legítima.<br />

Enquanto princípio constitucional, a publici<strong>da</strong>de tem o conteúdo desta espécie<br />

de norma jurídica, anteriormente referi<strong>da</strong> como norma jurídica, caracteriza<strong>da</strong> como base do sistema<br />

jurídico, dotado de um alto grau de abstração, com pouca densi<strong>da</strong>de semântica e maior conteúdo<br />

axiológico, e dependente <strong>da</strong> ação do intérprete para sua aplicação, tendo como função expressar<br />

valores do povo e do Estado, <strong>da</strong>r uni<strong>da</strong>de e harmonia ao sistema jurídico e orientar a interpretação<br />

<strong>da</strong> Constituição.<br />

Além disso, o conceito de princípio <strong>da</strong>do por Celso Antônio Bandeira de Mello<br />

é bastante significativo para a compreensão <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de como tal: princípio<br />

68<br />

[...] é, por definição, man<strong>da</strong>mento nuclear de um sistema, ver<strong>da</strong>deiro alicerce<br />

dele, disposição fun<strong>da</strong>mental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes<br />

o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e<br />

inteligência exatamente por definir a lógica e a racionali<strong>da</strong>de do sistema<br />

normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (2001, p.<br />

771-772).<br />

Assim, a publici<strong>da</strong>de como princípio constitucional não impõe a publicação e a<br />

comunicação de todo e qualquer ato dos órgãos públicos, mas exige que estes o tenham como<br />

orientação de todo e qualquer comportamento, pois, como princípio, a exigência de publici<strong>da</strong>de é<br />

núcleo do sistema jurídico, a partir do qual surgirão todos os demais comportamentos dos órgãos<br />

públicos. Não é a exigência de publicação de um ato tal ou qual, mas a disponibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s informações,<br />

a possibili<strong>da</strong>de de acesso às informações às quais todo e qualquer ci<strong>da</strong>dão tem direito.<br />

São relevantes, ain<strong>da</strong>, as explicações de Lucia Valle Figueiredo (2004, p. 62):<br />

“decisões secretas, editais ocultos, mesmo a publici<strong>da</strong>de restrita ao mínimo exigido por lei (e conheci<strong>da</strong><br />

de pouquíssimos), não atendem, de forma alguma, aos princípios constitucionais e, sobretudo,<br />

à transparência <strong>da</strong> Administração”. Depois de tudo o que foi dito sobre princípios constitucionais,<br />

devemos concor<strong>da</strong>r com a autora, visto que estes argumentos são importantes para orientar<br />

o aplicador <strong>da</strong> lei. Significa que o intérprete deve privilegiar sempre a publici<strong>da</strong>de. Como princípio<br />

constitucional, a publici<strong>da</strong>de tem essa marca indelével.<br />

6 O artigo 299 do Código Penal dispõe: Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele<br />

inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa <strong>da</strong> que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou<br />

alterar a ver<strong>da</strong>de sobre fato juridicamente relevante: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público,<br />

e reclusão, de um a três anos, e multa, se o documento é particular. Parágrafo único. Se o agente é funcionário público, e<br />

comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assento de registro civil, aumenta-se a pena<br />

de sexta parte.<br />

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Marcos Antônio Striquer Soares<br />

2.2 A publici<strong>da</strong>de como regra constitucional e a necessi<strong>da</strong>de de publicação ou<br />

comunicação<br />

A publici<strong>da</strong>de terá caráter de “regra jurídica” sempre que houver exigência de<br />

publicação ou comunicação do comportamento do órgão público. Isto é, decorre de imposição<br />

encontra<strong>da</strong> em norma jurídica. Esta pode trazer a exigência de publicação ou comunicação 7 (formas<br />

de publici<strong>da</strong>de) ou pode falar, também, em publici<strong>da</strong>de, genericamente, mas impondo a divulgação<br />

dessa determina<strong>da</strong> manifestação do órgão público de modo específico, por exemplo, com<br />

divulgação no Diário Oficial.<br />

A Constituição, em algumas passagens, apresenta regras exigindo publici<strong>da</strong>de.<br />

Podemos classificar como regra constitucional o art. 5º, XXXIV, letra b (que autoriza o “direito de<br />

obtenção de certidões em repartições públicas”), o art. 84, IV (impõe ao presidente <strong>da</strong> República<br />

o dever de “fazer publicar as leis”) e o art. 8º, <strong>da</strong> lei complementar nº95/98 (que contém a exigência<br />

de publicação <strong>da</strong>s leis). Em outros casos, a exigência de publicação ou comunicação (a regra de<br />

publici<strong>da</strong>de) vem fixa<strong>da</strong> em legislação sem status constitucional (nos Códigos de Processo Civil e<br />

de Processo Penal, por exemplo). Nestes casos, a regra tem fun<strong>da</strong>mento no princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de,<br />

com origem constitucional.<br />

Note-se que a publici<strong>da</strong>de como regra jurídica, obrigatória em razão de imposição<br />

de norma jurídica, deve cumprir o mínimo do que for determinado na norma. Contudo, para<br />

respeitar ao princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, para atender à exigência de transparência implícita no princípio,<br />

a publici<strong>da</strong>de advin<strong>da</strong> de imposição de regra deve ser o mais amplo possível, podendo os<br />

termos estritos <strong>da</strong> determinação <strong>da</strong> lei ser insuficiente. O princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de exige que a<br />

interpretação amplie o máximo possível as possibili<strong>da</strong>des de divulgação dos comportamentos do<br />

Estado. Assim, a interpretação <strong>da</strong> regra jurídica que impõe determina<strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de deve ser amplia<strong>da</strong><br />

no sentido de <strong>da</strong>r maior efeito a essa regra.<br />

2.3 Publici<strong>da</strong>de resumi<strong>da</strong><br />

69<br />

A publici<strong>da</strong>de dos atos dos órgãos do Estado pode ser resumi<strong>da</strong>. Isto tem sido<br />

encontrado em lei (lei 8.666/93, com a re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><strong>da</strong> pela lei 8.883/94 – arts. 21 e 61, § 1º) e,<br />

inclusive, na Constituição de São Paulo 8 . Contudo, tal possibili<strong>da</strong>de não abrange todos os comportamentos<br />

do Estado: “as leis, códigos e outros atos normativos (regulamentos, instruções, regimentos)<br />

devem ser publicados integralmente”(GASPARINI, 2001, 119).<br />

O enorme número de editais de concursos e licitações a serem publicados<br />

determina que se divulgue, nos meios oficiais, apenas resumos <strong>da</strong>queles<br />

eventos, definindo-se, sempre, onde e quando se poderão obter todos os<br />

<strong>da</strong>dos que interessam ao público e que, portanto, têm que ser a ele acessíveis.<br />

Não se rompe, por aqui, o princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de por meio de publicações<br />

em meios oficiais. Apenas não se pode exigir que os custos com aquelas<br />

divulgações <strong>completa</strong>s dos atos onerem os cofres públicos (ROCHA,<br />

1994, p. 246).<br />

7 Celso Antônio Bandeira de Mello explica que publicação e comunicação são formas de publici<strong>da</strong>de (Ato administrativo e<br />

direito dos administrados, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, p. 47). No mesmo livro, p. 52, o autor apresenta três<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de comunicação: a citação, a notificação e a intimação.<br />

8 Constituição do Estado de São Paulo, art. 112: As leis e atos administrativos externos deverão ser publicados no órgão<br />

oficial do Estado, para que produzam os seus efeitos regulares. A publici<strong>da</strong>de dos atos não normativos poderá ser<br />

resumi<strong>da</strong>.<br />

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O Princípio Constitucional <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de e Propagan<strong>da</strong> do Governo<br />

A publici<strong>da</strong>de resumi<strong>da</strong> não fere o princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de (tampouco os princípios<br />

republicano e democrático). Ela serve para evitar gastos excessivos, desde que tenha como<br />

conteúdo básico – a publicação oficial – o mínimo de informações necessárias para que o povo<br />

saiba do que se trata, o local onde o documento pode ser encontrado na íntegra e, ain<strong>da</strong>, estar, a<br />

íntegra do documento, disponível ao ci<strong>da</strong>dão para consulta (respeitando-se a imposição do “direito<br />

à informação”, art. 5º, XXXIII <strong>da</strong> Constituição, pelo qual todos têm direito a receber dos órgãos<br />

públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão presta<strong>da</strong>s<br />

no prazo <strong>da</strong> lei, sob pena de responsabili<strong>da</strong>de, ressalva<strong>da</strong>s aquelas cujo sigilo seja imprescindível<br />

à segurança <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e do Estado).<br />

Examinando os contratos, Bernardo de Souza (1999, p. 66) explica:<br />

[...] só razões práticas e relevantes de economia fizeram com que não se<br />

exigisse a publicação dos contratos, em sua íntegra, na imprensa oficial. Esta<br />

homenagem à economia pública, entretanto, não pode redun<strong>da</strong>r em franquia<br />

ao segredo, em desatenção ao princípio constitucional <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, nem<br />

em violação do direito fun<strong>da</strong>mental de acesso à informação.<br />

70<br />

Leon Frej<strong>da</strong> Szklarowsky, num estudo sobre as diversas peculiari<strong>da</strong>des que<br />

envolvem a publici<strong>da</strong>de dos contratos administrativos, esclarece que a lei de licitação mandou<br />

publicar todos os contratos, exceto aqueles cuja licitação foi dispensa<strong>da</strong>: “quer a lei que se publiquem<br />

todos os contratos ou seus aditamentos, qualquer que seja o valor ain<strong>da</strong> que desonerados;<br />

entretanto avisa que há uma ressalva, que não pode ser preteri<strong>da</strong>” (1996, p. 97) – <strong>da</strong> licitação<br />

dispensa<strong>da</strong> 9 . Demócrito Ramos Reinaldo (1998) adverte, porém, que constitui prática inconstitucional<br />

a publicação, nos órgãos oficiais, de decisões administrativas de tal modo resumi<strong>da</strong>s que impeçam<br />

ao povo, em geral, e ao Ministério Público, em particular, cientificar-se de seu conteúdo. “Publicar<br />

uma “decisão” ou um ato administrativo sem um mínimo de justificação que possibilite a compreensão<br />

[...] equivale a não publicar”.<br />

Conforme já salientado por Lucia Valle Figueiredo (2004, p. 62): “mesmo a<br />

publici<strong>da</strong>de restrita ao mínimo exigido por lei”, não atende, de forma alguma, à transparência <strong>da</strong><br />

Administração. O respeito às exigências de publici<strong>da</strong>de prescritas em lei responde ao princípio<br />

republicano e ao princípio democrático e impõe uma interpretação que dê maior eficácia a estes<br />

princípios. Significa que o intérprete deve privilegiar sempre a publici<strong>da</strong>de, especialmente quando<br />

houver dúvi<strong>da</strong> na aplicação <strong>da</strong> “regra” jurídica.<br />

3 PUBLICIDADE PROIBIDA<br />

Conforme se viu, a publici<strong>da</strong>de nas diversas ativi<strong>da</strong>des do Estado brasileiro,<br />

desempenha<strong>da</strong> por seus mais diversos órgãos, é exigência expressa <strong>da</strong> Constituição. Este é o<br />

princípio, esta é a orientação fun<strong>da</strong>mental, é a orientação geral que atinge to<strong>da</strong>s as situações e<br />

to<strong>da</strong>s as pessoas. Contudo, “situações existem nas quais a prévia divulgação <strong>da</strong>s ações a serem<br />

empreendi<strong>da</strong>s pode torná-las inúteis” (FERRAZ e DALLARI, 2001, p. 83) ou a divulgação de<br />

informação pode comprometer direito do responsável por ela ou de terceiros. A Constituição abre,<br />

assim, exceções a essa orientação geral, permitindo o sigilo.<br />

9 Maria Garcia assevera: “A publici<strong>da</strong>de é elemento <strong>da</strong> essência do processo licitatório: se a lei busca preservar o atendimento<br />

ao princípio <strong>da</strong> isonomia no acesso dos interessados à realização <strong>da</strong>s obras, serviços e to<strong>da</strong>s as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des ad negotia dos<br />

particulares com a Administração Pública e, por outro lado, garantir a seleção ou escolha <strong>da</strong> proposta mais vanjajosa ao<br />

interesse público – a publici<strong>da</strong>de dos atos desse processo demonstra-se de fun<strong>da</strong>mental importância.” Depois de analisar o<br />

princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, a autora passa a coteja-lo com as diversas passagens <strong>da</strong> lei de licitação onde consta exigência de<br />

publici<strong>da</strong>de (Censura e comunicação social, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n.34, jan./mar.<br />

2001, p. 10 e seguintes). Hely Lopes Meirelles é rigoroso, quando trata <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> licitação: “Não há, nem pode<br />

haver, licitação sigilosa. Se seu objeto exigir sigilo em prol <strong>da</strong> segurança nacional, será contratado com dispensa <strong>da</strong> licitação.<br />

Nunca, porém, haverá licitação secreta, porque é <strong>da</strong> sua natureza a divulgação de todos os seus atos e a possibili<strong>da</strong>de de<br />

conhecimento de to<strong>da</strong>s as propostas abertas e de seu julgamento” (Licitação e contrato administrativo, 11ª ed., São Paulo,<br />

Malheiros, 1997, p. 27).<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Marcos Antônio Striquer Soares<br />

Registram-se os seguintes dispositivos do art. 5º <strong>da</strong> Constituição Federal que<br />

impõem restrições à publici<strong>da</strong>de – trata-se de regras constitucionais: o inciso XXXIII, na parte<br />

final, autoriza o sigilo, como exceção à exigência de publici<strong>da</strong>de, para os casos em que “seja<br />

imprescindível à segurança <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e do Estado”; o inciso LX trata <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de dos atos<br />

processuais, autoriza restrições à publici<strong>da</strong>de “quando a defesa <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de ou o interesse social<br />

o exigirem”; o inciso XIV, pelo qual é assegurado a todos o acesso à informação, resguar<strong>da</strong> o<br />

“sigilo <strong>da</strong> fonte, quando necessário ao exercício profissional”; o inciso XXXVIII, letra b, reconhece<br />

a instituição do júri e assegura “o sigilo <strong>da</strong>s votações”. O art. 93, IX, na parte final também<br />

autoriza o sigilo no Judiciário como exceção: “podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar<br />

a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.<br />

Ain<strong>da</strong> pode ser incluído neste rol o art. 53, § 6º, pelo qual os “deputados e senadores não serão<br />

obrigados a testemunhar sobre informações recebi<strong>da</strong>s ou presta<strong>da</strong>s em razão do exercício do<br />

man<strong>da</strong>to, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações”.<br />

Para Carlos Ari Sundfeld (2003, p. 179) o<br />

sigilo, a autorizar a denegação <strong>da</strong> informação ou <strong>da</strong> certidão, só se justifica<br />

em duas situações, de caráter excepcional: quando for imprescindível à segurança<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e do Estado (ex.: sigilo com relação aos planos militares,<br />

em tempo de guerra) ou quando a publici<strong>da</strong>de violar a intimi<strong>da</strong>de de<br />

algum particular (ex.: sigilo, em relação a terceiros, dos <strong>da</strong>dos clínicos de<br />

pacientes internados em hospital público). Afora esses casos, quem solicita<br />

informação ao Estado tem o direito de obtê-la, o que é mera decorrência <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />

De qualquer modo, o ci<strong>da</strong>dão tem direito de receber informações do Estado 10 ,<br />

ou por meio do Diário Oficial, ou nos balcões dos órgãos públicos, quando solicita<strong>da</strong>. A negação de<br />

publici<strong>da</strong>de somente pode ser aceita quando fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na própria Constituição.<br />

As leis infraconstitucionais podem apresentar proibição de publici<strong>da</strong>de 11 , desde<br />

que estejam adequa<strong>da</strong>s às exceções p<strong>revista</strong>s na Lei Maior. Tratando <strong>da</strong>s exceções feitas à<br />

publici<strong>da</strong>de, Geraldo Ataliba explica que o princípio republicano não permite, nem tolera a existência<br />

de ato administrativo secreto: “as ressalvas que o art. 5º <strong>da</strong> Constituição faz são as mais estritas<br />

e, como exceção, devem merecer interpretação restritiva” (1991, p. 18-19). Enfim, todo e qualquer<br />

dispositivo infraconstitucional que excepciona a exigência de publici<strong>da</strong>de somente pode ser aceito<br />

se e na medi<strong>da</strong> em que estiver adequado às exceções permiti<strong>da</strong>s pela própria Constituição 12 .<br />

71<br />

10 Ain<strong>da</strong> cabem outras passagens <strong>da</strong> literatura jurídica para corroborar essa lição: Embora voltado para o campo processual, o<br />

texto de Antonio Carlos de Araújo Cintra, A<strong>da</strong> Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco diz claramente: “Mas o<br />

sigilo só pode ser temporário, enquanto estritamente necessário, não podendo sacrificar o contraditório, ain<strong>da</strong> que diferido”<br />

(Teoria geral do processo, 20ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 70). Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “pode<br />

ocorrer que, em certas circunstâncias, o interesse público esteja em conflito com o direito à intimi<strong>da</strong>de, hipótese em que<br />

aquele deve prevalecer em detrimento deste, pela aplicação do princípio <strong>da</strong> supremacia do interesse público sobre o<br />

individual” (Direito administrativo, 17ª ed., São Paulo, Atlas, 2004, p. 75).<br />

11 Citamos a seguir, apenas como exemplo, alguns dispositivos infraconstitucionais que apresentam exceções à exigência geral<br />

de publici<strong>da</strong>de: Art. 198 do Código Tributário – sigilo de informações com vistas ao melhor desempenho <strong>da</strong> arreca<strong>da</strong>ção<br />

fazendária; Art. 155 do Código de Processo Civil – segredo de justiça; Art. 20 do Código de Processo Penal – sigilo no<br />

inquérito policial; Art. 792, § 1º do Código de Processo Penal – restrição a publici<strong>da</strong>de de audiência, sessão ou ato processual;<br />

Art. 8º <strong>da</strong> lei 9.296, de 24-07-96 – referente a interceptação telefônica.<br />

12 Tratando <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de do contrato administrativo, Hely Lopes Meirelles explica: “a publicação do contrato é formali<strong>da</strong>de<br />

exigi<strong>da</strong> pelas normas administrativas, como consectário <strong>da</strong> natureza pública dos atos <strong>da</strong> Administração, salvo os que<br />

forem previamente considerados sigilosos por razões de segurança nacional. Esclareça-se desde logo que os contratos<br />

resultantes de licitação não podem ser sigilosos, porquê, se o fossem, seriam firmados com dispensa de licitação. Mas a<br />

licitação e o contrato podem ter anexos classificados como sigilosos em qualquer grau, casos em que esses documentos só<br />

serão entregues aos licitantes e contratados mediante compromisso de manutenção de sigilo” (Licitação e contrato administrativo,<br />

p. 178).<br />

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O Princípio Constitucional <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de e Propagan<strong>da</strong> do Governo<br />

4 PUBLICIDADE DESNECESSÁRIA<br />

Conquanto a publici<strong>da</strong>de seja regra indispensável, a partir dos princípios republicano<br />

e do Estado democrático de direito, é possível aceitar alguns casos em que não seja necessária,<br />

por ser impossível ou absolutamente irrelevante. Para Celso Ribeiro Bastos (1992, p. 45), a<br />

publici<strong>da</strong>de, caracteriza<strong>da</strong> como divulgação <strong>da</strong>s decisões administrativas, não é exigi<strong>da</strong> quando as<br />

decisões administrativas têm interesse exclusivamente interno.<br />

Explica Celso Antônio Bandeira de Mello (1981, p. 43) 13 que, apesar de normalmente<br />

a formalização do ato administrativo ser escrita, “pode haver atos administrativos revelados<br />

de outra forma: verbal ou mímica. Ocorrerá quando a índole dos atos (ordens para assuntos<br />

rotineiros, gestos de um guar<strong>da</strong> de trânsito) reclame estas formas de expressão. Referem-se normalmente<br />

a atos que requerem execução imediata”<br />

Régis Fernandes de Oliveira (1980, p. 33-34) traz passagem esclarecedora:<br />

72<br />

Costuma a doutrina falar em atos não produtores de efeitos jurídicos (por<br />

exemplo, convites, comunicações etc.). Tais atos, efetivamente, não podem<br />

ser tidos como administrativos, uma vez que não produzem qualquer efeito<br />

jurídico. Mas, se a lei lhe atribui qualquer relevância (efeito) será tido como<br />

ato administrativo. Por exemplo, um parecer, ain<strong>da</strong> que facultativa sua adoção,<br />

quando previsto, é requisito de legitimi<strong>da</strong>de de procedimento, sempre que<br />

sua audiência seja obrigatória. [...] Não há, pois, necessi<strong>da</strong>de que o ato<br />

interfira em esfera jurídica de terceiro. Mesmo os atos internos são tidos<br />

como administrativos, uma vez que produzem efeitos jurídicos. Assim, as<br />

ordens <strong>da</strong><strong>da</strong>s de superior a inferior hierárquico constituem-se atos administrativos.<br />

[..] O ato pode, pois, ser introverso ou extroverso, alcançando o<br />

simples âmbito interno <strong>da</strong> administração ou repercutindo na esfera jurídica<br />

de terceiros. Necessário, no entanto, para ser qualificado como ato administrativo<br />

que o sistema normativo lhe atribua alguma relevância.<br />

Assim, não terão, portanto, publici<strong>da</strong>de, atos não-escritos (ordens verbais, sinais<br />

ou gestos) quando não realizados em público; trata-se de publici<strong>da</strong>de impossível. Alguns comunicados<br />

internos (com alcance no âmbito interno <strong>da</strong> administração), não-caracterizados como<br />

atos administrativos (e não-incorporados a um processo administrativo), serão, alguns deles, absolutamente<br />

irrelevantes fora dos órgãos públicos, mas terão importância tão somente para a tramitação<br />

interna <strong>da</strong>s decisões <strong>da</strong> administração.<br />

Também será desnecessária a publici<strong>da</strong>de quando o indivíduo, antes <strong>da</strong> publicação<br />

ou comunicação, praticar o ato exigido. É o que ocorre, por exemplo, quando a parte se<br />

manifesta no processo depois <strong>da</strong> junta<strong>da</strong> <strong>da</strong> sentença, mas antes ain<strong>da</strong> de sua publicação – desde<br />

que não haja direitos indisponíveis em jogo. Em circunstâncias como esta, o gasto público será<br />

desnecessário.<br />

13 Celso Antônio Bandeira de Mello também faz referência a atos administrativos produzidos por sinais (como, por exemplo,<br />

o sinal de trânsito) e cartazes convencionais (como por exemplo, os indicadores de mão e contramão), mas não têm<br />

interesse direto pelo nosso trabalho, no que diz respeito à publici<strong>da</strong>de desnecessária, por isto não há que citá-los no corpo<br />

do texto.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Marcos Antônio Striquer Soares<br />

5 PUBLICIDADE AUTORIZADA: PROPAGANDA DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS<br />

A última espécie de publici<strong>da</strong>de que ain<strong>da</strong> precisa ser exposta é a publici<strong>da</strong>de<br />

dos órgãos públicos, p<strong>revista</strong> no § 1º, do art. 37 <strong>da</strong> Constituição. Ali se encontra um tipo totalmente<br />

diferente de publici<strong>da</strong>de. Não se trata de princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, uma vez que este está inserido no<br />

caput do mesmo art. 37. É uma regra constitucional, mas não impõe ao Estado a publici<strong>da</strong>de de<br />

tais atos, como condição de seu aperfeiçoamento, ou seja, mesmo que a Administração não torne<br />

públicas aquelas obras que está realizando, referi<strong>da</strong>s no § 1º, do art. 37, elas existirão e tomarão o<br />

devido espaço no mundo real e também poderão gerar conseqüências no mundo jurídico, obviamente.<br />

É regra jurídica que não impõe uma publici<strong>da</strong>de, mas “autoriza” a publici<strong>da</strong>de dos atos,<br />

programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos.<br />

O dispositivo constitucional em questão não impõe a publicação ou comunicação<br />

(formas de publici<strong>da</strong>de) de todos os atos, programas, obras, serviços e campanhas, porque isto<br />

seria inviável economicamente. Por outro lado, esse dispositivo também não obriga a Administração<br />

a deixar as informações disponíveis para quem as procure nos balcões dos órgãos públicos,<br />

pois esta idéia provém do princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de que já consta do caput e não está sendo repeti<strong>da</strong><br />

no § 1º. Consta ali uma permissão para a Administração veicular informações referentes a seus<br />

atos, programas, obras, serviços e campanhas sempre que entender necessário levá-las a público,<br />

não para divulgar simplesmente, mas cumprindo objetivos específicos.<br />

Os objetivos dessa publici<strong>da</strong>de indicam a necessi<strong>da</strong>de de interação dos órgãos<br />

públicos com a socie<strong>da</strong>de, em vista de um ponto específico, uma obra, por exemplo. O objetivo<br />

pode ser educar, informar ou orientar a socie<strong>da</strong>de. A interação, nesse caso, não é mera transmissão<br />

de <strong>da</strong>dos, mas pressupõe a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> comunicação de um interesse do governo, isto é,<br />

para o bom an<strong>da</strong>mento dos serviços públicos surge a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de receber tais informações,<br />

caso contrário não será preciso levá-las a público. Essa necessi<strong>da</strong>de de interação indica<br />

que a publici<strong>da</strong>de em questão não é mera divulgação de <strong>da</strong>dos, mas tem por fim incutir na mente<br />

<strong>da</strong>s pessoas tais <strong>da</strong>dos seja para educar, seja para informar ou ain<strong>da</strong> para orientar a socie<strong>da</strong>de.<br />

Nessa condição, pode-se denominá-la de propagan<strong>da</strong> dos órgãos públicos, posto que ela tem sempre,<br />

no fundo, ao menos uma intenção persuasiva.<br />

O § 1º, do art. 37 <strong>da</strong> Constituição também contém uma regra constitucional.<br />

Ele possibilita a “publici<strong>da</strong>de dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos<br />

os quais deverão ter caráter educativo, informativo ou de orientação social”. O dispositivo em<br />

questão determina comportamento específico, não é dotado de alto grau de abstração e exige ação<br />

determina<strong>da</strong>, ou seja, a divulgação de atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos<br />

públicos deverá perseguir uma dentre três finali<strong>da</strong>des possíveis: educar, informar e/ou propor orientações<br />

sociais.<br />

Tanto o objeto <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de como os objetivos propostos não possuem alto<br />

grau de abstração, pelo contrário, são verbetes com conteúdo específico e com significado aferível<br />

por interpretação literal. É regra jurídica, portanto, com grau de abstração reduzido e aplicação<br />

direta, 14 tem “observância imediata, não necessitando para sua aplicação de qualquer regulamentação”<br />

(GASPARINI, 2001, p. 129) (tem conteúdo semântico suficiente para incidir diretamente<br />

sobre a reali<strong>da</strong>de social). Esta convicção também é encontra<strong>da</strong> na jurisprudência 15 .<br />

73<br />

14 A regra jurídica inscrita no § 1º, do art. 37 <strong>da</strong> Constituição é norma jurídica de eficácia plena, nos termos <strong>da</strong> classificação <strong>da</strong><br />

aplicabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s normas constitucionais proposta por José Afonso <strong>da</strong> Silva: “são de eficácia plena as normas constitucionais<br />

que: a) contenham ve<strong>da</strong>ções ou proibições; b) confiram isenções, imuni<strong>da</strong>des e prerrogativas; c) não designem órgãos ou<br />

autori<strong>da</strong>des especiais, a que incumbam especificamente sua execução; d) não indiquem processos especiais de sua execução;<br />

e) não exijam a elaboração de novas normas legislativas que lhes completem o alcance e o sentido, ou lhes fixem o conteúdo,<br />

porque já se apresentem suficientemente explícitas na definição dos interesses nelas regulados”. Em segui<strong>da</strong>, o autor<br />

<strong>completa</strong>: estabelecem conduta jurídica positiva ou negativa com comando certo e definido, incrustando-se, predominantemente,<br />

entre as regras organizativas e limitativas dos poderes estatais, e podem conceituar-se como sendo aquelas que,<br />

desde a entra<strong>da</strong> em vigor <strong>da</strong> constituição, produzem, ou têm possibili<strong>da</strong>de de produzir, todos os efeitos essenciais,<br />

relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis<br />

regular (Aplicabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s normas constitucionais, 6ª ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p. 101.<br />

15 “AÇÃO POPULAR – Propagan<strong>da</strong> e publici<strong>da</strong>de oficial de município – Artigo 37, § 1º, <strong>da</strong> Constituição <strong>da</strong> República –<br />

Aplicação – Norma de eficácia plena – Desnecessi<strong>da</strong>de de regulamentação – Recurso não provido” – 17ª Câm. Civ. do<br />

Tribunal de Justiça de São Palulo, JTJ/SP, LEX, v. 166, mar. 1995, p. 9.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Princípio Constitucional <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de e Propagan<strong>da</strong> do Governo<br />

O § 1º do art. 37 <strong>da</strong> Constituição também é exemplo de regra jurídica bastante<br />

carrega<strong>da</strong> de conteúdo axiológico. Ao indicar a publici<strong>da</strong>de como meio de divulgação de atos,<br />

programas, obras, serviços e campanhas, e ao estabelecer certos objetivos a serem atingidos (educação,<br />

informação ou orientação social), essa regra transmite valores protegidos pela socie<strong>da</strong>de,<br />

os quais devem ser protegidos pela via judicial, quando não observados. A publici<strong>da</strong>de, no caso,<br />

enquanto instrumento de condução dos interesses do Estado, é meio para busca de certos objetivos<br />

de governo – objetivos do povo, também, portanto - quais sejam: a educação, a informação ou a<br />

orientação social, todos surgidos <strong>da</strong>s decisões de governo que afetam diretamente o povo.<br />

Por outro lado, Eros Roberto Grau (1997, p. 92) explica que é impossível imaginar,<br />

de antemão, to<strong>da</strong>s as circunstâncias possíveis de aplicação de uma regra, por isso é que elas<br />

são enuncia<strong>da</strong>s em linguagem de textura aberta, configurando, mercê <strong>da</strong> abstração e generali<strong>da</strong>de<br />

que as caracterizam, um esquema formal potencialmente idôneo a compreender um número indefinido<br />

de casos, sob a única condição de que tais casos sejam redutíveis a tal esquema. Não se<br />

pode esquecer, então, que as normas são, por definição, genéricas e abstratas. Princípios e regras<br />

seguem essa linha, sendo possível afirmar, no entanto, que aqueles possuem grau de abstração<br />

muito elevado e pouca densi<strong>da</strong>de semântica, ao passo que estas têm menor grau de abstração e<br />

maior densi<strong>da</strong>de semântica. Especialmente quanto à regra do § 1º, do art. 37, em questão, a situação<br />

não é diferente, ela tem textura aberta para incidir sobre um número indefinido de pessoas e<br />

abranger inúmeras circunstâncias reais, ela incide imediatamente sobre o fato concreto. Somente<br />

se podem aceitar dois tipos de atos intermediários entre tal dispositivo e sua realização no mundo<br />

dos fatos: o ato administrativo e/ou uma decisão judicial (quando <strong>da</strong> correção de ato administrativo<br />

irregular).<br />

6 SÍNTESE DAS ESPÉCIES DE PUBLICIDADE<br />

74<br />

Depois de tudo o que foi estu<strong>da</strong>do sobre a publici<strong>da</strong>de, no âmbito dos órgãos<br />

públicos, é possível concluir dizendo que, por vezes, encontra-se na Constituição brasileira a exigência<br />

de publici<strong>da</strong>de como princípio, por vezes como regra. De qualquer modo, quando se fala em<br />

publici<strong>da</strong>de dos órgãos públicos deve-se enquadrá-la em uma <strong>da</strong>s seguintes possibili<strong>da</strong>des:<br />

1- Como “publici<strong>da</strong>de obrigatória” (esta espécie contém duas subespécies: a<br />

“publici<strong>da</strong>de obrigatória com necessi<strong>da</strong>de de publicação ou comunicação”, ou seja, com divulgação<br />

pelo órgão oficial de imprensa ou por comunicação direta ao interessado – é regra jurídica; e<br />

“publici<strong>da</strong>de obrigatória sem necessi<strong>da</strong>de de publicação ou comunicação”; isto ocorre sempre que<br />

a informação ficar à disposição do povo nos órgãos públicos – é princípio constitucional. Quando<br />

obrigados a divulgar seus atos, os órgãos públicos poderão fazer “publici<strong>da</strong>de resumi<strong>da</strong>”);<br />

2- Como “publici<strong>da</strong>de proibi<strong>da</strong>” – decorre de disposição expressa <strong>da</strong> Constituição,<br />

sendo regra constitucional;<br />

3- Como “publici<strong>da</strong>de desnecessária ou impossível”;<br />

4- Como “publici<strong>da</strong>de autoriza<strong>da</strong>”, qualifica<strong>da</strong> como propagan<strong>da</strong> dos órgãos<br />

públicos ou propagan<strong>da</strong> governamental – também é regra constitucional.<br />

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Marcos Antônio Striquer Soares<br />

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76<br />

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Mary Silvea Santana Vieira<br />

O PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO NO DIREITO TRIBUTÁRIO*<br />

Mary Silvea Santana Vieira**<br />

RESUMO<br />

O presente artigo tem como objeto o estudo de não confisco preceituado no artigo 150, IV <strong>da</strong><br />

Constituição Federal, bem como analisar a sua aplicabili<strong>da</strong>de, dentro <strong>da</strong> sistemática tributária brasileira.<br />

O Princípio do Não-Confisco é uma limitação ao poder de tributar imposta ao Legislador<br />

infra-constitucional, configurando uma proteção ao contribuinte. Sendo assim, este trabalho preocupa-se<br />

em delimitar a linha a partir <strong>da</strong> qual o tributo passa a ter efeito confiscatório.<br />

Palavras-chave: Princípio do Não-Confisco. Contribuinte. Tributos. Limitações ao Poder de<br />

Tributar.<br />

THE PRINCIPLE OF THE NO CONFISCATION IN THE TAX LAW<br />

ABSTRACT<br />

This article consists in the study of the principle of non-confiscation specified in Article 150, IV of<br />

the Federal Constitution, and examine its applicability, in the Brazilian tax system. The principle of<br />

non-confiscation is a limitation to the tax imposed by the Federal Constitution to the infra legislator,<br />

setting a protection to the taxpayer. So this article focuses on defining the line from which the<br />

tribute will take confiscatory effect.<br />

Keywords: Principle of the No Confiscation. Taxpayer. Taxes. Limiting the Tax Power.<br />

77<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

O objetivo do presente artigo é trazer para reflexão a importância do Direito<br />

Tributário ser estu<strong>da</strong>do de forma humanística. É incontestável que não só ele, pois o Direito existe<br />

para a proteção dos direitos inerentes à pessoa humana, mas especificamente o Direito Tributário<br />

deve ser o instrumento de efetivação dos direitos fun<strong>da</strong>mentais e não de sua violação, como<br />

freqüentemente ocorre.<br />

É através do tributo, muitas vezes tido por injusto, que o Estado tem condição e<br />

obrigação de redistribuir a riqueza, garantir o mínimo existencial e <strong>da</strong>r condição aos menos favorecidos,<br />

de uma vi<strong>da</strong> digna, enfim, para fazer valer plenamente os direitos fun<strong>da</strong>mentais de to<strong>da</strong> a<br />

socie<strong>da</strong>de.<br />

O estudo do tema, ora introduzido, necessita de maior aprofun<strong>da</strong>mento. A pouca<br />

doutrina específica sobre o princípio do não-confisco no direito pátrio revela essa dificul<strong>da</strong>de.<br />

Isto posto, é coloca<strong>da</strong> a seguinte in<strong>da</strong>gação: Será possível mensurar, exatamente ou aproxima<strong>da</strong>mente,<br />

até onde deve o ci<strong>da</strong>dão contribuir sem estar sendo lesado, ou confiscado pelo Estado?<br />

Onde passa a linha tênue entre o confisco e o não-confisco?<br />

Qual seria então a carga ideal, pois parece que o Estado é um devorador.<br />

Quanto mais aumenta a carga tributária, como se tem visto e sentido nos últimos anos, percebe-se<br />

que a contraprestação estatal está ca<strong>da</strong> vez mais caótica e sucatea<strong>da</strong> em se tratando de saúde,<br />

educação e segurança.<br />

*O presente artigo é resultado de monografia de conclusão do curso de graduação em Direito, escrita sob a orientação do prof.<br />

Ms. Antonio Carlos Lovato.<br />

**Mary Sílvea Santana Vieira, Bacharel em Direito, forma<strong>da</strong> pela UNIFIL e Administradora de Empresas forma<strong>da</strong> pela UEL.<br />

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O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário<br />

78<br />

De maneira geral, o conceito de confisco é identificável e tem sido tratado<br />

como sendo a absorção <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de particular pelo Estado, sem justa indenização. Quando isso<br />

se dá por meio de tributo, está-se diante do confisco em matéria tributária.<br />

A Constituição <strong>da</strong> República de 1988 (art. 150, inc. IV) preceituou limitações<br />

ao poder de tributar, trazendo como um desses limites a ve<strong>da</strong>ção aos entes federados de utilizar<br />

tributo com efeito de confisco. É certo também que o Estado, por força de seu poder de império,<br />

tem o direito de exigir dos ci<strong>da</strong>dãos contribuições compulsórias para a realização de suas finali<strong>da</strong>des<br />

de promoção do bem comum. Entretanto, em um Estado Democrático de Direito, esse poder é<br />

limitado pelos diversos princípios, direitos e garantias individuais inseridos na Constituição <strong>da</strong> República<br />

Federativa do Brasil.<br />

No intuito de esclarecer esses limites, a doutrina pátria tem-se limitado a afirmar<br />

que confiscatório é o tributo que excede a capaci<strong>da</strong>de contributiva, sem, no entanto, fornecer<br />

critérios objetivos para sua verificação. A afirmação de que é confiscatório o tributo que aniquila<br />

total ou parcialmente proprie<strong>da</strong>de particular também não resolve suficientemente o problema, já<br />

que é fácil identificar sua extinção <strong>completa</strong>, porque representa 100% do bem. Mas, e quanto à<br />

mutilação parcial? Qual seria o limite?<br />

Como decorrências dessas in<strong>da</strong>gações, surgem outras não menos interessantes:<br />

é o tributo, isola<strong>da</strong>mente considerado, que é confiscatório ou é a carga tributária total suporta<strong>da</strong><br />

pelo contribuinte que atinge as raias do confisco? A ve<strong>da</strong>ção constitucional é absoluta ou comporta<br />

exceções? A quem é dirigi<strong>da</strong>? Atinge somente os impostos ou aplica-se também às demais espécies<br />

tributárias?<br />

Para discorrer sobre o tema, serão analisados diversos aspectos jurídicos, até<br />

se chegar a conclusão de que só é possível obter o conceito de “não-confisco” mediante o estudo<br />

de ca<strong>da</strong> caso concreto que se vislumbre pela frente. É somente pela apreciação de ca<strong>da</strong> situação<br />

concreta de instituição de tributo novo ou de aumento de tributo já existente que se poderá verificar<br />

se realmente houve respeito ao princípio do “não-confisco”.<br />

O tributo com efeito de confisco, destruindo a proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, aniquila a<br />

própria base de sustentação do sistema, pois a existência de proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> é a viga mestra<br />

para a própria existência do sistema tributário, pois sem a proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> não há o que se<br />

tributar.<br />

2 O TRIBUTO<br />

2.1 Conceito e natureza jurídica<br />

O conceito de tributo está explicitado no artigo 3º do Código Tributário Nacional,<br />

(CTN), que prescreve de modo adequado as características essenciais e necessárias para a<br />

identificação dessa categoria jurídica, diferenciando-a de outras figuras semelhantes.<br />

Prescreve o artigo 3º: “Tributo é to<strong>da</strong> prestação pecuniária compulsória, em<br />

moe<strong>da</strong> ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituí<strong>da</strong> em lei<br />

e cobra<strong>da</strong> mediante ativi<strong>da</strong>de administrativa plenamente vincula<strong>da</strong>”.<br />

Segundo o doutrinador Ruy Barbosa Nogueira (1999, p. 155),<br />

os tributos são receitas deriva<strong>da</strong>s que o Estado recolhe do patrimônio dos<br />

indivíduos, baseado no seu poder fiscal (poder de tributar, às vezes consorciado<br />

com seu poder de regular), mas disciplinado por normas de direito<br />

público que constituem o Direito Tributário.<br />

Na concepção de Geraldo Ataliba (2004, p. 53), tributo é:<br />

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Mary Silvea Santana Vieira<br />

a expressão consagra<strong>da</strong> para designar a obrigação ex lege, posta a cargo<br />

de certa pessoas, de levar dinheiros aos cofres públicos. É o nome que<br />

indica a relação jurídica que se constitui no núcleo do direito tributário, já<br />

que decorre <strong>da</strong>quele man<strong>da</strong>mento legal capital, que impõe o comportamento<br />

mencionado.<br />

Dessa forma pode-se concluir que o tributo consiste de uma obrigação compulsória,<br />

isto é, obrigatória, instituí<strong>da</strong> por lei, representa<strong>da</strong> por um valor em dinheiro e que não constitua<br />

penali<strong>da</strong>de por algum ato ilícito.<br />

A natureza jurídica do tributo é defini<strong>da</strong> pelo fato gerador, conforme explícito<br />

no artigo 4º do CTN.<br />

Alfredo Augusto Becker (1972, p. 399), discorre sobre o tema, nos seguintes<br />

termos:<br />

... o único critério científico jurídico que permite aferir a natureza jurídica do<br />

tributo é o critério <strong>da</strong> base de cálculo (núcleo <strong>da</strong> hipótese de incidência). O<br />

núcleo (base de cálculo) confere gênero jurídico do tributo e os elementos<br />

adjetivos atribuem a espécie jurídica àquele gênero.<br />

O referido autor ain<strong>da</strong> observa o seguinte na mesma obra (1972, p. 260):<br />

A natureza jurídica do tributo (e a do dever jurídico tributário) não depende <strong>da</strong><br />

destinação financeira ou extrafiscal que o sujeito ativo <strong>da</strong> relação jurídica vier<br />

a <strong>da</strong>r ao bem que confere a consistência material ao tributo que foi ou deve ser<br />

prestado. Nenhuma influência exerce sobre a natureza jurídica do tributo, a<br />

circunstância de o tributo ter uma destinação determina<strong>da</strong> ou indetermina<strong>da</strong>....<br />

79<br />

Dessa forma ao se observar o fato gerador de uma obrigação e comparar com<br />

as hipóteses autoriza<strong>da</strong>s pela Constituição Federal para a instituição de tributos, é que definirá se<br />

aquela obrigação tem caráter tributário ou não.<br />

2.2 Histórico<br />

2.2.1 Histórico dos Tributos no Direito Comparado<br />

Os tributos “provinham do chamado Patrimônio Real, eram obtidos, sob a forma<br />

de rendimentos, extraídos do patrimônio dominial, cui<strong>da</strong>dos pelos chefes dos clãs, reis ou imperadores,<br />

sob as formas várias, dos dízimos, <strong>da</strong>s vintenas, dos quintos, cisas, etc” (FERREIRA,<br />

1986, p. 14).<br />

Segundo o autor Benedito Ferreira (1986, p. 14):<br />

A origem do imposto fiscal remonta a tempos que se perderam no pretérito<br />

<strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Historiadores ilustres, em to<strong>da</strong>s as épocas, invariavelmente,<br />

procuraram registrar, ao descreverem usos e costumes <strong>da</strong>s civilizações, os<br />

seus sistemas tributários. Heródoto,...escrevendo e informando-nos, a cobrança<br />

de impostos em razão do chamado vínculo de Jurisdição Fiscal, aos<br />

habitantes dos antigos impérios que povoaram as regiões dos rios Tigre,<br />

Orange e Eufrates, há mais de quatro mil anos, anteriores a Era cristã. Segundo<br />

Heródoto, tributava-se 10% sobre a produção, que se constituíam na<br />

“décima” e a quota de contribuição de ca<strong>da</strong> um às despesas do Estado,<br />

devi<strong>da</strong> por to<strong>da</strong>s as cama<strong>da</strong>s sociais.<br />

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O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário<br />

Na Índia tributava-se a exportação de especiarias, produtos medicinais e essências,<br />

e também a prosperi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Mesopotâmia teve seu epicentro não só no comércio, mas<br />

principalmente aos tributos impostos aos povos conquistados,<br />

Salomão explorou de forma sábia a estratégica posição geográfica de sua pátria,<br />

situa<strong>da</strong> entre o Egito e a Mesopotâmia e vários países asiáticos, “que lhe pagavam direitos e<br />

taxas sobre as mercadorias que por ali transitavam” (FERREIRA, 1986, p. 15).<br />

Cita ain<strong>da</strong> o referido autor onde incidiam os tributos na Grécia Antiga:<br />

tributavam as indústrias e profissões, como também, os direitos aduaneiros;<br />

aplicavam multas e confiscos, tributos sobre bens e pessoas, ren<strong>da</strong>s ou<br />

lucros, que atingiam, mais e especialmente, os mil e duzentos ci<strong>da</strong>dãos mais<br />

ricos. Cresciam as alíquotas na medi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des, especialmente nas<br />

guerras.<br />

Com a organização do ordenamento jurídico do Império Romano, o Direito<br />

Tributário desenvolveu-se sobremaneira, pois já eram individualiza<strong>da</strong>s algumas espécies tributárias,<br />

como “impostos”.<br />

O já citado autor ain<strong>da</strong> traz a seguinte informação:<br />

80<br />

O desmoronamento do fabuloso Império romano, segundo as anotações de<br />

Sêneca, Plínio e mesmo Montesquieu, teve seu fulcro na desagregação dos<br />

costumes, especialmente no terrível desajuste familiar do Patriciado, nas<br />

orgias promovi<strong>da</strong>s com os recursos públicos, e que foram gerando a desorganização<br />

do Estado, e, consequentemente, a desobediência às leis, e, finalmente,<br />

a imposição de tributos, com alíquotas ca<strong>da</strong> vez mais insuportáveis,<br />

aos contribuintes, aos que trabalhavam e produziam... arbitrariamente, decretavam<br />

impostos sobre os pobres, sobre as mulheres separa<strong>da</strong>s ou divorcia<strong>da</strong>s,<br />

sobre os celibatários, sobre os escravos, até as portas estavam sujeitas<br />

à insânia tributária. A seguir, passaram a cobrar imposto sobre o casamento<br />

e, finalmente, Vespasiano, como Imperador, não tendo, talvez, mais o<br />

que tributar, instituiu o imposto sobre a urina (FERREIRA, 1986 p. 16)<br />

Segundo o jurista Aliomar Baleeiro (1969, p. 26),<br />

as Finanças Públicas tiveram desde a Antigui<strong>da</strong>de, precursores que<br />

incidentalmente comentaram aspectos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de financeira ou discutiram<br />

medi<strong>da</strong>s de política fiscal, muito embora só houvesse logrado a consistência<br />

e a posição de disciplina autônoma no século XIX.<br />

Nas palavras de Aliomar Baleeiro (1969, p. 27), pode-se constatar que:<br />

São Tomás de Aquino (1226-1274) admitia a tributação em caso de escassez<br />

<strong>da</strong>s ren<strong>da</strong>s patrimoniais dos príncipes e aconselhava a constituição do tesouro<br />

como reserva para os maus dias. Mateo Palmieri (1405-1475) defendeu<br />

a proporcionali<strong>da</strong>de dos tributos contra os critérios progressivos, que a<br />

república florentina então ensaiava. Na Renascença e início <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de moderna,<br />

surgem os pensadores políticos de maior envergadura acentuando a<br />

correlação entre a economia priva<strong>da</strong> e as finanças públicas.<br />

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Mary Silvea Santana Vieira<br />

Saliente-se que Maquiavel, o autor do “Príncipe”, em seus escritos repelia a<br />

ilimitação dos tributos impostos pelo Estado. Também é importante registrar que o Direito Constitucional<br />

moderno teve sua raiz principal na Carta Magna de 1215, na Inglaterra Medieval e revela<br />

a idéia de impor limites ao poder de tributar (COELHO, 1999, p. 54).<br />

2.2.2 Histórico dos Tributos no Direito Brasileiro<br />

Segundo Benedito Ferreira (1986, p. 36), um marco importante do histórico dos<br />

tributos no Brasil foi a vin<strong>da</strong> de D. João VI para o Brasil, pois em linhas gerais:<br />

Abriram-se os portos ao comércio com to<strong>da</strong>s as nações amigas, promoveuse<br />

a construção de novos portos, melhoraram-se os existentes, fomentou-se<br />

e protegeu-se a indústria e o comércio interno e externo. Em matéria de<br />

tributos e sistema fazendário fiscal, embora tenha sido benéfica para o Brasil<br />

como um todo, a vin<strong>da</strong> de D. João VI não representou nenhum alívio para os<br />

contribuintes, sendo mantidos, na sua inteireza, os impostos existentes, e<br />

sobrecarrega<strong>da</strong> mais ain<strong>da</strong> a carga fiscal. (...) Como a receita não conseguia<br />

ultrapassar a casa dos 4 mil contos de réis, através do recém criado Banco do<br />

Brasil, tivemos o início do endivi<strong>da</strong>mento interno e externo em que nos<br />

encontramos até os dias atuais. E, também, a origem <strong>da</strong> nossa inconseqüente<br />

“fúria tributária”, que premia os malandros usuários do “jeitinho” e liqui<strong>da</strong><br />

com os contribuintes corretos.<br />

Arnaldo Godoy (2003, p.147) disserta, em sua obra Direito e Literatura, o<br />

posicionamento de Monteiro Lobato a respeito do Estado, tributo e confisco.<br />

Lobato relutava em entender a miséria que se espargia entre nós, país tão<br />

rico de recursos. Defendeu ardentemente o domínio de nossos recursos<br />

naturais, ponderou acerca <strong>da</strong> função do Estado, defendendo um Estado<br />

mínimo, destinado a garantir as liber<strong>da</strong>des individuais.<br />

81<br />

Na mesma obra, Arnaldo Godoy cita o livro de Monteiro Lobato, Idéias de<br />

Jeca Tatu, que faz uma menção crítica e cínica ao fisco, conforme se pode observar; “ao descrever<br />

a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> Família Real portuguesa ao Brasil, Lobato chama a atenção para o desembarque<br />

de um personagem: O Fisco - um canzarrão tremendo de dentuça arreganha<strong>da</strong> – é conduzido no<br />

açamo por vários meirinhos”.<br />

Na seqüência cita também a obra Na Antevéspera, em que Monteiro Lobato<br />

faz críticas ao fisco, narrando o seguinte fato histórico:<br />

Portugal só organizou uma coisa no Brasil - Colônia: o Fisco, isto é, o sistema<br />

de cor<strong>da</strong>s que amarram para que a tromba percevejante siga sem embaraços.<br />

Quem lê as cartas régias e mais literatura metropolitana enche-se de assombro<br />

diante do maquiavélico engenho luso na criação de cor<strong>da</strong>s. Cor<strong>da</strong>s trança<strong>da</strong>s<br />

de dois, de três, de quatro ramais; cor<strong>da</strong>s de cânhamo, de crina, de<br />

tucum, de tripa; cor<strong>da</strong>s estrangulatórias de espremer o sangue amarelo e<br />

cor<strong>da</strong>s de enforcar (GODOY, 2003, p. 147).<br />

Insurge-se Arnaldo Godoy (2003, p. 148-149), ao comentar sobre a visão de<br />

Monteiro Lobato em relação aos tributos. Nesse raciocínio escreve o autor:<br />

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O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário<br />

Lobato era irredutivelmente agressivo para com o Fisco, que qualificava com<br />

os mais negativos impropérios. Escreveu: “Que é o fisco senão um ‘sistema<br />

de embaraços’ opostos à livre ativi<strong>da</strong>de do homem, que deles só se livra por<br />

meio de entrega ao Estado de uma certa quanti<strong>da</strong>de de dinheiro. (...) A tributação<br />

para Lobato, vislumbra iniqüi<strong>da</strong>des que mu<strong>da</strong>m o rumo <strong>da</strong> história. A<br />

Inconfidência Mineira é um exemplo, e Lobato sugere outro, tomado <strong>da</strong><br />

história universal, em sua obra Mundo <strong>da</strong> Lua: “A história <strong>da</strong> civilização<br />

cabe dentro <strong>da</strong> história do Fisco”. Grandes convulsões sociais, como a Revolução<br />

Francesa, tiveram como ver<strong>da</strong>deira causa as iniqüi<strong>da</strong>des do Fisco.<br />

Conclui Arnaldo Godoy que o tributo na concepção de Monteiro Lobato tem<br />

que estar diretamente ligado ao significado de justo e razoável: “A concepção tributária de Lobato<br />

é muito próxima de suas concepções de justiça. Como homem de negócios, de ação pôde Lobato<br />

viver, de experiência própria, os nefastos efeitos de um modelo tributário agressivo e ineficiente”.<br />

3 TRIBUTO NÃO CONFISCATÓRIO<br />

3.1 Conceito de Confisco<br />

82<br />

O termo “confisco” possui o seguinte significado definido por Plácido e Silva<br />

(2004, p. 505): “Confisco, ou confiscação, é vocábulo que se deriva do latim confiscatio, de<br />

confiscare, tendo o sentido de ato pelo qual se apreendem e se adjudicam ao fisco bens pertencentes<br />

a outrem, por ato administrativo ou por sentença judiciária, fun<strong>da</strong>dos em lei”.<br />

Na concepção de Eduardo Marcial Ferreira Jardim (2000, p. 45), o vocábulo<br />

significa: “O ato pelo qual o Fisco adjudica bens do contribuinte.”<br />

No entendimento de Paulo César Bária de Castilho (2002, p. 39):<br />

O comando normativo constitucional proíbe, na ver<strong>da</strong>de, o efeito de confisco<br />

que o tributo, por ser exagerado, desregrado, possa gerar. E isso é assim<br />

porque, se tributo é instituto que não constitui sanção de ato ilícito (art. 3. º<br />

do CTN), a Constituição só poderia referir-se a efeito de confisco e não a<br />

confisco propriamente dito.<br />

É de se salientar que o art. 150, inc. IV, <strong>da</strong> Constituição <strong>da</strong> República de 1988<br />

não proíbe o confisco em si, mas sim “efeito de confisco”. Nos países capitalistas, é proibido o<br />

confisco, como regra geral, sendo somente permitido como forma de sanção, conforme prevê o<br />

art. 5º, inc. XLVI, letra b, <strong>da</strong> Constituição Federal que traz previsão à per<strong>da</strong> de bens como forma de<br />

pena, de acordo com a lei.<br />

3.2 Aspectos Normativos<br />

3.2.1 Aspectos Normativos nas Constituições Anteriores<br />

O desenvolvimento desigual em certas regiões do Brasil 1 , na Constituição de<br />

1946, levou o constituinte a procurar amenizar esta desigual<strong>da</strong>de através do aparelho tributário,<br />

1 As regiões brasileiras que estavam se desenvolvendo rapi<strong>da</strong>mente eram as regiões litorâneas e a região sul do país.<br />

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Historicamente, a ve<strong>da</strong>ção constitucional aos tributos confiscatórios ou prejudiciais<br />

à ativi<strong>da</strong>de lícita teve origem no direito brasileiro através do art. 202 <strong>da</strong> Constituição Federal<br />

de 1946, de inspiração liberal, que dispunha do seguinte texto: “os tributos têm caráter pessoal<br />

sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capaci<strong>da</strong>de econômica do contribuinte”.<br />

A Constituição de 24 de janeiro de 1967 dedica o Cap. V do Tít. I ao sistema tributário nacional<br />

em seus artigos 18 a 28.<br />

Pode-se concluir que somente a Carta Constitucional <strong>da</strong> República de 1988<br />

traz, expressamente, a proibição <strong>da</strong> utilização de tributo com efeito de confisco, em seu art. 150,<br />

inc. IV. Até então, a ve<strong>da</strong>ção constitucional era apenas implícita.<br />

3.2.2 Aspectos Normativos na Constituição Federal de 1988<br />

Segundo o doutrinador Mariano Junior (1994, p.75): “A Constituição Federal<br />

traz os princípios de imperativi<strong>da</strong>de maior para que o poder de tributar, pela competência partilha<strong>da</strong><br />

de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des de direito público dele titulares, possa ser exercido”.<br />

Nas palavras de Mariano Junior (1994, p. 75):<br />

Além <strong>da</strong> observância e cumprimento <strong>da</strong>s determinações superiores <strong>da</strong> Constituição<br />

Federal e precisamente para que não haja conflitos de competência<br />

entre as enti<strong>da</strong>des públicas detentoras do poder tributante, cumpram-se as<br />

limitações constitucionais ao poder de tributar e sejam segui<strong>da</strong>s normas<br />

gerais em matéria de legislação tributária, terão que ser cumpridos os preceitos<br />

<strong>da</strong> lei complementar tributária (Artigo 146, CF/88) que, atualmente, é o<br />

Código Tributário Nacional Lei Federal nº. 5.172 de 25-10-66).<br />

Assim, o que está preceituado no título VI <strong>da</strong> Constituição Federal – <strong>da</strong> tributação<br />

e do orçamento – pelos artigos 145 a 156, deve ser rigorosamente observado pela União, pelo<br />

Distrito Federal, pelo Estado-Membro e pelo Município no exercerem sua competência tributária<br />

de editar lei ordinária própria para seus tributos e no exigirem efetivamente o pagamento de seus<br />

impostos, taxas e contribuições.<br />

83<br />

3.3 Princípio do Não-Confisco e Direito de proprie<strong>da</strong>de.<br />

No entender do doutrinador Estevão Horvath (2002, p. 40), o fato de um princípio<br />

estar explícito, positivado é muito importante quando <strong>da</strong> sua interpretação ou aplicação nos<br />

casos concretos. Segundo o autor, cumpre observar preliminarmente o seguinte:<br />

A circunstância de um princípio estar previsto expressamente é importante<br />

para efeitos interpretativos, ain<strong>da</strong> que seja para o fim de não se poder afirmar<br />

que aquele não está positivado. A evolução histórica dos princípios gerais<br />

de direito bem demonstra essa assertiva. Em segundo lugar, consoante também<br />

já se demonstrou, a convivência dos princípios é, no máximo, conflitual,<br />

ao contrário do que sucede com as regras, em que ela é antinômica: “os<br />

princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se” (Canotilho), eles<br />

permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as<br />

regras, à “lógica do tudo ou na<strong>da</strong>”), consoante o seu peso e a ponderação de<br />

outros princípios eventualmente conflitantes (idem). Assim, não se trataria<br />

de procurar uma interpretação isola<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> um dos princípios, mas sim, de<br />

sopesá-los, atribuir a ca<strong>da</strong> um deles o seu peso e o seu devido valor. Daí que,<br />

ain<strong>da</strong> que se possa extrair a proibição do confisco de outros princípios, mais<br />

tradicionais e expressos, a sua formulação no direito positivo pode propiciar-lhe<br />

um alcance maior, ou pelo menos diferenciado com relação àqueles<br />

dos quais derivaria.<br />

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O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário<br />

O confisco é proibido no direito brasileiro, simplesmente pelo fato <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

priva<strong>da</strong> estar protegi<strong>da</strong>, ressalva<strong>da</strong>s certas exceções conti<strong>da</strong>s no Texto Magno. Contudo<br />

a Carta Magna, ao preceituar que é ve<strong>da</strong>do utilizar tributo com efeito de confisco, atribui a esta<br />

idéia peculiari<strong>da</strong>des que não estariam presentes com a simples previsão genérica <strong>da</strong> ve<strong>da</strong>ção ao<br />

confisco.<br />

Nesse diapasão, assevera Estevão Horvath (2002, p. 40-41):<br />

O que estamos buscando significar é que, se a ve<strong>da</strong>ção genérica do confisco<br />

está a proibir que a tributação seja onerosa a ponto de retirar 100% <strong>da</strong> ren<strong>da</strong><br />

ou do patrimônio de alguém (o que, de per si, é suficientemente óbvio para<br />

prescindir de jurisprudência que o diga), ao ve<strong>da</strong>r-se a “utilização de tributo<br />

com efeito de confisco” se estaria ampliando o alcance do princípio, na<br />

medi<strong>da</strong> em que não seria confiscatório somente quando se priva a pessoa<br />

<strong>da</strong>s suas ren<strong>da</strong>s ou bens por meio <strong>da</strong> tributação, mas também quando restasse<br />

comprovado que a imposição de que se cui<strong>da</strong> produziu esse indesejado<br />

efeito.<br />

Ain<strong>da</strong> segundo o presente doutrinador:<br />

É mais abrangente dizer que se proíbe a tributação com efeito confiscatório<br />

do que simplesmente dizer estar ve<strong>da</strong>do o confisco. Têm-se a sensação que,<br />

com a dicção constitucional, o intérprete se sente mais à vontade para extrair<br />

que qualquer tentativa, por mais sub-reptícia que seja, de exacerbar a tributação,<br />

aproximando-a do confisco, ain<strong>da</strong> que parcial, tenderá a enquadrar-se<br />

na ve<strong>da</strong>ção constitucional.<br />

84<br />

No que diz respeito ao princípio <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de contributiva, a doutrina em geral<br />

entende que este princípio deriva do princípio <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de, razão pela qual, não precisaria vir<br />

expresso na Constituição. Entretanto, com o art. 145, § 1º <strong>da</strong> Carta Magna e com a forma pela qual<br />

ele está expresso, outros detalhes interpretativos para o seu conhecimento e aplicação são passíveis<br />

de serem eluci<strong>da</strong>dos.<br />

Na pouca doutrina existente acerca <strong>da</strong> ve<strong>da</strong>ção do tributo com efeito de confisco,<br />

verifica-se que os autores em geral extraem o princípio tributário <strong>da</strong> ve<strong>da</strong>ção do confisco<br />

<strong>da</strong>quele.<br />

No entendimento de Estevão Horvath (2002, p. 41), “não há antinomia entre<br />

direito de proprie<strong>da</strong>de e tributos, já que este é o preço que se deva pagar para viver em socie<strong>da</strong>de,<br />

o que exige sufragar os gastos do governo encarregado de cumprir e fazer cumprir a Constituição”.<br />

Antes de se falar em “quantum” de tributo que possa ser devido, necessário se<br />

faz esclarecer que se estará violando o direito à proprie<strong>da</strong>de e, simultaneamente, o princípio que<br />

proíbe o confisco to<strong>da</strong> vez que se institua um tributo não autorizado pela Constituição Federal.<br />

Desta forma assevera Estevão Horvath (2002, p. 43):<br />

Com efeito, é evidente que a tributação é uma forma de apropriação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

do contribuinte. Por isso mesmo, num Estado de Direito, depende<br />

ela do consentimento dos ci<strong>da</strong>dãos, para que possa existir. Nesse “consentimento”<br />

ou “autorização” para tributar repousa o princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de e<br />

têm origem os próprios parlamentos, como conhecemos hoje em dia. Não<br />

basta, porém, que um determinado tributo seja consentido, mediante a sua<br />

aprovação pelo Legislativo. Necessário se faz que o poder de representação<br />

outorgado pelo povo ao legislador ordinário seja exercido dentro dos limites<br />

que o legislador constituinte originário impôs, ao inaugurar o novo Estado.<br />

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Mary Silvea Santana Vieira<br />

O professor Roque Carrazza (1999, p. 268) afirma que o princípio do não confisco<br />

potencializa o direto de proprie<strong>da</strong>de:<br />

... estamos notando que a norma que impede que os tributos sejam utilizados<br />

com efeito de confisco, além de criar um limite explícito à progressivi<strong>da</strong>de –<br />

que, de um modo geral, os impostos devem observar ... – reforça o direito de<br />

proprie<strong>da</strong>de. Assim por exemplo, em função dela, as alíquotas do imposto<br />

sobre a ren<strong>da</strong> não podem ser eleva<strong>da</strong>s a ponto de fazerem desaparecer a<br />

proprie<strong>da</strong>de do contribuinte.<br />

reflexão:<br />

Estevão Horvath (2002, p. 45) traz a seguinte in<strong>da</strong>gação para posterior<br />

Se o princípio que ve<strong>da</strong> o confisco já está implícito no Texto Constitucional<br />

e que esse confisco já estaria proibido pela simples previsão <strong>da</strong> proteção à<br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, então qual a razão de ser, qual a importância de se<br />

referir o Texto Magno a ele de modo expresso?<br />

abaixo transcritos:<br />

E o mesmo doutrinador, Horvath (2002, p. 45), responde nos seguintes termos<br />

É que ele serve, também, como parâmetro para a elaboração <strong>da</strong>s leis tributárias<br />

e não pode deixar de ser tomado em linha de conta pelo legislador à hora<br />

de criar ou aumentar tributo. Juntamente com outros princípios, ele deve<br />

atuar para compor o quadro do tributo a ser engendrado, não podendo pairar<br />

dúvi<strong>da</strong>s acerca <strong>da</strong> sua existência e operativi<strong>da</strong>de em concreto.<br />

85<br />

Concluindo, pode-se salientar que o confisco é diretamente ligado ao direito de<br />

proprie<strong>da</strong>de, mas o fato do princípio estar positivado deu-lhe uma amplitude maior.<br />

3.4 Princípio do Não-Confisco e Capaci<strong>da</strong>de Contributiva<br />

Antes de tudo, vale lembrar que se desenhar um gráfico e delimitar dois pontos,<br />

sendo um ponto a partir do qual o tributo se torna possível e outro ponto onde a tributação não seja<br />

mais razoável quantitativamente, torna-se inconstitucional, é inadmissível, entende-se que, no intervalo<br />

entre esses dois pontos, estará delimita<strong>da</strong> a liber<strong>da</strong>de de atuação do legislador tributário.<br />

Segundo Goldschmidt (2004, p. 160), “esse espaço intermediário representará a capaci<strong>da</strong>de<br />

contributiva”.<br />

Nesse diapasão, Fábio Brun Goldschmidt (2004, P. 162) faz o seguinte<br />

arrazoado:<br />

a relação necessária entre ve<strong>da</strong>ção de efeitos confiscatórios e capaci<strong>da</strong>de<br />

contributiva encontra-se em que os tributos não podem exceder a força<br />

econômica do contribuinte”. Deve haver então clara relação de compatibili<strong>da</strong>de<br />

entre as prestações pecuniárias, quantitativamente delimita<strong>da</strong>s na lei e<br />

a espécie de fato signo presuntivo de riqueza, posto na hipótese legal.<br />

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O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário<br />

O efeito de confisco pode estar aquém ou além <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de contributiva.<br />

Quando o tributo estiver aquém <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de contributiva ele será confiscatório, pois não estará<br />

garantindo o mínimo existencial ao ci<strong>da</strong>dão, comprometendo assim seus direitos básicos, conflitando<br />

com o preceito constitucional de digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pessoa humana ou também de uma ativi<strong>da</strong>de produtiva.<br />

Dessa forma, “acima <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de contributiva haverá desde a mutilação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

(onde se inicia o efeito de confisco) até a sua efetiva aniquilação, com a ocorrência do confisco<br />

propriamente dito” (GOLDSCHMIDT, 2004, p. 162).<br />

3.5 Princípio do Não-Confisco e Princípio <strong>da</strong> Isonomia<br />

Quando se pensa em tributo com efeito de confisco, vem à mente que se trata<br />

de um tributo que seja excessivamente elevado. Mas, como saber se um determinado tributo é de<br />

fato excessivamente elevado? Qual seria o parâmetro razoável? É aí que se insere a isonomia, isto<br />

é, a igual<strong>da</strong>de. Para qualificar algo necessita-se de um referencial de comparação.<br />

Nesse sentido, argumenta Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 211):<br />

De fato, para adjetivarmos alguma coisa, necessitamos de um termo de comparação,<br />

de algo que seja diferente <strong>da</strong>quele objeto que se pretende analisar.<br />

Absolutamente to<strong>da</strong> a adjetivação somente se faz possível pela existência<br />

de diferenças, eis que se tudo fosse igual não seria possível a qualificação<br />

pelo adjetivo.<br />

86<br />

O conceito de isonomia é bom e também justo, porque oferece ao contribuinte<br />

um parâmetro de comparação, que são os demais contribuintes. O muito e o pouco pressupõem um<br />

referencial, uma valoração, assim disserta Fabio Brun Goldschmidt (2004, p. 212): “O muito e o<br />

pouco são noções cuja apreciação supõe um juízo prévio do que seja “normal”, razoável; e esse<br />

juízo prévio só é possível a partir <strong>da</strong> observação do padrão, para enfim se concluir se uma determina<strong>da</strong><br />

situação está acima ou abaixo <strong>da</strong> média”.<br />

O princípio do não-confisco proíbe a tributação excessiva dessa forma, pressupõe<br />

o conhecimento do que seja um percentual justo e aceitável de tributação.<br />

Nesse sentido, comenta Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 213):<br />

O sentimento de penalização experimentado pelo contribuinte, quando defrontado<br />

com um tributo com efeito confiscatório, deriva em grande parte <strong>da</strong><br />

noção de igual<strong>da</strong>de. Assim, o confronto com a reali<strong>da</strong>de alheia (de um indivíduo,<br />

de um grupo, de um Estado, etc.), o confronto com o nível de retorno<br />

que recebe do Estado pelos tributos que paga (em bens, serviços, assistência,<br />

previdência, segurança, educação etc.), o confronto com o custo <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de ensejadora do pagamento, o confronto, enfim, com aquilo que o<br />

próprio contribuinte estaria apto a fazer, caso dispusesse do mesmo montante<br />

pago ao Estado, tudo isso, enfim serve para delimitação <strong>da</strong> medi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

Justiça na tributação (e para a caracterização do efeito de confisco, como<br />

face reversa dessa Justiça).<br />

Assim, pode-se concluir que o impacto e a reação do contribuinte, em<br />

face <strong>da</strong> tributação e seus respectivos reflexos, serão vistos em estatísticas indicativas de<br />

evasão, elisão, sonegação, fraude de um modo geral. Trata-se <strong>da</strong> curva de Laffer 2<br />

(GOLDSCHMIDT, 2004, p. 213).<br />

2 A curva de Laffer, consiste em um gráfico desenhado pelo economista americano Arthur Laffer, desenvolvido durante o<br />

governo Reagan, nos EUA, ao qual pretendeu demonstrar que, a partir de certa medi<strong>da</strong>, ca<strong>da</strong> ponto percentual acrescido à<br />

carga fiscal representará dois pontos a menos na arreca<strong>da</strong>ção, <strong>da</strong>dos os indefectíveis efeitos <strong>da</strong> sonegação.<br />

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Mary Silvea Santana Vieira<br />

4 VEDAÇÃO AO EFEITO DE CONFISCO POR TRIBUT0 INDIVIDUALMENTE<br />

OU PELO CONJUNTO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO<br />

É difícil analisar ca<strong>da</strong> tributo isola<strong>da</strong>mente para saber se tem efeito de confisco<br />

ou não. Quanto à confiscatorie<strong>da</strong>de do sistema como um todo, no entendimento de Estevão Horvath<br />

(2002, p. 82) destaca-se o seguinte:<br />

difícil saber-se a partir de quando um tributo passa a ter efeito confiscatório<br />

<strong>da</strong> mesma forma que o é detectar a presença <strong>da</strong> confiscatorie<strong>da</strong>de no “sistema”.<br />

Contudo, outra questão afigura-se-nos especialmente difícil de responder,<br />

qual seja: a admitir-se a confiscatorie<strong>da</strong>de do sistema, a instituição ou a<br />

majoração de qual tributo torna aquele confiscatório?<br />

Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 281)assevera que o fato do Brasil ser uma<br />

República Federativa, dota<strong>da</strong> de competência tributária, dificulta a identificação <strong>da</strong> esfera em que<br />

estaria ocorrendo o confisco se nos tributos devidos à União, Estado ou ao Município, havendo<br />

sempre as excludentes de responsabili<strong>da</strong>de conforme o autor:<br />

O primeiro problema que se coloca a partir dessa premissa (<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de<br />

de caracterização do efeito de confisco relativamente à totali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> carga tributária), contudo, está no fato de vivermos em uma federação,<br />

com três esferas de Poder concomitantes e igualmente competentes<br />

para instituir e arreca<strong>da</strong>r tributos. A carga tributária total, assim, seria<br />

muitas vezes forma<strong>da</strong> pela soma <strong>da</strong>s exigências dos três entes tributantes,<br />

ca<strong>da</strong> um na medi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s suas competências, não havendo um único responsável<br />

pela inconstitucionali<strong>da</strong>de. É possível que ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s tributações<br />

dos três entes federados, individualmente, seja considera<strong>da</strong> razoável,<br />

havendo, contudo, efeito confiscatório quando <strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong>s<br />

três cargas simultaneamente.<br />

87<br />

Nos ensinamentos de Fábio Brun Goldschmidt, (2004, p. 282) a tendência doutrinária<br />

mais comum é no sentido de declarar inconstitucional o último tributo instituído, que, adicionado<br />

aos já existentes, causou o efeito de confisco.<br />

de outra parte, há quem sustente que, ultrapassando-se o limite após o qual<br />

a tributação tem efeito de confisco, haverá que se abaixar todos e ca<strong>da</strong> um<br />

dos tributos que contribuem para esse efeito por sua superposição, em autêntica<br />

proporção, até que se alcance o referido limite, de modo que o conjunto<br />

não o supere.<br />

Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 283) argumenta que to<strong>da</strong> essa dificul<strong>da</strong>de<br />

não pode ser motivo para que o Poder Judiciário esteja como fiscal <strong>da</strong> Lei, verificando, analisando<br />

e julgando os casos que lhe chegam às mãos:<br />

É certo, contudo, que, em que pesem to<strong>da</strong>s as soluções possíveis serem<br />

passíveis de crítica, tal dificul<strong>da</strong>de não pode servir de pretexto para simplesmente<br />

excluirmos a possibili<strong>da</strong>de de apreciação pelo Poder Judiciário dessa<br />

questão (o que, de mais a mais feriria o art. 5º, XXXV, <strong>da</strong> CF). Ora, o Estado é<br />

uno, ain<strong>da</strong> que sua administração seja dividi<strong>da</strong> em mais de uma esfera de<br />

Poder. Os direitos fun<strong>da</strong>mentais em jogo são os do ci<strong>da</strong>dão, fonte do poder<br />

do Estado, conceito que transcende em muito o de simples contribuinte de<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário<br />

uma <strong>da</strong><strong>da</strong> e específica exigência tributária. Seria, aliás, uma ironia cruel se a<br />

federação pudesse servir de escudo para a perpetração de abusos contra o<br />

povo brasileiro, em vez de funcionar como um instrumento para a sua<br />

proteção e desenvolvimento.<br />

No entender de Paulo César Bária de Castilho (2002, p. 101-102), a carga<br />

tributária total é uma questão de política fiscal:<br />

em que pese tenha havido um crescimento significativo <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de de<br />

tributos exigidos no Brasil desde seu descobrimento, em 1500, até a presente<br />

<strong>da</strong>ta, entendemos que esse volume total é uma questão de política<br />

fiscal, utiliza<strong>da</strong> de acordo com circunstâncias próprias do momento histórico<br />

vivido.<br />

O que dificulta a visualização do efeito de confisco no sistema tributário é que<br />

não existe um teto máximo explicitado na Constituição, <strong>da</strong>ndo margem para muitas interpretações<br />

e discussões, mas o jurista Ives Gandra Martins (1994, p.141) vislumbra essa possibili<strong>da</strong>de, conforme<br />

descreve o autor:<br />

88<br />

na minha especial maneira de ver o confisco, não posso examiná-lo a partir<br />

de ca<strong>da</strong> tributo, mas <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong> a carga tributária incidente<br />

sobre um único contribuinte. Se a soma de diversos tributos incidentes<br />

representa carga que impeça o pagador de tributos de viver e se desenvolver,<br />

estar-se-á perante carga geral confiscatória, razão pela qual todo o sistema<br />

terá que ser revisto, mas principalmente aquele tributo que, quando criado,<br />

ultrapasse o limite <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de contributiva do ci<strong>da</strong>dão. Há, pois, um<br />

tributo confiscatório decorrencial. A meu ver a Constituição proibiu a ocorrência<br />

dos dois, como proteção ao ci<strong>da</strong>dão.<br />

Segundo a lição de Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 279), o Supremo Tribunal<br />

Federal já se manifestou favoravelmente ao confisco quando <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> carga tributária,<br />

Assevera o autor:<br />

A caracterização do efeito de confisco decorrente do total <strong>da</strong> carga tributária<br />

suporta<strong>da</strong> pelo contribuinte foi vencedora no Supremo Tribunal Federal,<br />

consoante se lê do voto do Min. Carlos Velloso na ADIn 2010: “Em primeiro<br />

lugar, a questão, ao que me parece, deve ser examina<strong>da</strong> no conjunto de<br />

tributos que o servidor pagará, no seu contracheque, <strong>da</strong>do que se trata de<br />

tributos incidentes sobre o vencimento, salário ou provento<br />

A capaci<strong>da</strong>de contributiva é uma só, um único patrimônio e uma única ren<strong>da</strong><br />

que respondem pelo pagamento <strong>da</strong>s obrigações tributárias que recaem sobre o sujeito passivo.<br />

Para concluir, entende-se que existe a possibili<strong>da</strong>de de não só o tributo ser<br />

confiscatório, mas todo o sistema tributário ser confiscatório, pois o efeito de confisco está diretamente<br />

ligado ao tributo exagerado, desregrado. A partir do momento em que a carga tributária ficar<br />

tão alta que desrespeite a capaci<strong>da</strong>de contributiva do ci<strong>da</strong>dão, o sistema tributário na sua totali<strong>da</strong>de<br />

estará tendo efeito de confisco. O que diferencia um tributo legítimo de um confiscatório é a<br />

diferença de grau em que é exigido.<br />

Cabe aqui ressaltar, que essa conclusão está sedimenta<strong>da</strong> também em argumentos<br />

econômicos e financeiros e não somente em argumentos advindos do Direito Positivo.<br />

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Mary Silvea Santana Vieira<br />

5 CONCLUSÃO<br />

Ao concluir o presente artigo, é importante salientar que as normas de Direito<br />

Tributário devem ser interpreta<strong>da</strong>s em consonância com os direitos fun<strong>da</strong>mentais e não contra o<br />

ci<strong>da</strong>dão. Assim o sistema tributário deve ser destinado à construção <strong>da</strong> plena ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. As normas<br />

estão vigentes, o que está faltando é uma maior efetivi<strong>da</strong>de a elas, tendo o ser humano como centro<br />

de todo o sistema.<br />

O Estado necessita de recursos financeiros para consecução de seus fins, quais<br />

sejam: promover o bem social, a felici<strong>da</strong>de coletiva. A competência tributária para criar e exigir<br />

tributos, portanto, decorre do poder de império do Estado, contudo, é regra<strong>da</strong>, limita<strong>da</strong> pela própria<br />

Constituição <strong>da</strong> República.<br />

Na linha <strong>da</strong> história do Brasil, vê-se que a carga tributária aumenta ano a ano,<br />

e a contraprestação devi<strong>da</strong> pelo Estado está a ca<strong>da</strong> dia pior. Os limites ao poder de império do<br />

Estado são delineados pelos princípios, direitos e garantias individuais preceituados na própria Constituição,<br />

entre eles os princípios republicano, <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de contributiva,<br />

<strong>da</strong> progressivi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> razoabili<strong>da</strong>de e o direito de proprie<strong>da</strong>de.<br />

Entende-se por confisco a apreensão de bens do particular pelo Estado sem a<br />

devi<strong>da</strong> indenização. Quando o confisco se dá por meio de tributo, retirando a totali<strong>da</strong>de ou parcela<br />

considerável <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> ou do patrimônio do contribuinte, está-se diante de um confisco tributário.<br />

O confisco em matéria tributária é, em regra geral, indireto. É por isso que a<br />

Constituição ve<strong>da</strong> a utilização de tributo com efeito de confisco. A ve<strong>da</strong>ção constitucional à utilização<br />

de tributo com efeito de confisco é uma <strong>da</strong>s maiores conquistas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de moderna, gera<strong>da</strong><br />

pela luta incessante em busca <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e <strong>da</strong> justiça.<br />

A natureza jurídica do art. 150, inc. IV, <strong>da</strong> Constituição <strong>da</strong> República de 1988 é<br />

de limitação constitucional ao Poder de Tributar; é dirigi<strong>da</strong> ao legislador para que ele, ao legislar<br />

sobre matéria tributária, tenha como pressuposto o não confisco, é um não fazer, uma regra negativa,<br />

limitando a competência tributária dos entes <strong>da</strong> Federação (União, Estados e Distrito Federal,<br />

Municípios).<br />

O objetivo principal dessa norma constitucional não é garantir o direito de proprie<strong>da</strong>de,<br />

que já está assegurado expressamente pelo art. 5.º, inc. XXII, e pelo art. 170, inc. II, <strong>da</strong><br />

Carta Política de 1988, mas sim limitar o Poder de Tributar.<br />

Existe a possibili<strong>da</strong>de de não só o tributo isola<strong>da</strong>mente ser confiscatório, mas<br />

todo o sistema tributário ser confiscatório, pois o efeito de confisco está diretamente ligado ao<br />

tributo exagerado, desregrado. A partir do momento em que a carga tributária ficar tão alta que<br />

desrespeite a capaci<strong>da</strong>de contributiva do ci<strong>da</strong>dão, retirando a totali<strong>da</strong>de ou parcela considerável <strong>da</strong><br />

ren<strong>da</strong> ou do patrimônio do contribuinte, o sistema tributário, na sua totali<strong>da</strong>de, estará tendo efeito de<br />

confisco. O que diferencia um tributo legítimo de um confiscatório é a diferença de grau em que é<br />

exigido.<br />

Notório é, que apesar do artigo 150, inciso IV, <strong>da</strong> Constituição Federal, ve<strong>da</strong>r a<br />

instituição de tributo com efeito conficatório e não estar expressamente incluí<strong>da</strong> no princípio a<br />

multa confiscatória, mesmo diante <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> natureza jurídica de ambos, pode-se afirmar<br />

que além <strong>da</strong> multa conficatória ferir o princípio do não-confisco esta fere também o direito de<br />

proprie<strong>da</strong>de como também o princípio <strong>da</strong> proporcionali<strong>da</strong>de.<br />

Este tem sido o entendimento doutrinário e jurisprudencial, inclusive do Supremo<br />

Tribunal Federal, mas o tema merece um outro estudo mais aprofun<strong>da</strong>do e específico.<br />

Pode-se perceber que longe está de ser pacífica a abrangência do princípio<br />

tributário do não confisco. Chega-se mesmo a dizer que ele não passa de um mero enunciado <strong>da</strong><br />

Constituição, sem muita aplicação concreta, <strong>da</strong><strong>da</strong> a dificul<strong>da</strong>de desta sua colocação em prática<br />

e o grau de subjetivismo que a sua interpretação acarreta. De acordo com as aponta<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des,<br />

crê-se que o simples fato de o não confisco ser identificado como princípio constitucional<br />

leva à necessi<strong>da</strong>de de ser ele estu<strong>da</strong>do e aplicado, como ocorre com qualquer outro princípio<br />

constitucional.<br />

89<br />

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O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário<br />

REFERÊNCIAS<br />

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COELHO, S. C. N. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.<br />

FERREIRA, B. A história <strong>da</strong> tributação no Brasil (causas e efeitos). Brasília: [s.n] 1984.<br />

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GOLDSCHIMIDT, F. B. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: Revista<br />

dos Tribunais, 2003.<br />

90<br />

HORVATH, E. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002.<br />

JARDIM, E. M. F. Dicionário jurídico tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2000.<br />

MARIANO JUNIOR, J. Lições de Direito tributário. Campinas: Copola Livros. 1994.<br />

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Paulo: Saraiva, 1998.<br />

NOGUEIRA, R. B. Curso de Direito Tributário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.<br />

SILVA, P. Vocabulário jurídico. v. 1. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.<br />

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Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

O CONTEMPT OF COURT (desacato à ordem judicial) NO BRASIL<br />

Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva*<br />

RESUMO<br />

O presente artigo pretende trazer à comuni<strong>da</strong>de jurídica uma reflexão a respeito do instituto do<br />

contempt of court (desacato à ordem judicial) nos países <strong>da</strong> common law e sua introdução ao<br />

ordenamento jurídico brasileiro, contendo expressa previsão do dever de cumprir com exatidão os<br />

provimentos man<strong>da</strong>mentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza<br />

antecipatória ou final, como forma de imprimir maior eficácia às decisões judiciais.<br />

Palavras-chave: Contemp of Court. Desacato. Descumprimento. Embaraço. Ato Atentatório.<br />

O CONTEMPT OF COURT (disregard to the judicial order) IN BRAZIL<br />

ABSTRACT<br />

The present article intends to bring to the legal community a reflection regarding the institute of<br />

contempt of court (disregard to the judicial order) in the countries of common law and its introduction<br />

to the Brazilian legal system, contends express forecast of the duty to fulfill with exactness attorney<br />

provisioning and not to create embarrassments to the accomplishment judicial provisioning, of final<br />

anticipation nature or, as form to print greater effectiveness to the sentences.<br />

Keywords: Contemp of Court. Disregard. Not Accomplishment. Embarrassment. Offensive Act.<br />

91<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

Ganha relevância a questão do desacato à ordem judicial, denomina<strong>da</strong> no direito<br />

anglo-saxão como contempt of court e introduzi<strong>da</strong> no ordenamento jurídico brasileiro no art. 14,<br />

do CPC, através <strong>da</strong> Lei 10.358/2001 e, também, dos seus pressupostos, como o descumprimento<br />

dos provimentos man<strong>da</strong>mentais e embaraços à efetivação dos provimentos judiciais de natureza<br />

antecipatória ou final.<br />

A necessi<strong>da</strong>de de aplicação do preceito se dá em face <strong>da</strong> crise de autori<strong>da</strong>de<br />

pela qual passa o Poder Judiciário que busca, na utilização de meios capazes, tornar eficazes as<br />

decisões emana<strong>da</strong>s<br />

Por essa razão, esse trabalho busca uma maior reflexão a respeito de tão<br />

importante instituto, desven<strong>da</strong>ndo-o na sua origem e analisando os seus pressupostos no ordenamento<br />

pátrio para, ao final, tratar <strong>da</strong> incidência <strong>da</strong> multa a todos aqueles que de alguma forma atuam no<br />

processo, com a absur<strong>da</strong> exceção dos advogados.<br />

* Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo, Coordenador do Curso de Direito <strong>da</strong><br />

<strong>UniFil</strong> e Advogado.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil<br />

2 O CONTEMPT OF COURT<br />

2.1 Breve Histórico do Instituto nos Países do Common Law<br />

92<br />

O instituto do contempt of court 1 (ASSIS, 2003, p. 20) tutela o exercício <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de jurisdicional, nos países <strong>da</strong> common law, e existe desde os tempos <strong>da</strong> lei <strong>da</strong> terra. O poder<br />

de contempt of court, reconhecido aos órgãos judiciários do Reino Unido e América do Norte,<br />

consiste no meio de coagir à cooperação, ain<strong>da</strong> que de modo indireto, através <strong>da</strong> aplicação de<br />

sanções às pessoas sujeitas à jurisdição, e a primeira referência à sua aplicação remonta ao ano de<br />

1187, em hipótese de réu que não atendeu à citação (ASSIS, 2003, p. 19).<br />

O poder de o juiz exigir e impor acatamento às suas determinações, decorrentes<br />

<strong>da</strong> parcela de soberania que lhe é conferi<strong>da</strong>, parece essencial à subsistência <strong>da</strong> ordem, nas suas<br />

esferas legítimas de governo e <strong>da</strong> justiça. Segundo James Oswald (apud ASSIS, 2003, p.19),<br />

nenhuma corte ou tribunal carece de vindicar sua própria autori<strong>da</strong>de, digni<strong>da</strong>de e respeito.<br />

Segundo relato de A<strong>da</strong> Grinover (2001, p. 222), a origem do contempt of court<br />

está associa<strong>da</strong> à idéia de que é inerente à própria existência do Poder Judiciário a utilização de<br />

meios capazes de tornar eficazes as decisões emana<strong>da</strong>s. É inconcebível que o Poder Judiciário,<br />

destinado à solução de litígios, não tenha o condão de fazer valer os seus julgados. Nenhuma<br />

utili<strong>da</strong>de teriam as decisões, sem cumprimento ou efetivi<strong>da</strong>de. Negar instrumentos de força ao<br />

Judiciário é o mesmo que negar sua existência.<br />

Na Inglaterra, a configuração básica do instituto emergiu de voto do Juiz Wilmot,<br />

publicado depois de sua morte, em 1802. Tratava-se <strong>da</strong> publicação de libelo por um livreiro chamado<br />

Amon contra a Chief Justice Lord Mansfield. Em síntese, o poder de contempt, na concepção<br />

do Juiz Wilmot, decorria <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de qualquer corte vingar sua própria autori<strong>da</strong>de,<br />

prendendo ou multando quem a desafiasse em caráter público. Na América, o Judicial Act de<br />

1789, alterado em 1821 para dirimir incertezas, conferiu a todo tribunal análoga competência. Em<br />

todos os casos, sob as mais varia<strong>da</strong>s situações em que examinou o problema, a Suprema Corte<br />

sempre preservou a autori<strong>da</strong>de judicial. Apesar <strong>da</strong>s críticas e <strong>da</strong> criação, em 1970, de um Comitê<br />

para reexaminar o tema e propor reformas, o poder de erradicar a obstrução à Justiça permanece<br />

na sua feição original (ASSIS, 2003, p. 19).<br />

Para o direito anglo-saxônico, o contempt of court significa a prática de qualquer<br />

ato que ten<strong>da</strong> a ofender um tribunal na administração <strong>da</strong> justiça ou a diminuir sua autori<strong>da</strong>de<br />

ou digni<strong>da</strong>de, incluindo a desobediência a uma ordem. O contempt of court se divide em criminal<br />

e civil, sendo que o criminal destina-se à punição pela conduta atentatória pratica<strong>da</strong>, enquanto o<br />

civil destina-se ao cumprimento <strong>da</strong> decisão judicial, usando para tanto meios coercitivos. É possível<br />

que uma conduta desrespeitosa seja passível, ao mesmo tempo, de contempt civil e criminal, seja<br />

no processo civil, seja no processo penal.<br />

No contempt criminal (punitivo), o processo, autônomo, sumário, é instaurado<br />

de ofício ou por provocação <strong>da</strong> parte interessa<strong>da</strong>; no civil (coercitivo), a aplicação ocorre nos<br />

mesmos autos, mediante provocação do interessado, garanti<strong>da</strong> a ampla defesa. Admite-se transação<br />

sobre o contempt civil. As sanções enseja<strong>da</strong>s pelo contempt, em qualquer de suas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des,<br />

são a prisão, a multa, a per<strong>da</strong> de direitos processuais e o seqüestro. No civil, a punição é por<br />

tempo indeterminado, até que haja o cumprimento <strong>da</strong> ordem judicial. Se a decisão se tornar de<br />

impossível cumprimento, a sanção também deve cessar, motivando, entretanto, o contempt criminal.<br />

A multa pode ser compensatória, ou não. Quando compensatória, reverte ao prejudicado;<br />

quando coercitiva, reverte ao Estado, considerado o grande prejudicado pela recalcitrância. A<br />

prisão, aplica<strong>da</strong> com prudência, é considera<strong>da</strong> medi<strong>da</strong> de grande pratici<strong>da</strong>de para a efetivi<strong>da</strong>de do<br />

processo (GRINOVER, 2001, p. 104).<br />

1 O contempt of court no direito brasileiro. Não há tradução precisa na língua portuguesa para a palavra contempt, retratando<br />

a exata acepção do vocábulo. Às voltas com problema similar, na língua espanhola, a doutrina escudou-se no costume para<br />

traduzi-la como “desacato”.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

O contempt civil, destinado ao cumprimento <strong>da</strong>s ordens judiciárias, pode ser<br />

direto ou indireto. O direto autoriza o juiz a prender imediatamente o recalcitrante, concedendo-lhe<br />

um prazo para justificar sua conduta. O indireto exige um procedimento incidental que, no contempt<br />

anglo-saxão, obedece aos seguintes requisitos: a) prova <strong>da</strong> ocorrência <strong>da</strong> ação ou omissão; b) que<br />

a ordem judiciária determine com clareza a ação ou omissão imposta à parte; c) que a parte seja<br />

adequa<strong>da</strong>mente informa<strong>da</strong> sobre o teor e a existência <strong>da</strong> ordem judiciária; d) que a ordem judiciária<br />

desrespeita<strong>da</strong> seja de possível cumprimento. A citação e a oportuni<strong>da</strong>de de ser ouvido são atributos<br />

essenciais do procedimento. Com a citação, a pessoa deve ser informa<strong>da</strong> <strong>da</strong>s condições dentro <strong>da</strong>s<br />

quais o atendimento à ordem judicial resultará na revogação <strong>da</strong>s sanções. Após a apresentação <strong>da</strong>s<br />

razões, o juiz decide, apreciando as provas produzi<strong>da</strong>s, considerando ou não a parte em contempt<br />

e impondo uma sanção condiciona<strong>da</strong>, a incidir no caso de a parte resistir em não cumprir a ordem<br />

desobedeci<strong>da</strong>. Finalmente, a sanção imposta é concretamente aplica<strong>da</strong>, se o contemptor não cumprir<br />

a ordem (GUERRA, 1998, p. 104).<br />

Aumenta o interesse <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de jurídica nacional pelo estudo dos<br />

ordenamentos anglo-saxões, na esperança de que, sob sua influência, sejam introduzidos mecanismos<br />

processuais mais ágeis e efetivos no direito processual civil pátrio, capazes de “imprimir maior<br />

eficácia ao funcionamento <strong>da</strong> máquina judiciária e, em termos genéricos, à ativi<strong>da</strong>de de composição<br />

de litígios” (BARBOSA MOREIRA, 2001, p. 155-156). 2<br />

Segundo Patrícia Pizzol, depois de mencionar o “potenciamento” dos poderes<br />

do juiz, introduzido também pelo parágrafo único do art. 14, diz que a doutrina brasileira tem posto<br />

em relevo como se vem verificando uma aproximação entre os sistemas do common law e do civil<br />

law, também porque aquele resguar<strong>da</strong> os poderes do juiz. 3<br />

Nesse contexto insere-se a doutrina do contempt of court. A sua grande importância<br />

nos países que a adotam indica a profun<strong>da</strong> distância – em termos de autori<strong>da</strong>de e superiori<strong>da</strong>de<br />

– entre o papel confiado ao Poder Judiciário no common law, em oposição ao que lhe<br />

atribui o civil law. A sua adoção no direito processual civil brasileiro surge, pois, como algo a ser<br />

alcançado, como uma possível resposta à “crise de autori<strong>da</strong>de” do Poder Judiciário.<br />

A inobservância de uma ordem (injunction) proferi<strong>da</strong> por um juízo ou tribunal<br />

pode se <strong>da</strong>r em várias circunstâncias. Pode ocorrer um mero equívoco do jurisdicionado em relação<br />

ao significado e extensão do que lhe foi imposto, um descuido ou desatenção no seu cumprimento,<br />

ou, ain<strong>da</strong>, intenção delibera<strong>da</strong> de descumpri-la e confrontá-la. Para to<strong>da</strong>s essas hipóteses, o<br />

common law coloca à disposição dos juízos e tribunais uma ampla gama de meios e procedimentos<br />

de execução para que a autori<strong>da</strong>de, o respeito e a digni<strong>da</strong>de confrontados pelo ato de insubmissão<br />

sejam restaurados.<br />

Os tais meios e procedimentos de execução podem simplesmente assumir um<br />

caráter reparatório e esterilizador, alertando o jurisdicionado de que o ato por ele praticado vai de<br />

encontro à decisão judicial legítima proferi<strong>da</strong>, <strong>da</strong>ndo-lhe a chance de purgar sua mora e eliminar o<br />

estado de insubordinação. Esse alerta destina-se a acelerar a submissão do jurisdicionado e vem<br />

normalmente acompanhado de uma sanção temporária, que deve perdurar pelo tempo necessário<br />

de seu convencimento e integral subordinação.<br />

Por outro lado, os meios e procedimentos de execução podem assumir um<br />

caráter punitivo, especialmente diante de atos praticados reitera<strong>da</strong>s vezes e irreversíveis. Nesses<br />

casos, a sanção aplicável não se destina à modificação de um estado de inadequação comportamental<br />

do jurisdicionado recalcitrante, mas à sua instrução e a dos demais jurisdicionados, <strong>da</strong>s conseqüências<br />

<strong>da</strong>nosas de um ato de insubmissão e afronta à justiça.<br />

93<br />

2 Tem acusado notável interesse, nos últimos tempos, entre os juristas <strong>da</strong> família ‘romano-germânica’, o interesse pelos<br />

ordenamentos anglo-saxônicos. Na esfera doutrinária, vozes robustas apregoam a conveniência, senão a necessi<strong>da</strong>de, de<br />

redesenhar sistemas processuais, com os olhos fitos em modelos ingleses e sobretudo norte-americanos, mesmo ao preço de<br />

cancelar ou relegar a nível mais modesto o papel de antigas tradições, cultiva<strong>da</strong>s na Europa continental e transmiti<strong>da</strong>s aos<br />

países dela tributários no resto do planeta. Não falta quem deposite na absorção de elementos característicos <strong>da</strong>quela outra<br />

família uma grande esperança de imprimir maior eficácia ao fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> máquina judiciária e, em termos genéricos, à<br />

ativi<strong>da</strong>de de composição de litígios”.<br />

3 La dottrina ha messo in relevo come si stia verificando un‘aprossimazione tra i sitemi del common law e del civil law, anche<br />

per quel Che riguar<strong>da</strong> i poteri del giudice.” (trad. livre)<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil<br />

94<br />

Tal qual no civil law, no common law há to<strong>da</strong> uma ampla gama de meios e<br />

procedimentos distintos de execução de ordens judiciais. Considerando-se que uma série de meios<br />

e procedimentos alternativos de execução de ordens se encontram disponíveis para os tribunais, a<br />

instauração de um processo de contempt of court por descumprimento não se justifica para todos<br />

os casos de inobservância de uma ordem judicial.<br />

Processos de contempt of court por descumprimento resultam mais comumente<br />

<strong>da</strong> inobservância de uma ordem que, por suas características, somente possa ser cumpri<strong>da</strong> – ou<br />

descumpri<strong>da</strong> – pelo jurisdicionado a quem foi endereça<strong>da</strong>. Podem ser, ain<strong>da</strong>, executa<strong>da</strong>s, por meio<br />

de processo de contempt of court por descumprimento, ordens que imponham ao jurisdicionado,<br />

obrigações de fazer ou não fazer – conteúdo positivo ou negativo (BUENO, 2005, p. 133).<br />

A injunction – termo que pode bem ser traduzido por “man<strong>da</strong>mento judicial” –<br />

é a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de mais solene de ordem proferi<strong>da</strong> por um tribunal e os jurisdicionados têm o dever de<br />

observar estritamente os seus termos, cumprindo-os, na forma e no tempo indicados.<br />

Pode acontecer de processos serem suspensos com base em um compromisso<br />

assumido por uma <strong>da</strong>s partes de praticar ou abster-se de praticar um ato em benefício <strong>da</strong> outra<br />

parte. Esse compromisso tem a mesma força de uma ordem proferi<strong>da</strong> pelo juízo no tribunal. Conseqüentemente,<br />

sua violação importa em contempt of court <strong>da</strong> mesma forma como uma violação<br />

de um man<strong>da</strong>do judicial (injunction).<br />

Importa ressaltar que, para o processamento do contempt of court por<br />

descumprimento, é preciso demonstrar que uma ordem judicial, que imponha o cumprimento de<br />

obrigação positiva ou negativa “específica”, foi ou está na iminência de ser descumpri<strong>da</strong>. Para<br />

tanto, exige-se uma interpretação estrita e precisa de seus termos, e quando a conduta exigi<strong>da</strong> ou<br />

proibi<strong>da</strong> não puder ser claramente identifica<strong>da</strong> e delimita<strong>da</strong> a partir dos termos contidos na ordem<br />

judicial, o processo de contempt of court por descumprimento não pode prosperar (BUENO,<br />

2005p. 134).<br />

Não é essencial que a conduta passível de caracterizar a inobservância seja,<br />

especificamente, a <strong>da</strong> parte a quem a ordem foi dirigi<strong>da</strong>. Quando, por exemplo, a parte no feito for<br />

uma pessoa jurídica, a conduta dos que a representam, na quali<strong>da</strong>de de diretores ou administradores,<br />

deve ser examina<strong>da</strong> e servirá de base para a caracterização ou não do ato de contempt of<br />

court por descumprimento. O princípio <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de objetiva, portanto, aplica-se em tais<br />

casos, de modo que a parte obriga<strong>da</strong> pela ordem é responsável pelas ações ou omissões de qualquer<br />

agente seu que esteja a agir dentro do escopo de suas funções ou encargos.<br />

Com relação ao seu papel coercitivo por descumprimento, prossegue Julio César<br />

Bueno que os processos de contempt of court por descumprimento podem ter uma ou ambas as<br />

funções distintas: (a) execução <strong>da</strong> ordem judicial; e (b) punição por descumprimento. Quando a<br />

pretensão do juízo ou tribunal for compelir o contemnor a executar a ordem, a sanção imposta será<br />

coercitiva. Diferentemente <strong>da</strong> sanção punitiva, a sanção coercitiva é aplica<strong>da</strong> não como conseqüência<br />

de um determinado ato, mas para provocar um determinado ato; não como conseqüência de<br />

um comportamento humano, mas como o meio necessário para induzir um determinado comportamento.<br />

Segundo Alexander Pekelis, a magnitude de sua pressão é medi<strong>da</strong> não pelo que<br />

foi feito (seja a atroci<strong>da</strong>de do crime ou outros elementos), mas pela resistência a ser venci<strong>da</strong>.<br />

Quando a vontade (de desobedecer) do que foi submetido à sanção esmorece, a coerção deve<br />

cessar. O juiz que determina a prisão do contemnor participa de uma luta ativa contra a vontade<br />

deste (do contemnor), e assim que este mude a sua atitude deve ser solto (PEKELIS, 1943, p.<br />

673). 4<br />

4 Tradução livre: “The magnitude of this pressure is measured not by what has been done (be it the heinousness of the crime<br />

or other elements) but the resistance to the overcome. Once the will of the person subject to treatment is spent, coercion<br />

ceases. The judge gaoling the reluctant party engages in an active struggle with the will of the latter, and as soon as he<br />

changes his attitude he is freed<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

Por fim, considerando-se a varie<strong>da</strong>de de mecanismos de execução disponíveis<br />

para o juízo ou tribunal, em especial os de caráter sub-rogatório, tem-se como desnecessária ou<br />

inadequa<strong>da</strong> a aplicação <strong>da</strong> doutrina do contempt of court para obrigar o jurisdicionado ao cumprimento<br />

de todo e qualquer caso de descumprimento. É princípio básico <strong>da</strong> doutrina do contempt of<br />

court que a função coerciva <strong>da</strong> sanção por contempt of court por descumprimento não deve ser<br />

emprega<strong>da</strong> para executar decisões judiciais quando existem outros meios disponíveis para tanto, ou<br />

o ato de contempt of court por descumprimento, ao mesmo tempo possa ser enquadrado e sancionado<br />

por outro meio colocado à disposição do juízo ou tribunal.<br />

Para a responsabilização do contemnor e a aplicação de sanção, alguns requisitos<br />

são necessários. Primeiramente, é indispensável que haja uma ordem, proferi<strong>da</strong> pela Corte,<br />

que seja clara e plenamente inteligível, e que especificamente determine a uma <strong>da</strong>s partes no<br />

processo que faça ou se abstenha de fazer alguma coisa. A ordem não pode ser ambígua e<br />

também não pode haver dúvi<strong>da</strong> de que o contemnor foi adequa<strong>da</strong>mente cientificado de seus<br />

termos. Ademais, deve haver prova inequívoca do descumprimento <strong>da</strong> ordem pelo contemnor ou<br />

demonstração <strong>da</strong> forte plausibili<strong>da</strong>de de sua iminência. Isso tudo para que o contemnor não logre<br />

êxito ao alegar ampla ignorância ou desconhecimento de todos os termos <strong>da</strong> ordem proferi<strong>da</strong><br />

(HAZARD JR., 1993, p. 203).<br />

As sanções aplicáveis aos contempt of court por descumprimento, como meio<br />

executivo impróprio, de modo geral apresentam um espírito orientador e disciplinador, conexo à<br />

idéia do pleno respeito às ativi<strong>da</strong>de de administração <strong>da</strong> justiça. Objetivam, assim, induzir ou compelir<br />

o contemnor a um determinado comportamento perante a Corte, ativo ou passivo, a fim de<br />

que a pretensão à adequa<strong>da</strong> prestação jurisdicional seja, a final, satisfeita ((HAZARD JR., 1993, p.<br />

202-203). 5<br />

2.2 O Contempt of Court no Brasil<br />

Com o advento <strong>da</strong> Lei 10358/2001, a reforma do art. 14 do CPC implantou um<br />

eficaz mecanismo visando a coibir o contempt of court, genericamente entendido como desacato<br />

à ordem judicial.<br />

Em profundo artigo, afirma Luiz Rodrigues Wambier que, originariamente, a<br />

regra do art. 14 versava apenas os deveres <strong>da</strong>s partes e seus procuradores. Com a reforma,<br />

ocorreu a inserção do parágrafo único, em que foi implanta<strong>da</strong> no sistema processual brasileiro<br />

figura até então desconheci<strong>da</strong>. Trata-se <strong>da</strong> figura do ”responsável” pelo descumprimento de ordem<br />

processual. Por outro lado, houve também a inserção de novo inciso (V), no art. 14, contendo<br />

expressa previsão do dever de cumprir com exatidão os provimentos man<strong>da</strong>mentais e não criar<br />

embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Em razão <strong>da</strong><br />

inclusão do referido dispositivo legal, os deveres de boa conduta processual foram estendidos para<br />

além <strong>da</strong>s partes e de seus procuradores, alcançando todos aqueles que de qualquer forma participam<br />

do processo (WAMBIER, 2005, p. 36).<br />

Vai ain<strong>da</strong> mais além João Batista Lopes, ao asseverar a respeito <strong>da</strong> questão <strong>da</strong><br />

desobediência às ordens judiciais, tratando especificamente <strong>da</strong> regra dos arts. 600 e 601, que já é<br />

tempo de se cogitar <strong>da</strong> introdução, entre nós, de medi<strong>da</strong> semelhante ao contempt of court, para<br />

permitir, nesses casos, a prisão civil por atentado à digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> justiça. O autor também defende<br />

a constitucionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> medi<strong>da</strong> e afirma que sua efetiva aplicação depende do atendimento ao<br />

princípio do contraditório. 6<br />

95<br />

5 Não cabe contempt of court para a efetivação de ordens de pagamento de valor. Tais ordens criam uma responsabili<strong>da</strong>de para<br />

o obrigado, que deverá ser satisfeita pelos modos próprios de execução.<br />

6 Nem se objete que a prisão estaria inquina<strong>da</strong> de inconstitucionali<strong>da</strong>de. É que a Lei Máxima proíbe, tão-somente, a prisão por<br />

dívi<strong>da</strong>; não a resultante de atentado à digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Justiça. Claro está que a medi<strong>da</strong> seria precedi<strong>da</strong> de intimação pessoal do<br />

devedor para <strong>da</strong>r explicações ao juiz ou defender-se <strong>da</strong> imputação formula<strong>da</strong> pelo credor, com o que se atenderá à garantia<br />

do contraditório.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil<br />

O desenvolvimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira, to<strong>da</strong>via, sensivelmente perceptível<br />

nas últimas déca<strong>da</strong>s, até mesmo em razão <strong>da</strong> inserção de novos direitos e <strong>da</strong> disseminação <strong>da</strong><br />

informação, fruto próximo <strong>da</strong> democracia, fez com que a prestação de tutela jurisdicional<br />

descompromissa<strong>da</strong>, isto é, presta<strong>da</strong> pelo Estado sem atributos ou mecanismos capazes de garantir<br />

sua real operação no plano dos fatos, seja ti<strong>da</strong>, em nossos dias, como muito próxima de sua<br />

inexistência, pois o que se quer garantir é o direito à obtenção de provimentos que sejam capazes<br />

de promover, nos planos empírico e do direito, as alterações requeri<strong>da</strong>s pelas partes e garanti<strong>da</strong>s<br />

pelo sistema jurídico. Não mais basta – repita-se – a mera tutela formal dos direitos (WAMBIER,<br />

2005, p.38).<br />

E o legislador já deu o primeiro passo (a multa - o segundo deverá ser a prisão)<br />

na direção de que a partir <strong>da</strong> edição <strong>da</strong> Lei 10.358/2001, não mais se admite a ineficácia do<br />

provimento judicial, causa<strong>da</strong> por descumprimento de provimentos man<strong>da</strong>mentais e embaraços à<br />

efetivação de provimentos judiciais que se constituam em desacato à ordem judicial (contempt of<br />

court).<br />

3 DESCUMPRIMENTO DOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS<br />

96<br />

Ao falar em provimentos man<strong>da</strong>mentais, o novo inciso reporta-se à disciplina<br />

<strong>da</strong> execução <strong>da</strong>s obrigações específicas, conti<strong>da</strong> nos arts. 461 e 461-A; provimentos de natureza<br />

antecipatória, disciplinados pelos art. 273 e; cumprimento <strong>da</strong> sentença, de acordo com o art. 475.<br />

Sendo os arts. 273 e 461 destinados a acelerar os resultados práticos do processo,<br />

é natural que todo empenho faça o legislador para que esses próprios dispositivos sejam<br />

capazes de produzir tais resultados, independentemente <strong>da</strong> boa - vontade do obrigado ou de quem<br />

quer que seja e até mesmo mediante punição a quem se opuser à sua efetivação. Daí os deveres<br />

éticos explicitados no inc. V do art. 14, acompanhados de grave sanção ao seu descumprimento<br />

(art 14, par.).<br />

Segundo Candido Rangel Dinamarco, o novo texto não fala de sentenças<br />

man<strong>da</strong>mentais, antecipatórias ou finais, mas em provimentos man<strong>da</strong>mentais antecipatórios ou<br />

finais. São provimentos em direito processual, todos os atos portadores de uma vontade do<br />

Estado-Juiz, às vezes acompanhado de alguma determinação no sentido de realizar ou omitir<br />

uma conduta (DINAMARCO, 2002, p. 488). Da<strong>da</strong> essa amplitude do gênero próximo em que se<br />

incluem as sentenças judiciais (provimentos), o inc. V do art. 14 do Código do Processo Civil<br />

abrange não só as sentenças, mas também os demais provimentos que o juiz emitir, e que tenham<br />

natureza man<strong>da</strong>mental (sentenças, decisões interlocutórias ou mesmo despachos)<br />

(DINAMARCO, 2002, p. 60).<br />

Asseverando o autor, que o dever de não embaraçar se aplica a todos,<br />

assim afirma:<br />

O dever de cumprir, obviamente, é exclusivo do sujeito que for titular <strong>da</strong><br />

obrigação de fazer ou de entregar, que haja sido objeto de determinação<br />

judicial. O de não embaraçar tem eficácia erga ommes. Infringe o inc. V não<br />

apenas aquele que, tendo o dever de <strong>da</strong>r efetivi<strong>da</strong>de ao provimento ou o de<br />

contribuir para sua efetivação, deixa de fazê-lo ou cria dificul<strong>da</strong>des ilegítimas<br />

à sua efetivação; infringe-o também quem quer que, mesmo não tendo<br />

dever algum relacionado com essa efetivação, interfere no iter de sua<br />

produção mediante condutas que a impossibilitem ou dificultem<br />

(DINAMARCO, 2002, p. 60).<br />

Não cumprir o decisório de uma sentença condenatória comum, como a que<br />

impõe um pagamento em dinheiro, significa somente permanecer em situação civil de inadimplemento,<br />

sujeitando-se a futura execução e, talvez, a algum agravamento pecuniário <strong>da</strong> obrigação.<br />

Não cumprir um provimento man<strong>da</strong>mental, no entanto, é “desobedecer” – e<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

to<strong>da</strong> desobediência a atos estatais comporta a reação <strong>da</strong> ordem jurídica e dos agentes do poder<br />

público (no caso, o Estado-Juiz), seja no sentido de punir o infrator, seja para coagi-lo legitimamente<br />

a cumprir.<br />

Provimentos finais, no processo de conhecimento, são as sentenças. Provimentos<br />

antecipatórios são atos decisórios com os quais o juiz oferece, em caráter provisório, no<br />

todo ou em parte, os resultados práticos que a parte espera obter no processo. Nem to<strong>da</strong> sentença<br />

e nem to<strong>da</strong> decisão interlocutória pode, contudo, ser considera<strong>da</strong> como de cumprimento obrigatório<br />

e coativo por parte <strong>da</strong> parte venci<strong>da</strong>, para os fins desse dispositivo e <strong>da</strong>s sanções comina<strong>da</strong>s à sua<br />

transgressão. Nem mesmo to<strong>da</strong> sentença de mérito é portadora de um comando tão enérgico,<br />

como são as man<strong>da</strong>mentais. É o caso <strong>da</strong>s sentenças que condenam a pagar dinheiro, <strong>da</strong>s constitutivas<br />

em geral e <strong>da</strong>s que julgam improcedente a deman<strong>da</strong> do autor.<br />

Quanto às “condenações de conteúdo pecuniário”, o mero descumprimento<br />

não passa <strong>da</strong> continuação de um inadimplemento que já vinha desde antes e, uma vez proferi<strong>da</strong> a<br />

condenação, passa a ser sancionado com os atos inerentes à execução por quantia certa – e não<br />

mediante repressões ou as pressões psicológicas inerentes ao art. 461 e seus parágrafos.<br />

O que se está falando é do dever de cumprir. É claro que, com relação a essas<br />

sentenças, existe o dever de não criar embaraços, que hipoteticamente pode ser transgredido<br />

mediante a subtração ou ocultação dos autos pelo devedor ou seu patrono, pela retenção em<br />

cartório e sonegação ao advogado do credor, pela omissão do empregador do obrigado por pensões<br />

alimentícias (não efetuando as retenções determina<strong>da</strong>s pelo juiz), etc. As condutas desleais e desrespeitosas<br />

ao Poder Judiciário, quando cometi<strong>da</strong>s pelo devedor ou seu patrono no curso <strong>da</strong> execução,<br />

incidem nas sanções comina<strong>da</strong>s pelo Código de Processo Civil aos atos atentatórios à digni<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> Justiça, tipificados em seu art. 600.<br />

Ocorre que, embora a primeira parte do § 1º do art. 656 do CPC, inserido pela<br />

Lei 11.382/2006, diga que, pelo descumprimento do art. 600, IV, aplica-se a pena do 601, a sua<br />

segun<strong>da</strong> parte faz referência expressa à aplicação do art. 14, § único, na hipótese do executado<br />

que cause embaraço à realização <strong>da</strong> penhora e, quiçá, à efetivação dos provimentos judiciais. Por<br />

idêntica razão, defende-se a aplicação <strong>da</strong> parte final do inciso V do art. 14 no caso do empresário<br />

que, de alguma forma, abuse no exercício do direito <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de jurídica, escondendo os bens<br />

<strong>da</strong> empresa em seu nome próprio e fazendo incidir o art. 50, do cc – desconsideração.<br />

Portanto, o raciocínio de Dinamarco acrescenta que, por força do enunciado na<br />

segun<strong>da</strong> parte do § 1º do art. 656, não se deve criar embaraços apenas às sentenças, sejam elas de<br />

qual natureza forem, mas também a quaisquer outros provimentos judiciais (segundo o autor, tratase<br />

de gênero onde também se incluem as sentenças).<br />

A sentença de condenação não sujeita o devedor a uma ordem do juiz, que<br />

como autori<strong>da</strong>de estatal determina seu adimplemento. A condenação – conforme adverte Montesano<br />

– não transforma os deveres privados em sujeição à autori<strong>da</strong>de estatal, ain<strong>da</strong> que abra oportuni<strong>da</strong>de<br />

à utilização de instrumentos de direito público para a satisfação dos direitos subjetivos; o devedor<br />

condenado continua apenas civilmente obrigado perante o credor, e não vinculado a uma ordem<br />

do juiz (MARINONI, 2000, p. 354).<br />

Marinoni (2000, p. 356) espanca qualquer dúvi<strong>da</strong> que possa existir entre a essência<br />

<strong>da</strong> sentença man<strong>da</strong>mental e condenatória que meramente declara, ao afirmar que a sentença<br />

seria condenatória apenas porque impõe uma prestação. Uma mera “sentença de prestação”,<br />

entretanto, não pode ser confundi<strong>da</strong> com a sentença condenatória, que é indissociavelmente liga<strong>da</strong><br />

à força do Estado. Portanto, a sentença que impõe uma prestação, mas não se liga à “sanção” é<br />

meramente declaratória.<br />

Note-se que a diferença reside na força que se empresta à obediência <strong>da</strong> ordem<br />

de mando. Para Marinoni, uma sentença não é man<strong>da</strong>mental apenas porque man<strong>da</strong>, ou ordena<br />

mediante man<strong>da</strong>do. A sentença que “ordena”, e que pode <strong>da</strong>r origem a um man<strong>da</strong>do, mas não<br />

pode ser executa<strong>da</strong> mediante meios de coerção suficientes, não pode ser classifica<strong>da</strong> como<br />

man<strong>da</strong>mental. A man<strong>da</strong>mentali<strong>da</strong>de não está na ordem, ou no man<strong>da</strong>do, mas na ordem conjuga<strong>da</strong><br />

à força que se empresta à sentença, admitindo-se o uso de medi<strong>da</strong>s de coerção para forçar o<br />

devedor a adimplir. Só há sentido na ordem quando a ela se empresta força coercitiva; caso contrário,<br />

a ordem é mera declaração. Da mesma forma que a condenação só é condenação porque<br />

97<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil<br />

98<br />

aplica a “sanção”, a sentença man<strong>da</strong>mental somente é man<strong>da</strong>mental porque há a coerção<br />

(MARINONI, 2000, p. 356).<br />

Além disso, ao tratar <strong>da</strong> questão no plano estrutural e sistemático, argumentou<br />

Mandrioli que não há execução força<strong>da</strong> se não há o superamento de um obstáculo e a invasão<br />

coativa <strong>da</strong> esfera de autonomia do devedor (MARINONI, 2000, p. 357).<br />

Para Marinoni (2000, p. 358), a sentença condenatória abre oportuni<strong>da</strong>de para<br />

a execução, mas não executa ou man<strong>da</strong>; a sentença man<strong>da</strong>mental man<strong>da</strong> que se cumpra a prestação<br />

sob pena de multa. Na condenação há apenas condenação ao adimplemento, criando-se os<br />

pressupostos para a execução força<strong>da</strong>. Na sentença man<strong>da</strong>mental há ordem para que se cumpra<br />

sob pena de multa; há um “man<strong>da</strong>do”, que não se confunde com o man<strong>da</strong>do que será expedido, já<br />

que o juiz “man<strong>da</strong>” que se cumpra e não apenas exorta ao cumprimento, fixando a base para<br />

execução força<strong>da</strong>. Na sentença man<strong>da</strong>mental não há, note-se bem, apenas exortação ao cumprimento;<br />

e há ordem de adimplemento que não é mera ordem, mas ordem atrela<strong>da</strong> à coerção. Uma<br />

sentença que ordena sob pena de multa já usa a força do Estado, ao passo que a sentença que<br />

condena abre oportuni<strong>da</strong>de para o uso dessa força.<br />

É de se notar que, <strong>da</strong> mesma forma que tais conceitos se aplicam à sentença<br />

man<strong>da</strong>mental, o inciso V, do art. 14, se refere aos provimentos man<strong>da</strong>mentais, aos quais também se<br />

deve aplicar os instrumentos de efetivação do direito material contidos no parágrafo único do art.<br />

14, do CPC, bem como e principalmente, à efetivação dos provimentos judiciais.<br />

Quem pretende ver inibi<strong>da</strong> a prática de um ilícito pede ordem sob pena de multa<br />

e não apenas man<strong>da</strong>do. O que varia do man<strong>da</strong>mento para a condenação é a natureza do provimento;<br />

o provimento condenatório condena ao adimplemento, criando o pressuposto para a execução<br />

força<strong>da</strong>, ao passo que o provimento man<strong>da</strong>mental ordena sob pena de multa. O critério que se<br />

permite definir a man<strong>da</strong>mentali<strong>da</strong>de é meramente processual. O que define a man<strong>da</strong>mentali<strong>da</strong>de é<br />

a possibili<strong>da</strong>de de se requerer ordem sob pena de multa (MARINONI, 2000, p. 359).<br />

Na busca de uma definição <strong>da</strong> decisão pretendi<strong>da</strong> pelo litigante, sempre se<br />

observou o pedido imediato, porém, lembram Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arru<strong>da</strong> Alvim<br />

Wambier que a noção de sentença man<strong>da</strong>mental não se refere à espécie de pedido do autor, mas<br />

sim ao “fato de a providência pleitea<strong>da</strong> prestar-se a proporcionar uma garantia in natura ao<br />

impetrante” (WAMBIER, 2005, p. 25). 7<br />

A principal característica dessa espécie de sentença é a ordem nela conti<strong>da</strong>.<br />

Assim, o juiz não condena simplesmente ao cumprimento de uma obrigação, mas expede um man<strong>da</strong>do<br />

com uma ordem para que seja cumpri<strong>da</strong> sua determinação.<br />

Para Ovidio Batista <strong>da</strong> Silva (2000, p. 336),<br />

a ação man<strong>da</strong>mental tem por fim obter, como eficácia preponderante <strong>da</strong> respectiva<br />

sentença de procedência, que o juiz emita uma ordem a ser observa<strong>da</strong><br />

pelo deman<strong>da</strong>do, em vez de limitar-se a condená-lo a fazer ou não fazer<br />

alguma coisa. É <strong>da</strong> essência, portanto, <strong>da</strong> ação man<strong>da</strong>mental que a sentença<br />

que lhe reconheça a procedência contenha uma ordem para que se expeça<br />

um man<strong>da</strong>do. Daí a designação de sentença man<strong>da</strong>mental. Nesse tipo de<br />

sentença, o juiz ordena, e não simplesmente condena.<br />

Segundo observa Daniel Assumpção Neves (2003, p. 51), em virtude de tal<br />

característica, decorrem dois importantes efeitos: O primeiro é a absoluta desnecessi<strong>da</strong>de de ação<br />

de execução autônoma para efetivação <strong>da</strong> decisão. A satisfação do vencedor dá-se de forma<br />

imediata já com a expedição do man<strong>da</strong>do contendo a ordem para o cumprimento <strong>da</strong> obrigação, sem<br />

a necessi<strong>da</strong>de de qualquer formação posterior de nova relação processual, nova citação, nova<br />

defesa, etc. O segundo, por ser uma ordem do juiz, e não uma mera condenação, o descumprimento<br />

é considerado como desobediência ao ato do juiz, autori<strong>da</strong>de estatal. Dessa forma, poder-se-ia até<br />

tipificar tal conduta penalmente.<br />

7 Breves comentários à 2ª Fase <strong>da</strong> Reforma do Código de Processo Civil..<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

Se ordens existem é para serem cumpri<strong>da</strong>s, não necessitando haver norma<br />

expressa para demonstrar tal obvie<strong>da</strong>de. O problema é que, embora óbvia a obrigatorie<strong>da</strong>de de<br />

cumprimento <strong>da</strong>s ordens judiciais, verifica-se muito desrespeito por parte <strong>da</strong>queles que deveriam<br />

cumpri-las no caso concreto. Assim, diz-se o óbvio para prever a tal dever uma sanção, que infelizmente<br />

parece ser, nos tempos atuais, o único meio – e nem sempre eficaz – de evitar o absurdo<br />

desrespeito às ordens judiciais (NEVES, 2003, p. 52).<br />

4 OS EMBARAÇOS À EFETIVAÇÃO DE PROVIMENTOS JUDICIAIS<br />

Nos exatos termos do contido no par. único do art. 14, todo aquele que de<br />

algum modo atue no processo poderá ser declarado responsável pela frustração (embaraço) integral<br />

ou parcial do resultado <strong>da</strong> prestação jurisdicional, vale dizer, pelo desacato à decisão judicial<br />

(ou, se preferirmos, pelo contempt of court).<br />

O texto legal não se refere exclusivamente ao comportamento <strong>da</strong>s partes, de<br />

seus advogados, dos auxiliares do juízo, etc., mas, expressamente, faz referência a “todos aqueles<br />

que de alguma forma participem do processo”.<br />

Segundo Luiz Rodrigues Wambier, estarão causando embaraço à efetivação<br />

dos provimentos jurisdicionais todos os atos ou omissões, culposos ou não, que criem dificul<strong>da</strong>des<br />

de qualquer espécie ao alcance do resultado prático a que está vocacionado o provimento<br />

jurisdicional. A responsabili<strong>da</strong>de p<strong>revista</strong> no art. 14 se assemelha à responsabili<strong>da</strong>de objetiva, eis<br />

que prescinde, para sua declaração, <strong>da</strong> presença de culpa. Verificando o embaraço à efetivação do<br />

provimento, a norma poderá ser aplica<strong>da</strong> ao responsável, sem a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> verificação <strong>da</strong><br />

presença de culpa em seu agir (WAMBIER, 2005, p. 4).<br />

Recentemente, mais precisamente em 20 de janeiro de 2007, entrou em vigor a<br />

Lei 11.382. De acordo com o § 1º do art. 656 do CPC, é dever do executado abster-se de qualquer<br />

atitude que dificulte ou embarace a realização <strong>da</strong> penhora, nos procedimentos de execução de<br />

título extrajudicial, sob as penas do art. 14, parágrafo único. 8<br />

Tal previsão vem reforçar o comando previsto na parte final no inciso V do art.<br />

14 do CPC, o qual também prescreve que é dever <strong>da</strong>s partes e de todos aqueles que de qualquer<br />

forma participam do processo não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza<br />

antecipatória ou final, sob as penas p<strong>revista</strong>s no parágrafo único do mesmo artigo.<br />

Segundo Fredie Didier (2003, p. 08), a distinção entre provimentos antecipatório<br />

e final, como é intuitivo, não diz respeito ao conteúdo que encerram, pois aquele visa exatamente<br />

antecipar efeitos somente obtidos após este; o provimento antecipatório, portanto, abrevia o tempo<br />

para a obtenção de efeitos materiais inicialmente alcançáveis apenas com o provimento final –<br />

sentença ou acórdão. Aquele será fun<strong>da</strong>do, no mais <strong>da</strong>s vezes, em cognição sumária; este, em<br />

exauriente.<br />

Tutela final é aquilo que se pretende do Poder Judiciário – tutela jurisdicional,<br />

resultado prático favorável, obtenível pela técnica condenatória, declaratória, constitutiva,<br />

man<strong>da</strong>mental ou executiva, alcança<strong>da</strong> no sistema brasileiro, em regra, após o trânsito em julgado<br />

<strong>da</strong> sentença. Tutela antecipatória é aquela que concede à parte o resultado prático que ele procura<br />

obter <strong>da</strong> tutela final, antes do momento inicialmente projetado para tanto (JORGE, 2005, p. 08).<br />

Segundo Marinoni, a tutela antecipatória contrapõe-se à tutela cautelar, que<br />

também não se enquadra no conceito de tutela final, porquanto visa <strong>da</strong>r a esta segurança – embora<br />

se possa construir a idéia de que a tutela cautelar é a tutela final do processo cautelar. A tutela<br />

cautelar, ain<strong>da</strong> que provisória e fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em cognição sumária – semelhanças que mantém com a<br />

tutela antecipatória, dela se diferencia; enquanto a cautelar apenas o garante, a tutela antecipatória<br />

atribui o resultado (ou parte dele) útil do processo; uma não é satisfativa, a outra sim (MARINONI,<br />

1998, p. 88-110).<br />

99<br />

8 § 1º, do art. 656, do CPC (Lei 11.382 de 06/12/2006: É dever do executado (art. 600), no prazo fixado pelo juiz, indicar onde<br />

se encontram os bens sujeitos à execução, exibir a prova de sua proprie<strong>da</strong>de e, se for o caso, certidão negativa de ônus, bem<br />

como abster-se de qualquer atitude que dificulte ou embarace a realização <strong>da</strong> penhora (art. 14, parágrafo único).<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil<br />

100<br />

Entende-se, como Fredie Didier (2003, p. 09), que o inciso V do art. 14 também<br />

se aplica aos provimentos cautelares, pela identi<strong>da</strong>de manifesta <strong>da</strong> ratio, sob pena de se afirmar<br />

que uma decisão judicial em sede cautelar é menos digna de respeito do que uma decisão em<br />

processo de conhecimento ou de execução. A permissão <strong>da</strong> fungibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s antecipatória<br />

e cautelar confirma a tese ora defendi<strong>da</strong>. Ressalte-se, ademais, que as providências cautelares são<br />

toma<strong>da</strong>s, geralmente, por meio de provimentos man<strong>da</strong>mentais ou executivos.<br />

Como o inciso V do art. 14 estabelece, na sua segun<strong>da</strong> parte, o dever de não embaraçar<br />

o cumprimento de provimentos judiciais finais e antecipatórios, verifica-se a postura ativa de impedir<br />

que os provimentos tenham eficácia, sejam eles finais ou proferidos durante o trâmite processual.<br />

Preferiu o legislador, pelo menos à primeira vista, não limitar a natureza dos pronunciamentos<br />

e nem seus sujeitos passivos no que se refere à não criação de obstáculos à efetivação<br />

dos pronunciamentos do juiz. Por se tratar de dever de caráter negativo, o dever de não embaraçar<br />

o cumprimento dos pronunciamentos judiciais é amplo e irrestrito, atingindo a todos, com ver<strong>da</strong>deiro<br />

efeito erga omnes.<br />

Fala o inciso V do art. 14 em pronunciamentos judiciais de natureza antecipatória e final.<br />

Como se percebe, foge-se <strong>da</strong> classificação, tão critica<strong>da</strong>, leva<strong>da</strong> a efeito pelo artigo 162 do<br />

Código de Processo Civil. Não menciona o dispositivo de lei se é despacho, decisão<br />

interlocutória ou sentença, deixando margem ao operador a constatação de quais espécies de<br />

pronunciamentos do juiz seriam esses de natureza antecipatória e final. Parece que quanto ao<br />

pronunciamento de natureza final não surge qualquer dúvi<strong>da</strong>, tratando-se de sentença, ou ain<strong>da</strong><br />

acórdão, decisão colegia<strong>da</strong> do Tribunal.<br />

O legislador ao mencionar os efeitos antecipatórios, estaria limitando-se aos provimentos<br />

disciplinados pelos artigos 273 e 461 do Código de Processo Civil, e alguns procedimentos especiais<br />

(liminar). Nesses casos, o provimento antecipa faticamente os efeitos do provimento final e<br />

definitivo.<br />

Segundo Daniel Assumpção Neves (2003, p. 36), sempre que concedi<strong>da</strong> uma liminar ou<br />

uma tutela antecipa<strong>da</strong>, tratar-se-a de provimento de natureza antecipatória. No processo<br />

cautelar, a única diferença é que a antecipação não é dos efeitos que o reconhecimento do direito<br />

material do autor geraria, até mesmo porque esse não se discute nem se decide em sede<br />

cautelar. Mas é inegável que a liminar antecipa os efeitos provenientes <strong>da</strong> sentença cautelar,<br />

sendo, portanto, antecipatória <strong>da</strong> tutela cautelar.<br />

Afinal, enquanto as liminares em geral entregam ao autor a fruição de um direito material<br />

que só virá de forma definitiva na sentença, a liminar <strong>da</strong> cautelar entrega ao requerente a<br />

proteção cautelar de forma antecipa<strong>da</strong>, garantindo-se assim a eficácia do resultado do processo<br />

principal. Assim sendo, a tutela cautelar pode ser concedi<strong>da</strong> de duas formas: provimento de natureza<br />

final (sentença cautelar) e provimento de natureza antecipatória (liminar).<br />

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Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

5 A MULTA DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 14 DO CPC<br />

O Código de Processo Civil prevê alguns atos considerados como litigância de má-fé ou<br />

atentatórios à digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> justiça: deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou<br />

fato incontroverso (art. 17, I); alterar a ver<strong>da</strong>de dos fatos (art. 17, II); usar o processo para conseguir<br />

objetivo ilegal (art. 17, III); proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do<br />

processo (art. 17, V); frau<strong>da</strong>r a execução (art. 600, I); opor-se maliciosamente, à execução, empregando<br />

ardis e meios artificiosos (art. 600, II).<br />

Tais deveres – <strong>da</strong>s partes e de seus procuradores - sempre tiveram como sanção o pagamento<br />

de multa pecuniária, ou então a responsabilização pelos <strong>da</strong>nos causados pela atitude<br />

abusiva, conforme determinam os artigos 18 e 601 do CPC. Os valores dessas sanções são todos<br />

revertidos em favor <strong>da</strong> parte contrária, supostamente prejudica<strong>da</strong> com o ato considerado de<br />

má-fé. Esquecia-se que o Estado, como responsável pela entrega de uma prestação jurisdicional<br />

de quali<strong>da</strong>de, também era seriamente prejudicado com tais atos, vendo seu poder enfraquecido<br />

perante os jurisdicionados.<br />

Com o inciso V do art. 14, o atentado ao exercício <strong>da</strong> jurisdição permite que a multa<br />

reverta para os cofres <strong>da</strong> União, do Estado ou do Distrito Federal. Ressalte-se que, se a multa<br />

não for quita<strong>da</strong> no prazo <strong>da</strong>do pelo juiz, será incluí<strong>da</strong> na Dívi<strong>da</strong> Ativa do Estado ou <strong>da</strong> União,<br />

dependendo <strong>da</strong> deman<strong>da</strong> ter seu trâmite perante a Justiça Estadual ou Federal, o que caracteriza<br />

desde já prejuízo ao infrator, ain<strong>da</strong> que a Fazen<strong>da</strong> não ingresse imediatamente com a ação executiva.<br />

101<br />

5.1 Os Destinatários e a Exclusão dos Advogados<br />

Civil:<br />

Assim preceituam o art. 14, V e seu parágrafo único do Código de Processo<br />

Art. 14 (caput): São deveres <strong>da</strong>s partes e de todos aqueles que de qualquer<br />

forma participam do processo:<br />

...omissis<br />

V - : cumprir com exatidão os provimentos man<strong>da</strong>mentais e não criar embaraços<br />

à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.<br />

Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente<br />

aos estatutos <strong>da</strong> OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo<br />

constitui ato atentatório ao exercício <strong>da</strong> jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo<br />

<strong>da</strong>s sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável<br />

multa em montante a ser fixado de acordo com a gravi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> conduta<br />

e não superior a 20% (vinte por cento) do valor <strong>da</strong> causa; não sendo paga no<br />

prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado <strong>da</strong> decisão final <strong>da</strong> causa,<br />

a multa será inscrita sempre como dívi<strong>da</strong> ativa <strong>da</strong> União ou do Estado.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil<br />

102<br />

Do enunciado do caput, verifica-se uma responsabili<strong>da</strong>de processual que<br />

abrange não só as partes, assistentes e intervenientes em geral, como também seus advogados,<br />

o próprio juiz, o Ministério Público, a Fazen<strong>da</strong> Pública, os auxiliares <strong>da</strong> justiça e as testemunhas<br />

– dos quais, sem exceção, exigem-se comportamentos conforme a leal<strong>da</strong>de e a boa-fé, fiéis à<br />

ver<strong>da</strong>de dos fatos, sem abusar de facul<strong>da</strong>des ou poderes, etc. Mas o enunciado legal que à<br />

primeira vista parece depender apenas de uma singela exegese literal, suscita no mínimo três<br />

questões polêmicas.<br />

A primeira questão que se coloca e que foi profun<strong>da</strong>mente debati<strong>da</strong> por Luiz<br />

Fernando Bellinetti e Elmer <strong>da</strong> Silva Marques (2006, p. 72) destinatário <strong>da</strong> multa: esta deverá<br />

incidir sobre a própria Fazen<strong>da</strong> Pública, isto é, sobre a pessoa jurídica de direito público, ou deverá<br />

incidir sobre o servidor público, aqui incluí<strong>da</strong>s as autori<strong>da</strong>des, inclusive as que são titulares de<br />

cargos eletivos?<br />

Ocorre que o cumprimento <strong>da</strong> ordem emiti<strong>da</strong> não está, na maioria absoluta dos<br />

casos, afeito à discricionarie<strong>da</strong>de de um único servidor público: este pode depender de atos alheios<br />

à sua vontade, como a atuação de um superior hierárquico, <strong>da</strong> aprovação de medi<strong>da</strong>s pelo Poder<br />

Legislativo etc.<br />

Segundo Luiz Fernando Bellinetti (2006, p. 84) de ser resolvi<strong>da</strong> <strong>da</strong> seguinte<br />

forma: quando se tratar de ordem a ser cumpri<strong>da</strong> por uma única pessoa, ou, em outras palavras,<br />

que depen<strong>da</strong> <strong>da</strong> atuação de um único servidor público, a multa deve incidir sobre essa pessoa. Isto<br />

é mais facilmente detectável no man<strong>da</strong>do de segurança, que é movido contra autori<strong>da</strong>de pública<br />

específica, que esteja atuando de forma a praticar atos ilícitos.<br />

Se a multa recaísse única e exclusivamente sobre a pessoa jurídica de direito<br />

público, poderia incutir na autori<strong>da</strong>de ou servidor público o entendimento de que não seria responsável<br />

pelo pagamento <strong>da</strong> multa.<br />

Araken de Assis (2003, p.30) bem demonstrou o caráter psicológico <strong>da</strong> multa<br />

sobre os servidores públicos:<br />

[...] no caso de descumprimento à ordem judicial, travesti<strong>da</strong> de provimento<br />

man<strong>da</strong>mental (art. 14, V, do CPC), o servidor e o agente públicos sujeitam-se<br />

à pena do art. 14, parágrafo único. A sanção se dirige ao ‘destinatário precípuo<br />

<strong>da</strong> ordem’. Ora, tais pessoas, cujo comportamento se subordina ao princípio<br />

<strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de (art. 37, caput, <strong>da</strong> CF/88), se revelam suscetíveis à ameaça <strong>da</strong><br />

multa.É pouco provável que desafiem o órgão judicial, arrostando a conseqüência<br />

de se verem apenados. Razões individuais, a exemplo <strong>da</strong> promoção<br />

iminente e o amor próprio, tornam o servidor apegado à rotina inflexível do<br />

cumprimento espontâneo. Depois, transita<strong>da</strong> em julgado a decisão, a inscrição<br />

<strong>da</strong> multa como dívi<strong>da</strong> ativa do Estado ou União, e, em segui<strong>da</strong>, a execução<br />

<strong>da</strong> respectiva certidão, constituem atos de competência de outros servidores,<br />

na<strong>da</strong> propensos a deixar de praticar atos de ofício para eximir colegas<br />

desconhecidos, ain<strong>da</strong> mais sob fiscalização sempre aterrorizante do Ministério<br />

Público. Assim, a ameaça é real e efetiva, atingindo os objetivos <strong>da</strong><br />

técnica <strong>da</strong> pressão psicológica.<br />

Segundo Luiz Guilherme Marinoni, caso a multa incidir sobre a pessoa jurídica<br />

de direito público, apenas o seu patrimônio poderá responder pelo não-cumprimento <strong>da</strong> decisão.<br />

Entretanto, não há cabimento na multa recair sobre o patrimônio <strong>da</strong> pessoa jurídica, se a vontade<br />

responsável pelo não cumprimento <strong>da</strong> decisão é exterioriza<strong>da</strong> por determinado agente público. Não<br />

há procedência no argumento de que a autori<strong>da</strong>de pública não pode ser obriga<strong>da</strong> a pagar a multa<br />

deriva<strong>da</strong> de ação em que foi parte apenas a pessoa jurídica. É que essa multa somente poderá ser<br />

imposta se a autori<strong>da</strong>de pública, que exterioriza a vontade <strong>da</strong> pessoa jurídica, não der atendimento<br />

à decisão. Note-se que a multa somente pode ser exigi<strong>da</strong> <strong>da</strong> própria autori<strong>da</strong>de que tinha capaci<strong>da</strong>de<br />

para atender à decisão e não a cumpriu (MARINONI, 2004, p. 662).<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

A obediência às decisões judiciais é imperativo para a mantença do Estado<br />

Democrático de Direito e a ordem pública e, ademais, se a prisão por descumprimento de ordem<br />

judicial recai sobre a autori<strong>da</strong>de pública que descumpriu a ordem, com maior razão a multa pecuniária<br />

também deverá recair sobre a autori<strong>da</strong>de. Vale, aqui, o conhecido adágio de que quem pode mais,<br />

pode menos. 9<br />

Em sentido semelhante, também proferido em ação de revisão de pensão, o<br />

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi expresso ao determinar que “as penali<strong>da</strong>des p<strong>revista</strong>s<br />

na legislação, na hipótese de descumprimento de ordem, recairá [sic] sobre o servidor público que<br />

não lhe der cumprimento: tratando-se de sentença man<strong>da</strong>mental dirigi<strong>da</strong> contra servidor público,<br />

eventual desobediência sujeita-o às penali<strong>da</strong>des p<strong>revista</strong>s na legislação”. 10<br />

Segundo Bellinetti e Elmer Marques, se a prisão por descumprimento de ordem<br />

recai sobre a pessoa <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de ou servidor público, igualmente a multa deverá incidir<br />

sobre a pessoa física que, por culpa sua, não deu cumprimento à ordem judicial. O fato de a<br />

autori<strong>da</strong>de ou servidor público não ser parte do processo não a impede de ser responsabiliza<strong>da</strong> pelo<br />

não cumprimento <strong>da</strong> ordem advin<strong>da</strong> do processo que não atua como parte. Em primeiro lugar,<br />

porque deve a autori<strong>da</strong>de ou servidor público cumprir a ordem judicial na medi<strong>da</strong> em que atua<br />

como agente <strong>da</strong> pessoa jurídica de direito público. Em segundo lugar, agindo a autori<strong>da</strong>de ou servidor<br />

público com culpa (lato sensu), e causando prejuízo ao Erário, deve ser responsabiliza<strong>da</strong> por<br />

seus atos, nos termos do art. 37, § 6º <strong>da</strong> CF/88. Trata-se de situação análoga à que consta no art.<br />

362 do CPC, que prevê a emissão de ordem a terceiro para que exiba documentos necessários em<br />

processo no qual não atua como parte, havendo previsão, inclusive, de responsabili<strong>da</strong>de criminal<br />

(BELLINETTI, 2006, p. 88).<br />

A segun<strong>da</strong> questão advém <strong>da</strong> polêmica para se saber se a multa pode ser<br />

aplica<strong>da</strong> ao juiz. É interessante a idéia de Tereza Wambier (2002, p. 35), segundo a qual, “estão<br />

incluídos nos rigores <strong>da</strong> nova regra os magistrados que, por qualquer motivo, dificultem, por exemplo,<br />

o cumprimento de cartas de ordem ou precatórias, desde que sua conduta seja determinante<br />

para o esvaziamento do resultado concreto do provimento judicial”, porém, acredita ser muito<br />

difícil, do ponto de vista prático, <strong>da</strong>r aplicação tão ampla a essa punição, afinal, quem aplicaria a<br />

sanção se o autuado preside o processo?<br />

A terceira polêmica reside na expressa exclusão dos advogados, pois, enquanto<br />

tramitava no Congresso Nacional, foi altera<strong>da</strong> a proposta de re<strong>da</strong>ção do parágrafo único do art. 14.<br />

A re<strong>da</strong>ção anteriormente sugeri<strong>da</strong>, mais lacônica, permitia que se vislumbrasse a sua incidência<br />

também para punir a conduta do advogado.<br />

Para Fredie Didier Jr. (2003, p. 02), a re<strong>da</strong>ção do parágrafo único do art. 14 do<br />

CPC apenas aparentemente exclui os procuradores <strong>da</strong> incidência do referido dispositivo. Trata-se<br />

de falsa impressão. A um, porquanto a menção a tantos quantos participem do processo seja<br />

genérica o suficiente para englobar, também, os causídicos; a dois, porque o título do capítulo<br />

permanece o mesmo: “Dos deveres <strong>da</strong>s partes e dos seus procuradores”. A referência aos advogados<br />

desapareceu porque se tornou desnecessária com a inclusão desta nova parte final do caput.<br />

O que o autor quer dizer é que apenas se aplicam os quatro primeiros incisos<br />

aos advogados, visto que o parágrafo único apenas os exclui <strong>da</strong> incidência <strong>da</strong> multa com relação<br />

aos fatos previstos no inciso V.<br />

103<br />

9 Acórdão ou sentença transita<strong>da</strong> em julgado. Parcelas posteriores. Pagamento. Caráter man<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> decisão. Desobediência.<br />

Prisão. Possibili<strong>da</strong>de. A decisão judicial de revisão de pensão é man<strong>da</strong>mental no que atina com os pagamentos <strong>da</strong>s<br />

parcelas posteriores ao transito em julgado. Precedentes do STJ. O não-pagamento importa em desobediência à ordem<br />

judicial, pois implantar e não pagar e como não-implantar. Servidor ou agente público é passível de sanção pelo crime de<br />

desobediência à ordem judicial. Precedentes do STJ. A obediência às decisões judiciais é imperativo para a mantença do<br />

Estado Democrático de Direito e a ordem pública. (TJRS – Ag. Reg. 70002992162 – rel. Des. Adão Sérgio do Nascimento<br />

Cassiano – j. 24.04.2002). No mesmo sentido: Direito processual penal. Denúncia contra prefeito municipal. Imputação de<br />

crime de responsabili<strong>da</strong>de. Descumprimento imotivado de ordem judicial. Fatos descritos. Subsunção ao tipo penal indicado.<br />

Denúncia formalmente perfeita. Ordem judicial conti<strong>da</strong> em liminar de man<strong>da</strong>do de segurança. Indica<strong>da</strong>s as provas documentais<br />

comprobatórias <strong>da</strong> intimação judicial e do teor <strong>da</strong> ordem nela conti<strong>da</strong>. Inocorrência de qualquer <strong>da</strong>s hipóteses de rejeição<br />

<strong>da</strong> denúncia (art. 43/CPP). Inexistência de qualquer <strong>da</strong>s causas de extinção de punibili<strong>da</strong>de. Afasta<strong>da</strong>s as justificativas<br />

apresenta<strong>da</strong>s na resposta do denunciado. Não demonstra<strong>da</strong> a entrega direta ao vereador impetrante dos documentos cuja<br />

junta<strong>da</strong> aos autos foi determina<strong>da</strong>. Denuncia recebi<strong>da</strong>. Ulterior prosseguimento do feito nos termos do art. 7. E segs. Da lei<br />

n. 8.038/1990. (TJPR, Ac. 16761, Proc. 0152569-9, rel. Des. Luiz Mateus de Lima, 2ª Câm. Crim., j. 16.09.2004) (nossos<br />

grifos)<br />

10 TJRS ApCív e Reex. Nec. 70002763704, 2ª Câm. Cív., rel. Des. Maria Isabel de Azevedo Souza, j. 12.09.2001.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil<br />

104<br />

Sugere Tereza Wambier (2002, p. 19) que o título do capítulo deveria ser alterado<br />

para “Dos deveres dos participantes do processo”.<br />

Leciona Tucci (p. 25) que a falta profissional grave, inclusive aquela passível<br />

de ser emoldura<strong>da</strong> nos quadrantes do novo art. 14, quando detecta<strong>da</strong> pelo magistrado, deve ser<br />

comunica<strong>da</strong> à Ordem dos Advogados do Brasil para as devi<strong>da</strong>s providências. Cita como exemplo<br />

a regra do art. 196 do CPC, que se apresenta, nesse particular, clara e precisa, ao dispor ser: “...<br />

lícito a qualquer interessado cobrar os autos do advogado que exceder o prazo legal. Se, intimado,<br />

não os devolver dentro em 24 (vinte e quatro) horas, perderá o direito à vista fora do cartório e<br />

incorrerá em multa, correspondente à metade do salário mínimo vigente na sede juízo. Apura<strong>da</strong> a<br />

falta, o juiz comunicará o fato à seção local <strong>da</strong> Ordem dos Advogados do Brasil, para o procedimento<br />

disciplinar e imposição <strong>da</strong> multa” (TUCCI, 2002, p. 25).<br />

O art. 88 do estatuto processual italiano assevera que, diante de atos de má-fé<br />

processual, compete ao juiz apenas informar aos órgãos administrativos aos quais estão subordinados<br />

os advogados para que a estas instâncias caiba aplicar eventuais sanções disciplinares. 11<br />

De acordo com José Rogério Cruz e Tucci (2002, p. 27), inseridos no mesmo<br />

plano hierárquico, o advogado e o juiz jamais devem externar, na prática do respectivo ofício,<br />

qualquer ressentimento pessoal. To<strong>da</strong>via, o advogado e o juiz, que são homens como quaisquer<br />

outros, têm sentimentos profundos. Não são raras as ocorrências, em época contemporânea, que<br />

revelam as dificul<strong>da</strong>des que emergem do relacionamento advogado-juiz. É por essa razão que se<br />

justifica plenamente a exceção atinente aos advogados, uma vez que, nas mãos de juízes rancorosos,<br />

a inovação legislativa, se lhe fosse aplicável, acabaria sendo um instrumento de ameaça e de<br />

constrangimento para o livre exercício <strong>da</strong> advocacia. O ato decisório de índole jurisdicional, como<br />

emanação do poder estatal de que se reveste o juiz, constitui, portanto, instrumento deveras perigoso<br />

quando conspurca<strong>da</strong>, por qualquer motivo de ordem material ou espiritual, a imparciali<strong>da</strong>de que<br />

necessariamente deve exornar a administração <strong>da</strong> justiça.<br />

Segundo Dinamarco (2003, p. 68), a emen<strong>da</strong> que fizeram no texto original, que<br />

se associa à expressa imunização dos advogados à sanção comina<strong>da</strong> no novo parágrafo do art. 14,<br />

teve o nítido intuito de deixá-los também a salvo de to<strong>da</strong> disciplina ética processual, conti<strong>da</strong> no<br />

Código de Processo Civil, e do controle judicial de possíveis infrações. Essa é, porém, uma arbitrarie<strong>da</strong>de<br />

que só pela lógica do absurdo poderia prevalecer. Chegaria a ser inconstitucional dispensálos<br />

de to<strong>da</strong> carga ética, ou de parte dela, somente em nome de uma independência funcional que<br />

deve ter limites. Pelo teor explícito e claro <strong>da</strong>s primeiras palavras do parágrafo do art. 14, o advogado<br />

não fica sujeito à multa ali comina<strong>da</strong>, mas a lógica do razoável man<strong>da</strong> que ele fique sujeito a<br />

todos os deveres elencados no capítulo e à responsabili<strong>da</strong>de por litigância de má-fé, nos termos dos<br />

art. 16 e 18 do código de Processo Civil.<br />

Para Fredie Didier Jr. (2003, p. 16-17), a inexistência de vírgula após a palavra<br />

“advogados” poderia indicar que se estaria diante de uma oração subordina<strong>da</strong> restritiva. Para o<br />

referido autor, houve apenas um pecadilho gramatical do legislador: os advogados, tout court,<br />

estão excluídos <strong>da</strong> incidência <strong>da</strong> multa judicial. Isto porque realmente não haveria sentido em<br />

estabelecer esta capitis deminutio para os advogados públicos – seria, sem dúvi<strong>da</strong>, desigualação<br />

descabi<strong>da</strong>, pois se deve interpretar o dispositivo conforme a Constituição, sem a cogita<strong>da</strong> discriminação,<br />

que se afigura absolutamente irrazoável. 12<br />

Em linha de coerência, pelos mesmos argumentos, prossegue o referido autor<br />

que não poderá o magistrado aplicar esta multa ao membro do Ministério Público, que possui<br />

autonomia/independência funcional garanti<strong>da</strong>s constitucionalmente. Poderá, entretanto, tomar as<br />

mesmas providências, mutatis mutandis, no sentido de comunicar ao órgão do Parquet competente,<br />

a prática, por um membro seu, de condutas supostamente indevi<strong>da</strong>s (JORGE, 2003, p. 17).<br />

11 Dispõe o art. 88: “Dovere di lealtà e di probità. – Le parti e i loro difensori hanno il dovere di comportarsi in giudizio com<br />

leltà e probità. In caso di mancanza dei difensori a tale dovere, il giudice deve riferirne alle autorità che esercitano il potere<br />

disciplinares u di esse”.<br />

12 Em decisão de ADIN, o STF já decidiu também pela exclusão dos procuradores públicos.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

Se restar caracterizado que a conduta do advogado tenha obstado ou dificultado<br />

a produção de resultados do provimento jurisdicional, poderá o magistrado afastar a incidência<br />

<strong>da</strong> regra que excepciona o advogado, declarando sua inconstitucionali<strong>da</strong>de, em razão <strong>da</strong> violação<br />

do princípio <strong>da</strong> isonomia. Se o juiz e o promotor podem ser alcançados pelos rigores <strong>da</strong> regra, a<br />

exceção feita ao advogado rompe o necessário tratamento isonômico que a lei deve conferir aos<br />

operadores do direito no processo (WAMBIER, 2005, 150).<br />

Percebe-se que o alvo principal vislumbrado pelo legislador é a autori<strong>da</strong>de coatora<br />

no man<strong>da</strong>do de segurança, usualmente renitente no cumprimento <strong>da</strong>s decisões judiciais. Perceptível,<br />

também, é o aumento significativo dos poderes do magistrado, de modo a abranger sujeitos que<br />

não participam do processo tão diretamente. Para Fredie DidieJr. (2003, P. 17), o dispositivo criado<br />

funciona como norma geral, aplicável a quaisquer processos e procedimentos, abrangendo outros<br />

sujeitos, em diferentes circunstâncias.<br />

Shimura e Daniel Assumpção afirmam ser totalmente contrários ao que uns<br />

podem chamar de prerrogativas, mas que lhes parecem privilégios. Para os autores parece não<br />

restar dúvi<strong>da</strong> de que há uma inconstitucionali<strong>da</strong>de patente, já que o disposto no parágrafo único<br />

fere de forma cabal o princípio <strong>da</strong> isonomia, tratando de forma injustifica<strong>da</strong> funções que merecem,<br />

ao menos nesse tocante, o mesmo tratamento (NEVES, 2003, P. 60).<br />

Para os referidos autores a exclusão não se justifica, seja qual for a razão<br />

utiliza<strong>da</strong> para defendê-la, já que o advogado é, sem sombra de dúvi<strong>da</strong>s, o sujeito mais atuante no<br />

processo, o que mais pratica atos processuais, e conseqüentemente o que mais terá oportuni<strong>da</strong>de<br />

para se portar contrariamente aos deveres éticos do processo (WAMBIER, 2002, p. 34-35). 13<br />

A multa somente será cobra<strong>da</strong>, como bem visto anteriormente, após o esgotamento<br />

dos recursos, ficando à disposição do advogado todos os meios para impugná-la. Assim,<br />

ain<strong>da</strong> que o juiz <strong>da</strong> causa aplique a multa somente por vingança, ou desgosto pessoal do advogado,<br />

será a esse concedido todo o sistema recursal para reverter o abuso e a extrapolação do dever do<br />

juiz. Uma possível reversão <strong>da</strong> decisão, inclusive, poderá até mesmo ensejar representação do juiz<br />

junto a Corregedoria e eventual deman<strong>da</strong> de reparação de <strong>da</strong>nos promovi<strong>da</strong> pelo advogado lesado<br />

– até mesmo moralmente – em face do juiz (STOCO, 2002, p. 112-113). 14<br />

O advogado enfrenta a todos se preciso for, com sereni<strong>da</strong>de e firmeza, não se<br />

preocupando, inclusive por disposição de seu Estatuto, em desagra<strong>da</strong>r ninguém nessa função. Não<br />

nos resta dúvi<strong>da</strong> que a independência funcional do advogado deve ser respeita<strong>da</strong>, mas isso não<br />

pode nunca representar privilégios injustificados como a presente exclusão, já que acaba por maneira<br />

reflexa a dispensá-lo de respeitar as decisões judiciais, podendo opor obstáculos de to<strong>da</strong> a<br />

sorte para impedir que elas se efetivem ou ain<strong>da</strong>, se obrigado a fazer algo, simplesmente se negar<br />

a cumprir a decisão judicial.<br />

A razão <strong>da</strong> exclusão provavelmente tenha explicação num forte lobby<br />

corporativo perpetrado pela OAB que, embora tenha em seu estatuto a previsão de aplicação de<br />

multa (inciso IV do art. 35 <strong>da</strong> Lei 8906/94), não se tem notícia que ela tenha sido aplica<strong>da</strong>, em que<br />

pese ser muito comum atitudes de menosprezo e desrespeito ao exercício <strong>da</strong> jurisdição.<br />

105<br />

13 Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arru<strong>da</strong> Alvim Wambier, atentando para o possível aumento substancial de representações<br />

junto aos Tribunais de Ética <strong>da</strong> OAB, concluem de forma irretocável: “Aconselhável, até mesmo para a preservação de sua<br />

imagem histórica, construí<strong>da</strong> com suas memoráveis lutas em defesa do Estado de Direito, que a própria corporação tomasse<br />

a iniciativa de pleitear a eliminação desse privilégio excepcional, mediante proposta legislativa que poderia encaminhar ao<br />

Congresso Nacional. Iniciativa desse teor certamente contaria com o aplauso <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de jurídica e, muito especialmente,<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de ávi<strong>da</strong> por efetivi<strong>da</strong>de. A concessão de privilégios corporativos não se coaduna com o anseio de efetivi<strong>da</strong>de<br />

e democratização do sistema processual”.<br />

14 Afirma ser “a ressalva é frustrante e enfraquece o projeto e o objetivo precípuo de impedir a chicana e a litigância de máfé<br />

de alguns profissionais – por certo uma minoria”. “Como, infelizmente, esse comportamento advém de uma minoria,<br />

na<strong>da</strong> justifica que não se responsabilize pessoalmente o advogado inortodoxo pelo seu comportamento antiético e prejudicial<br />

ao regular an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> causa e que compromete os bons e honestos”.<br />

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O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil<br />

5.2 A Cumulação de Multas<br />

5.2.1 Cumulação do Artigo 14 com o 461<br />

106<br />

Considerando que a multa do art. 461 somente se aplica às partes, poderá<br />

ocorrer que a mesma parte (ou interveniente) tenha conduta que importe incidência de ambos os<br />

dispositivos, ou seja: é renitente em relação ao cumprimento de uma obrigação de fazer, não fazer<br />

ou <strong>da</strong>r, e ain<strong>da</strong> cause embaraço à efetivação de provimentos judiciais, nos termos do disposto no<br />

art. 14, V (segun<strong>da</strong> parte), do CPC. Nesse caso, na<strong>da</strong> impede que haja a condenação cumulativa<br />

em razão <strong>da</strong>s duas condutas.<br />

Também para Leonardo José Carneiro <strong>da</strong> Cunha (2001, p.103), em cujo entender<br />

podem incidir cumulativamente as multas do art. 461 e do art. 14, eis que seus “pressupostos<br />

são diversos”. Na mesma linha também é a sustentação de Hélio do Valle Pereira (2003, p. 218),<br />

para quem a multa do art. 14 tem caráter essencialmente punitivo e “não derroga outras possíveis<br />

conseqüências criminais, cíveis e processuais. Quer dizer, não se afasta a caracterização, por<br />

exemplo, do crime de desobediência, as sanções pela litigância de má-fé (art. 18) ou as medi<strong>da</strong>s do<br />

art. 461. Tudo pode ser aplicado concomitantemente”.<br />

Segundo a lição de Eduardo Talamini, o art. 461 protege o cumprimento <strong>da</strong><br />

ordem proferi<strong>da</strong> pelo juiz com medi<strong>da</strong>s de apoio ou de reforço. Dentre estas, o § 4º permite, ex<br />

officio, a fixação de multa pelo inadimplemento <strong>da</strong> decisão antecipatória <strong>da</strong> tutela ou <strong>da</strong> própria<br />

sentença. Trata-se de meio coercitivo, que “deverá” ser imposto àquele que descumprir o comando<br />

judicial, to<strong>da</strong> vez que o juiz pressentir a sua utili<strong>da</strong>de para constranger o réu, ou seja, “sempre<br />

que a multa revelar-se ‘suficiente e compatível com a obrigação’, segundo a fórmula adota<strong>da</strong> no<br />

art. 461, § 4º. Só ficará descartado o emprego <strong>da</strong> multa quando esta revelar-se absolutamente<br />

inócua ou desnecessária, em virtude de circunstâncias concretas” (TALAMANI 2002, p. 236).<br />

Para Teori Zavascki (1997, p. 115), a multa diária constitui mecanismo de coerção<br />

apto a induzir o cumprimento de obrigação positiva, vale dizer, a realização de uma ativi<strong>da</strong>de a<br />

ser desenvolvi<strong>da</strong>: a multa recai imediatamente, acumulando-se dia após dia e somente cessa com<br />

o adimplemento. Por outro lado, na hipótese de obrigação negativa, na qual a pretensão tem por<br />

escopo a omissão do réu, ou seja, a não atuação, a multa fixa é a apropria<strong>da</strong>. O caráter <strong>da</strong> medi<strong>da</strong><br />

coercitiva (imposição de multa de valor fixo) delineia-se aí preventivo, que será exigível em uma<br />

única oportuni<strong>da</strong>de, se e quando houver o descumprimento.<br />

Fredie Didier Jr (2003, 30). também entende que as multas p<strong>revista</strong>s nos arts.<br />

14 e 461 do CPC podem ser aplica<strong>da</strong>s cumulativamente, pois possuem natureza e função diversas.<br />

5.2.2 Cumulação do Artigo 14 com o 18<br />

A responsabili<strong>da</strong>de por litigância de má-fé é patrimonial e sempre em face do<br />

adversário, que é a parte inocente. A parte responde sempre por ela, quer o ato antiético tenha sido<br />

recomen<strong>da</strong>do ou autorizado ao defensor, quer não o haja sido: o man<strong>da</strong>nte responde sempre pelo<br />

ato do man<strong>da</strong>tário. O advogado só responde se houver participado conscientemente <strong>da</strong> ilicitude<br />

(EOAB, art. 34, inc. VI, X, XIV, XVII).<br />

A responsabili<strong>da</strong>de de todos esses sujeitos consiste em uma indenização e em<br />

uma multa, ambas devi<strong>da</strong>s à parte inocente. A indenização deve ser razoavelmente proporciona<strong>da</strong><br />

ao prejuízo sofrido (art. 16 e 18), mas pode ser arbitra<strong>da</strong> pelo juiz (em valor não superior a 20%<br />

sobre o valor <strong>da</strong> causa) logo ao impor a penali<strong>da</strong>de ou, se não for, mediante liqui<strong>da</strong>ção por<br />

arbitramento. A multa é sujeita ao limite máximo de 1% sobre o valor nominal <strong>da</strong> causa – e não<br />

sobre o <strong>da</strong> eventual condenação do infrator, na decisão <strong>da</strong> causa.<br />

Segundo Dinamarco, essa multa não se confunde com a que veio a ser instituí<strong>da</strong><br />

pelo novo parágrafo do art. 14 do Código de Processo Civil, que pode chegar a 20% do valor <strong>da</strong> causa,<br />

reverte em favor <strong>da</strong> União ou Estado (e não do adversário) e só incide nas hipóteses do inc V desse<br />

artigo e pode ser cumula<strong>da</strong> com as disciplinas dos arts. 16 e 18. (DINAMARCO, 2003, p. 66-67).<br />

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Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

5.2.3 Cumulação do Artigo 14 com o 601<br />

Segundo Luiz Rodrigues Wambier e outros, o juiz pode eventualmente, de ofício<br />

ou por provocação do credor, intimar o devedor para que ele indique quais são os seus bens<br />

penhoráveis (art. 652, § 3º) e mesmo onde se encontram (656, § 1º), sob pena de não o fazendo,<br />

atentar contra a digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> justiça (art. 600, IV) (WAMBIER, 2007, p. 188).<br />

Vale ressaltar que a teor do novo inciso IV do art. 600 do CPC, considera-se<br />

ato atentatório à digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> justiça o ato do executado que: “intimado, não indica ao juiz, em cinco<br />

dias, quais são e onde se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores”.<br />

Em segui<strong>da</strong>, também o novo § 1º, do art. 656, do CPC, prescreve que “é dever<br />

do executado (art. 600), no prazo fixado pelo juiz, indicar onde se encontram os bens sujeitos à<br />

execução, ..., bem como abster-se de qualquer atitude que dificulte ou embarace a realização <strong>da</strong><br />

penhora (art. 14, parágrafo único).”<br />

É possível concluir que as multas dos arts. 14, parágrafo único e 601 podem ser<br />

aplica<strong>da</strong>s cumulativamente, afinal, se o executado cria embaraço à efetivação de provimentos<br />

judiciais através de confusão patrimonial, mantendo até mesmo seus bens de uso pessoal, como<br />

carros <strong>da</strong> família, em nome de sua empresa e, também, intimado, não indica onde se encontram os<br />

bens passíveis de penhora, incorre em duas faltas com pressupostos distintos. Esta contra o credor,<br />

cuja multa lhe acresce o valor do seu crédito e a outra contra a Justiça, cuja multa se reverte ao<br />

Estado, Distrito Federal ou à União.<br />

Patrícia Pizzol (2003, p. 631) 15 manifesta idêntico entendimento ao afirmar<br />

que:<br />

[...] em conformi<strong>da</strong>de com o artigo 601 do CPC, na hipótese acima descrita<br />

(art. 600), o juiz tem o poder de impor multa ao devedor, em soma não<br />

superior a 20% (vinte por cento) do valor do débito em execução, sem<br />

prejuízo de outras sanções de natureza processual (por exemplo, a multa<br />

deste com o art. 14 do CPC, por haver praticado ato que atenta contra o<br />

exercício <strong>da</strong> jurisdição)....<br />

107<br />

15 “... in conformità all`art. 601 c.p.c., nelle ipotesi sopra descritte (art. 600), il giudice ha il potere di imporre al debitore<br />

multa, in somma non superiore al 20% (venti per cento) del valore del debito in esecuzione, senza pregiudizio di altre<br />

sanzioni di natura processuale (per esempio, la multa di cui all`art. 14 c.p.c., per aver praticato atto che attenta all`esercizio<br />

della giurisdizione) ...” (trad. livre)<br />

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O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil<br />

5.2.4 Quadro Comparativo de Multas no Código de Processo Civil<br />

108<br />

Quadro Comparativo de Multas no Código de Processo Civil<br />

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Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

6 CONCLUSÕES<br />

01) Para o direito anglo-saxônico, o contempt of court significa a prática de<br />

qualquer ato que ten<strong>da</strong> a ofender um tribunal na administração <strong>da</strong> justiça ou a diminuir sua autori<strong>da</strong>de<br />

ou digni<strong>da</strong>de, incluindo a desobediência a uma ordem.<br />

02) As sanções aplicáveis aos contempt of court por descumprimento, como<br />

meio executivo impróprio, de modo geral apresentam um espírito orientador e disciplinador, conexo<br />

à idéia do pleno respeito às ativi<strong>da</strong>de de administração <strong>da</strong> justiça e objetivam, assim, induzir ou<br />

compelir o contemnor a um determinado comportamento perante a Corte, ativo ou passivo, a fim<br />

de que a pretensão à adequa<strong>da</strong> prestação jurisdicional seja, afinal, satisfeita.<br />

03) Com o advento <strong>da</strong> Lei 10358/2001, a inclusão do inciso V e parágrafo único<br />

do art. 14, do CPC, implantou um eficaz mecanismo visando a coibir o contempt of court, genericamente<br />

entendido como desacato à ordem judicial.<br />

04) Não cumprir um provimento man<strong>da</strong>mental é desobedecer – e to<strong>da</strong> desobediência<br />

a atos estatais comporta a reação <strong>da</strong> ordem jurídica e dos agentes do poder público (no<br />

caso, o Estado-Juiz), seja no sentido de punir o infrator, seja para coagi-lo legitimamente a cumprir.<br />

05) Se ordens existem é para serem cumpri<strong>da</strong>s, não necessitando haver norma<br />

expressa para demonstrar tal obvie<strong>da</strong>de. O problema é que embora óbvia a obrigatorie<strong>da</strong>de de<br />

cumprimento <strong>da</strong>s ordens judiciais, verifica-se muito desrespeito por parte <strong>da</strong>queles que deveriam<br />

cumpri-las no caso concreto. Assim, diz-se o óbvio para prever a tal dever uma sanção, que infelizmente<br />

parece ser, nos tempos atuais, o único meio – e nem sempre eficaz – de evitar o absurdo<br />

desrespeito às ordens judiciais.<br />

06) São provimentos em direito processual, todos os atos portadores de uma<br />

vontade do Estado-Juiz, às vezes acompanhado de alguma determinação no sentido de realizar ou<br />

omitir uma conduta. Da<strong>da</strong> essa amplitude do gênero próximo em que se incluem as sentenças<br />

judiciais (provimentos), o inc. V do art. 14 do Código do Processo Civil abrange não só as sentenças,<br />

mas também os demais provimentos que o juiz emitir, e que tenham natureza man<strong>da</strong>mental<br />

(sentenças, decisões interlocutórias ou mesmo despachos).<br />

07) Estarão causando embaraço à efetivação dos provimentos jurisdicionais<br />

todos os atos ou omissões, culposos ou não, que criem dificul<strong>da</strong>des de qualquer espécie ao alcance<br />

do resultado prático a que está vocacionado o provimento jurisdicional.<br />

08) Se restar caracterizado que a conduta do advogado tenha obstado ou dificultado<br />

a produção de resultados do provimento jurisdicional, poderá o magistrado afastar a incidência<br />

<strong>da</strong> regra que o excepciona, declarando sua inconstitucionali<strong>da</strong>de, em razão <strong>da</strong> violação do<br />

princípio <strong>da</strong> isonomia, afinal, se o juiz e o promotor podem ser alcançados pelos rigores <strong>da</strong> regra, a<br />

exceção feita ao advogado rompe o necessário tratamento isonômico que a lei deve conferir aos<br />

operadores do direito no processo.<br />

09) A definição do valor <strong>da</strong> multa, tendo como parâmetro o valor <strong>da</strong> causa,<br />

parece não ter sido a melhor alternativa, eis que deixa ao desabrigo <strong>da</strong> pressão em favor do<br />

cumprimento <strong>da</strong>s decisões judiciais, processos em que o valor <strong>da</strong> causa é simbólico;<br />

10) Entre <strong>da</strong>r ao juiz um poder ilimitado no que tange ao valor <strong>da</strong> multa, e<br />

estabelecer um limite, ain<strong>da</strong> que sacrificando sua utili<strong>da</strong>de em alguns casos concretos, parece ter<br />

preferido o legislador a segun<strong>da</strong> opção.<br />

11) O percentual <strong>da</strong> multa está ligado à gravi<strong>da</strong>de do prejuízo que a conduta<br />

causou em relação aos resultados que o processo deveria produzir.<br />

12) Pela própria natureza, distinta <strong>da</strong>s demais existentes no ordenamento brasileiro,<br />

a qual tem por escopo a atuação protetiva do ordenamento, a multa do art. 14 é cumulável<br />

com outros tipos de multas, consoante reza o parágrafo único (“sem prejuízo <strong>da</strong>s sanções criminais,<br />

civis e processuais cabíveis”).<br />

13) No Brasil, pode-se considerar que o artigo 14 passa a contemplar o contempt<br />

of court civil somente no que tange à aplicação <strong>da</strong> multa, já que a prisão, embora proposta no projeto<br />

original apresentado pela Escola Superior <strong>da</strong> Magistratura e o Instituto de Direito Processual Brasileiro,<br />

não foi adiante, e o parágrafo segundo proposto ao artigo foi retirado de sua re<strong>da</strong>ção final.<br />

109<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil<br />

14) o pressuposto inafastável para que o litigante ou outro integrante do processo<br />

possa ser responsabilizado pelo contempt, consiste na existência de uma ordem que imponha<br />

especificamente a quem é dirigi<strong>da</strong> uma obrigação de fazer ou abster-se de fazer.<br />

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111<br />

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REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais<br />

CONTRATO: DO TRADICIONAL A CELEBRAÇÃO ELETRÔNICA –<br />

ASPECTOS FORMAIS<br />

Simone Vinhas de Oliveira*<br />

Valkíria A. Lopes Ferraro*<br />

Vinicius Franco <strong>da</strong> Silva*<br />

Wesley Tomaszweski*<br />

RESUMO<br />

Pretende-se expor as principais características formais de um contrato realizado por meio eletrônico<br />

na intenção de mostrar as linhas teóricas e científicas nas quais fun<strong>da</strong>mentam-se. Passa-se <strong>da</strong><br />

base principiológica dos contratos clássicos para as alterações e inovações, não só no âmbito<br />

principiológico, mas também, na utilização análoga dos institutos já existentes, quando assim for<br />

possível, corroborando-os com as situações fáticas que vieram à tona com o surgimento de uma<br />

nova tecnologia de comunicação viabilizando novas formas de contratação. Conclui-se pela viabili<strong>da</strong>de<br />

desse novo instrumento contratual e assegura-se sua proteção jurídica com o que aqui se<br />

expõe, argumentando-se favoravelmente e, inclusive, estimulando-se o crescimento do comércio<br />

eletrônico (e-commerce), visto que, por força do princípio <strong>da</strong> equivalência funcional, não se pode<br />

negar vali<strong>da</strong>de ou eficácia a um contrato simplesmente por este provir de meio eletrônico.<br />

Palavras-Chave: Contrato eletrônico. Princípios. Forma. Vali<strong>da</strong>de. Legitimi<strong>da</strong>de.<br />

112<br />

CONTRACT: OF THE TRADITIONAL A ELECTRONIC CELEBRATION -<br />

FORMAL ASPECTS<br />

ABSTRACT<br />

It is intended to expose the mainly formal characteristics of a contract made through eletronic<br />

ways in intention of show the theoric and scientific lines in wich it is based on. Goes throught the<br />

principles base of the classic contracts to the alterations and innovations, not only in the principles<br />

meaning, but also, when it is possible, in the analogical use of the existing institutes, corroborating<br />

them with the in fact situations that came up on the sprouting of a new technology of communication,<br />

making possible new ways of do the contracts. It is concluded for the viability of this new instrument<br />

of contract and assures your legal protection arguing favorably and also stimulating the growth of<br />

the eletronic commerce (e-commerce) because if you see the functional equivalence principel will<br />

be not possible deny validity and effectiveness to a contract simply because it cames from the<br />

eletronic way.<br />

Keywords: Electronic Contract. Principles. Form. Validity. Legitimacy.<br />

* Mestran<strong>da</strong> em Direito Negocial pela Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina - bolsista pela Capes.<br />

* Doutora em Direito Civil pela PUC de São Paulo – Docente do Curso de Mestrado em Direito Negocial <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Estadual de Londrina-PR – Docente do Curso de graduação – UEL<br />

-Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial – UEL. Orientadora do Projeto de pesquisa – “ O Direito<br />

Empresarial e suas Relações com as Tecnologias <strong>da</strong> Informação”<br />

* Graduando em Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina, integrante do Projeto de Pesquisa supra, do qual são também<br />

integrantes: João Carlos Leal Júnior, Lucas Franco de Paula, Paola Maria Gallina, Thaís Iglesias Barreira , Rogério Martins<br />

de Paula, Wagner Kaba. Bolsista PIBIC/CNPq.<br />

* Mestrando em Direito Negocial pela Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina – Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela<br />

CESUC/BB&G, bolsista pela Capes.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco <strong>da</strong> Silva e Wesley Tomaszweski<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

A socie<strong>da</strong>de atual encontra-se, em virtude do avanço científico, no maior grau<br />

de desenvolvimento tecnológico já vivido. Essa condição traz novos conceitos como globalização,<br />

digitalização e rede de informação. Convém destacar que as relações intersubjetivas, consagra<strong>da</strong>s<br />

no seio social, desde que se tem registro, foram, no sentido de <strong>da</strong>r segurança e estabelecer de<br />

forma ordena<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong>de, de certo modo, abarca<strong>da</strong>s pelo Direito (2003).<br />

Com base nessas duas premissas, ressalte-se que a ca<strong>da</strong> revolução tecnológica<br />

e social, os meios de se garantir essa interação evoluiu de forma igualitária. De fato o Direito está<br />

sempre observando os acontecimentos sociais, perseguindo-os, de modo a se fazer presente em<br />

seu encalço, pretendendo sua regulamentação. Daqui, deriva-se o brocardo jurídico: ubi societas,<br />

ibi ius 1 . Sendo que, é no contrato, pelo seu caráter cotidiano, que são revela<strong>da</strong>s as grandes transformações<br />

do ambiente social por funcionar como um “espelho” <strong>da</strong> relação existente entre os<br />

indivíduos.<br />

É justamente neste instrumento consagrado pela doutrina como viabilizador <strong>da</strong><br />

circulação de riquezas, que se desenvolve o presente estudo. O contrato sofre releituras de natureza<br />

paradigmática e principiológica e ain<strong>da</strong> encontra um novo cenário de realização, a saber: o<br />

ambiente virtual. Devido a restrição temática, bem como aos limites físicos do estudo analisar-seá<br />

a evolução do contrato em sua forma tradicional e as peculiari<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s devido a fatores<br />

proporcionados pela socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> informação.<br />

Parte <strong>da</strong> doutrina jurídica afirma que, nos dias atuais, não é mais possível a<br />

socie<strong>da</strong>de se desenvolver sem a informática, presente nos mais variados ramos <strong>da</strong>s ciências, <strong>da</strong><br />

geografia, ciências políticas, humanas e sociais à engenharia, medicina e ciências exatas e biológicas<br />

de modo geral, exaltando-se aí a medicina, amplamente coberta por aparelhos e máquinas que<br />

de alguma forma interagem com a informática (LAWAND, 2003, p. 3 e ss).<br />

A internet (CORRÊA, 2000) 2 inovação tecnológica no ramo <strong>da</strong>s telecomunicações,<br />

resultante do surgimento <strong>da</strong> informática, é o resultado de um processo gra<strong>da</strong>tivo, que se<br />

desenvolveu, primeiramente, no âmbito militar e acadêmico, para, posteriormente, se estabelecer<br />

em todo o mundo. Como todo meio de comunicação, o homem passou a utilizá-la como forma de<br />

interagir comercialmente, o que, com o passar dos anos, se intensificou e, com sua ampla utilização<br />

e desenvolvimento constante, fez nascer o e-commerce 3 .<br />

Este conceito se tornou o ícone primordial na revolução contratual que se percebe<br />

atualmente. Para fins eluci<strong>da</strong>tivos, a média de crescimento do setor no Brasil, nos últimos três<br />

anos, foi de 35%. Em números, temos para 2005 um movimento de R$ 12,5 bilhões e, para 2006,<br />

movimento de 30,9 bilhões (REVISTA GAZETA MERCANTIL, 2006).<br />

As características próprias desta rede, comunicação em tempo real e global 4 ,<br />

facili<strong>da</strong>de na obtenção de <strong>da</strong>dos estatísticos gerais e do consumidor, agili<strong>da</strong>de na propagação de<br />

ofertas, ofertas essas que exibem-se e vendem-se dentro dos limites do lar do consumidor, acabam<br />

por criar um ambiente no qual a redução de custos é assombrosa.<br />

Existe diminuição de custos na localização <strong>da</strong> outra parte de uma futura relação<br />

contratual, pois se faz possível, por meio <strong>da</strong> comunicação global e em tempo real, a fácil<br />

identificação de clientes potenciais e de usuários no mundo todo, sem que com isso seja necessário<br />

alterações na tecnologia ou novos custos.<br />

113<br />

1 Significa: “onde há socie<strong>da</strong>de há direito”.<br />

2 “A internet é um sistema global de rede de computadores que possibilita a comunicação e a transferência de arquivos de uma<br />

máquina a qualquer outra máquina que pertença à mesma rede, possibilitando, assim, um intercâmbio de informações sem<br />

precedentes na história, de maneira rápi<strong>da</strong>, eficiente e sem a limitação de fronteiras, culminando na criação de novos<br />

mecanismos de relacionamento.”<br />

3 E-commerce significa o comércio realizado através de meios eletrônicos. É equivalente ao termo comércio eletrônico.<br />

Geralmente ocorre por meio de sites ou sítios na rede.<br />

4 Global no sentido de integrali<strong>da</strong>de mundial. Uma mensagem emiti<strong>da</strong> de um local específico, está apta, em tempo real, a se<br />

apresentar em qualquer lugar do mundo. Assim como o telefone.<br />

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Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais<br />

Por chegar aos lares e propiciar a qualquer sujeito o acesso, sem nenhuma<br />

distinção ou discriminação, seja com relação a sexo, i<strong>da</strong>de, nacionali<strong>da</strong>de ou cor, diminui consideravelmente<br />

o custo com a divulgação <strong>da</strong> oferta contratual e aumenta, espantosamente, o público alvo<br />

e atingido pela oferta. Ain<strong>da</strong>, comparando-se a Internet à outras tecnologias de informação, como<br />

o telefone, é, a perder de vista, a opção mais barata e vantajosa tanto para o consumidor como para<br />

o empresário, reduzindo-se os custos e promovendo uma maior e melhor distribuição de riquezas.<br />

Como se percebe, com esse crescimento galopante e com a redução de custos<br />

contratuais, não poderia ficar de fora <strong>da</strong> apreciação jurídica essa nova reali<strong>da</strong>de. Para isso, o<br />

comércio eletrônico coloca em cheque todo um complexo doutrinário e jurídico já, há muito tempo,<br />

consagrados no direito contratual.<br />

O mesmo, em seus institutos e normas, bem como o direito obrigacional vêemse,<br />

ao menos em parte, sem uma exata correspondência quando se trata desta nova tecnologia.<br />

O que justifica o presente estudo é tentar estabelecer as alterações, as novas<br />

concepções, formas e condições de realização, ou seja, seus aspectos formais, por meio de um<br />

estudo analógico do direito contratual clássico e do direito contratual derivado <strong>da</strong>s relações no<br />

ambiente virtual proposto pela mais atual doutrina e in<strong>da</strong>gações jurídicas, levando-se em consideração<br />

que a analogia nem sempre será a solução, visto que novas tecnologias, muitas vezes, deman<strong>da</strong>m<br />

novas soluções por não haver utili<strong>da</strong>de. Em determina<strong>da</strong>s circunstâncias, nem há possibili<strong>da</strong>de<br />

de subsunção do tradicional ou comum ao novo, situação na qual se opta por uma solução ontológica,<br />

basea<strong>da</strong> nos princípios que deram origem aos institutos contratuais e tomando estes como um<br />

ponto fixo para a análise do paradigma digital (LORENZETTI, 2004, p. 49-53 e 68).<br />

2 CONTRATO: ALGUNS ASPECTOS DE SUA EVOLUÇÃO<br />

114<br />

Antes de estabelecer um conceito didático a respeito do contrato eletrônico, é<br />

necessário emergir o gênero do qual este se faz espécie. O contrato se traduz, sobretudo, num<br />

meio seguro e efetivo de se consagrar transações econômicas, de circulação de riquezas no âmbito<br />

social (DIAS, 2004, p. 52-53).<br />

O conceito de contrato, sem os acréscimos pertinentes ao ramo do direito eletrônico,<br />

é bem definido como o meio pelo qual as partes pactuam a criação de uma obrigação,<br />

submetendo-os, pois nasce <strong>da</strong> relativa autonomia <strong>da</strong> vontade <strong>da</strong> qual gozam (DIAS, 2004, p. 52).<br />

Já, considerando a atuação estatal na regulação dos acordos de vontades, limitando-os<br />

em virtude do Estado Social que preza a submissão às normas de ordem pública, Pablo S.<br />

Gagliano e Rodolfo P. Filho (2005, p. 11-12) salientam que:<br />

... o contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes,<br />

limita<strong>da</strong>s pelo princípio <strong>da</strong> função social e <strong>da</strong> boa-fé objetiva, autodisciplinam<br />

os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia <strong>da</strong>s<br />

suas próprias vontades.<br />

Percebe-se aqui uma modelagem contratual revesti<strong>da</strong> de elementos que, numa<br />

visão rápi<strong>da</strong> e superficial, não parecem constituir instituto próprio e descendente de época histórica<br />

que o caracteriza. Antes <strong>da</strong> função castradora do Estado no relacionamento negocial <strong>da</strong>s partes,<br />

tínhamos o contrato baseado na liber<strong>da</strong>de total, fruto dos ideais que consoli<strong>da</strong>ram a Revolução<br />

Francesa. Portanto, é necessária uma breve consideração histórica deste instituto.<br />

Há que se destacar as principais contribuições que as socie<strong>da</strong>des que se organizaram<br />

no decorrer <strong>da</strong> história, a partir do Direito Romano, legaram ao contrato.<br />

Destaca, Caio Mario (2001, p. 225 e s.), que sobre o contrato atuam diversas<br />

forças <strong>da</strong>s quais duas devem ser destacas: “a força obrigatória e a influência de fatores determinantes<br />

<strong>da</strong>s injunções sociais”.<br />

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Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco <strong>da</strong> Silva e Wesley Tomaszweski<br />

Com relação às influência de fatores sociais, no contrato pode vigorar a liber<strong>da</strong>de<br />

contratual, seja subjetiva (escolha de quem contratar), objetiva (definição <strong>da</strong> obrigação) ou<br />

formal (escolha tipológica <strong>da</strong>s cláusulas). Ou, então, pode, de forma contrária, desaparecer essa<br />

autonomia <strong>da</strong>ndo lugar a imposição do Estado, por meio de matérias de ordem pública, em caráter<br />

transitório ou permanente.<br />

No entanto, cabe-nos destacar bem sucintamente a origem <strong>da</strong> roupagem atual<br />

dos contratos.<br />

O Direito Romano, contado em to<strong>da</strong>s as suas manifestação ao decorrer do<br />

tempo, teve várias posições diferentes com relação ao contrato. A obrigação, no início, não nascia<br />

em virtude de uma relação meramente individual, mas sim com base nos relacionamentos, muitas<br />

vezes hostis, entre grupos de indivíduos. A Lei <strong>da</strong>s XII Tábuas, quando afunila essa noção geradora<br />

de obrigações de grupos para as relações interpessoais, mantém essa hostili<strong>da</strong>de, como podemos<br />

perceber na espécie de concurso de credores que, como o próprio autor supra citado diz é no<br />

mínimo macabro.<br />

Tal concurso permitia que o próprio corpo do devedor, dividido em quantas<br />

partes bastassem, dentro <strong>da</strong> proporção do crédito de ca<strong>da</strong> credor, fosse utilizado como forma de<br />

sanar a dívi<strong>da</strong> do devedor.<br />

Em 428 antes de Cristo, a Lex Poetelia Papira, promovendo a maior transformação<br />

pela qual passou o Direito Obrigacional, estipulou fosse a responsabili<strong>da</strong>de pela divi<strong>da</strong> recaí<strong>da</strong><br />

sobre os bens do devedor e não mais sobre sua pessoa, pecuniae creditae bona debitoris,<br />

non corpus obnoxium esse.<br />

O desenvolvimento econômico e social em virtude do crescimento <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des<br />

individuais cria o contrato e seu poder vinculativo e é, ain<strong>da</strong> na Lei <strong>da</strong>s XII Tábuas, que se<br />

encontra o poder vinculativo derivado <strong>da</strong> palavra e do que foi tratado verbalmente, observado<br />

determinados requisitos. Advieram maiores complexi<strong>da</strong>des sociais na vi<strong>da</strong> romana em virtude de<br />

seu desenvolvimento e <strong>da</strong> plurali<strong>da</strong>de de negócios o que originou uma necessi<strong>da</strong>de de trazer certa<br />

materiali<strong>da</strong>de ao contrato.<br />

Em virtude disso, surgiram, por meio de Gaius, quatro mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des contratuais:<br />

contratos re, que eram os contratos que se perfectibilizavam através de entrega de coisa; contratos<br />

litteris, realizado pela inscrição <strong>da</strong> obrigação no codex do devedor; contratos verbis, o contrato<br />

verbal realizado mediante requisitos; e, mais tarde, o contrato consensu. Finalizando, Gaius, com a<br />

afirmativa de que as obrigações ora nascem do contrato, ora do delito.<br />

Estabeleceu-se no Baixo Império e espalhou-se por to<strong>da</strong> a I<strong>da</strong>de Média a praxe<br />

contratual que via o nascimento <strong>da</strong> obrigação na simples proclamação verbal. Era necessário<br />

aos escribas, para satisfazer as necessi<strong>da</strong>de do Direito Romano, que reduzissem a termo as convenções.<br />

Porém, e é isso que deu origem aos contratos consensu, a praxe fez com que os escribas<br />

observassem na re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> proclamação verbal que todos os rituais imprescindíveis tinham sido<br />

observados, embora não o tivessem.<br />

Passou-se, portanto, a considerar apenas a declaração <strong>da</strong>s partes no surgimento<br />

<strong>da</strong>s obrigações, reduzindo, posteriormente os escribas, a termo como se todos os rituais tivessem<br />

sido observados. Bastava-se, então, a declaração de vontades.<br />

Conclui-se que as características e a modelagem contratual modificam-se de<br />

acordo com a socie<strong>da</strong>de, tecnologia e costumes a que se submetem. O contrato estabelecido com<br />

os ditames libertários <strong>da</strong> Revolução Francesa é apoiado na autonomia <strong>da</strong> vontade, por meio <strong>da</strong> qual<br />

duas pessoas, de forma paritária, circulavam riquezas, seja pela compra e ven<strong>da</strong>, locação, entre<br />

outros, obedecendo simplesmente os seus interesses e volições está em declínio.<br />

Um instrumento contratual que culmina <strong>da</strong> vontade de duas pessoas em igual<strong>da</strong>de<br />

de condições, no qual se discute preço, prazo, condições, está ca<strong>da</strong> vez mais escasso. A<br />

socie<strong>da</strong>de neocapitalista, mergulha<strong>da</strong> num caos produtivo, faz emergir novas riquezas importantes,<br />

como os valores mobiliários e bens imateriais, enfraquecendo o valor que os bens imóveis representam<br />

no domínio econômico.<br />

Os bens tornam-se descartáveis, na<strong>da</strong> mais é duradouro, a contratação sob<br />

uma nova roupagem se faz necessária para que não exista uma lesão massifica<strong>da</strong> na socie<strong>da</strong>de.<br />

115<br />

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Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais<br />

Ca<strong>da</strong> vez menos se verifica o contrato característico <strong>da</strong> autonomia <strong>da</strong> vontade<br />

em igual<strong>da</strong>de de condições, realizado entre pessoas físicas, mas sim a massificação contratual,<br />

evidenciando a padronização, limita<strong>da</strong> pelo Estado em conceitos como o <strong>da</strong> função social do contrato<br />

e <strong>da</strong> defesa do consumidor. É nesse ambiente que surge o contrato eletrônico, como um dos<br />

novos meios de se realizar a circulação de riquezas num mundo caracterizado pela padronização e<br />

agili<strong>da</strong>de na circulação de riquezas por meio <strong>da</strong> produção e consumo.<br />

O contrato é a convergência <strong>da</strong>s manifestações de vontade <strong>da</strong>s partes, visando<br />

a realização de determina<strong>da</strong> obrigação. O contrato eletrônico, nesse diapasão, é quando a convergência<br />

<strong>da</strong>s manifestações de vontade se realiza por intermédio de um meio eletrônico capaz de<br />

veicular de forma <strong>completa</strong> o cerne dessa manifestação.<br />

2.1 Principiologia Contratual e suas Inovações Decorrentes do Comércio Eletrônico<br />

116<br />

Os princípios são a base <strong>da</strong> construção jurídica, o baluarte de criação, inovação<br />

e interpelação do Direito na vi<strong>da</strong> social. De acordo com a explanação sobre princípios de Ricardo<br />

L. Lorenzetti, os princípios são utilizados pelo juiz para julgar, pelo legislador para legislar, pelo<br />

jurista para raciocinar e embasar seus tratados e pelo operador do Direito como ferramenta de<br />

trabalho, trazendo para a especifici<strong>da</strong>de do caso concreto a concepção principiológica já a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>.<br />

Diz, ain<strong>da</strong>, o supracitado jurista, que o princípio é um enunciado que permite<br />

resolver um problema e orientar um comportamento. São normas de sentido abstrato, sem conteúdo<br />

pronto e acabado, sendo, portanto, flexíveis, esperando o complemento trazido pelas necessi<strong>da</strong>des<br />

casuísticas (LORFENZETTI, 2004, p. 82-83).<br />

Como descrito no início do tópico 2, sendo o contrato eletrônico uma espécie de<br />

contrato, não se pode olvi<strong>da</strong>r a aplicabili<strong>da</strong>de dos conceitos principiológicos contratuais tradicionais<br />

no âmbito do comércio eletrônico. As contratações eletrônicas só podem desenvolver-se, no Brasil,<br />

em virtude do princípio <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de de forma para contratação não solene.<br />

Graças a um princípio tradicional, pode-se estabelecer essa nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

contratual. Porém, pela especiali<strong>da</strong>de do tema, emergem <strong>da</strong>s condições desta nova tecnologia<br />

princípios próprios, característicos e necessários, por não serem suficientes à esgotar as possibili<strong>da</strong>des<br />

do tema, os tradicionais. Princípios estes que derivaram <strong>da</strong> discussão mundial a respeito do<br />

assunto.<br />

Em 1996, com a criação <strong>da</strong> Lei Modelo sobre Comércio Eletrônico<br />

(UNCITRAL), pela Comissão de Direito Internacional <strong>da</strong> Organização <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s<br />

(FERREIRA; BAPTISTA, 2002, p. 90-91), percebe-se a consoli<strong>da</strong>ção de algum deles. Os princípios<br />

que norteiam a contratação eletrônica servem aos propósitos de identificação, autenticação,<br />

impedimento de rejeição, verificação e privaci<strong>da</strong>de (ORTIZ, 2001, p. 37).<br />

Portanto, pode-se delinear os seguintes princípios referentes aos contratos eletrônicos:<br />

“princípio <strong>da</strong> equivalência funcional; princípio <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de tecnológica <strong>da</strong>s disposições<br />

reguladoras do comércio eletrônico e princípio <strong>da</strong> inalterabili<strong>da</strong>de do direito existente sobre obrigações<br />

e contratos”. Tendo em mente que não se pretende esgotar a base principiológica nesta<br />

humilde abor<strong>da</strong>gem, mas sim mostrar que com a atual evolução tecnológica pode-se, inclusive,<br />

constituir-se novos.<br />

2.1.1 Princípio <strong>da</strong> Equivalência Funcional<br />

Princípio decorrente <strong>da</strong> UNCITRAL que visa a garantir, aos contratos realizados<br />

por meio eletrônico, to<strong>da</strong>s as condições <strong>da</strong> qual gozam os contratos estabelecidos em papel e<br />

registrados em tabelionato. Com isso evita-se qualquer tipo de repugnância ou preconceito à essa<br />

nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de (LAWAND, 203, p. 42 e s.).<br />

Não se pode negar vali<strong>da</strong>de ou eficácia ao contrato argumentando-se, exclusivamente,<br />

ter sido ele firmado por meio eletrônico (FERREIRA; BAPTISTA, 2002, p. 91). Têm-se,<br />

portanto, em funcionali<strong>da</strong>de contratual, equivalência entre o tradicional e novo.<br />

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Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco <strong>da</strong> Silva e Wesley Tomaszweski<br />

Este princípio busca duas conseqüências jurídicas: a impossibili<strong>da</strong>de de ser considerado<br />

inválido o contrato em base virtual, exclusivamente por sua natureza eletrônica; e o resguardo<br />

quanto à possíveis impedimentos legais exclusivos ao contrato eletrônico, quando este restar<br />

exclusivamente pela sua natureza eletrônica.<br />

2.1.2 Princípio <strong>da</strong> Neutrali<strong>da</strong>de Tecnológica <strong>da</strong>s Disposições Reguladoras do<br />

Comércio Eletrônico<br />

A Lei Modelo, em seu item 8, parte final, afirma: “Cabe assinalar que, em<br />

princípio, não se exclui nenhuma técnica de comunicação do âmbito <strong>da</strong> Lei Modelo, de forma a<br />

acolher em seu regime to<strong>da</strong> eventual inovação técnica neste campo”.<br />

Têm-se, aqui, a real preocupação <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> Lei em não restringir sua aplicação<br />

à tecnologias hoje existentes e que, porventura, possam vir a ser considera<strong>da</strong>s, em futuro<br />

próximo, obsoletas (LAWAND, 2003, p. 45). Isso faz com que a legislação deriva<strong>da</strong> <strong>da</strong> UNCITRAL<br />

não abarque apenas as tecnologias existentes na época de sua promulgação, mas, também, inovações<br />

tecnológicas que derivem do desenvolvimento constante dessa área, sem que com isso se<br />

faça necessário reformulações legislativas.<br />

É o caso do protocolo Wap, que capacita o acesso à Internet por meio de um<br />

telefone celular, sem a necessi<strong>da</strong>de do uso de computadores, ou, ain<strong>da</strong>, se for descoberto um meio<br />

criptográfico ou qualquer outra forma de se garantir a autoria e autentici<strong>da</strong>de do documento eletrônico,<br />

que torne a criptografia assimétrica 5 obsoleta.<br />

Ana Paula Gambogi Carvalho (CARVALHO, 2001, p. 152), quanto ao projeto<br />

nacional sobre comércio eletrônico, diz que: “A lei a ser promulga<strong>da</strong> deve ser tecnologicamente<br />

neutra, ou seja, reconhecer a vali<strong>da</strong>de jurídica não apenas do sistema de criptografia assimétrica,<br />

mas também de outras tecnologias equiparáveis, que aten<strong>da</strong>m aos mesmos fins”.<br />

E a importância desse princípio se faz clara. Não se pode admitir uma norma<br />

geral seja promulga<strong>da</strong> de forma fecha<strong>da</strong> e vincula<strong>da</strong> aos meios tecnológicos atuais. A própria<br />

orientação culturalista de nossa atual legislação civil não aprova tal situação. To<strong>da</strong> e qualquer<br />

norma geral é promulga<strong>da</strong> regulando situações, justamente, gerais.<br />

Não cabe à norma perder sua eficácia visto a possibili<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>nças<br />

tecnológicas, tão presentes e rápi<strong>da</strong>s inclusive, ou a evolução comercial e contratual seja tolhi<strong>da</strong> de<br />

melhores condições visto a vigência de lei precária sobre o assunto. Portanto, a neutrali<strong>da</strong>de<br />

tecnológica, além de importante, é necessária para a própria segurança do sistema.<br />

117<br />

2.1.3 Princípio <strong>da</strong> Inalterabili<strong>da</strong>de do Direito Existente Sobre Obrigações Contratos<br />

Para esclarecer tal princípio necessário se faz ter nítido que um contrato eletrônico,<br />

firmado por meio <strong>da</strong> internet, não traz diferenças substancias com relação aos contratos em<br />

geral. A função <strong>da</strong> nova tecnologia é servir de meio para a celebração contratual e não fim.<br />

Então, não se trata aqui de novas formulações com relação ao direito obrigacional<br />

ou contratual. Estes continuam intactos. Novas a<strong>da</strong>ptações se fazem necessárias para que se<br />

possa garantir o valor probante <strong>da</strong>quilo que resultou do consenso <strong>da</strong>s partes levando em consideração<br />

aquilo que foi ofertado e aceito através do meio utilizado, qual seja, a internet.<br />

Determina, portanto, o princípio, que a internet, em especial, ou o meio eletrônico,<br />

de forma geral, é apenas uma nova forma de transmissão <strong>da</strong>s vontades dos negociantes e não<br />

um novo direito regulador <strong>da</strong>s mesmas. Todos os requisitos e pressupostos contratuais já consagrados<br />

não se alteram substancialmente (LAWAND, 2003, p. 47 e s.). Não obstando o aparecimento<br />

de determina<strong>da</strong>s inovações e a<strong>da</strong>ptações jurídicas no âmbito <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de, pela especiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

tecnologia.<br />

5 Melhor explana<strong>da</strong> no Tópico 3.5, a respeito <strong>da</strong> Vali<strong>da</strong>de dos Contratos Eletrônicos.<br />

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Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais<br />

2.2 A terminologia Contrato Eletrônico em Contraposição à Contrato Informático<br />

Contratos informáticos são aqueles que tem por objeto bens ou serviços de<br />

informática, celebrados por qualquer que seja o meio, eletrônico ou não. Já na contratação eletrônica<br />

o objeto é livre, desde que lícito e determinável, tendo como meio de formação contratual o<br />

eletrônico (COLARES, 2006, p. 111).<br />

Melhor explicando, o contrato eletrônico recebe o nome do meio utilizado para<br />

sua celebração, o eletrônico, enquanto o contrato informático recebe o nome do objeto, ou seja,<br />

artigos informáticos ou serviços que venham a ser prestados exclusivamente no âmbito <strong>da</strong><br />

informática.<br />

3 ASPECTOS FORMAIS DO CONTRATO E SUA ADAPTAÇÃO AOS CONTRATOS<br />

ELETRÔNICOS<br />

Como aqui pretende-se abor<strong>da</strong>r os contornos do contrato eletrônico, na<strong>da</strong> mais<br />

justificável do que mostrar as a<strong>da</strong>ptações contratuais que surgiram em virtude do novo meio de<br />

comunicação ao invés de falar-se a respeito de um novo complexo científico que vise abarcar a<br />

inovação tecnológica.<br />

3.1 Natureza Jurídica<br />

118<br />

Falar sobre natureza jurídica é o mesmo que tentar encaixar o instituto num<br />

gênero jurídico que lhe seja antecessor, superior e consequentemente maior em abrangência. Como<br />

ensina Jorge José Lawand (2003, p. 88), o questionamento à respeito <strong>da</strong> natureza jurídica visa a<br />

qualificação, o enquadramento de uma regra dentro de determina<strong>da</strong> estrutura ou categoria jurídica<br />

na qual possa se subsumir.<br />

No que toca o instituto jurídico objeto deste estudo, entende-se por sua natureza<br />

jurídica, contrato que tenha por objeto bem disponível, seja formado pelo consentimento gerado<br />

por manifestações de vontade ora entre presentes, ora entre ausentes, conforme a instantanei<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> formação do vínculo, atrelado à mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de negócio jurídico formado fora do estabelecimento<br />

comercial.<br />

3.2 Momento de Formação<br />

Importante se faz a especificação do momento de formação do contrato eletrônico<br />

para que as consequências jurídicas, decorrentes de tal vínculo, possam surtir seus efeitos.<br />

Assim como na formação do vínculo contratual fora do meio eletrônico, têm-se, para esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

específica, contratos entre “presentes” e entre “ausentes”.<br />

Nos moldes <strong>da</strong> contratação clássica, temos, nos contratos entre ausentes, uma<br />

distância geográfica que deman<strong>da</strong> um tempo juridicamente relevante para que se efetue a comunicação.<br />

Entretanto, a tecnologia vem a neutralizar a geografia e, apesar de se ter pessoas fisicamente<br />

distantes, a mensagem passa a ser instantânea.<br />

O telefone é um exemplo inicial a respeito <strong>da</strong> neutralização geográfica entre<br />

pessoas fisicamente distantes para a celebração de um contrato por meio de um sistema de comunicação<br />

instantâneo (LORENZETTI, 2004, p. 313-314). Assim como no exemplo, o contrato eletrônico<br />

pode ganhar status de celebrado entre presentes, interpretando-se analogicamente a Lei<br />

10.406 de 2002 (Novo Código Civil), em seu artigo 428, I, considera-se também como presentes os<br />

que contratam por telefone ou “meio de comunicação análogo”.<br />

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Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco <strong>da</strong> Silva e Wesley Tomaszweski<br />

Portanto, basta que o contrato eletrônico seja firmado através de comunicação<br />

instantânea 6 para que se estabeleça vínculo entre presentes, visto que se trata de meio de comunicação<br />

semelhante e há perfeita subsunção <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de fática à norma vigente. Vale ressalvar que<br />

a partir do momento em que o ofertante se faz sentir <strong>da</strong> aceitação do oblato, têm-se firmado o<br />

certame obrigacional.<br />

Apesar do meio de comunicação eletrônico propiciar a instantanei<strong>da</strong>de de mensagens,<br />

casos há em que se tem a formação contratual “não instantânea”(LORENZETTI, 2004, p.<br />

323), ou entre “ausentes”, levando-se em conta um maior lapso temporal decorrido do intercâmbio<br />

<strong>da</strong>s mensagens, como no caso de formação por intermédio de correio eletrônico, e-commerce,<br />

entre outros.<br />

Para explicar a perfectibilização de um vínculo contratual entre ausentes,<br />

têm-se duas principais teorias, a <strong>da</strong> cognição, que exige que a resposta do aceitante chegasse ao<br />

conhecimento do proponente, e a <strong>da</strong> agnição que dispensa o conhecimento <strong>da</strong> resposta.<br />

No Brasil, com o Código de 1916, em seu artigo 1086, era considera<strong>da</strong> como<br />

váli<strong>da</strong> a teoria <strong>da</strong> agnição através de sua subteoria, a <strong>da</strong> expedição, ou seja, considera-se formado<br />

o contrato com o envio <strong>da</strong> aceitação ao proponente.<br />

Entrementes, o atual código estabelece, em seu artigo 434, que a formação<br />

contratual acontece quando a aceitação é expedi<strong>da</strong>, porém ressalva exceções em seus incisos o<br />

que nos levar a perceber a alteração <strong>da</strong> tendência do código para outra subteoria <strong>da</strong> agnição, qual<br />

seja, a <strong>da</strong> recepção (GAGLIANO, 2005, p. 105 e s.).<br />

Nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 20), o atual código:<br />

estabeleceu três exceções: a) no caso de haver retratação do aceitante; b) se<br />

o proponente se houver comprometido a esperar resposta; e c) se ela não<br />

chegar no prazo convencionado. Ora, se sempre é permiti<strong>da</strong> a retratação<br />

antes de a resposta chegar às mãos do proponente, e se, ain<strong>da</strong>, não se reputa<br />

concluído o contrato na hipótese de a resposta não chegar no prazo<br />

convencionado, na reali<strong>da</strong>de o referido diploma filiou-se à teoria <strong>da</strong> recepção,<br />

e não à <strong>da</strong> expedição.<br />

119<br />

Além disso, considerando a segurança na formação do negócio jurídico em<br />

virtude do meio eletrônico, estabeleceu-se, também, na prática, considerar formado quando a<br />

confirmação chegue à esfera de conhecimento do proponente, não sendo necessário que este<br />

tome conhecimento efetivo <strong>da</strong> resposta, mas, apenas, que esta esteja disponível no seu âmbito de<br />

conhecimento.<br />

É, portanto, o proponente, responsável, no caso de contrato formado via correio<br />

eletrônico, pela manutenção de seu equipamento em estado que possibilite a recepção <strong>da</strong> resposta,<br />

como no caso de não recebimento de e-mail por estar a caixa de correio sem espaço suficiente.<br />

Têm-se, concluindo-se, que a formação dos contratos eletrônicos entre ausentes se perfectibiliza<br />

com a recepção, pelo policitante, <strong>da</strong> aceitação do oblato.<br />

3.3 Lugar de Formação<br />

O Direito Brasileiro abarca a teoria que determina a formação contratual no<br />

lugar em que este é proposto. Nos termos do artigo 435 do Código Civil, “o contrato reputa-se<br />

celebrado no lugar onde foi proposto”. Tal determinação, longe de ser desnecessária, reveste-se de<br />

extrema utili<strong>da</strong>de quando, por exemplo, o juiz tiver de analisar questões de cunho axiológico e<br />

costumeiro do lugar onde o negócio fora pactuado, ou, ain<strong>da</strong>, quando surgirem questões de competência<br />

(GAGLIANO, 2005, p. 110 e 111).<br />

6 Diálogo interativo que implica atos instantâneos, como se percebe no IRC – Internet Relay Chat, Msn, ICQ, entre outros.<br />

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Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais<br />

Entretanto, no tocante aos contratos eletrônicos, como definir o local de formação,<br />

visto que há duas possibili<strong>da</strong>des, quais sejam: a) o local onde encontra-se o equipamento por<br />

meio do qual fora realiza<strong>da</strong> a proposta, ou seu endereço lógico; e b) o local <strong>da</strong> residência do<br />

policitante.<br />

Seguindo os passos de Álvaro Marcos Cordeiro Maia, independentemente <strong>da</strong><br />

posição geográfica do equipamento utilizado, reputa-se celebrado o contrato eletrônico no lugar <strong>da</strong><br />

residência do proponente, ou seja, opta-se pela segun<strong>da</strong> alternativa. Isso se dá, principalmente, por<br />

questões de segurança. Se assim não fosse, haveria abertura para fraude ou prejuízo à contratante<br />

de boa-fé.<br />

Ilustrando, há que se imaginar um proponente, residente num país cujas leis<br />

consumeiristas sejam rígi<strong>da</strong>s, realizando seus negócios por meio de equipamento ou endereço lógico<br />

localizado em país diverso, preferencialmente com leis consumeiristas escassas, inexistentes ou,<br />

ao menos, mais relaxa<strong>da</strong>s em relação ao local de sua residência, com o intuito de furtar-se de<br />

responsabili<strong>da</strong>des. Neste sentido, a Lei Modelo <strong>da</strong> UNCITRAL, estabelece em seu art. 15, § 4º,<br />

que uma declaração eletrônica se considerará expedi<strong>da</strong> e recebi<strong>da</strong> no lugar onde remetente e<br />

destinatário, respectivamente, tenham seu estabelecimento, no caso de mais de um, onde tenham o<br />

principal. Portanto, têm-se como principal norte que se reputa celebrado o contrato eletrônico no<br />

lugar onde reside o proponente ou onde esteja afixado seu estabelecimento principal.<br />

De qualquer sorte, em hipótese que se admite apenas para argumentar, destaca-se<br />

que as considerações são teci<strong>da</strong>s à luz do Direito comparado e magistério <strong>da</strong> doutrina, uma<br />

vez que em solo brasileiro inexiste qualquer tipo de legislação específica acerca <strong>da</strong> contratação<br />

internacional e <strong>da</strong> tutela <strong>da</strong>s ações que nasçam com base no meio eletrônico, principalmente, do<br />

consumidor por suas características de hipossuficiência e vulnerabili<strong>da</strong>de.<br />

Ademais, o julgador conta com o ordenamento jurídico posto, e este lhe remete<br />

as disposições <strong>da</strong> Lei de Introdução ao Código Civil – LICC, a qual condiciona a existência de<br />

tratado e relacionamento com o outro país envolvido na celebração.<br />

120<br />

3.4 Vali<strong>da</strong>de<br />

Quando se fala a respeito dos pressupostos de vali<strong>da</strong>de contratual, tem-se,<br />

como forma resumi<strong>da</strong>, que o contrato deve nascer de uma manifestação de vontade emana<strong>da</strong> de<br />

maneira livre e de boa-fé. Só pode ser manifesta<strong>da</strong> de forma livre se o agente for capaz na<br />

realização do ato.<br />

Com relação a esta capaci<strong>da</strong>de não se remete, o leitor, à idéia de capaci<strong>da</strong>de<br />

genérica <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de, mas sim à específica condição de ser pólo de determinado contrato, que<br />

tem como “legitimi<strong>da</strong>de”. É de boa-fé o contrato que tenha por objeto bem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> “idôneo”, ou<br />

seja, “lícito”, que este possa ser “possível” (física e juridicamente), de figurar como objeto contratual<br />

e que tal seja “determinado” ou “determinável”, aquele que seja individualizado ou com elementos<br />

mínimos capazes de individualizá-lo.<br />

Como eluci<strong>da</strong>ção é válido citar o artigo 426 do atual Código Civil que determina<br />

a proibição de figurar como objeto contratual a herança de pessoa viva. A forma também possui o<br />

seu lugar na averiguação <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de do vínculo formado, portanto deve ser a adequa<strong>da</strong> para ca<strong>da</strong><br />

caso, ou seja, a “prescrita” ou “não defesa em lei” (GAGLIANO, 2005, p. 22-23).<br />

Caso, em um contrato, não se perceba algum desses elementos, aquele nascerá<br />

nulo. Trata-se de pressupostos de vali<strong>da</strong>de cuja falta, seja de um ou mais, reputa a nuli<strong>da</strong>de do<br />

negócio celebrado.<br />

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Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco <strong>da</strong> Silva e Wesley Tomaszweski<br />

3.4.1 Forma<br />

Há que se <strong>da</strong>r mais uma palavra a respeito <strong>da</strong> forma. Tem-se, no artigo 107, do<br />

atual Código, a positivação do “princípio <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> forma” para os negócios jurídicos. Assim,<br />

estabelece-se, como regra geral, que os negócios jurídicos sejam firmados sem a observância de<br />

forma determina<strong>da</strong> 7 .<br />

Aqui é que se percebe o grande fun<strong>da</strong>mento positivo para a contratação eletrônica,<br />

visto que esta, por excelência, está basea<strong>da</strong> no princípio <strong>da</strong> livre forma, pois o que caracteriza<br />

o comércio eletrônico é justamente o meio de comunicação veiculador de vontades e seu registro<br />

em suporte diverso <strong>da</strong> cártula habitual.<br />

3.4.2 Legitimação e a determinação <strong>da</strong> autoria<br />

O documento eletrônico é o meio físico, geralmente magnético ou óptico, capaz<br />

de armazenar, para a posteriori<strong>da</strong>de, aquilo estabelecido no contrato eletrônico, e, apesar de registrado<br />

em uma base não física, possui idonei<strong>da</strong>de para veicular o interesses <strong>da</strong>s partes (DIAS, 2004,<br />

p. 82). Porém, por não estarem, as partes, fisicamente presentes, é necessário que se estabeleça<br />

meios de se auferir a autoria, a autentici<strong>da</strong>de dos sujeitos envolvidos na relação jurídica.<br />

É este o grande problema do meio eletrônico. É aqui a base de situações capazes<br />

de gerar insegurança jurídica na contratação. Como determinar quem, exatamente, está do<br />

outro lado de um computador aceitando ou fazendo proposta negocial? Sabe-se que a legitimi<strong>da</strong>de<br />

para a contratação é pressuposto de vali<strong>da</strong>de do negócio, assim como a licitude e a determinação<br />

do objeto, sendo, portanto, nulo o negócio jurídico realizado por incapaz. Qual a responsabili<strong>da</strong>de<br />

envolvi<strong>da</strong> nessa situação?<br />

Uma forma simples e barata de resolver a questão é a adoção de webcams 8 ,<br />

no momento <strong>da</strong> manifestação <strong>da</strong> vontade, que nos dá a certeza <strong>da</strong> pessoali<strong>da</strong>de e autoria do sujeito<br />

contratante. Porém, torna-se inviável, tal medi<strong>da</strong>, por aumentar os custos do processo.<br />

Ricardo L. Lorenzetti (2004, p. 293), ensina que, como regra geral tem-se “aquele<br />

que utiliza meio eletrônico e cria uma aparência de que este pertence à sua esfera de interesse,<br />

arca com os riscos e com os ônus de demonstrar o contrário”. Esta regra se dá com base na<br />

necessi<strong>da</strong>de de comportamentos de cooperação eficientes, sendo que quem opta pela contratação<br />

eletrônica deve estar orientado em realizar os atos nos meios mais seguros e prevenir-se contra<br />

terceiros mal-intencionados.<br />

Não é admissível que este preten<strong>da</strong> que o ônus seja suportado pelo destinatário,<br />

o que se tornaria muito mais oneroso. Entende o autor supra-citado, que se trata <strong>da</strong> atribuição dos<br />

riscos que derivam do meio utilizado (LORENZETTI, 2004, p.293 e s.).<br />

O que se tem como solução para o problema, maior objeto de pesquisa no<br />

âmbito <strong>da</strong> contratação eletrônica, é a adoção <strong>da</strong> certificação, uso de senhas, assinaturas eletrônicas<br />

ou digitais, ou, mesmo, um contrato prévio, onde as partes estão presentes, estabelecendo que<br />

se reputa a determinado sujeito to<strong>da</strong> e qualquer contratação, realiza<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong>quele equipamento<br />

(LORENZETTI, 2004, 291).<br />

121<br />

7 A não ser quando esta é estabeleci<strong>da</strong> em lei, como visto acima.<br />

8 Pequenas câmeras de vídeo, de baixa resolução, utiliza<strong>da</strong>s para a transmissão em tempo real <strong>da</strong> imagem <strong>da</strong> pessoa que está<br />

operando o computador naquele momento.<br />

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Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais<br />

4 CONCLUSÃO<br />

122<br />

Como exposto, desde o intróito, o crescimento <strong>da</strong> contratação eletrônica é galopante<br />

e inevitável, assim como a rede mundial de computadores. A natureza humana revela-se,<br />

no sentido de receio e temor pelo desconhecido, entretanto alguns indivíduos são investigadores e<br />

desbravadores (uns mais outros menos) e aceitam o desafio de adentrar ao admirável mundo novo,<br />

a vi<strong>da</strong> virtual. Nesse sentido, centrou o presente estudo na doutrina pátria e internacional, já que<br />

esta investiga e proporciona suporte teórico para o legislador e aplicador do direito.<br />

Em sede de conclusões e em aperta<strong>da</strong> síntese, é possível destacar ser perfeitamente<br />

possível a contratação eletrônica sendo, inclusive, esta, abarca<strong>da</strong> pelo Direito pátrio, por<br />

meio o Código Civil brasileiro baseado em uma filosofia culturalista que abre a lei para o que se tem<br />

de novo no campo social, interpretando essas novas insurgências do meio, muitas vezes,<br />

analogicamente.<br />

A abertura do sistema e a aplicação principiológica revelam-se como um suporte<br />

normativo, à disposição do operador do direito. Cabe à doutrina e à jurisprudência delinear e<br />

localizar as deficiências e peculiari<strong>da</strong>des do cenário eletrônico para que este disponha de meios<br />

que proporcione maior segurança aos contratantes.<br />

Nesse sentido, localiza-se a primeira problemática. Definir a natureza jurídica<br />

do contrato eletrônico. A doutrina ain<strong>da</strong> não chegou a um entendimento uníssono. Se não fosse<br />

suficiente, restam dúvi<strong>da</strong>s quanto à legitimação <strong>da</strong>s partes envolvi<strong>da</strong>s, o que requer um uso<br />

supervalorizado <strong>da</strong> boa-fé dos contratantes.<br />

Enfim, a socie<strong>da</strong>de hodierna caracteriza-se pela globalização, digitalização e<br />

veloci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> informação. Resta ao direito buscar tutelar as relações nesta desenvolvi<strong>da</strong>s, uma<br />

vez que negar a evolução constante <strong>da</strong>s instituições jurídicas, principalmente <strong>da</strong>s relações priva<strong>da</strong>s,<br />

pelo aspecto cotidiano, seria omitir-se quanto a evolução do próprio homem e do meio em que ele<br />

está inserido.<br />

REFERÊNCIAS<br />

CAIO MARIO, <strong>da</strong> Silva Pereira. Direito Civil: alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro:<br />

Forense, 2001.<br />

CARVALHO, Ana Paula Gabogi. Contratos Via Internet. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.<br />

COLARES, Rodrigo Guimarães. Internet Legal: O Direito na Tecnologia <strong>da</strong> Informação. Artigo:<br />

Contratos Eletrônicos x Informáticos. Mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des Contratuais ganharam novas terminologias. 4.<br />

tiragem. Curitiba: Juruá, 2006.<br />

CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos Jurídicos <strong>da</strong> Internet. São Paulo: Saraiva, 2000.<br />

DIAS, Jean Carlos, Direito Contratual no Ambiente Virtual, 2. ed. rev. e atu. Curitiba: Juruá, 2004.<br />

FERREIRA, Ivette Senise; BAPTISTA, Luiz Olavo. Novas Fronteiras do Direito na<br />

Era Digital. São Paulo: Saraiva, 2002.<br />

GAGLIANO, Pablo Stolze; PANPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Contratos.<br />

v. 4. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 2005.<br />

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito <strong>da</strong>s Obrigações – Parte Especial – Contratos (Sinopse<br />

Jurídicas), Tomo I. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.<br />

LAWAND, Jorge José. Teoria geral dos Contratos Eletrônicos. São Paulo: Juarez de Oliveira,<br />

2003.<br />

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Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco <strong>da</strong> Silva e Wesley Tomaszweski<br />

LORENZETTI, Ricardo L. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.<br />

ORTIZ, Rafael IIIescas. Derecho de la contratación eletrônica. Madrid: Civitas Ediciones,<br />

2001.<br />

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.<br />

REVISTA GAZETA MERCANTIL: E-commerce - Comércio varejista virtual. 04.01.2006.<br />

123<br />

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Linha de Pesquisa “Teorias do Direito do Estado e Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia”


Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller<br />

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER CONSTITUINTE<br />

Ana Carolina Miiller Lopes*<br />

Ana Karina Ticianelli Möller*<br />

RESUMO<br />

O artigo trata do Poder Constituinte Originário, analisado como um fato não jurídico, que ocorre no<br />

plano <strong>da</strong>s relações político-sociais, e constrói, a partir de si, a lei suprema. Expõe em situação<br />

diversa o Poder Constituinte Derivado, como um segundo poder, jurídico, calcado em uma regra<br />

constitucional do Direito e seus limites.<br />

Palavras-chave: Poder Constituinte Originário. Poder Constituinte Derivado.<br />

CONSIDERINGS ON THE CONSTITUENT POWER<br />

ABSTRACT<br />

The article deals with the Originary Constituent Power, analyzed as a not legal fact, that occurs in<br />

the plan of the social politician relations, and constructs, from itself, the supreme law. Derivative<br />

displays in diverse situation the Constituent, as as to be able, legal, treaded Power in a constitutional<br />

rule of the Right and its limits.<br />

Keywords: To be Able Constituent Originary. To be Able Constituent Derivative.<br />

127<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

O texto pretende a análise do Poder Constituinte Originário como um fato não<br />

jurídico, que ocorre no plano <strong>da</strong>s relações político-sociais, não encontra como referencial nenhuma<br />

norma jurídica, e constrói, a partir de si, a lei suprema, afirmado como o momento de passagem do<br />

poder ao direito. Situação diversa encontra-se o Poder Constituinte Derivado, calcado em uma<br />

regra de Direito, constitucional, que permite a Emen<strong>da</strong> Constitucional.<br />

Compreender a origem, a força e a atuação do Poderes Constituintes Originário<br />

e Derivado, este com todos seus limites, aquele de poder ilimitado, torna-se necessário para<br />

compreensão <strong>da</strong> própria história <strong>da</strong> Constituição, bem como de seu significado para to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de.<br />

2 O PODER CONSTITUINTE<br />

Poder Constituinte é aquele entendido como o Poder de se elaborar uma Constituição;<br />

capaz de criar, modificar ou implementar normas de força constitucional. É um poder<br />

primário, primogênito, de primeiro grau, genuíno, não adstrito a nenhum outro poder ou direito<br />

(DINIZ, 2004). É ilimitado, incondicionado, não tem por referencial nenhuma norma jurídica, pelo<br />

contrário, é a partir dele que vai ser produzi<strong>da</strong> a norma suprema, o texto jurídico. Portanto o Poder<br />

Constituinte é pré-jurídico, precede à formação do direito, não sofre embargo de ordem jurídica e/<br />

ou nenhuma outra ordem.<br />

* Advoga<strong>da</strong>, especialista em Direito Empresarial, mestran<strong>da</strong> em Direito Negocial pela Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina.<br />

* Advoga<strong>da</strong>, especialista em Direito Empresarial, mestran<strong>da</strong> em Direito Negocial pela Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina.<br />

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Considerações sobre o Poder Constituinte<br />

128<br />

Pode-se afirmar que o Poder Constituinte Originário é o maior momento de<br />

ruptura com uma ordem constitucional, sendo que, devido à força do Poder Originário, essa nova<br />

ordem constitucional que se inicia não terá qualquer limite jurídico positivo naquele sistema com o<br />

qual se está rompendo.<br />

Celso Antonio Bandeira de Melo (1983, p.69) entende que o Poder Constituinte<br />

não se constitui um fato jurídico, já que o ser incondicionado, o ser ilimitado já demonstra que não<br />

sofre nenhum tipo de restrição, e, portanto, não tem por referencial nenhuma norma jurídica. E<br />

dessa forma, também não se teria de falar que o Poder Constituinte confere poder a alguém, já que<br />

o Poder Constituinte é um fato, ou alguém tem este poder e o exerce ou não tem este Poder. Ele<br />

existe por si só e assim produz seus efeitos, sem que algum bloqueio de ordem jurídica possa servir<br />

de embargo, de óbice, de impeço àquilo que venha a ser disposto pelo Poder Constituinte.<br />

O titular do Poder Constituinte é o povo, pois a idéia de titulari<strong>da</strong>de do Poder<br />

está adstrita à imagem de soberania do Estado, uma vez que através do exercício do Poder Constituinte<br />

Originário se estabelecerá sua organização fun<strong>da</strong>mental através <strong>da</strong> Constituição. Assim, a<br />

titulari<strong>da</strong>de do Poder Constituinte pertence ao povo, pois o Estado decorre dessa soberania popular.<br />

Entretanto, não se confunde titulari<strong>da</strong>de com exercício, sendo que o titular do poder constituinte<br />

é o povo, entretanto o seu exercício é realizado por aqueles que, em nome do povo, criam o Estado,<br />

editando uma nova Constituição.<br />

A Constituição é feita não pelo, mas para o Estado, a ponto de se afirmar que,<br />

juridicamente falando, a ca<strong>da</strong> nova Constituição corresponde a um novo Estado, sendo, por essa<br />

razão, no entendimento de Miguel Nogueira de Brito (2000, p. 32) “que to<strong>da</strong> a Constituição Positiva<br />

toma o nome do Estado que ela põe no mundo <strong>da</strong>s positivi<strong>da</strong>des jurídicas”, como “República Federativa<br />

do Brasil”. Ain<strong>da</strong> do mesmo autor, “... a própria Constituição originária, que é a primeira voz<br />

do Direito aos ouvidos do povo, é gesta<strong>da</strong> por ele e somente por ele, o Poder Constituinte”.<br />

O exercício do Poder Constituinte Originário realiza-se por meio <strong>da</strong> outorga,<br />

também chama<strong>da</strong> de “Movimento Revolucionário” e <strong>da</strong> Assembléia Nacional Constituinte. A outorga<br />

é o estabelecimento <strong>da</strong> Constituição pelo próprio detentor do poder, sem a participação popular.<br />

É ato unilateral do governante, que auto-limita o seu poder e impõe as regras constitucionais ao<br />

povo. Geralmente é a primeira forma de Constituição de um país que adquire liber<strong>da</strong>de política. Já<br />

a Assembléia Nacional Constituinte é a forma típica de exercício do poder constituinte, em que o<br />

povo, seu legítimo titular, democraticamente, outorga poderes a seus representantes especialmente<br />

eleitos para a elaboração <strong>da</strong> Constituição. Ocorre em to<strong>da</strong>s as demais Constituições após a outorga<br />

<strong>da</strong> primeira (MORAES, 2004, p.58).<br />

Para o professor Pinto Ferreira (apud MAGALHÃES, 2004) existem dois<br />

tipos principais de organização do poder constituinte. O primeiro é o modelo <strong>da</strong> convenção constitucional,<br />

que é o tipo primitivo onde existe uma assembléia eleita pelo povo para elaborar a Constituição,<br />

e não há necessi<strong>da</strong>de de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto,<br />

onde a Constituição é vota<strong>da</strong> pela convenção nacional e posteriormente é submeti<strong>da</strong> à aprovação<br />

popular através do referendo, sendo que esta última é ti<strong>da</strong> como a forma mais democrática de<br />

realização do Poder Constituinte.<br />

O Poder Constituinte Originário é forte o suficiente para romper com o<br />

ordenamento anterior sem qualquer limite jurídico positivo. É um poder de fato, de transformação<br />

social, e aí reside a sua força. Uma Constituição deve ser tão forte e perene a ponto de nenhum<br />

poder jurídico conseguir romper com seus fun<strong>da</strong>mentos e estrutura. Apenas um poder social fortalecido<br />

tem autori<strong>da</strong>de para tal, legitimando essa ruptura, sem ilegali<strong>da</strong>de ou inconstitucionali<strong>da</strong>de<br />

em relação ao ordenamento rompido.<br />

Com a afirmativa de que somente o poder constituinte é poder de fato – histórico<br />

e transformador, e não jurídico, tem-se a segurança de que a Constituição não será objeto de<br />

manobra política por parte <strong>da</strong> rotativi<strong>da</strong>de parlamentar, evitando que os interesses sejam constantemente<br />

modificados, à mercê de uma minoria, ain<strong>da</strong> que esta minoria seja, teoricamente, a representação<br />

de uma socie<strong>da</strong>de.<br />

O desenvolvimento de mecanismos representativos e consultivos, como o plebiscito<br />

e o referendo, para alteração do texto constitucional, deve ser analisado com cautela, pois a<br />

força <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong> manipuladora pode proporcionar uma falsa vontade popular. Na<strong>da</strong> justifica,<br />

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Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller<br />

senão uma mobilização popular genuína, as rupturas profun<strong>da</strong>s constitucionais. O Poder Constituinte<br />

somente será legítimo quando sustentado por um amplo processo democrático, constituindo-se<br />

também um Poder de Direito, entendendo o direito não como texto positivado, mas como idéia de<br />

justiça, fun<strong>da</strong>mentando democraticamente as rupturas constitucionais, com debate profundo dos<br />

mais variados interesses e valores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de nacional.<br />

Para Antonio Negri (In: BRITO, 2000, p.35) o poder constituinte apresenta-se<br />

como uma dilatação revolucionária <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de humana de fazer história, como um ato fun<strong>da</strong>mental<br />

de inovação, e, deste modo, como um procedimento absoluto, que significa a capaci<strong>da</strong>de<br />

real, de organizar uma estrutura dinâmica, de construir uma forma formadora que, através de<br />

compromissos, balanços de forças, ordens e equilíbrios diversos, encontra a racionali<strong>da</strong>de dos<br />

princípios, a adequação material do político relativamente ao social.<br />

Encontra-se, historicamente, o Poder Constituinte exercido de diversas maneiras,<br />

tendo como sujeito grupos, com interesses além dos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, ou indivíduos, como ditadores,<br />

reis, titulares de um poder nem sempre legítimo, com distorções graves do conceito de democracia.<br />

Mas também exercido de forma diferente, com expressa representação e manifestação<br />

popular, <strong>da</strong> vontade nacional.<br />

É certo que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos,<br />

que permitam que o processo de elaboração <strong>da</strong> constituição, assim como de sua reforma,<br />

seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representantes<br />

eleitos, mas através do poder de soberania do povo. Portanto, o Poder Constituinte Originário<br />

pertence a uma assembléia eleita com a finali<strong>da</strong>de de elaborar a Constituição, deixando de existir<br />

quando cumpri<strong>da</strong> tal função, e, assim sendo, é um poder temporário.<br />

Também pode o Poder Constituinte resultar de um golpe de militar, como foi o<br />

caso do Brasil, exercido com a Carta de 1967 e uma nova Carta em 1969, denomina<strong>da</strong> de Emen<strong>da</strong><br />

nº 1, cujo processo <strong>da</strong> reforma constitucional reflete as tensões internas do regime <strong>da</strong> época, <strong>da</strong><br />

oposição dos moderados à linha dura do regime vigente.<br />

O poder será democrático quando existir de forma ampla a demonstração e<br />

discussão de temas de importância nacional, com a efetiva participação <strong>da</strong>s forças sociais, com o<br />

mínimo de pressão de grupos econômicos e manipulação por meio de marketing político, a fim de<br />

se evitar que a vontade de uma minoria prevaleça sobre a vontade e as necessi<strong>da</strong>des reais de to<strong>da</strong><br />

a socie<strong>da</strong>de.<br />

A aceitação e legitimação do texto pela socie<strong>da</strong>de são tão necessárias que,<br />

embora essencial a existência de um processo democrático na sua elaboração, pode nascer de<br />

forma inadequa<strong>da</strong> e, mesmo assim, ser incorpora<strong>da</strong> pela socie<strong>da</strong>de, como no caso <strong>da</strong> Lei Fun<strong>da</strong>mental<br />

alemã de 1949, ain<strong>da</strong> hoje vivi<strong>da</strong> pelos alemães, como ver<strong>da</strong>deira Constituição, entre outros<br />

exemplos históricos.<br />

Julian Franklin (In: BRITO, 2000, p.16) explica que Locke introduziu pela primeira<br />

vez a distinção clara e consistente entre poder constituinte e poder ordinário, de aplicação<br />

universal, estabelecendo o princípio de que os representantes ordinários, independente do fato de<br />

terem sido eleitos democraticamente, não podem alterar procedimentos constitucionais ou liber<strong>da</strong>des<br />

do sistema que sejam constitucionalmente reserva<strong>da</strong>s aos indivíduos, sem o consentimento de<br />

to<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong>de. O modo de Locke fun<strong>da</strong>mentar o direito de resistência ressaltou a importância<br />

dos conflitos entre rei e parlamento que caracterizavam a história política inglesa do Séc. XVII, a<br />

serem resolvidos por meio <strong>da</strong> soberania do povo. Para Locke, existe um poder constituinte permanente<br />

no povo, referente à sua titulari<strong>da</strong>de, mas não ao respectivo exercício. Fun<strong>da</strong>menta com o<br />

fato de o poder constituinte aparecer equacionado com o direito de resistência.<br />

Apesar do Poder Constituinte ser um poder político por excelência, não se<br />

deixando regrar pelo Direito, não significa que está imune aos fatores sócio-culturais <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

que o detém. A legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Constituição a ser constituí<strong>da</strong> está intrinsecamente liga<strong>da</strong> ao reconhecimento<br />

político que terá por esta mesma socie<strong>da</strong>de. Há sim uma independência formal e<br />

material, um rompimento com a carta anterior, mas a construção e a conquista dos direitos fun<strong>da</strong>mentais<br />

<strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des não podem ser relegados e esquecidos quando <strong>da</strong> elaboração <strong>da</strong> nova<br />

carta. São direitos que precedem a própria Constituição, que independem de sua positivação para<br />

sua aceitação pela socie<strong>da</strong>de.<br />

129<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Considerações sobre o Poder Constituinte<br />

130<br />

Existe um grande questionamento sobre a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Constituinte para<br />

romper com os direitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> ordem constitucional anterior. E a Assembléia Nacional<br />

Constituinte pode realmente fazer isso, já que seu poder é incondicionado a qualquer norma jurídica,<br />

além de soberana e de ter poder ilimitado para dispor <strong>da</strong> forma como desejar. Entretanto é certo<br />

que os direitos e garantias fun<strong>da</strong>mentais independem de positivação para serem reconhecidos<br />

como legítimos pelo povo. Assim, não é uma Constituição que tem o Poder para positivar tais<br />

direitos e garantias, mas, sim, estes são positivados nas Constituições por serem direitos vivenciados<br />

e reconhecidos pela socie<strong>da</strong>de.<br />

Por isso que, mesmo a Constituinte sendo legítima, no sentido literal <strong>da</strong> palavra,<br />

para dispor e até excluir esses direitos e garantias fun<strong>da</strong>mentais do texto constitucional, não será<br />

reconheci<strong>da</strong> pela socie<strong>da</strong>de tal exclusão, já que o povo soberano reconhece tais valores como<br />

direitos seus legítimos, e, assim sendo, continuarão a requerê-los quando houver violação ou ameaça<br />

de violação dos mesmos, independentemente de sua positivação.<br />

Quando o povo se reúne em uma Assembléia Nacional, que representa a socie<strong>da</strong>de<br />

e não o Estado, assumindo sua natureza constituinte, e positiva seus direitos e suas diretrizes,<br />

exerce a plena soberania e transforma este poder de constituir em poder constituído, saindo <strong>da</strong><br />

esfera política e adentrando, agora, sim, na esfera jurídica. Dissolve-se a Assembléia no momento<br />

<strong>da</strong> positivação e promulgação <strong>da</strong> nova Carta.<br />

A Constituição Federal de 1998 foi incorpora<strong>da</strong> pela socie<strong>da</strong>de brasileira e tem<br />

em ca<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>dão, socie<strong>da</strong>de organiza<strong>da</strong>, tribunais e juízos de primeiro grau, administradores e<br />

legisladores, seus intérpretes e defensores contra a ação do Congresso Nacional e alguns juízes,<br />

quando deixam de aplicar o texto constitucional para proteger políticas econômicas inconstitucionais,<br />

ou utilizam de emen<strong>da</strong>s constitucionais, inconstitucionais, visando priorizar o econômico, contra o<br />

Direito e a Justiça (MAGALHÃES, 2004).<br />

Em relação à Constituição Federal de 1988 há questionamento por parte de<br />

alguns autores e doutrinadores sobre a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Assembléia Nacional Constituinte convoca<strong>da</strong><br />

para compor a elaboração <strong>da</strong> nova Carta Magna do Brasil. Ocorre que a convocatória <strong>da</strong> Assembléia<br />

Constituinte se deu através <strong>da</strong> Emen<strong>da</strong> Constitucional nº 26 à Constituição Federal de 1969,<br />

por iniciativa do próprio Poder Executivo, que tenta transformar o Congresso, que é um poder<br />

constituído e limitado, em um órgão de soberania como deve ser a Assembléia Constituinte<br />

(BONAVIDES, 2004, p. 493). Assim, foram eleitos deputados e senadores, uma assembléia congressista<br />

que não viria a ser dissolvi<strong>da</strong> posteriormente, para a mais importante tarefa de criar a<br />

nova Carta Constitucional, sendo que tal fato exclui <strong>da</strong> Assembléia Nacional Constituinte os requisitos<br />

<strong>da</strong> soberania popular plena e ruptura com a ordem constitucional anterior, pressupostos que<br />

são fun<strong>da</strong>mentais para a uma Constituinte, o que fun<strong>da</strong>menta a discussão sobre sua legitimi<strong>da</strong>de.<br />

Cabe, porém, ressaltar que, embora tenha havido vários problemas de ordem<br />

formal, que, muitas vezes, colocam em dúvi<strong>da</strong> a real legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Constituinte, é certo que, em<br />

to<strong>da</strong> a história constitucional brasileira, não houve outra Constituinte na qual o povo estivesse tão<br />

perto dos man<strong>da</strong>tários <strong>da</strong> soberania e pudessem, sem qualquer óbice ou restrição, colaborar para o<br />

atual texto constitucional, participando efetivamente de sua instituição. Assim, tais fatos bastam, no<br />

entendimento de Paulo Bonavides (2004, p. 496), para “explicar e demonstrar o alto índice de<br />

legitimação alcançado pela Constituinte congressual, redimi<strong>da</strong> assim de suas origens impuras”<br />

visto que devido à tamanha participação social em sua elaboração há integral reconhecimento,<br />

incorporação e vivência de seu conteúdo pela socie<strong>da</strong>de brasileira.<br />

3 O PODER CONSTITUINTE DERIVADO E SEUS LIMITES<br />

Diferente do Poder Constituinte Originário, que tem como finali<strong>da</strong>de a elaboração<br />

de uma nova Constituição, o Poder Constituinte Derivado, também chamado de Reformador,<br />

pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observados<br />

os limites impostos. Diz respeito à alteração de elementos secundários de uma ordem jurídica,<br />

tendo em vista não ser possível alterar através de emen<strong>da</strong> ou revisão os princípios fun<strong>da</strong>mentais ou<br />

estruturais de uma ordem constitucional. Os princípios fun<strong>da</strong>mentais e estruturantes são a essência<br />

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Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller<br />

<strong>da</strong> Constituição, e, mesmo que não haja cláusula expressa que proíba emen<strong>da</strong> ou revisão, a essência<br />

não pode ser altera<strong>da</strong>.<br />

O Poder de revisão é mais amplo que o de emen<strong>da</strong>, pois trata de uma revisão<br />

sistêmica do texto constitucional. Apesar de p<strong>revista</strong> na Constituição brasileira, a revisão foi concretiza<strong>da</strong><br />

atipicamente, por meio de emen<strong>da</strong>s, porém respeitados os aspectos formais processuais<br />

<strong>da</strong> revisão p<strong>revista</strong> no Ato <strong>da</strong>s Disposições Constitucionais Transitórias.<br />

Enquanto o Poder Constituinte Originário visa resolver o problema <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção<br />

de um novo corpo político, o poder de revisão se encarrega com o problema <strong>da</strong>s alterações <strong>da</strong><br />

constituição e tem a ver com a questão de saber como poderão as gerações futuras exercer o seu<br />

consentimento relativamente à lei fun<strong>da</strong>mental (BRITO, 2000, p. 125).<br />

O poder de reforma pode manifestar-se a qualquer tempo, desde que respeitados<br />

determinados limites. Em relação aos limites do Poder Constituinte Derivado, são divididos em<br />

três espécies: limites materiais, formais e temporais (AGRA, 2002, p. 77). Os limites materiais são<br />

aqueles que dizem respeito às matérias que podem ser trata<strong>da</strong>s pela emen<strong>da</strong> constitucional. Assim,<br />

o art. 60, parágrafo 4º, incisos I a IV <strong>da</strong> CF, dispõe sobre os limites materiais, informando que é<br />

ve<strong>da</strong><strong>da</strong> emen<strong>da</strong> tendente a abolir a forma Federal, os direitos individuais e suas garantias, a separação<br />

dos poderes e a democracia. Tendo em vista a teoria <strong>da</strong> indivisibili<strong>da</strong>de dos direitos fun<strong>da</strong>mentais,<br />

conclui-se que também não pode haver emen<strong>da</strong>s que limitem de qualquer forma os direitos<br />

individuais, políticos, sociais e econômicos.<br />

Nesse mesmo artigo, encontram-se alguns limites circunstanciais, sendo que<br />

não poderá haver emen<strong>da</strong>s ou revisão durante situações como o estado de sítio, estado de defesa<br />

e intervenção federal, pois são ocorrências de grave comprometimento <strong>da</strong> democracia. Outro<br />

limite diz respeito às regras constitucionais referentes ao funcionamento do poder constituinte de<br />

reforma, que não podem ser objetos de emen<strong>da</strong>, sob pena de total ausência de segurança jurídica.<br />

Também há aqueles limites materiais implícitos, que são os que dizem respeito<br />

ao funcionamento do poder constituinte de reforma, que não podem ser objetos de emen<strong>da</strong>, sob<br />

pena de falta de segurança jurídica. Mesmo não existindo limites expressos, o poder de reforma<br />

não pode se transformar em um poder originário. O poder de reforma pode modificar, alterar o<br />

conteúdo <strong>da</strong> Constituição, mantendo sua essência, ou seja, os princípios fun<strong>da</strong>ntes e estruturantes,<br />

pois reforma não é construir outro e sim modificar por meio de adição, supressão ou modificação<br />

de alínea, inciso e/ou artigo <strong>da</strong> Constituição, mantendo-se sua estrutura e fun<strong>da</strong>mentos (AGRA,<br />

2002, p. 77).<br />

Os limites formais impostos na Constituição Federal são aqueles que obrigam<br />

que a emen<strong>da</strong> se dê através de quorum de 3/5, em dois turnos de votação, em seção bicameral<br />

enquanto a revisão ocorre em seção unicameral por maioria absoluta (50% mais um de todos os<br />

representantes). Quanto aos limites temporais, a Constituição de 1988 estabeleceu que a revisão<br />

ocorreria após cinco anos <strong>da</strong> promulgação <strong>da</strong> Constituição, não existindo limites temporais para a<br />

reforma por meio de emen<strong>da</strong>s (MAGALHÃES, 2004).<br />

Portanto, Poder de reforma significa alterar normas secundárias, as regras,<br />

mas jamais a estrutura, a essência, o fun<strong>da</strong>mento de uma ordem jurídica.<br />

131<br />

4 CONCLUSÃO<br />

Com o presente estudo conclui-se a importância em entender o Poder Constituinte<br />

e as diferenças entre suas formas de expressão, seja como Poder Constituinte Originário,<br />

seja como Poder Constituinte Derivado ou Reformador, já que tais formas foram, por várias vezes,<br />

utiliza<strong>da</strong>s nas Constituições Federais Brasileiras e ain<strong>da</strong> serão ca<strong>da</strong> vez que o povo brasileiro<br />

entender necessária a ruptura com as atuais reali<strong>da</strong>des sócio-político-jurídicas.<br />

Poder Constituinte Originário é aquele ilimitado, incondicionado, que cria uma<br />

nova Constituição através <strong>da</strong> soberania popular, delega o exercício de tal poder a uma Assembléia<br />

Constituinte. Já o Poder Derivado ou Reformador é aquele que fica à disposição para quando for<br />

necessária alguma alteração no conteúdo <strong>da</strong> Constituição então vigente, e faz tal modificação por<br />

meio de emen<strong>da</strong> ou revisão.<br />

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Considerações sobre o Poder Constituinte<br />

Com relação ao questionamento sobre a possibili<strong>da</strong>de de o Poder Constituinte<br />

Originário, escolhido para compor uma nova Ordem Constitucional, ter legitimi<strong>da</strong>de para eliminar<br />

do novo texto as garantias e direitos fun<strong>da</strong>mentais previstos e já aceitas pela socie<strong>da</strong>de, verifica-se<br />

que tal poder tem realmente esta legitimi<strong>da</strong>de, por ser ilimitado, incondicionado, e por romper-se<br />

em relação ao antigo texto constitucional, sem necessi<strong>da</strong>de de se ater a quaisquer direitos anteriormente<br />

previstos.<br />

Ocorre, entretanto, que esses direitos e garantias individuais e sociais, aceitos e<br />

incorporados pela socie<strong>da</strong>de, não são apenas pelo motivo de estarem positivados no texto Constitucional.<br />

Engana-se aquele que entende que tais direitos somente existem em decorrência de disposição<br />

legal. Pelo contrário. Em relação a esses direitos foi a própria lei que teve de adequar-se<br />

com tais dispositivos em seu conteúdo, uma vez que tais direitos já estavam aceitos e incorporados<br />

pela socie<strong>da</strong>de, e qualquer nova ordem constitucional que venha a ser implementa<strong>da</strong>, deverá conter,<br />

em seu bojo, tais direitos e garantias, uma vez que estes são pré-constitucionais. Tais direitos e<br />

garantias são como a essência humana, e independentemente de positivação, já são reconhecidos<br />

pela socie<strong>da</strong>de como tais. Assim, a Constituição, na sua essência, deve ser tão forte e perene que<br />

nenhum poder constituinte pode romper com seus fun<strong>da</strong>mentos e estrutura, mas somente um poder<br />

social mais forte, que nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo, já que é o poder social dos<br />

próprios ci<strong>da</strong>dãos, incorporados, reconhecidos e aceitos por eles através <strong>da</strong> história e <strong>da</strong> evolução<br />

social.<br />

Em relação à legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Assembléia Nacional Constituinte de 1987, seja<br />

pela natureza <strong>da</strong> Constituinte Congressista, seja pela questão <strong>da</strong> não ruptura com a ordem constitucional<br />

anterior, é inegável que o poder constituinte originário foi forte o suficiente para construir<br />

uma nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual se estava rompendo,<br />

e a sua legitimi<strong>da</strong>de está vali<strong>da</strong><strong>da</strong> pela participação popular em sua elaboração, tanto que,<br />

embora não cumpridos alguns requisitos formais de uma Constituinte, está sendo integral e plenamente<br />

vivi<strong>da</strong> e senti<strong>da</strong> pela socie<strong>da</strong>de brasileira.<br />

132<br />

REFERÊNCIAS<br />

AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos<br />

Tribunais, 2003.<br />

BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,<br />

2002.<br />

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.<br />

BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 5. ed. Brasília:<br />

OAB Editora, 2004.<br />

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria <strong>da</strong> Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.<br />

BRITO, Miguel Nogueira de. A Constituição Constituinte. Ensaio sobre o poder <strong>da</strong> revisão<br />

<strong>da</strong> Constituição. Coimbra: Coimbra, 2000.<br />

CRETELLA JR., José. Elementos de Direito Constitucional. 4. ed. rev. atual. São Paulo:<br />

Revista dos Tribunais, 2000.<br />

DINIZ, Jean dos Santos. O Poder Constituinte – Aula 01. 05 abr. 2004. Disponível em: .<br />

Acesso em: 09 jun. 2006.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller<br />

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A Teoria do Poder Constituinte. Jus Navigandi, Teresina,<br />

ano 8, n. 250, 14 mar. 2004. Disponível em: .<br />

Acesso em: 24 jun. 2006.<br />

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Revista de Direito Constitucional e Ciência Política<br />

nº. IV, 1983.<br />

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004.<br />

133<br />

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A Influência <strong>da</strong> Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação<br />

Constitucional<br />

A INFLUÊNCIA DA TÓPICA NO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE E O<br />

SEU CONCEITO DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 1<br />

Carolina V. Ribeiro de A. Bastos*<br />

Eder Fernandes Mônica<br />

Samia Mo<strong>da</strong> Cirino<br />

RESUMO<br />

Diante dos novos problemas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de contemporânea e <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de uma atualização <strong>da</strong><br />

Teoria <strong>da</strong> Constituição, o presente trabalho tem por escopo analisar a reformulação <strong>da</strong><strong>da</strong> às teorias<br />

tradicionais <strong>da</strong> Interpretação, que se mostraram em determinado momento insuficientes. Para<br />

tanto, abor<strong>da</strong>r-se-á primeiramente a metodologia clássica <strong>da</strong> interpretação e, em segui<strong>da</strong> a contribuição<br />

<strong>da</strong> Tópica no sentido de voltar à atenção para o problema ao colocar o intérprete em<br />

contato com a reali<strong>da</strong>de. Tratará também <strong>da</strong>s posturas intermediárias, que procuraram a conciliação<br />

entre reali<strong>da</strong>de e normativi<strong>da</strong>de. E, por fim, analisar-se-á a teoria pluralista e procedimental de<br />

Peter Häberle, a qual colocou novas in<strong>da</strong>gações, até então inexistentes, à Teoria <strong>da</strong> Interpretação<br />

Constitucional.<br />

Palavras-chave: Teoria <strong>da</strong> Constituição. Interpretação. Peter Häberle.<br />

THE INFLUENCE OF THE TOPICAL IN THE THOUGHT OF PETER HÄBERLE<br />

AND ITS CONCEPT OF CONSTITUTIONAL INTERPRETATION<br />

134<br />

ABSTRACT<br />

Before the new problems of the contemporary society and of the need of a modernization of the<br />

Theory of the Constitution, the present work has to objective to analyze the reformulation given to<br />

the traditional theories of the Interpretation, that were insufficient in certain moment. For so much,<br />

it will be approached the classic methodology of the interpretation firstly and, in continuation, the<br />

contribution of the Topical in the sense of returning to the attention for the problem when placing<br />

the interpreter in contact with the reality. The intermediary postures will be treat too, that sought<br />

the conciliation between reality and the normativity. Finally, will be analyzed the pluralist and the<br />

procedimental theory of Peter Häberle, which placed new inquiries, until then no existents, to the<br />

Theory of the Constitutional Interpretation.<br />

Keywords: Constitucional Theory. Interpretation. Peter Häberle.<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

Canotilho enumera alguns problemas básicos <strong>da</strong> Teoria <strong>da</strong> Constituição, tais<br />

como: dificul<strong>da</strong>de de inclusão dos problemas <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças e inovações jurídicas; necessi<strong>da</strong>de de<br />

reinvenção do seu território; impossibili<strong>da</strong>de de formação de um código unitário diante <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de<br />

social que gera diferenciações funcionais em sistemas (político, econômico, jurídico); ausência<br />

de uma compreensão de novos conceitos <strong>da</strong> teoria social como o conceito de risco, dentre<br />

outros (2004, p. 27-35).<br />

1 Trabalho apresentado como requisito parcial de conclusão <strong>da</strong> disciplina de Direito Constitucional do curso de Mestrado em<br />

Direito Negocial <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina.<br />

* Mestrandos em Direito Negocial pela Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina.<br />

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Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Mo<strong>da</strong> Cirino<br />

Esses problemas demonstram que, face ao desenvolvimento acelerado e o grau<br />

de complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des contemporâneas, o Direito Constitucional e Teoria <strong>da</strong> Constituição<br />

já não conseguem responder às deman<strong>da</strong>s por uma socie<strong>da</strong>de mais justa e igualitária. Atualmente,<br />

há que se refletir e afrontar questões como diversi<strong>da</strong>de, comuni<strong>da</strong>de global e legitimação<br />

democrática <strong>da</strong> Constituição se se pretende sair do idealismo e tentar recuperar o contato com a<br />

reali<strong>da</strong>de social.<br />

Nesse contexto, novos instrumentos surgiram no sentido de <strong>da</strong>r uma<br />

reformulação às teorias tradicionais <strong>da</strong> interpretação constitucional. Percebeu-se que os métodos<br />

clássicos não conseguiam responder satisfatoriamente às novas deman<strong>da</strong>s sociais e às particulari<strong>da</strong>des<br />

apresenta<strong>da</strong>s, bem como se levantou o problema de qual seria a melhor maneira de interpretar<br />

a Constituição, ou ain<strong>da</strong> o que se entende por “interpretação constitucional”.<br />

O filósofo <strong>da</strong> linguagem Wittgenstein acreditava que a in<strong>da</strong>gação sobre o significado<br />

<strong>da</strong>s palavras orienta melhor as tarefas práticas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e que o estudo do uso <strong>da</strong> linguagem<br />

logo mostra a grande complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social. Segundo Wittgenstein, a incerteza quase sempre<br />

é o resultado obtido quando se procura respostas para perguntas que aparentemente são simples,<br />

como, por exemplo: o que é o Direito (MORRISON, 2006, p. 01-02)?<br />

Neste sentido, este estudo propõe a tarefa de buscar, na perspectiva de Peter<br />

Häberle, a resposta à questão: O que é interpretação constitucional? Para tanto, primeiramente,<br />

partiu-se <strong>da</strong> metodologia clássica <strong>da</strong> interpretação constitucional, demonstrando suas premissas e<br />

insuficiências, as quais levaram os autores a buscar uma relação maior com a reali<strong>da</strong>de, ou seja,<br />

deixando somente o caráter abstrato e geral <strong>da</strong>s normas constitucionais e levando em conta a<br />

Constituição material e sua capaci<strong>da</strong>de de apreender e resolver os problemas. Essa foi a proposta<br />

<strong>da</strong> tópica jurídica, relevante por despertar a atenção para o problema em si. Entretanto, outros<br />

juristas verificaram que, ao se conferir tanta relevância ao problema, corria-se o risco <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de<br />

normativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Constituição. Houve então a procura de uma metodologia que permitisse o contato<br />

com a reali<strong>da</strong>de sem se perder o caráter normativo. Peter Häberle, ao analisar essa discussão,<br />

mudou seu enfoque, no sentido de não só se buscar os melhores métodos, mas também uma maior<br />

legitimação do processo de interpretação constitucional.<br />

135<br />

2 METODOLOGIA CLÁSSICA DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL<br />

Devido a motivos como ambigüi<strong>da</strong>de do texto, imperfeição, falta de terminologia<br />

técnica é que a doutrina tem buscado desenvolver métodos para a interpretação <strong>da</strong>s normas<br />

jurídicas e, mais especificamente, <strong>da</strong>s normas constitucionais, haja vista suas peculiari<strong>da</strong>des. Consoante<br />

assevera Canotilho (CANOTILHO, 2003, p. 1210):<br />

A questão do “método justo” em direito constitucional é um dos problemas<br />

mais controvertidos e difíceis <strong>da</strong> moderna doutrina juspublicista. No momento<br />

atual, poder-se-á dizer que a interpretação <strong>da</strong>s normas constitucionais<br />

é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência<br />

com base em critérios ou premissas (filosóficas, metodológicas) diferentes<br />

mas, em geral, reciprocamente complementares .<br />

Contudo, segundo Luis Roberto Barroso (2003, p. 107), os adeptos dos chamados<br />

métodos clássicos de interpretação, advindos dos institutos do Direito Civil, parecem não atentar<br />

às seguintes particulari<strong>da</strong>des constitucionais: superiori<strong>da</strong>de hierárquica, natureza <strong>da</strong> linguagem,<br />

caráter político, dentre outros aspectos que evidenciam a necessi<strong>da</strong>de de uma metodologia aplica<strong>da</strong><br />

à Constituição de certa forma autônoma dos demais métodos interpretativos presentes no sistema<br />

jurídico (2003, p. 107).<br />

A metodologia clássica parte <strong>da</strong> tese <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de pela qual a interpretação<br />

constitucional equivale à interpretação legal, tendo em vista que, para todos os efeitos, a Constituição<br />

é uma lei. Assim, a despeito <strong>da</strong> posição que ocupa na estrutura do ordenamento jurídico, a<br />

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A Influência <strong>da</strong> Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação<br />

Constitucional<br />

136<br />

Constituição essencialmente é uma lei e, por isso, há de ser interpreta<strong>da</strong> segundo as regras tradicionais<br />

<strong>da</strong> hermenêutica, articulando-se e complementando-se, para revelar o seu sentido, os mesmos<br />

critérios que são levados em conta na interpretação <strong>da</strong>s leis em geral.<br />

Trata-se de uma concepção hermenêutica, basea<strong>da</strong> na idéia de que to<strong>da</strong> norma<br />

possui um sentido em si, uma vontade pré-existente, seja aquela que o legislador pretendeu<br />

atribuir-lhe (mens legislatoris), seja a que afinal acabou embuti<strong>da</strong> no texto (mens legis). E, por<br />

meio dos instrumentos de interpretação (lógico, sistêmico, teleológico e gramatical), poderia ser<br />

alcançado o sentido, o querer inerente à norma independentemente do problema a ser solucionado.<br />

Por isso, a tarefa do intérprete, como aplicador do direito, resumir-se-ia em descobrir o<br />

ver<strong>da</strong>deiro significado <strong>da</strong>s normas e guiar-se-ia por ele na sua aplicação. Assim, desde fins do<br />

século XIX, essas duas teorias <strong>da</strong> interpretação jurídica - objetiva e subjetiva - enfrentam relativamente<br />

quanto ao critério metodológico que o interprete deve seguir para desven<strong>da</strong>r o sentido<br />

<strong>da</strong> norma (DINIZ, 2003, p. 420).<br />

A teoria subjetiva, que tem como principais expoentes Savigny e Windscheid,<br />

estabelece, como meta <strong>da</strong> interpretação, o estudo <strong>da</strong> vontade histórico-psicológica do legislador<br />

expressa na norma. O pensamento dominante, nessa metodologia, estava eminentemente voltado<br />

para o legislador a fim de determinar a mens legis, entendi<strong>da</strong> como a vontade oculta do propositor<br />

<strong>da</strong> norma, cuja vontade incumbia ao intérprete revelar com fideli<strong>da</strong>de.<br />

Segundo Bonavides, o voluntarismo é o traço marcante dessa corrente que se<br />

renova no século XX com as modernas escolas <strong>da</strong> interpretação, que substituem o voluntarismo do<br />

legislador pelo voluntarismo do juiz. Assim ocorre, por exemplo, com os juristas <strong>da</strong> livre investigação<br />

científica (Geny), do “direito livre” (Kantorowicz) e <strong>da</strong> teoria pura do direito (Kelsen). Entretanto,<br />

Bonavides destaca que os subjetivistas dessa nova corrente, exaltando a função judicial,<br />

“debilitam as estruturas clássicas do Estado de Direito, assenta<strong>da</strong>s numa valorização dogmática <strong>da</strong><br />

lei, expressão prestigiosa e objetiva de racionali<strong>da</strong>de” (2004, p. 453).<br />

Já a teoria objetiva, tendo como principais representantes Karl Engisch,<br />

Schreier e Larenz, preconiza que na interpretação deve-se ater à vontade <strong>da</strong> lei – mens legis –<br />

que, com sentido objetivo, independe do querer subjetivo do legislador, porque, após o ato legislativo,<br />

a lei desliga-se do seu elaborador, adquirindo existência objetiva. Consoante expõe Diniz, a norma<br />

seria uma “vontade transforma<strong>da</strong> em palavras, uma força objetiva<strong>da</strong> independente do seu<br />

autor”, razão pela qual deve ser buscado o sentido imerso no texto e não o que o legislador teve<br />

em mira (2003, p. 421).<br />

A tese dessa corrente gira, ao dizer de Engisch, ao redor do texto <strong>da</strong> lei, “<strong>da</strong><br />

palavra que se fez vontade”. O conteúdo <strong>da</strong> lei se desprende do legislador e adquire autonomia<br />

para seguir um curso independente. A vontade do legislador tem função apenas subsidiária,<br />

ficando, assim, a lei desmembra<strong>da</strong> de suas origens, dota<strong>da</strong> de força e vi<strong>da</strong> própria (BONAVIDES,<br />

2004, p. 454).<br />

A posição objetivista <strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong> Constituição tornou-se a posição<br />

predileta dos positivistas formais do século XIX que, em nome <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong>de e segurança<br />

jurídica, preconizavam o dogmatismo e a legali<strong>da</strong>de como fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong>s instituições do Estado<br />

de Direito. Vivia-se o auge do formalismo jurídico, do culto ao texto <strong>da</strong> lei, <strong>da</strong> Constituição Formal<br />

e <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong> tensão entre a Constituição e a reali<strong>da</strong>de constitucional, de onde resultou<br />

um Direito Constitucional fechado, compacto, sistemático, lógico. Essa posição também levou<br />

ao dualismo entre Estado e Socie<strong>da</strong>de. Nesse sentido, o texto constitucional exprimia basicamente<br />

a organização do Estado, a atribuição de competências, limitação de seus poderes e a declaração<br />

de direitos fun<strong>da</strong>mentais oponíveis ao Estado.<br />

A tarefa do intérprete de desven<strong>da</strong>r o sentido <strong>da</strong>s normas constitucionais, seja<br />

objetivo ou subjetivo, é orienta<strong>da</strong> pelos elementos interpretativos: gramatical ou literal, lógico, sistemático,<br />

histórico e sociológico ou teleológico. Tais processos são “meios técnicos utilizados para<br />

desven<strong>da</strong>r as várias possibili<strong>da</strong>des de aplicação <strong>da</strong> norma” (DINIZ, 2003, p. 425).<br />

Pela técnica gramatical o intérprete busca o sentido literal do texto normativo<br />

ante a indeterminação dos vocábulos que são, em regra, vagos ou ambíguos. Essa técnica se fun<strong>da</strong><br />

sobre as regras <strong>da</strong> gramática e <strong>da</strong> lingüística. Para Larenz, consiste na compreensão do sentido<br />

possível <strong>da</strong>s palavras, servindo esse sentido como limite <strong>da</strong> própria interpretação (BARROSO,<br />

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Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Mo<strong>da</strong> Cirino<br />

2003, p. 127). A interpretação gramatical, segundo Jhering, reconhece tão somente o que se disse<br />

no texto <strong>da</strong> lei de modo direto e expresso. O que não consta <strong>da</strong>s palavras é como se não existisse,<br />

e deixa, portanto, de ser objeto de consideração (BONAVIDES, 2004, p. 440-441).<br />

A interpretação lógica é aquela que, examinando a lei em conexi<strong>da</strong>de com as<br />

demais leis, investiga-lhe também as condições e os fun<strong>da</strong>mentos de sua elaboração, de modo a<br />

alcançar, posteriormente, a precisa vontade <strong>da</strong> lei. O elemento lógico, sintetizado na locução “intenção<br />

do legislador”, é considerado objetivamente e não subjetivamente, de modo que essa intenção<br />

não é a subjetivação de quem propôs a lei, mas a ratio ou mens é aquela que se insere e se<br />

objetiva na norma mesma (BONAVIDES, 2004, p. 440-441). Quanto ao problema de fixação do<br />

sentido e valor que se deve conferir à intenção do legislador, a doutrina <strong>da</strong> interpretação lógica se<br />

reparte em três posições: escola dogmático-jurídica, escola <strong>da</strong> livre investigação do direito e escola<br />

histórico-evolutiva. A escola dogmático-jurídica entende que a intenção ou vontade do legislador<br />

resulta dos trabalhos preparatórios, <strong>da</strong>s exposições de motivos, dos debates parlamentares que<br />

precedem a adoção <strong>da</strong> lei. Todos esses elementos são importantes para determinar a mens legis.<br />

Já a segun<strong>da</strong>, a escola <strong>da</strong> livre investigação do direito, abre ao intérprete uma larga esfera de<br />

liber<strong>da</strong>de, que lhe consente deduzir o direito <strong>da</strong> consciência jurídica popular através <strong>da</strong> própria<br />

consciência. Por último, a escola histórico-evolutiva toma a lei como dota<strong>da</strong> de vi<strong>da</strong> própria, ou<br />

seja, uma vez elabora<strong>da</strong> segue uma trajetória independente, amol<strong>da</strong>ndo-se às novas condições e<br />

necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social. A vontade <strong>da</strong> lei é o que ela exprime objetivamente e não o que quis<br />

exprimir subjetivamente o legislador (BONAVIDES, 2004, p. 441-442).<br />

Por sua vez, o processo sistemático considera o sistema, em que se insere a<br />

norma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto. Consoante assevera<br />

Barroso, “o Direito positivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo<br />

jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmoniosamente”.<br />

A interpretação sistêmica é, portanto, fruto <strong>da</strong> idéia de uni<strong>da</strong>de do ordenamento jurídico. Através<br />

dela o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e<br />

particular, estabelecendo conexões até vislumbrar-lhe o sentido e alcance (2003, p. 136).<br />

A técnica interpretativa histórica, oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong>s obras de Savigny e Puchta, baseia-se<br />

na averiguação dos antecedentes <strong>da</strong> norma, <strong>da</strong> occasio legis. Consiste, portanto, na busca<br />

do sentido <strong>da</strong> lei através dos precedentes legislativos, desde o projeto de lei, sua exposição de<br />

motivos, emen<strong>da</strong>s, aprovação, as circunstâncias fáticas que a precederam e que lhe deram origem,<br />

ou seja, às condições culturais ou psicológicas sob as quais o preceito normativo surgiu (DINIZ,<br />

2003, p. 428).<br />

O processo sociológico ou teleológico objetiva, na visão de Ihering, a<strong>da</strong>ptar a<br />

finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> norma às novas exigências sociais. O intérprete não pode estar indiferente às exigências<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e ao fato de que a norma se destina a um fim social, de que o magistrado deve<br />

participar, ao interpretar o preceito normativo (BONAVIDES, 2004, p. 440). Dessa forma, a técnica<br />

teleológica procura o fim, a razão do preceito normativo, para a partir dele determinar o seu<br />

sentido.<br />

No que tange a essas técnicas interpretativas, Scheuerle recomen<strong>da</strong> na aplicação<br />

prática do direito, uma livre escolha delas, como o melhor caminho a seguir, desde que isso,<br />

porém, possa conduzir a um resultado satisfatório (BONAVIDES, 2004, p. 456). Muitos se<br />

posicionaram a favor de uma livre escolha <strong>da</strong>s técnicas interpretativas, como o melhor caminho a<br />

seguir, desde que isso pudesse conduzir a um resultado satisfatório. Entretanto, Savigny discreparia<br />

dessa livre eleição, pois afirmava que os quatro elementos tradicionais – gramatical, lógico, histórico<br />

e sistemático – não constituíam quatro formas de interpretação entre as quais se poderia escolher<br />

à vontade, mas diferentes ativi<strong>da</strong>des a atuarem conjuga<strong>da</strong>s a fim de se obter uma interpretação<br />

bem-sucedi<strong>da</strong> (BONAVIDES, 2004, p. 457).<br />

137<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


A Influência <strong>da</strong> Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação<br />

Constitucional<br />

3 AS TEORIAS MATERIAIS DA CONSTITUIÇÃO E A TÓPICA JURÍDICA<br />

138<br />

Os procedimentos hermenêuticos tradicionais, no âmbito <strong>da</strong> Constituição do<br />

Estado Liberal, funcionavam como interpretação de bloqueio, sob o primado do princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de,<br />

visando à certeza e à segurança jurídica. Entretanto, com o advento do Estado Social, as<br />

novas aspirações sociais exigiram procedimentos que as legitimassem em face <strong>da</strong> Constituição, ou<br />

seja, uma interpretação de legitimação cuja realização exige a mediação concretizadora do intérprete.<br />

Assim, com a configuração social do Estado, tornou-se difícil, para a metodologia de origem<br />

jusprivatista, conciliar o Direito com as novas aspirações <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de, bem como a própria Constituição<br />

à reali<strong>da</strong>de.<br />

Essas novas aspirações sociais geraram um inconformismo com o positivismo<br />

lógico-formal e o colapso <strong>da</strong>s estruturas liberais de Estado. O social ganha prevalência sobre o<br />

jurídico, fazendo com que o direito constitucional, de matizes formalistas, entre em declínio. Abrese<br />

um campo de imprevisível extensão para o florescimento de distintas posições interpretativas no<br />

domínio <strong>da</strong> hermenêutica constitucional (BONAVIDES, 2002, p. 434-435).<br />

É nesse contexto que surge a corrente tópica, como tentativa de responder às<br />

novas aspirações. Na configuração <strong>da</strong><strong>da</strong> por Viehweg, a tópica toma como ponto de parti<strong>da</strong> o<br />

sentido comum, e o desenvolve mediante um tecido de silogismos e não mediante longas deduções<br />

em cadeia. Ela constitui uma parte <strong>da</strong> retórica, com raízes na Antigui<strong>da</strong>de, com as obras de Aristóteles<br />

e Cícero, e com raízes na I<strong>da</strong>de Média, na qual a retórica foi uma <strong>da</strong>s sete artes liberais. A partir do<br />

racionalismo e <strong>da</strong> irrupção do método matemático-cartesiano, houve a desqualificação <strong>da</strong> tópica,<br />

com sua conseqüente per<strong>da</strong> de influência na cultura ocidental. É por isso que Viehweg faz referência<br />

à Vico em sua obra, na qual este contrapunha o método antigo, tópico ou retórico, ao método<br />

novo do cartesianismo (ATIENZA, 2003, p. 47-49).<br />

Para Viehweg a tópica é caracteriza<strong>da</strong> por três elementos, estreitamente ligados<br />

entre si. Do ponto de vista do seu objeto, a tópica é uma técnica do pensamento problemático;<br />

do ponto de vista do instrumento com que opera, o que se torna central é a noção de topos ou lugarcomum;<br />

e do ponto de vista do tipo de ativi<strong>da</strong>de, a tópica é uma busca e exame de premissas. O<br />

que a caracteriza é ser um modo de pensar no qual a ênfase recai nas premissas, e não nas<br />

conclusões. Dessa maneira, a tópica é um procedimento de busca de premissas que, na reali<strong>da</strong>de,<br />

não termina nunca. Os tópicos são os fios condutores do pensamento que só permitem alcançar<br />

conclusões curtas, e devem ser vistos como premissas compartilha<strong>da</strong>s que têm uma presunção de<br />

plausibili<strong>da</strong>de. Com esse procedimento seria possível resolver aporias ou problemas impossíveis de<br />

se afastar. A ênfase <strong>da</strong> análise recairia no problema, e não no sistema. Assim, trata-se de buscar<br />

um modo que ajude a encontrar a solução; o problema leva assim a uma seleção de sistemas e em<br />

geral a uma plurali<strong>da</strong>de de sistemas (ATIENZA, 2003, p. 49-50).<br />

Conforme expõe Bonavides (2002, p. 446 a 453), com a insuficiência do método<br />

“científico” dos naturalistas e também com o malogro <strong>da</strong>s correntes idealistas que tentavam<br />

resolver com exclusivi<strong>da</strong>de o problema do método, fez inevitável a ressurreição <strong>da</strong> tópica como<br />

método. Pensar o problema constitui o âmago <strong>da</strong> tópica. Ela não foi uma revolta contra a lógica,<br />

mas procurou demonstrar que o argumento dedutivo não constitui o único veículo de controle <strong>da</strong><br />

certeza racional. É a tópica uma técnica jurídica <strong>da</strong> “praxis”. A situação deve ser compreendi<strong>da</strong><br />

em to<strong>da</strong> a sua complexi<strong>da</strong>de, a fim de problematizar-se o ideal de uma solução. Mas houve contra<br />

a tópica fortes reações críticas e doutrinárias de juristas, preocupados com a metodologia, sobretudo<br />

aqueles inclinados a uma visão sistemática <strong>da</strong> ciência jurídica.<br />

A invasão <strong>da</strong> Constituição formal pelos topoi e a conversão dos princípios<br />

constitucionais e <strong>da</strong>s próprias bases <strong>da</strong> Constituição em pontos de vista à<br />

livre disposição do intérprete, de certo modo enfraquece o caráter normativo<br />

dos sobreditos princípios, ou seja, a sua juridici<strong>da</strong>de. A Constituição, que já<br />

é parcialmente política, se torna por natureza politiza<strong>da</strong> ao máximo com a<br />

metodologia dos problemas concretos, decorrentes <strong>da</strong> hermenêutica tópica<br />

(BONAVIDES, 2002, p. 453).<br />

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Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Mo<strong>da</strong> Cirino<br />

A tópica surge num contexto de renovação de to<strong>da</strong> a velha metodologia. Há<br />

uma busca de maior dinamismo nos métodos interpretativos. Com a tópica, a norma e o sistema<br />

perdem o primado, tornando-se meros pontos de vista ou simples “topoi”, cedendo lugar à<br />

hegemonia do problema. Assim, os métodos clássicos são rebaixados à condição de auxiliares e,<br />

desde que convenham ao esclarecimento e solução do problema, todos os métodos interpretativos<br />

podem ser utilizados. Todo este contexto fez com que a tópica representasse o tronco de onde<br />

partem as direções e correntes mais empenha<strong>da</strong>s em renovar a metodologia clássica de interpretação<br />

<strong>da</strong>s regras constitucionais. Estas correntes ain<strong>da</strong> continuam em processo de elaboração<br />

teórica e de reação ao excesso de formalismo e juridici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s correntes positivas<br />

(BONAVIDES, 2002, 452-454).<br />

4 A REFORMULAÇÃO DA TÓPICA<br />

Alguns juristas, comprometidos com a teoria material <strong>da</strong> Constituição, buscaram<br />

uma saí<strong>da</strong> metodológica para a crise em que a tópica tende igualmente a mergulhar: impotência<br />

teórica em lançar alicerces mais seguros. É nesse sentido que se levanta o jurista alemão<br />

F. Müller, que procura estruturar e racionalizar o processo de concretização <strong>da</strong> norma, vinculando<br />

a ativi<strong>da</strong>de interpretativa a uma racionalização metodológica, não se dissolvendo, por conseguinte,<br />

o teor de obrigatorie<strong>da</strong>de ou normativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> regra constitucional. Interpretar seria o<br />

mesmo que concretizar a norma. Mas a pergunta que Müller se faz é “que norma?”. Esse é o<br />

ponto fun<strong>da</strong>mental de suas análises. A norma jurídica é algo mais que o texto de uma regra<br />

normativa. A interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto.<br />

Com isso, Müller tenta evitar o hiato entre as Constituições formal e material, bem como o<br />

confronto <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de com a norma jurídica, socorrendo, assim, a Constituição, e procura reaver<br />

todo o sentido material <strong>da</strong>s regras constitucionais exaurido pela metodologia formalista. Para<br />

Müller, a Constituição é repositório de princípios, às vezes, antagônicos e controversos e teria<br />

sido um erro o emprego <strong>da</strong> metodologia interpretativa do formalismo e do jusprivatismo para<br />

interpretá-la (BONAVIDES, 2002, p. 456-461).<br />

Para Müller os instrumentos tradicionais de metodologia jurídica li<strong>da</strong>m explicitamente<br />

com textos e só implicitamente contêm possibili<strong>da</strong>des de incorporar à interpretação conteúdos<br />

materiais provenientes do âmbito <strong>da</strong> norma. Dessa forma, as quatro técnicas interpretativas<br />

eluci<strong>da</strong><strong>da</strong>s por Savigny precisam ser <strong>completa</strong><strong>da</strong>s com elementos metodológicos que atinjam o<br />

conteúdo material do âmbito normativo na decisão dos casos jurídicos (BONAVIDES, 2002, p.<br />

506). To<strong>da</strong> concretização constitucional é aperfeiçoadora e criativa. O direito não está mais na<br />

vontade subjetiva do legislador ou na vontade objetiva <strong>da</strong> lei. O jurista, ao falar de Constituição,<br />

deve-se esquecer que está falando do texto <strong>da</strong> Constituição, pois o verbalismo normativo é o<br />

somenos, enquanto que o realismo extra-vocabular <strong>da</strong> norma é tudo. O texto de uma prescrição<br />

jurídica positiva é tão somente a cabeça do iceberg. A norma não deve nunca ser isola<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de. O texto, neste sentido, funcionará como diretiva e limite <strong>da</strong> concretização possível. A<br />

interpretação do texto normativo é uma parte importante, mas não a única e, por isso, é mais<br />

apropriado falar-se de concretização (BONAVIDES, 2002, p. 461-463).<br />

139<br />

5 A CONCEPÇÃO PLURALISTA E PROCEDIMENTAL DE PETER HÄBERLE<br />

Para Hesse (1983, p. 35), onde não se suscitam dúvi<strong>da</strong>s não se interpreta. Já<br />

para Häberle (1997, p. 13) aquele que simplesmente vive a norma acaba por interpretá-la, ou ao<br />

menos co-interpretá-la, sendo tal idéia fun<strong>da</strong>mental para compreender a concepção de interpretação<br />

deste autor, que representou um novo modo de compreender a experiência normativa no<br />

campo <strong>da</strong> Hermenêutica Jurídica.<br />

Segundo Häberle (1997, p. 11-12), a teoria <strong>da</strong> interpretação tem colocado duas<br />

questões essenciais: a in<strong>da</strong>gação sobre as tarefas e os objetivos <strong>da</strong> interpretação constitucional e a<br />

in<strong>da</strong>gação sobre os métodos. Isto porque a teoria <strong>da</strong> interpretação esteve muito vincula<strong>da</strong> a um<br />

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A Influência <strong>da</strong> Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação<br />

Constitucional<br />

140<br />

modelo de socie<strong>da</strong>de fecha<strong>da</strong> e se reduziu ain<strong>da</strong> mais, quando se concentrou na interpretação dos<br />

juízes e nos procedimentos formalizados. O autor coloca também um terceiro problema, relativo<br />

aos participantes <strong>da</strong> interpretação.<br />

Dessa maneira, apresenta o autor a tese de que no processo de interpretação<br />

estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, to<strong>da</strong>s as potências públicas, todos os<br />

ci<strong>da</strong>dãos e grupos, não sendo possível estabelecer um elenco fechado de intérpretes <strong>da</strong> Constituição.<br />

Tal posicionamento resulta do fato de se tratar sua pesquisa de uma investigação realista<br />

do desenvolvimento <strong>da</strong> interpretação constitucional, a qual exige um conceito mais amplo de<br />

hermenêutica, que reconheça outras forças produtivas de interpretação, ain<strong>da</strong> que subsista sempre<br />

a responsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> jurisdição constitucional de fornecer a última palavra (HÄBERLE,<br />

1997, p. 13).<br />

Sua investigação é conseqüência de um conceito republicano de interpretação,<br />

segundo o qual a teoria constitucional deve estar em condições de explicitar os grupos concretos de<br />

pessoas e os fatores que formam o Espaço Público, o tipo de reali<strong>da</strong>de de que se cui<strong>da</strong>, as possibili<strong>da</strong>des<br />

e necessi<strong>da</strong>des existentes. Por isso, sugere uma democratização do processo de interpretação,<br />

estabelecendo um catálogo, ain<strong>da</strong> provisório, de participantes neste processo.<br />

Assim, Häberle (1997, p. 20-23) sistematiza o mencionado catálogo de participantes<br />

<strong>da</strong> interpretação <strong>da</strong> seguinte maneira:<br />

- as funções estatais: que compreendem as decisões vinculantes <strong>da</strong> Corte Constitucional<br />

e as decisões vinculantes dos demais órgãos estatais, que exercem função jurisdicional,<br />

executiva ou legislativa;<br />

- os participantes do processo de decisão que não são necessariamente órgãos<br />

do Estado, tais como: autor e réu; aqueles que têm direito de manifestação ou integração à lide;<br />

pareceristas ou experts; grupos de pressão organizados; os requerentes ou partes nos processos<br />

administrativos de caráter participativo;<br />

- a opinião pública, a mídia, as associações, os partidos políticos 2 , os ci<strong>da</strong>dãos,<br />

igrejas, teatros, editoras, escolas, associações de pais etc;<br />

- e a doutrina.<br />

Häberle (1997, p. 29) reconhece que uma teoria constitucional que tem por<br />

escopo a produção de uma uni<strong>da</strong>de política há que se submeter a crítica de que, dependendo <strong>da</strong><br />

forma com que seja pratica<strong>da</strong> a interpretação, poderá dissolver-se num emaranhado de intérpretes<br />

e interpretações; entretanto, adverte que tal objeção tem que ser avalia<strong>da</strong>, tendo em vista a<br />

legitimação dos diferentes intérpretes.<br />

O autor explica que a questão <strong>da</strong> legitimação coloca-se para todos aqueles que<br />

não estão formalmente nomeados para exercer a função de intérpretes <strong>da</strong> Constituição, ou seja,<br />

aqueles que não atuam conforme um procedimento pré-estabelecido, pois uma vinculação limita<strong>da</strong><br />

à Constituição implicaria uma legitimação igualmente restrita (HÄBERLE, 1997, p. 29).<br />

Acrescenta Häberle (1997, p. 31) que do ponto de vista <strong>da</strong> Teoria <strong>da</strong> Interpretação<br />

deve-se levar em consideração que o juiz interpreta a Constituição na esfera pública e na<br />

reali<strong>da</strong>de, sendo errôneo reconhecer as influências a que se submete apenas sob o aspecto de uma<br />

ameaça a sua independência. Essas influências contêm uma parte <strong>da</strong> legitimação, a qual não deve<br />

ser entendi<strong>da</strong> formalmente, pois deve resultar <strong>da</strong> participação, isto é, <strong>da</strong> influência qualitativa e de<br />

conteúdo sobre a própria decisão, o que se trata de um aprendizado não só dos participantes, mas<br />

também dos tribunais em face dos demais participantes.<br />

Já do ponto de vista <strong>da</strong> Teoria <strong>da</strong> Constituição, a legitimação <strong>da</strong>s forças pluralistas<br />

residiria no fato de que essas forças representam um pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

Constituição, o que as incluiria no processo de interpretação. Uma Constituição que vise estruturar<br />

não apenas o Estado, mas também a esfera pública, dispondo sobre a organização <strong>da</strong> própria<br />

socie<strong>da</strong>de, não pode tratar as forças sociais e priva<strong>da</strong>s como meros objetos, pelo contrário, deve<br />

integrá-las ativamente enquanto sujeitos (HÄBERLE, 1997, p. 33).<br />

2 Häberle explica que estes atuam, sobretudo, mediante a longa manus <strong>da</strong> eleição de juízes, o que não acontece no sistema<br />

brasileiro, já que o ingresso na carreira se dá mediante concurso público (1997, p. 22).<br />

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Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Mo<strong>da</strong> Cirino<br />

Sob a perspectiva <strong>da</strong> Teoria <strong>da</strong> Democracia, afirma que, nas socie<strong>da</strong>des contemporâneas,<br />

a democracia não se desenvolve apenas no contexto de delegação de responsabili<strong>da</strong>de<br />

formal do “povo” para os órgãos estatais; numa socie<strong>da</strong>de aberta, ela se desenvolve também<br />

por meio de formas refina<strong>da</strong>s de mediação do processo público e pluralista <strong>da</strong> política e do cotidiano,<br />

especialmente mediante a realização dos direitos fun<strong>da</strong>mentais (HÄBERLE, 1997, p. 36).<br />

Neste sentido:<br />

Povo não é apenas referencial quantitativo que se manifesta no dia <strong>da</strong> eleição<br />

e que, enquanto tal, confere legitimi<strong>da</strong>de democrática ao processo de<br />

decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se<br />

faz presente de forma legitimadora no processo constitucional [...] e sua<br />

competência objetiva para a interpretação constitucional é um direito <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia [...] (HÄBERLE, 1997, p. 37).<br />

Dentre as conseqüências <strong>da</strong> teoria de Häberle para a Interpretação, destacase<br />

a relativização <strong>da</strong> Interpretação Jurídica, pois o juiz não mais interpreta de forma isola<strong>da</strong>. Além<br />

disso, através <strong>da</strong> proposta ampliação do círculo dos intérpretes, a esfera pública desenvolve força<br />

normatizadora na medi<strong>da</strong> em que a Corte Constitucional tenha que interpretar de acordo com uma<br />

atualização pública.<br />

Para comprovar a reali<strong>da</strong>de de sua teoria, Häberle argumenta que as questões<br />

referentes à Constituição Material nem sempre chegam à Corte Constitucional, mas a Constituição<br />

Material subsiste sem essa interpretação judicial, ou seja, o processo Constitucional formal já não<br />

é a única via de acesso ao processo de interpretação constitucional (1997, p. 42).<br />

Aos princípios e métodos de interpretação Häberle confere nova função: a<br />

de filtros <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de no sentido de canalizar e disciplinar as múltiplas formas de influência<br />

dos diferentes participantes do processo. Tanto que, nos casos em que há um rigoroso controle<br />

<strong>da</strong> opinião pública, a Corte tem que considerar a legitimação democrática e levar um minus<br />

de efetiva participação a um plus de controle constitucional; e, se houver uma profun<strong>da</strong> divisão<br />

<strong>da</strong> opinião pública, cabe ao Tribunal zelar pela função integrativa <strong>da</strong> Constituição<br />

(HÄBERLE, 1997, p. 43-45).<br />

Conclui Häberle (1997, p. 55) que o direito processual constitucional torna-se<br />

parte do direito de participação democrática. Por isso, não se pode mais avaliar a questão <strong>da</strong><br />

interpretação por um prisma negativo 3 , isto é, sob a ótica <strong>da</strong>s limitações jurídico-funcionais do<br />

intérprete juiz. Tem-se que desenvolver uma compreensão positiva, como intérprete <strong>da</strong> Constituição<br />

tanto para o juiz, quanto para o legislador e demais participantes, constitucionalizando<br />

formas e processos de participação. Para o autor, esta é a nova tarefa <strong>da</strong> Teoria Constitucional.<br />

Porém limita a constitucionalização de conteúdos e métodos, visto que o processo deve ser o<br />

mais aberto possível para garantir que uma interpretação diferente possa ser sustenta<strong>da</strong> em<br />

qualquer momento.<br />

141<br />

6 CONCLUSÃO<br />

Na idéia de constituição aberta, são condensa<strong>da</strong>s algumas <strong>da</strong>s propostas mais<br />

importantes do moderno pensamento constitucional. A função material do projeto <strong>da</strong> constituição é<br />

relativiza<strong>da</strong> e se justifica a “desconstitucionalização” de elementos substantivadores <strong>da</strong> ordem<br />

constitucional. Nesse projeto aberto, ordena-se o processo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> política fixando limites às atribuições<br />

do Estado e delimitam-se as dimensões prospectivas traduzi<strong>da</strong>s na formulação dos fins<br />

sociais mais significativos e na identificação de alguns programas <strong>da</strong> configuração constitucional<br />

(CANOTILHO, 2004, p. 23).<br />

3 Segundo Alvarenga (1998,p. 86), esta era a denomina<strong>da</strong> “interpretação de bloqueio” ou “princípio <strong>da</strong> proibição de excessos”,<br />

típica do Estado de Direito Liberal e pauta<strong>da</strong> nos princípios <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de e estrita legali<strong>da</strong>de, conferia à Hermenêutica<br />

Constitucional Tradicional uma tarefa reduzi<strong>da</strong> às ativi<strong>da</strong>des do Estado e às funções do Judiciário (1998, p. 86).<br />

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A Influência <strong>da</strong> Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de Interpretação<br />

Constitucional<br />

Portanto, buscando responder à pergunta inicialmente proposta, tem-se que, na<br />

perspectiva de Häberle, a interpretação é, além de um elemento resultante <strong>da</strong> idéia de socie<strong>da</strong>de<br />

aberta, também um elemento formador, constituinte dessa socie<strong>da</strong>de; por isso, os critérios de interpretação<br />

deverão ser mais abertos quanto mais pluralista for a socie<strong>da</strong>de. Do ponto de vista teórico<br />

ou prático, a interpretação constitucional deixa de ser evento exclusivamente estatal e vincula, ao<br />

menos potencialmente, to<strong>da</strong>s as forças <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de política.<br />

Essa nova orientação hermenêutica contrapõe-se à ideologia <strong>da</strong> subsunção,<br />

visto que se reconhece que a norma não é uma decisão prévia, simples e acaba<strong>da</strong>. A ampliação do<br />

círculo dos intérpretes é apenas conseqüência <strong>da</strong> tão defendi<strong>da</strong> integração <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de no processo<br />

de interpretação, inevitável em uma socie<strong>da</strong>de pluralista.<br />

Conforme Alvarenga (1998, p. 102-103), a concepção teórica <strong>da</strong> interpretação<br />

de Häberle está longe de acarretar a quebra <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Constituição, mas pelo contrário, será<br />

reforça<strong>da</strong> pelas diversas forças de interpretação que culminarão na Jurisdição Constitucional. O<br />

resultado desta teoria é uma Constituição concebi<strong>da</strong> não como uma decisão pronta acerca <strong>da</strong><br />

natureza e <strong>da</strong> forma <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de política, cuja legitimi<strong>da</strong>de residiria em uma decisão “livre de contradições”<br />

do poder constituinte; mas sim uma Constituição que depende de uma permanente<br />

confirmação no tempo, mediante um processo que deve ser histórico e aberto.<br />

Também, deve-se observar que, no decorrer <strong>da</strong> evolução <strong>da</strong> teoria constitucional,<br />

os métodos de interpretação, em certa medi<strong>da</strong>, ganhavam corpo conforme o paradigma adotado.<br />

Mesmo que o objetivo tenha sido a produção de um método que não se identificasse com os<br />

posicionamentos políticos do intérprete, é quase impossível que este, ao analisar o caso, se<br />

desvinculasse de sua “pré-compreensão” de mundo. Desse modo, é importante que se busque<br />

estender a possibili<strong>da</strong>de de interpretação ao maior número de pessoas atingi<strong>da</strong>s, buscando uma<br />

legitimação democrática em torno dos instrumentos de interpretação, no sentido apresentado pela<br />

teoria de Peter Häberle.<br />

142<br />

REFERÊNCIAS<br />

ALVARENGA, Lucia Barros Freitas. Direitos Humanos, digni<strong>da</strong>de e erradicação <strong>da</strong> pobreza:<br />

uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 1998.<br />

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Landy, 2003.<br />

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.<br />

BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação <strong>da</strong> Constituição: fun<strong>da</strong>mentos de uma<br />

dogmática constitucional transformadora. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.<br />

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor<br />

– Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999.<br />

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria <strong>da</strong> Constituição. 7. ed.<br />

Coimbra: Almedina, 2003.<br />

______. Teoria de la Constitución. (Trad.). Carlos Lema Anón. Madrid: Dykinson.<br />

DINIZ, Maria Helena. Compendio de introdução à ciência do direito. 15. ed. São Paulo:<br />

Saraiva, 2003.<br />

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a socie<strong>da</strong>de aberta dos intérpretes <strong>da</strong> Constituição:<br />

contribuição para a interpretação pluralista a procedimental <strong>da</strong> Constituição. (Trad.). Gilmar<br />

Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.<br />

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Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Mo<strong>da</strong> Cirino<br />

HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios<br />

Constitucionales, 1983.<br />

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos aos pós-modernos. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2006.<br />

143<br />

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O Princípio <strong>da</strong> Integri<strong>da</strong>de como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin<br />

O PRINCÍPIO DA INTEGRIDADE COMO MODELO DE INTERPRETAÇÃO<br />

CONSTRUTIVA DO DIREITO EM RONALD DWORKIN<br />

Erika Juliana Dmitruk*<br />

RESUMO<br />

Analisa o princípio <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de desenvolvido por Dworkin, como teoria <strong>da</strong> interpretação construtiva<br />

do Direito. Procura entender os conceitos fun<strong>da</strong>mentais deste filósofo, como princípios,<br />

regras, políticas, Juiz Hércules e hard cases. Investiga o método de resolução de casos difíceis de<br />

Hércules. Descreve as repercussões do princípio <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de no Direito.<br />

Palavras-chave: Dworkin. Integri<strong>da</strong>de. Regras. Princípios. Tese dos Direitos.<br />

THE PRINCIPLE OF THE INTEGRITY AS MODEL OF CONSTRUCTIVE<br />

INTERPRETATION OF THE RIGHT IN RONALD DWORKIN<br />

ABSTRACT<br />

144<br />

It analyzes the principle of the integrity developed for Dworkin, as theory of the constructive<br />

interpretation of the Right. Search to understand the concepts basic of this philosopher, as principles,<br />

rules, politics, Hércules Judge and hard cases . It investigates the method of resolution of difficult<br />

cases of Hércules. It describes the repercussions of the principle of the integrity in the Right.<br />

Keywords: Dworkin. Integrity. Rules. Principles. Thesis of the Rights.<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

Preocupado com a definição positivista do Direito, que o reduz a um modelo de<br />

regras e que autoriza o juiz a utilizar o poder discricionário ao se deparar com casos complexos,<br />

Dworkin propõe uma teoria <strong>da</strong> interpretação que auxilia os operadores do Direito a encontrar uma<br />

resposta correta mesmo para os casos complexos.<br />

O objeto de estudo deste artigo é a teoria desenvolvi<strong>da</strong> por Dworkin sobre a<br />

resolução dos casos difíceis. Acredita Dworkin que os juízes, ao resolverem os casos difíceis,<br />

devem utilizar padrões determinados, para que a previsibili<strong>da</strong>de e justiça <strong>da</strong> resposta seja alcança<strong>da</strong>.<br />

Para isso, refuta a teoria <strong>da</strong> discricionarie<strong>da</strong>de, proposta pelo positivismo jurídico, tentando encontrar<br />

algo que vincule o juiz a uma resposta correta.<br />

A distinção feita por Dworkin entre princípios, políticas e regras será analisa<strong>da</strong><br />

na primeira parte. Segundo o autor estu<strong>da</strong>do, conhecendo as peculiari<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> um desses<br />

padrões, a tarefa de integrá-los em uma teoria <strong>da</strong> decisão jurídica torna-se mais clara e passível de<br />

entendimento.<br />

Na segun<strong>da</strong> parte deste artigo, explicar-se-á o que Dworkin entende por casos<br />

difíceis, a tese dos direitos e o modo de trabalho do juiz Hércules perante esses casos. Desenvolve<br />

a tese dos direitos e exemplifica a sua aplicação a partir de um juiz filósofo, comprometido com as<br />

leis, os precedentes e a busca <strong>da</strong> melhor solução. Esse juiz Hércules terá uma tarefa à altura do<br />

seu nome.<br />

* Gradua<strong>da</strong> em Direito pela Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina, Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal de Santa Catarina, pós-graduan<strong>da</strong> em Filosofia Política e Jurídica na Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina. Professora<br />

<strong>da</strong> UNIFIL, UEL e PUC/ Londrina. Email: ejdmitruk@hotmail.com.<br />

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Erika Juliana Dmitruk<br />

Logo após, tratar-se-á a interpretação construtiva e o que Dworkin conceituou<br />

como integri<strong>da</strong>de. A idéia de integri<strong>da</strong>de como uma virtude política ao lado <strong>da</strong> equi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> justiça<br />

e do devido processo legal, divide-se em dois princípios: um princípio legislativo e um princípio<br />

jurisdicional.<br />

Para finalizar, estu<strong>da</strong>r-se-á a integri<strong>da</strong>de aplica<strong>da</strong> ao Direito. De que maneira a<br />

teoria dos direitos que Dworkin desenvolveu no decorrer <strong>da</strong>s suas obras culmina com o princípio <strong>da</strong><br />

integri<strong>da</strong>de como uma tese <strong>da</strong> interpretação construtiva dos direitos.<br />

2 PRINCÍPIOS, POLÍTICAS E REGRAS<br />

Ronald Dworkin tem se destacado com um pensamento original e, conforme<br />

opinião de Wolkmer (2006, p. 38), é um dos principais jusfilósofos que desenvolve críticas relevantes<br />

ao liberalismo utilitarista e ao positivismo jurídico contemporâneo, principalmente na versão<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> a esta teoria pelo professor Herbert Hart. Também é considerado por outros como um<br />

“neojusnaturalista”. Esses autores também afirmam que sua teoria é uma <strong>da</strong>s que demonstra o<br />

enfraquecimento <strong>da</strong> dicotomia “jusnaturalismo” e positivismo jurídico (OLIVEIRA JUNIOR). 1<br />

Para outros, Dworkin é responsável por criar uma terceira teoria do direito, onde a primeira e a<br />

segun<strong>da</strong> seriam o positivismo jurídico e o jusnaturalismo (FALLON, 1992). 2<br />

Em seu livro Levando os Direitos a Sério (2002), Dworkin apresenta uma<br />

teoria liberal do Direito, não ata<strong>da</strong> apenas às correntes que costumam ser identifica<strong>da</strong>s como tal,<br />

positivismo e utilitarismo jurídico. Para Dworkin, quando se cria uma teoria do Direito, ela deve<br />

conter uma teoria <strong>da</strong> legislação e uma teoria <strong>da</strong> decisão judicial. Nesse artigo será privilegia<strong>da</strong> a<br />

teoria <strong>da</strong> decisão judicial, a qual, segundo o mesmo autor, precisa estabelecer padrões que os juízes<br />

devem seguir para decidir os casos jurídicos difíceis.<br />

Nesse livro ele já começa a esboçar uma teoria conceitual alternativa. A<br />

primeira distinção elabora<strong>da</strong> por Dworkin versa sobre os direitos políticos, que podem ser direitos<br />

preferenciais (prevalecem contra decisões toma<strong>da</strong>s pela socie<strong>da</strong>de); e direitos institucionais<br />

mais específicos “que podem ser identificados como uma espécie particular de um direito político,<br />

isto é, um direito institucional a uma decisão de um tribunal na sua função judicante”<br />

(DWORKIN, 2002, XV).<br />

A teoria conceitual alternativa traça a possibili<strong>da</strong>de de que os indivíduos tenham<br />

direito a uma decisão judicial favorável, independente de uma decisão anterior favorável ou<br />

regra jurídica expressa aplicável a seu caso. Para o professor de Oxford, essa hipótese é possível<br />

com a distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política, uma vez que defende a<br />

tese de que as decisões jurídicas basea<strong>da</strong>s em argumentos de princípios são compatíveis com os<br />

princípios democráticos (DWORKIN, 2002, XVI).<br />

Não é o objetivo de Dworkin indicar, previamente, os argumentos de política ou<br />

de princípio existentes, nem elencar quais direitos um indivíduo possui abstratamente, mas analisar<br />

casos difíceis, onde, mesmo os juízes mais criteriosos podem divergir (DWORKIN, 2002, XIX).<br />

To<strong>da</strong>via, mesmo nesses casos, é necessário entender que, para Dworkin, o juiz não tem o direito de<br />

criar novos direitos, mas sim descobrir quais são eles em conformi<strong>da</strong>de com o ordenamento jurídico<br />

(COUTINHO, 2003).<br />

145<br />

1 Ver também: Casalmiglia, Prólogo a “Los Derechos en Serio”, Barcelona: Ariel, 1989, p.11.<br />

ALEXY, Robert. Derecho y Razón Prática. México: Distribucinoes Fontamara, 1993, p. 14 e ss. GÜNHTER, Klaus. Teoria<br />

<strong>da</strong> Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. São Paulo: Lamdy, 2004.<br />

2 Through its various iterations, Dworkin’s third theory has attempted to bridge the gap between the two traditional theories.<br />

With the positivists, Dworkin has accepted that the concept of law makes sense only in reference to going legal systems;<br />

to know what the law is, it is necessary to begin with the materials that are recognized as law in a particular culture. Dworkin<br />

leaves room to accommo<strong>da</strong>te the natural law view, however, by insisting that the materials that are recognized as authoritative<br />

within any legal system—the rules and stan<strong>da</strong>rds that positivists have traditionally regarded as exhaustive of law—must<br />

always be interpreted. For interpretation, according to Dworkin, has an irreducibly moral element; the relevant materials<br />

must be interpreted in their best moral light. Dworkin thus sides with natural law theorists in recognizing a conceptual link<br />

between law and morals. Building on this foun<strong>da</strong>tion, he has further asserted that legal interpretation necessarily aspires to<br />

provide a moral justification for the law’s claim to obedience. He implies that a regime that was incapable of generating at<br />

least a presumptive, general duty to obey the law would not count as a properly “legal” system at all, but only as a scheme<br />

of organized coercion. (FALLON, 1992)<br />

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O Princípio <strong>da</strong> Integri<strong>da</strong>de como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin<br />

146<br />

A preocupação esboça<strong>da</strong> por Dworkin ao relacionar uma teoria interpretativa<br />

do Direito com uma teoria <strong>da</strong> justificação política não é uma preocupação efêmera ou pontual. Em<br />

to<strong>da</strong> sua obra perpassa essa necessi<strong>da</strong>de de trabalhar em conjunto uma concepção de Estado e o<br />

papel do Direito neste modelo de socie<strong>da</strong>de escolhido.<br />

Em Uma Questão de Princípio (2000, IX) Dworkin afirma que a prática política<br />

brasileira reconhece dois tipos diferentes de argumentos que buscam justificar uma decisão<br />

política. Esses argumentos são: a) argumentos de política, os quais traçam um programa, um objetivo<br />

voltado para a coletivi<strong>da</strong>de; e b) argumentos de princípio, que traçam direitos individuais,<br />

particulares, inobstante o interesse <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de. Defende neste livro uma concepção do Estado<br />

de Direito que chama de “centra<strong>da</strong> nos direitos”, a qual pressupõe que os ci<strong>da</strong>dãos têm direitos e<br />

deveres morais entre si e direitos políticos perante o Estado (2000, p. 7). Para Ikawa (2004),<br />

Dworkin não distingue Direito e Moral, como faz Hart, assim como para Ingeborg Maus 3 e Alexy.<br />

Porém, segundo BAHIA, essa leitura de Dworkin é basea<strong>da</strong> em uma interpretação alexyana que<br />

popularizou-se na Alemanha. Porém para Günther e Habermas, Dworkin concebe a diferença<br />

entre Direito e Moral, e também destes para argumentos éticos e pragmáticos. Os argumentos<br />

morais são importantes na fase legislativa, porém, no judiciário, valem os argumentos de princípio e<br />

não mais os argumentos de política (BAHIA, 2005, p. 11).<br />

Um dos exemplos trazidos para ilustrar a influência <strong>da</strong> questão política sobre a<br />

questão jurídica trata <strong>da</strong> Lei de Relações Raciais. Existe um conflito entre o direito de agremiações<br />

escolherem seus associados segundo critérios próprios. Pela lei supra, o direito de estar livre de<br />

discriminação é forte para impedir que instituições inteiramente públicas pratiquem discriminação,<br />

mas não tão forte a ponto de aniquilar o direito de associações totalmente priva<strong>da</strong>s de escolherem<br />

seus associados. A dificul<strong>da</strong>de está nos casos intermediários, como as agremiações político-partidárias<br />

(DWORKIN, 2000, p. 35).<br />

Para entender a diversi<strong>da</strong>de de argumentos é necessário vislumbrar o peso que<br />

a diferença entre eles tem nas decisões, mesmo que tratados por outros nomes ou de outras formas<br />

pelas diversas teorias jurídicas. Nos casos difíceis, a concepção positivista do Direito que o percebe<br />

apenas como um modelo de regras, ignorando outros padrões como políticas e princípios, é<br />

insuficiente (DWORKIN, 2002, p. 36).<br />

Política é um tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em<br />

geral uma melhoria <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de (2002, p. 36). Dworkin já havia definido este conceito em Uma<br />

Questão de Princípio. Esses argumentos de política justificam decisões políticas, que fomentam<br />

algum objetivo coletivo (2002, p. 129).<br />

Princípio, de maneira genérica, é todo padrão que não é regra. Princípio,<br />

assim, pode ser entendido como um padrão que deve ser observado por ser uma exigência <strong>da</strong><br />

justiça ou eqüi<strong>da</strong>de. Sua repercussão não será, necessariamente, uma melhoria social. (2002, p.<br />

36) Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita<br />

ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo (2002, p. 129-130). “No caso dos<br />

subsídios, poderíamos dizer que os direitos conferidos são gerados por uma política e qualificados<br />

por princípios; no caso contra a discriminação, são gerados por princípios e qualificados por<br />

políticas” (DWORKIN, 2002, p. 130).<br />

O objetivo imediato de Dworkin é distinguir princípios, no sentido genérico, <strong>da</strong>s<br />

regras. Analisa o caso “Riggs contra Palmer”, onde em 1889 um tribunal de Nova Iorque teve que<br />

decidir se um herdeiro nomeado no testamento de seu avô poderia her<strong>da</strong>r o disposto naquele<br />

testamento, mesmo se ele próprio tivesse assassinado seu avô com esse objetivo. O tribunal, levando<br />

em conta que as leis e os contratos podem ser limitados por máximas gerais e fun<strong>da</strong>mentais do<br />

direito costumeiro, como a que dispõe que “ninguém será permitido lucrar com sua própria fraude,<br />

beneficiar-se com seus próprios atos ilícitos, basear qualquer reivindicação na sua própria iniqüi<strong>da</strong>de<br />

ou adquirir bens em decorrência de seu próprio crime”, não deu ao assassino o direito à herança.<br />

(2002, p. 37) O tribunal não aplicou uma regra, aplicou princípios.<br />

3 Ver também: MAUS, Ingeborg. Judiciário como Superego <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de: o papel <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de jurisprudencial na socie<strong>da</strong>de<br />

órfã. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, nº.58. p. 185. nov/ 2000.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Erika Juliana Dmitruk<br />

Os padrões utilizados em decisões deste tipo não são regras jurídicas, são princípios<br />

jurídicos. A distinção entre ambos é de natureza lógica. As regras são aplicáveis à maneira<br />

do tudo-ou-na<strong>da</strong>. Ou uma regra é váli<strong>da</strong>, e a sua resposta deve ser aceita, ou não é váli<strong>da</strong>, e sua<br />

resposta em na<strong>da</strong> contribuirá (DWORKIN, 2002, p. 39). Mas não é assim que funcionam os<br />

princípios jurídicos. O exemplo utilizado por Dworkin é o exemplo do princípio “Nenhum homem<br />

pode beneficiar-se de seus próprios delitos”. Segundo ele, esse princípio não pretende estabelecer<br />

condições que tornem sua aplicação necessária. Ele apenas se limita a enunciar uma razão que<br />

conduz o argumento em certa direção, e, por isso mesmo, para ser concretizado, precisa de uma<br />

decisão particular. Podem existir outros princípios ou outras políticas que argumentem em outra<br />

direção – uma política que garanta o reconhecimento <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de de escrituras ou um princípio que<br />

limite a punição ao que foi estipulado pelo Legislativo. Se assim for, o princípio não prevalecerá,<br />

mas assim mesmo continuará a ser um princípio do sistema jurídico, pois, em outro caso, quando<br />

essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá<br />

ser decisivo (DWORKIN, 2002, p. 41-42).<br />

Outra diferença entre regras e princípios é que os princípios possuem uma<br />

dimensão de peso e importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de<br />

proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liber<strong>da</strong>de de contrato), aquele<br />

que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de ca<strong>da</strong> um (DWORKIN,<br />

2002, p. 42).<br />

Já as regras ou são importantes ou desimportantes. Uma regra jurídica pode<br />

ser mais importante do que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na<br />

regulação do comportamento. Se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude<br />

de sua importância maior. (DWORKIN, 2002, 43). Essa importância maior é <strong>da</strong><strong>da</strong> com a resolução<br />

<strong>da</strong>s antinomias aparentes, estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s por BOBBIO (1999), em Teoria do Ordenamento Jurídico.<br />

Mas a distinção entre regras e princípios nem sempre é fácil. Muitas vezes eles se confundem,<br />

tendo em vista a forma muito próxima de ambos. Alguns termos como razoável, negligente,<br />

injusto e significativo, segundo Dworkin, fazem com que uma disposição funcione do ponto de vista<br />

lógico como uma regra e do ponto de vista substantivo, como um princípio. Isso porque a inclusão<br />

desses termos faz com que a aplicação <strong>da</strong> regra depen<strong>da</strong> de princípios e políticas que vão além<br />

dela (DWORKIN, 2002, p. 45). To<strong>da</strong>via, apenas o uso desses termos não transforma uma regra<br />

em princípio.<br />

Para Dworkin (2002, p. 46), os princípios jurídicos atuam de maneira mais<br />

vigorosa nas questões judiciais difíceis. To<strong>da</strong>via, quando aplicados, os princípios dão origem a<br />

regras. No caso “Riggs contra Palmer” a aplicação do princípio deu origem a uma nova regra “um<br />

assassino não pode beneficiar-se do testamento de sua vítima”.<br />

Existem duas formas de análise dos princípios jurídicos, e a escolha influencia a<br />

resolução do caso submetido ao tribunal. Segundo primeira orientação, os princípios jurídicos devem<br />

possuir obrigatorie<strong>da</strong>de de lei e ser levados em conta por juízes e juristas que tomam decisões<br />

sobre obrigações jurídicas. Segundo essa orientação, o direito inclui tanto regras quanto princípios.<br />

Já a segun<strong>da</strong> orientação nega que princípios possam ser obrigatórios. Para essa orientação, quando<br />

o juiz aplica princípios, ele julga além do direito (DWORKIN, 2002, p. 46-47).<br />

Apesar do enfoque bastante decisivo <strong>da</strong>do por Dworkin na distinção entre princípios<br />

e políticas, para outras teorias essa distinção pode não ser tão importante quanto para Dworkin.<br />

A teoria de Hans-George Ga<strong>da</strong>mer prevê que o texto a ser interpretado não é uma coisa em si, mas<br />

possui um significado pela virtude inferi<strong>da</strong> do que ele chama de wirkungsgeschichte, ou precedente,<br />

o conjunto histórico de interpretações que o texto teve (HOY, 1987, p. 327). To<strong>da</strong>via, não faz<br />

nenhuma distinção que possa ser compara<strong>da</strong> com a distinção entre princípios e regras feitas por<br />

Dworkin. Ain<strong>da</strong> segundo HOY, essa distinção pode nem mesmo aju<strong>da</strong>r a afirmação de Dworkin de<br />

que sempre há uma resposta correta (HOY, 1987, p. 337).<br />

Ain<strong>da</strong> assim, a distinção feita por Dworkin é capaz de aju<strong>da</strong>r a resolver o<br />

problema <strong>da</strong> discricionarie<strong>da</strong>de em sentido forte <strong>da</strong> doutrina positivista. A escolha entre uma ou<br />

outra abor<strong>da</strong>gem afeta a resposta aos casos difíceis. Se escolhermos a primeira orientação, aceitaremos<br />

que o juiz está aplicando direitos e obrigações jurídicas preexistentes ao caso apresentado.<br />

Se adotarmos a segun<strong>da</strong> orientação, deveremos reconhecer que em algumas decisões a parte<br />

147<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Princípio <strong>da</strong> Integri<strong>da</strong>de como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin<br />

sucumbente foi priva<strong>da</strong> de seus bens por um ato discricionário do juiz (DWORKIN, 2002, p. 49).<br />

Neste ponto, a argumentação de Dworkin supera a argumentação do positivismo<br />

jurídico, uma vez que não aceita a discricionarie<strong>da</strong>de do poder do juiz e encontra uma fun<strong>da</strong>mentação<br />

legítima para as decisões toma<strong>da</strong>s nos casos difíceis. Segundo Ikawa (2006), Dworkin aceita<br />

a possibili<strong>da</strong>de de discricionarie<strong>da</strong>de judicial no sentido fraco e apenas rechaça-a no sentido forte.<br />

Analisando o conceito de regra de reconhecimento de Hart, desenvolvido em<br />

seu livro O Conceito de Direito (2001), Dworkin denuncia a inconsistência deste modelo para a<br />

integração entre princípios e regras. Para ele os positivistas sempre lêem os princípios e políticas<br />

como regras, lêem como se fossem padrões tentando ser regras (DWORKIN, 2002, p. 62). Para<br />

ele também não é correto trabalhar com o conceito de válido ou não válido com os princípios, uma<br />

vez que esse é apenas apropriado para as regras, renunciando aí a abrangência dos princípios pela<br />

regra de reconhecimento. (DWORKIN, 2002, p. 66) O autor conclui que não é possível a<strong>da</strong>ptar a<br />

versão de Hart do positivismo, modificando sua regra de reconhecimento para incluir princípios<br />

(DWORKIN, 2002, p. 69).<br />

Então lança a questão: “Se nenhuma regra de reconhecimento pode fornecer<br />

um teste para identificar princípios, por que não dizer que os princípios constituem a última instância<br />

e constituem a regra de reconhecimento no nosso direito”? Mas isso não é possível, tendo em<br />

vista que não é possível enumerar todos os princípios que fazem parte de um direito vigente. Por<br />

isso, para que seja possível tratar os princípios como direito, deve-se rejeitar a doutrina positivista<br />

(DWORKIN, 2002, p. 72).<br />

Entende-se, então, que os princípios não podem ser considerados válidos ou<br />

não-válidos. Eles entram em conflito uns com os outros e interagem. Fornecem justificativas a<br />

favor de uma determina<strong>da</strong> solução de um caso difícil, mas não a estipula. E, sua não aplicação em<br />

determinado caso não indica que não é válido. Poderá ser aplicado em outro caso. Não existe um<br />

número fixo de padrões, dos quais se pode dizer que tantos são regras e outros são princípios. Não<br />

cabe na concepção de Dworkin um conjunto fixo de padrões.<br />

148<br />

3 CASOS DIFÍCEIS<br />

Segundo o positivismo jurídico, diante dos casos difíceis, os juízes possuem<br />

poder discricionário para decidir. Casos difíceis são aqueles que não podem ser decididos apenas<br />

com base em regras, ou porque essas não são claras, ou porque não foram escritas. Em virtude<br />

dessa similitude de termos, Ikawa (2004) explica que o termo hard cases utilizado por Dworkin, é<br />

sinônimo de lacuna <strong>da</strong> lei, utilizado pelos positivistas e por Herbert Hart. 4<br />

A partir dessa teoria, quando o juiz decide um caso difícil, ele legisla novos<br />

direitos jurídicos, e os aplica retroativamente. Por isso essa teoria <strong>da</strong> decisão é totalmente inadequa<strong>da</strong>,<br />

uma vez que causa insegurança jurídica e, provavelmente, gera decisões injustas (DWORKIN,<br />

2002, p. 128).<br />

Dworkin afirma que uma teoria geral sobre a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei não é uma teoria<br />

neutra, como defendem os positivistas, entre eles seu interlocutor Herbert Hart. Para Dworkin,<br />

uma teoria sobre a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis é sempre interpretativa, e é o modo como se deve interpretála<br />

que deve ser justificado (DWORKIN, 2004, p.2).<br />

Criticando Dworkin, Postema (1987, p. 286-287) assevera que, segundo a teoria<br />

dele, as deliberações legais podem ser ilumina<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> prática social de interpretação<br />

geral. Porém essa concepção esbarra em dois problemas: a) onde há desacordo entre os participantes<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de personifica<strong>da</strong>, será necessário escolher de maneira arbitrária alguns participantes<br />

como porta-vozes; e 2) onde há um consenso forte entre os participantes <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de<br />

personifica<strong>da</strong>, não existe possibili<strong>da</strong>de de nenhuma crítica desafiadora do pensamento dominante.<br />

4 Sobre o debate entre Hart e Dworkin ler também: DMITRUK, Erika. O que é o Direito? Uma análise a partir de Hart e<br />

Dworkin. Revista Jurídica <strong>da</strong> Unifil. nº. 1. Londrina, 2004. p. 71-88. CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguage.<br />

4 ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990. p. 321-328. HART, H. L. A.; DWORKIN, R. La decisión judicial. Studio<br />

preliminar de César Rodrigues. Universi<strong>da</strong>de de Los Andes, 1997, p. 15. HART, H.L.A. O conceito de Direito. (com pósescrito<br />

editado por Penélope A. Bulloch e Joseph Raz). 3ª ed. Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian.<br />

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Erika Juliana Dmitruk<br />

Um caso será difícil quando um juiz, em sua análise preliminar, não encontrar<br />

uma interpretação que se sobreponha a outra, entre duas ou mais interpretações de uma lei ou de<br />

um julgado (DWORKIN, 2003, p. 306). Uma lei só será considera<strong>da</strong> obscura quando existirem<br />

bons argumentos para mais de uma interpretação em confronto (DWORKIN, 2003, p. 421).<br />

Em vista desse posicionamento, tornou-se necessário desenvolver uma nova<br />

teoria <strong>da</strong> decisão, uma vez que deve-ser garantir a uma <strong>da</strong>s partes o direito de uma resposta<br />

favorável mesmo que não haja um precedente estrito ou uma lei específica. O juiz não deve, de<br />

forma alguma, criar novos direitos que valham retroativamente (DWORKIN, 2002, p. 128).<br />

Para que se descubram quais direitos a parte tem, é necessário que se conheçam<br />

os princípios políticos que inspiraram a Constituição. Esses princípios auxiliam a leitura <strong>da</strong><br />

Constituição, limitando seu conteúdo e auxiliando nos casos difíceis. Mesmo as decisões dos tribunais<br />

que são considera<strong>da</strong>s decisões políticas importantes, podem ser li<strong>da</strong>s como decisões toma<strong>da</strong>s<br />

com base em princípios, uma vez que as decisões de princípios são aquelas basea<strong>da</strong>s nos direitos<br />

que as pessoas têm a partir <strong>da</strong> Constituição, e não em políticas que buscam realizar objetivos<br />

coletivos (DWORKIN, 2000, p.101; 2002, p. 133).<br />

As decisões judiciais não originais, que apenas aplicam os termos claros de<br />

uma lei de vali<strong>da</strong>de inquestionável, são sempre justifica<strong>da</strong>s pelos argumentos de princípio, mesmo<br />

que a lei em si tenha sido gera<strong>da</strong> por uma política (DWORKIN, 2002, p. 131).<br />

Muitas vezes é possível confundir argumentos de princípio com argumentos de<br />

política, to<strong>da</strong>via deve-se ater a orientação de Dworkin, onde argumentos de princípios falam sobre<br />

direitos que as pessoas têm em face do ordenamento jurídico e argumentos de política falam sobre<br />

objetivos coletivos que o Estado pretende alcançar.<br />

Segundo a teoria dos direitos, desenvolvi<strong>da</strong> no livro Levando os Direitos a<br />

Sério, aplica<strong>da</strong> pelo juiz filósofo Hércules, existe um caminho para se chegar a uma resposta<br />

correta nos casos difíceis. Hércules é um juiz que aceita as leis, e acredita que os juízes têm o<br />

dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores. Hércules<br />

precisa descobrir a intenção <strong>da</strong> lei – ponte entre a justificação política <strong>da</strong> idéia geral de que as leis<br />

criam direitos e aqueles casos difíceis que interrogam sobre que direitos foram criados por uma lei<br />

específica. E também o conceito de princípios que subjazem às regras positivas do direito, fazendo<br />

uma ponte entre a justificação política <strong>da</strong> doutrina segundo a qual os casos semelhantes devem ser<br />

decididos <strong>da</strong> mesma maneira e aqueles casos difíceis nos quais não fica claro o que essa regra<br />

requer. Assim, em primeiro lugar, estu<strong>da</strong>rá a Constituição, procurando entender as regras que ela<br />

contém, as interpretações judiciais anteriores, e a filosofia política que embasa os direitos ali dispostos<br />

(DWORKIN, 2002, p. 165-168). Depois disso procurará a interpretação que vincula de<br />

modo mais satisfatório o disposto pelo legislativo a partir <strong>da</strong>s leis promulga<strong>da</strong>s e suas responsabili<strong>da</strong>de<br />

como juiz (DWORKIN, 2002, p. 169). Ain<strong>da</strong> se perguntará qual argumento de princípio e de<br />

política convenceria o poder legislativo a promulgar a lei sob estudo. Hércules também utilizará<br />

uma teoria política para interpretar a lei, para descobrir o seu fim (DWORKIN, 2002, p. 168-171).<br />

O terceiro passo em sua busca pela melhor resposta é a análise dos precedentes, no caso de o<br />

problema a ele submetido não ser regulado por nenhuma. Ao analisar os precedentes, Hércules<br />

levará em conta os argumentos de princípio que o embasaram.<br />

149<br />

Mas, uma vez que Hércules será levado a aceitar a tese dos direitos, sua<br />

interpretação <strong>da</strong>s decisões judiciais será diferente de sua interpretação <strong>da</strong>s<br />

leis em um aspecto importante. Quando interpreta as leis, ele atribui à linguagem<br />

jurídica, como vimos, argumentos de princípio ou de política que fornecem<br />

a melhor justificação dessa linguagem à luz <strong>da</strong>s responsabili<strong>da</strong>des do<br />

poder legislativo. Sua argumentação continua sendo um argumento de princípio.<br />

Ele usa a política para determinar que direitos já foram criados pelo<br />

Legislativo. Mas, quando interpreta as decisões judiciais, atribuirá à linguagem<br />

relevante apenas argumentos de princípio, pois a tese dos direitos sustenta<br />

que somente tais argumentos correspondem à responsabili<strong>da</strong>de do<br />

tribunal em que foram promulga<strong>da</strong>s (DWORKIN, 2002, p.173).<br />

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O Princípio <strong>da</strong> Integri<strong>da</strong>de como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin<br />

150<br />

Ao estu<strong>da</strong>r os precedentes, Hércules terá que distinguir sua força gravitacional<br />

nas decisões posteriores. A força gravitacional de um precedente, segundo Dworkin, repousa na<br />

eqüi<strong>da</strong>de, os casos semelhantes devem ser tratados do mesmo modo (DWORKIN, 2002, p. 176).<br />

Para definir a força gravitacional de um precedente, Hércules só levará em consideração os argumentos<br />

de princípio que justificam esse precedente.<br />

Ain<strong>da</strong> como desdobramento dos seus estudos sobre os precedentes, Hércules<br />

construirá uma cadeia de princípios que fun<strong>da</strong>mentam o direito costumeiro, a partir <strong>da</strong>s justificações<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s nas decisões pretéritas (DWORKIN, 2002, p. 181). Esses princípios devem ser capazes<br />

de justificar de maneira coerente porque determina<strong>da</strong>s decisões foram toma<strong>da</strong>s (DWORKIN,<br />

2002, p. 182).<br />

O primeiro passo dessa tarefa hercúlea será especificar a teoria constitucional<br />

que já utilizou quando se perguntou sobre quais responsabili<strong>da</strong>des o sistema político lança sobre o<br />

legislador (DWORKIN, 2002, p. 183).<br />

Mesmo seguindo todo esse caminho, Hércules sabe <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de encontrar<br />

decisões incoerentes. Por isso precisa também de uma teoria sobre os erros. Ele construirá a<br />

primeira parte de sua teoria dos erros por meio de dois conjuntos de distinções. Distinguirá autori<strong>da</strong>de<br />

específica, que é o poder de uma lei ou precedente, ou decisão executiva, de produzir exatamente<br />

os efeitos nela dispostos (por exemplo, uma lei que obrigue companhias aéreas a indenizar<br />

seus passageiros por atrasos de vôo); <strong>da</strong>s conseqüências institucionais, que definem o seu poder<br />

gravitacional (com base no postulado anterior, exigir que as companhias de ônibus indenizem seus<br />

passageiros por atraso). A segun<strong>da</strong> distinção trata de erros enraizados, que apesar <strong>da</strong> per<strong>da</strong> do<br />

poder gravitacional, os efeitos específicos continuam, e os erros passíveis de correção, cuja per<strong>da</strong><br />

do poder gravitacional gera a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de específica (2002, p. 189-190). O nível constitucional<br />

de sua teoria irá determinar quais são os erros enraizados.<br />

A segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> sua teoria deve demonstrar que é melhor que ela exista do<br />

que o não reconhecimento dos erros, ou o reconhecimento dos erros de uma forma diferente (2002,<br />

p.190). Hércules utilizará duas ordens de argumentos para demonstrar que uma determina<strong>da</strong> corrente<br />

jurisprudencial está erra<strong>da</strong>. Valer-se-á de argumentos históricos ou de uma percepção geral<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, para mostrar que um determinado princípio que já foi historicamente importante,<br />

hoje não é mais, não exerce força suficiente para gerar uma decisão jurídica. Também utilizará<br />

argumentos de morali<strong>da</strong>de política, demonstrando que tal decisão ou princípio fere a eqüi<strong>da</strong>de, é<br />

injusto (DWORKIN, 2002, p. 191).<br />

É preciso afirmar que Hércules não possui um método para os casos difíceis e<br />

outro para os casos fáceis. Seu método é aplicável a qualquer caso, to<strong>da</strong>via, nos casos fáceis, as<br />

respostas são evidentes, e por isso não se tem a certeza de estar-se aplicando um método para<br />

resolvê-los (DWORKIN, 2003, p. 423).<br />

4 A INTEGRIDADE<br />

Para Dworkin, a interpretação do Direito se dá pela reconstrução deste a partir<br />

<strong>da</strong>s próprias práticas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de personifica<strong>da</strong>. Para isso, divide o processo de interpretação<br />

construtiva em três partes: uma pré-interpretativa, onde são identifica<strong>da</strong>s regras e padrões já utilizados;<br />

uma etapa interpretativa, onde busca-se uma justificação geral para as regras e padrões<br />

identificados na etapa pré-interpretativa; e uma etapa pós-interpretativa, onde ajusta a prática<br />

identifica<strong>da</strong> na etapa pré-interpretativa com a justificação <strong>da</strong> etapa interpretativa (DWORKIM,<br />

2003, p. 81-82).<br />

As interpretações <strong>da</strong><strong>da</strong>s ao Direito são mutáveis e o que em uma época é<br />

incontestável, em outra sofre sérias críticas. O que em uma época é considera<strong>da</strong> uma interpretação<br />

radical, em outro momento é aceito (DWORKIN, 2003, p. 109-112). Por isso, Dworkin acredita<br />

ser tão importante o estudo <strong>da</strong>s decisões judiciais, já que o Direito é um romance em cadeia,<br />

ca<strong>da</strong> voto de qualquer juiz é um capítulo deste romance.<br />

Um filósofo do direito, ao estu<strong>da</strong>r e pesquisar as práticas jurídicas existentes,<br />

poderá se deparar com um conjunto quase estanque de princípios. Assim, uma nova discussão<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Erika Juliana Dmitruk<br />

sobre o direito existente pode ser revolucionária. O objetivo de Dworkin é discutir de que maneira<br />

pode-se guiar e restringir o poder de coerção do Direito através de uma teoria interpretativa que<br />

trabalhe com uma comuni<strong>da</strong>de de princípios, onde o sistema de direitos e responsabili<strong>da</strong>des sejam<br />

coerentes (DWORKIN, 2003, p. 116).<br />

Para isso, defenderá a existência de uma virtude política não tradicional.<br />

Ao lado <strong>da</strong> justiça e devido processo legal, Dworkin colocará uma terceira virtude, a qual<br />

denomina integri<strong>da</strong>de (DWORKIN, 2003, p. 199-201). A integri<strong>da</strong>de refere-se ao compromisso<br />

de que o governo aja de modo coerente e fun<strong>da</strong>mentado em princípios com todos os seus<br />

ci<strong>da</strong>dãos, afim de estender a ca<strong>da</strong> um os padrões fun<strong>da</strong>mentais de justiça e equi<strong>da</strong>de<br />

(DWORKIN, 2003, p. 201-202).<br />

Segundo Dworkin (2003, p. 203), será mais fácil entender a interpretação construtiva<br />

do Direito, se se aceitar a integri<strong>da</strong>de como uma virtude política, uma vez que as exigências<br />

<strong>da</strong> mesma se dividem em integri<strong>da</strong>de na legislação (que solicita aos legisladores que produzam leis<br />

coerentes com os princípios) e a integri<strong>da</strong>de no julgamento (que solicita aos que julgam o façam<br />

também de forma coerente com os princípios).<br />

O fato de Dworkin considerar a integri<strong>da</strong>de como uma virtude política aplicável<br />

ao Direito é considerado um ato de extremo otimismo, uma vez que esta exige a coerência de um<br />

corpo de normas feito sem critério e ao acaso (HOY, 1987, p. 345). Por isso mesmo não é possível<br />

pensar que o aperfeiçoamento desta virtude se dê de maneira simples. Para sua realização, a<br />

integri<strong>da</strong>de política supõe uma personificação profun<strong>da</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Pressupõe que esta se<br />

engaje na fomentação dos princípios de equi<strong>da</strong>de, justiça e devido processo legal, e que honre<br />

essas virtudes. A idéia de integri<strong>da</strong>de política personifica a comuni<strong>da</strong>de como um agente moral,<br />

atuante, pressupondo que a comuni<strong>da</strong>de pode adotar, expressar e ser fiel ou infiel a princípios<br />

próprios, diferentes <strong>da</strong>queles de quaisquer de seus dirigentes ou ci<strong>da</strong>dãos enquanto indivíduos<br />

(DWORKIN, 2003, p. 203-205).<br />

A partir dessas considerações, é possível entender que o princípio <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de<br />

não admite que uma comuni<strong>da</strong>de personifica<strong>da</strong> aplique direitos diferentes, que não podem ser<br />

definidos como um conjunto coerente com os princípios de justiça, equi<strong>da</strong>de e devido processo<br />

legal.<br />

Dworkin (2003, p. 225) defende que o princípio <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de, nos Estados<br />

Unidos, está incluído na cláusula de igual proteção <strong>da</strong> Décima Quarta Emen<strong>da</strong>. Da mesma forma,<br />

quando se discute a igual proteção nas cortes norte-americanas, discute-se a igual<strong>da</strong>de formal e a<br />

exigência de integri<strong>da</strong>de do sistema.<br />

Ain<strong>da</strong> é possível entender o princípio <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de na reivindicação de<br />

fraterni<strong>da</strong>de, na Revolução Francesa, ou a partir de seu nome mais comum, comuni<strong>da</strong>de. Para o<br />

autor estu<strong>da</strong>do neste artigo, “uma socie<strong>da</strong>de política que aceita a integri<strong>da</strong>de como virtude política<br />

se transforma, desse modo, em uma forma especial de comuni<strong>da</strong>de, especial num sentido que<br />

promove sua autori<strong>da</strong>de moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva” (DWORKIN,<br />

2003, p. 228).<br />

Como conseqüências práticas <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de, Dworkin assevera o fato de que<br />

a integri<strong>da</strong>de contribui para a eficiência do direito, uma vez que quando as pessoas são governa<strong>da</strong>s<br />

por princípios há menos necessi<strong>da</strong>de de regras explícitas, e o Direito pode expandir-se e contrairse<br />

organicamente, na medi<strong>da</strong> em que se enten<strong>da</strong> o que eles exigem em novas circunstâncias<br />

(DWORKIN, 2003, p. 229).<br />

São vislumbra<strong>da</strong>s também conseqüências morais, tais como, a possibili<strong>da</strong>de de<br />

que ca<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>dão aceitar as exigências que lhe são feitas e fazer exigências aos outros, que compartilham<br />

e ampliam a dimensão moral de quaisquer decisões políticas explícitas (DWORKIN,<br />

2003, p. 230).<br />

Dworkin descreve três modelos gerais de prática associativas, um primeiro<br />

onde os membros supõem que sua associação não passa de um acidente de fato <strong>da</strong> história e <strong>da</strong><br />

geografia; o segundo chamado de modelo <strong>da</strong>s regras, onde os membros aceitam o compromisso<br />

geral de obedecer às regras estabeleci<strong>da</strong>s conforme um modo pré-determinado, e o terceiro modelo,<br />

defendido por ele, que é o modelo do princípio. Neste terceiro modelo de comuni<strong>da</strong>de os membros<br />

aceitam que são governados por princípios comuns e não apenas por regras cria<strong>da</strong>s por um<br />

151<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Princípio <strong>da</strong> Integri<strong>da</strong>de como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin<br />

acordo político. Admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares<br />

constantes nas regras, mas dependem, de maneira mais ampla, do sistema de princípios<br />

que essas decisões pressupõem (DWORKIN, 2003, p. 252-255).<br />

Qualquer interpretação construtiva bem sucedi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s práticas políticas deve<br />

reconhecer a integri<strong>da</strong>de como um ideal político distinto. Neste sentido, a integri<strong>da</strong>de é a chave<br />

para a melhor interpretação construtiva de nossas práticas jurídicas distintas e, particularmente, do<br />

modo como os juízes decidem os casos difíceis nos tribunais.<br />

A integri<strong>da</strong>de não se reduz a coerência do ordenamento jurídico. Ela vai além,<br />

pois exige que as normas públicas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de sejam cria<strong>da</strong>s e vistas, na medi<strong>da</strong> do possível, de<br />

modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equi<strong>da</strong>de, na correta proporção<br />

(DWORKIN, 2003, p. 264).<br />

5 INTEGRIDADE NO DIREITO<br />

152<br />

O princípio <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de no direito é um desdobramento do método de Hércules<br />

já explicitado ao falar do seu método de julgar os casos difíceis. Em O Império do Direito, Dworkin<br />

elabora de maneira mais <strong>completa</strong> sua tese dos direitos.<br />

Dworkin percebe a construção <strong>da</strong> prática jurídica como a elaboração de um<br />

romance em cadeia. Sua visão do direito como integri<strong>da</strong>de abor<strong>da</strong> as afirmações jurídicas como<br />

opiniões interpretativas, que tanto se voltam para o passado quanto para o futuro, e estão em<br />

processo ininterrupto de desenvolvimento.<br />

Para que seja válido o esforço de interpretar o direito como integri<strong>da</strong>de, os<br />

juízes devem, nos limites do possível, identificar os direitos e deveres como se tivessem sido criados<br />

por um único autor, a comuni<strong>da</strong>de personifica<strong>da</strong>. Essa exigência é necessária uma vez que entende-se<br />

que as proposições jurídicas são váli<strong>da</strong>s quando derivam dos princípios de justiça, equi<strong>da</strong>de e<br />

devido processo legal, oferecendo a melhor interpretação do direito (DWORKIN, 2003, p. 271-<br />

272).<br />

Neste ponto <strong>da</strong> teoria de Dworkin é que surge uma <strong>da</strong>s principais críticas feitas<br />

ao seu método por Habermas. A impossibili<strong>da</strong>de de se conceber o direito de uma comuni<strong>da</strong>de feito<br />

por um só autor, e a solidão de Hércules que, ao decidir sozinho, são os principais pontos fracos <strong>da</strong><br />

teoria. O fato de Hércules estu<strong>da</strong>r o direito na solidão de seu gabinete, nega ao mesmo um<br />

interlocutor qualificado e a possibili<strong>da</strong>de de aprimorar seus argumentos, faltando também pressupostos<br />

<strong>da</strong> teoria do discurso (HABERMAS, 1997, p. 276-277).<br />

Apesar <strong>da</strong> crítica feita por Habermas, deve-se considerar o fato de que Hércules<br />

possui um padrão de quali<strong>da</strong>de, e tem como objetivo sempre buscar a melhor resposta jurídica para<br />

o problema apresentado, inobstante o fato de não possuir um interlocutor que se esmere tanto<br />

quanto ele na construção do direito como integri<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>via, Dworkin não ignora que a autoria<br />

do direito como integri<strong>da</strong>de é múltipla, tanto que prevê seu desenvolvimento como o de um romance<br />

em cadeia, onde ca<strong>da</strong> intérprete, ao escrever o próximo capítulo, deve encontrar o melhor<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> história (DWORKIN, 2003, p. 274-276)<br />

Também deve-se asseverar que Dworkin (2003, p. 316) não imagina que todos<br />

os juízes tornem-se Hércules. Para ele a utili<strong>da</strong>de de Hércules decorre do fato dele ser mais<br />

reflexivo e auto-consciente do que qualquer juiz. Além disso, Hércules não conta com a limitação<br />

de prazo para tomar decisões e age como se tivesse to<strong>da</strong> sua carreira para se dedicar a uma<br />

decisão.<br />

O caminho feito por Hércules para encontrar a melhor resposta a um problema<br />

jurídico difícil é, em linhas gerais, o seguinte: 1) encontrar, uma teoria coerente sobre os direitos em<br />

conflito, tal que um membro do legislativo ou do executivo, com a mesma teoria, pudesse chegar a<br />

maioria dos resultados que as decisões anteriores dos tribunais relatam; 2) Selecionar diversas<br />

hipóteses que possam corresponder à melhor interpretação do histórico <strong>da</strong>s decisões anteriores;<br />

caso elas se contradigam é necessário encontrar uma correta; 3) Encontrar a hipótese correta, a<br />

partir do pensamento de que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre<br />

justiça e equi<strong>da</strong>de e o devido processo legal adjetivo, e que esses princípios devem ser aplicados de<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Erika Juliana Dmitruk<br />

forma a garantir a aplicação justa e eqüitativa do direito. A partir de uma teoria coerente sobre<br />

política e direito é possível encontrar uma resposta satisfatória quando princípios conflitam<br />

(DWORKIN, 2003, p. 253); 4) Eliminar to<strong>da</strong> hipótese que seja incompatível com a prática jurídica<br />

de um ponto de vista geral. 5) Colocar a interpretação à prova. Perguntar-se-á se essa interpretação<br />

é coerente o bastante para justificar as estruturas e decisões políticas anteriores de sua comuni<strong>da</strong>de<br />

(DWORKIN, 2003, p. 288-294). Neste momento Dworkin justifica o nome de Hércules,<br />

uma vez que nenhum juiz real poderia aproximar-se <strong>da</strong> tarefa que a ele foi confia<strong>da</strong>.<br />

Hércules também desenvolve métodos distintos, para aplicação do common<br />

law, <strong>da</strong>s leis e <strong>da</strong> Constituição. Para fins desta pesquisa, aprofun<strong>da</strong>r-se seu método no que concerne<br />

às leis e à Constituição, já que o modelo de Direito pátrio é o romano-germânico e não o common<br />

law.<br />

Para analisar uma lei, Hércules tratará o Congresso como um autor anterior a<br />

ele na cadeia do Direito. To<strong>da</strong>via, tem a clareza de que este autor possui poderes e responsabili<strong>da</strong>des<br />

diferentes dos seus. Hércules deverá procurar a melhor interpretação <strong>da</strong> lei com base em suas<br />

próprias convicções, analisando também o histórico desta lei. Abor<strong>da</strong>rá as declarações oficiais dos<br />

legisladores e atos políticos relacionados ao texto que pretende interpretar. A interpretação construtiva<br />

de Dworkin (2003, 377-380) contrapõe-se à interpretação conversacional, a qual procura<br />

aceitar o ponto de vista <strong>da</strong> intenção do locutor. Hércules perceberá nas declarações de propósitos<br />

oficias como decisões políticas, englobando-as na interpretação <strong>da</strong>s leis (DWORKIN, 2003, p.<br />

410).<br />

Repetindo e aprofun<strong>da</strong>ndo o processo exposto no livro Levando os Direitos à<br />

Sério, a integri<strong>da</strong>de exige que Hércules elabore uma justificativa para a aplicação <strong>da</strong> lei. Essa<br />

justificativa deve ser coerente com o restante <strong>da</strong> legislação vigente (DWORKIN, 2003, 407).<br />

Poderá até levar em conta a opinião pública geral (DWORKIN, 2003, p. 409). Hércules interpreta<br />

não só o texto <strong>da</strong> lei, mas também sua vi<strong>da</strong>, o processo que se inicia antes que ela se transforme em<br />

lei e se estende para além desse momento.<br />

Para interpretação <strong>da</strong> Constituição um outro método é necessário, tendo em<br />

vista que a Constituição é um tipo especial de norma. Os tribunais superiores têm o poder de julgar<br />

a compatibili<strong>da</strong>de de uma norma ou ação governamental com a Constituição, um poder bastante<br />

amplo e que deve ser utilizado respeitando as virtudes políticas.<br />

Ao tratar de normas constitucionais, Hércules não se considera nem um<br />

passivista nem um ativista. Acredita, assim como em outros casos, que “sob o regime do direito<br />

como integri<strong>da</strong>de, os problemas constitucionais polêmicos pedem uma interpretação, não uma<br />

emen<strong>da</strong>” (DWORKIN, 2003, p. 442). Qualquer interpretação competente <strong>da</strong> Constituição como<br />

um todo deve reconhecer que alguns direitos constitucionais se destinam a impedir que as maiorias<br />

sigam suas próprias convicções quanto ao que a justiça requer. O julgamento interpretativo de<br />

Hércules exigirá o envolvimento <strong>da</strong>s virtudes políticas e a averiguação de compatibili<strong>da</strong>de delas<br />

com os man<strong>da</strong>mentos constitucionais (DWORKIN, 2003, p. 442-450).<br />

Inicia seu processo interpretativo pesquisando a melhor teoria de interpretação<br />

disponível e após elabora uma que se aplique aos fins constitucionais, sempre sujeita a revisões<br />

posteriores. Uma interpretação feita a partir do princípio <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de deve sempre respeitar as<br />

limitações institucionais, quais sejam a supremacia legislativa e o precedente estrito nos países do<br />

common law (DWORKIN, 2003, p.472- 479).<br />

Finalizando, existe para Dworkin (2003, p.483-484), dois tipos de integri<strong>da</strong>de, a<br />

integri<strong>da</strong>de inclusiva, que reflete-se na interpretação do juiz quando este constrói uma teoria geral<br />

do direito a fim de refletir, <strong>da</strong> maneira mais coerente possível, os princípios de equi<strong>da</strong>de, justiça e<br />

devido processo legal. É a aplicação prática <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de, e está presente em nosso ordenamento<br />

jurídico. E a integri<strong>da</strong>de pura, uma ambição maior do direito moderno, a qual funciona como um<br />

horizonte a ser buscado.<br />

A integri<strong>da</strong>de pura é composta de princípios de justiça que justificam o direito<br />

contemporâneo, sem levar em conta as restrições institucionais exigi<strong>da</strong>s pela integri<strong>da</strong>de inclusiva..<br />

Essa interpretação purifica<strong>da</strong> se dirige diretamente à comuni<strong>da</strong>de personifica<strong>da</strong> (DWORKIN,<br />

2003, p. 485).<br />

153<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Princípio <strong>da</strong> Integri<strong>da</strong>de como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin<br />

6 CONCLUSÃO<br />

154<br />

O presente artigo teve como objetivo o esclarecimento acerca <strong>da</strong> teoria de<br />

Ronald Dworkin sobre a resolução dos casos difíceis. Para isso, foi necessário encontrar a definição<br />

de alguns conceitos básicos para o autor, como o conceito de regras, princípios, políticas,<br />

integri<strong>da</strong>de, hard cases. Além disso, foi necessário também descrever a teoria <strong>da</strong> decisão construtiva<br />

do Juiz Hércules, e desenvolver as suas idéias sobre a teoria dos direitos.<br />

Analisou-se o valor político batizado por Dworkin de integri<strong>da</strong>de e suas repercussões<br />

no campo <strong>da</strong>s decisões políticas, legislativas e jurídicas, bem como seus reflexos no entendimento<br />

do Direito como um conjunto coerente de normas. Também, vislumbrou-se a possibili<strong>da</strong>de<br />

de um caminho ain<strong>da</strong> mais perfeito para a interpretação, denominado por Dworkin de princípio <strong>da</strong><br />

integri<strong>da</strong>de pura. Uma teoria que conta com a vantagem de não estar, necessariamente, liga<strong>da</strong> aos<br />

casos concretos.<br />

Infere-se dos estudos realizados que a sofistica<strong>da</strong> teoria de Ronald Dworkin,<br />

apesar <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de de seus métodos, a dedicação e o tempo de Hércules, ain<strong>da</strong> encontra<br />

muitos críticos e opositores, e está longe de constituir-se uma unanimi<strong>da</strong>de.<br />

Para alguns, o ponto mais fraco de sua teoria é a ficção de que o direito tenha<br />

um só legislador, a comuni<strong>da</strong>de personifica<strong>da</strong>. Tal ficção se torna bastante importante para interpretar<br />

o direito como integri<strong>da</strong>de. Para outros, é difícil absorver a importância do pensamento de<br />

um juiz que tem a carreira to<strong>da</strong> para resolver um único caso, e que por isso ,não possui a limitação<br />

dos juízes comuns. Há também aqueles que consideram sua teoria demasia<strong>da</strong>mente otimista. A<br />

confusão entre moral e direito também é cita<strong>da</strong> por autores que criticam sua teoria. Mas, sem<br />

dúvi<strong>da</strong>, a parte de sua teoria que mais gera desconforto é a afirmação de que, mesmo nos casos<br />

difíceis, há apenas uma resposta correta.<br />

Mesmo assim, a “hermenêutica política” de Dworkin é importante. O fato de<br />

ser debati<strong>da</strong> e discuti<strong>da</strong> por tantos teóricos, ao invés de diminuir o valor de seu trabalho, apenas<br />

agrega valor. Esta é a riqueza <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de científica.<br />

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155<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Estudos de Casos


Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima<br />

PROTEÇÃO DA CRIANÇA EM FACE DA PUBLICIDADE DE<br />

MEDICAMENTOS INFANTIS 1<br />

Ester Okamoto Della Costa*<br />

Raquel Sanchez de Lima*<br />

RESUMO<br />

Dispõe sobre a proteção <strong>da</strong> criança diante <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de de medicamentos infantis. Depois de<br />

fornecer noções fun<strong>da</strong>mentais e conceitos de publici<strong>da</strong>de, analisa a legislação sobre o assunto,<br />

tendo por base normas de áreas diversas do direito, para avaliar a situação <strong>da</strong> criança destinatária<br />

do medicamento.<br />

Palavras-chave: Defesa do Consumidor. Publici<strong>da</strong>de. Publici<strong>da</strong>de de Medicamentos. Público<br />

Infantil.<br />

PROTECTION OF THE CHILD IN FACE OF THE INFANTILE MEDICINE<br />

ADVERTISING<br />

ABSTRACT<br />

It relates the protection of children in the face of the advertising of infant medicines. After providing<br />

basic concepts and notion of advertising, it examines the law on the subject, based on stan<strong>da</strong>rds of<br />

various areas of law, to evaluate the situation of the child addressed the medicine.<br />

Keywords: Consumer Protection. Advertising. Advertising for Drugs. Infant Public.<br />

159<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

Em uma socie<strong>da</strong>de de consumo, a principal forma de convencer o consumidor<br />

de adquirir determinado produto é através <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de. Diante disso, esta tem sido uma técnica<br />

muito utiliza<strong>da</strong> pela indústria, inclusive a indústria farmacêutica.<br />

Ocorre que o consumo inadequado de medicamento causa conseqüências graves<br />

à saúde <strong>da</strong>s pessoas. Além disso, no caso de medicamentos de uso infantil, deve ser ressaltado<br />

que a criança não é um adulto em tamanho menor, pois a criança está em desenvolvimento, tanto<br />

físico quanto intelectual, e o consumo inadequado de medicamento pode causar <strong>da</strong>no no seu desenvolvimento<br />

físico e até uma dependência em relação ao consumo de medicamentos.<br />

Por isso, deve-se analisar o que vem a ser publici<strong>da</strong>de e quais as espécies<br />

permiti<strong>da</strong>s na legislação brasileira, destacando-se que são proibi<strong>da</strong>s as que influenciem negativamente<br />

as crianças, abusando de sua inexperiência.<br />

1 Artigo resultou <strong>da</strong> pesquisa desenvolvi<strong>da</strong> no sub-projeto de pesquisa “Proteção <strong>da</strong> criança em face <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de abusiva de<br />

medicamentos infantis”, conseqüente do projeto de pesquisa Uel-Anvisa “Projeto de Monitoração <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong> e,<br />

alimentos especiais e produtos para saúde.”<br />

* Farmacêutica, especialista em Bioética e Saúde Pública, mestre em saúde coletiva e doutoran<strong>da</strong> em Saúde Pública, coordenadora<br />

do projeto de pesquisa de monitoramento de propagan<strong>da</strong> de medicamentos Uel-Anvisa.<br />

* Advoga<strong>da</strong>, especialista em Bioética, colaboradora do projeto de pesquisa de monitoramento de propagan<strong>da</strong> de medicamentos<br />

Uel-Anvisa.<br />

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Proteção <strong>da</strong> Criança em Face <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de de Medicamentos Infantis<br />

Além do Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto <strong>da</strong> Criança e do Adolescente,<br />

em seu Art. 7º, protege a vi<strong>da</strong> e a saúde <strong>da</strong> criança e do adolescente, sendo este dispositivo<br />

legal desconsiderado no momento <strong>da</strong> produção de publici<strong>da</strong>de de medicamento de uso infantil, pois<br />

estaria prejudicando sua saúde, podendo até estar infringindo o direito à vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> criança vítima<br />

desta publici<strong>da</strong>de.<br />

Assim, faz-se necessário analisar como poderia ser a proteção dessas crianças<br />

que se encontram vulneráveis diante <strong>da</strong> imensa gama de publici<strong>da</strong>de de medicamento infantis.<br />

2 DA PUBLICIDADE<br />

No Brasil a publici<strong>da</strong>de vem evoluindo de forma notável. Deve-se ligar este<br />

fato ao progresso industrial. Há um tipo de correlação entre a indústria e a publici<strong>da</strong>de, ou seja, à<br />

medi<strong>da</strong> que um cresce, o outro acompanha este crescimento.<br />

Não se pode imaginar este exacerbado mercado consumidor sem o efeito <strong>da</strong><br />

publici<strong>da</strong>de que conseqüentemente permitiu o surgimento <strong>da</strong> fabricação em<br />

série, base do desenvolvimento <strong>da</strong> indústria moderna. Ao analisar o verbo<br />

vender numa interpretação mais ampla de que se chegue aos outros a mensagem<br />

capaz de interessá-los em determina<strong>da</strong> ação, a finali<strong>da</strong>de principal <strong>da</strong><br />

publici<strong>da</strong>de é vender. Não se deve, no entanto ter a idéia extrema que a única<br />

finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de é vender determina<strong>da</strong> mercadoria ou serviço. Ela<br />

influência bastante e motiva a ven<strong>da</strong>. Porém, sem os demais fatores essenciais:<br />

quali<strong>da</strong>de, apresentação do artigo, preço, dentre outros, seria também<br />

insensato demais querer que a publici<strong>da</strong>de atingisse na sua plenitude os<br />

objetivos almejados (SILVA, 2005).<br />

160<br />

Publici<strong>da</strong>de é “to<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de destina<strong>da</strong> a estimular o consumo de bens e serviços,<br />

bem como promover instituições, conceitos e idéias”, conceito <strong>da</strong>do pelo Conselho de Auto-<br />

Regulamentação Publicitária (CONAR). Cláudia Lima Marques conceitua como “to<strong>da</strong> a informação<br />

ou comunicação difundi<strong>da</strong> com o fim direto ou indireto de promover, junto aos consumidores, a<br />

aquisição de um produto ou a utilização de um serviço, qualquer que seja o local ou meio de<br />

comunicação utilizado” (VIEIRA, 2005).<br />

A publici<strong>da</strong>de passou a mu<strong>da</strong>r hábitos e ditar comportamentos aos ci<strong>da</strong>dãos. Hermano<br />

Duval Comparato (apud ALMEIDA, 2003, p. 85) explica este fenômeno <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

É um fato notório que a mensagem publicitária vai, hoje, além <strong>da</strong> mera informação.<br />

Em uma primeira etapa, ela informa; na segun<strong>da</strong>, sugestiona, e, na<br />

terceira, ela capta em definitivo o consumidor. De tanto insistir na mesma<br />

tecla, mas sempre revesti<strong>da</strong> de novos recursos propiciados pela chama<strong>da</strong><br />

‘criativi<strong>da</strong>de’,... a publici<strong>da</strong>de comercial passa habilmente <strong>da</strong> informação à<br />

sugestão e desta à captação, isto é, eliminação no consumidor de sua capaci<strong>da</strong>de<br />

crítica ou censura ao que lhe é proposto (anunciado), o que importa<br />

numa violação ao princípio <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de de pensamento. E ao fim de tantas e<br />

martela<strong>da</strong>s repetições, incapaz de distinguir a sugestão do erro, o público<br />

consumidor apresenta-se ‘condicionado’ a mensagem, isto é, fica com o<br />

produto anunciado para ‘libertar-se’ de sua promoção, rejeitando, assim,<br />

qualquer outra informação ou crítica, para só se decidir pela que ficou ‘condicionado’.<br />

Nesta fase, a pior comunicação publicitária é a <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> ‘publici<strong>da</strong>de<br />

subliminar’, de que se aproxima a ‘publici<strong>da</strong>de re<strong>da</strong>cional’... Claro<br />

que o processo de ‘condicionamento’ é psicológico, mas o de sua imposição<br />

está na função moderna <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de. Ontem, advertiu Linsdsay Roger,<br />

importava saber o que a opinião pública queria, hoje importa decidir o que<br />

ela deve querer.<br />

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Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima<br />

Além disso, deve-se destacar que propagan<strong>da</strong> e publici<strong>da</strong>de são coisas diferentes,<br />

pois a publici<strong>da</strong>de tem objetivo comercial, enquanto que a propagan<strong>da</strong> visa a um fim ideológico,<br />

religioso, filosófico, político, econômico ou social. Ademais, a publici<strong>da</strong>de é paga e identifica seu<br />

patrocinador, fato que nem sempre sucede com a propagan<strong>da</strong>.<br />

Assim, percebe-se que o consumidor encontra-se a mercê de publici<strong>da</strong>des,<br />

sem conseguir discernir corretamente o que é real ou não. Embora tenha se regulamentado a<br />

publici<strong>da</strong>de de forma geral, esta é superficial e epidérmica. Isto porque ela sempre foi vista como<br />

concorrência desleal e relaciona<strong>da</strong> a proteção <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de industrial, perdendo o enfoque principal<br />

que é a indução do consumidor, deixando o consumidor em segundo plano. Mesmo quando o<br />

Conar – Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária percebia que esta não era adequa<strong>da</strong>,<br />

não podiam tirá-la do ar, não havendo grandes conseqüências à empresa que divulgava a<br />

publici<strong>da</strong>de.<br />

A publici<strong>da</strong>de é nortea<strong>da</strong> por dois princípios o <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de e o <strong>da</strong> boa-fé. O<br />

princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de é relativa a livre concorrência e iniciativa. Além disso, sofre influência<br />

atenua<strong>da</strong> dos princípios <strong>da</strong> manifestação de pensamento e o <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de de informação, pois a<br />

publici<strong>da</strong>de é uma ativi<strong>da</strong>de relaciona<strong>da</strong> à ativi<strong>da</strong>de comercial.<br />

O outro princípio é o <strong>da</strong> Boa-fé que está expressamente disposto no Art. 4º,<br />

CDC, significando que os contratos devem ser menos formais e devem expressar as intenções<br />

reais, que serão contraí<strong>da</strong>s. Deve-se, ain<strong>da</strong>, observar a aju<strong>da</strong> mútua para que o contrato chegue<br />

até o fim e a contraposição de interesses existentes devem ser respeitados, podendo ser resumido<br />

em leal<strong>da</strong>de e confiança. Paulo V. Jacobina afirma sobre o assunto:<br />

O certo é que as partes devem, mutuamente, manter o mínimo de confiança e<br />

leal<strong>da</strong>de, durante todo o processo obrigacional; o seu comportamento deve<br />

ser coerente com a intenção manifesta<strong>da</strong>, evitando-se o elemento surpresa,<br />

tanto na fase de informação, quanto na de execução, e até mesmo na fase<br />

posterior, que se pode chamar de fase de garantia e reposição. É nesse<br />

sentido que o princípio <strong>da</strong> boa-fé foi positivado pelo CDC, no inciso III do<br />

art. 4º, e é nesse sentido que a lei fala em harmonização de interesses e<br />

equilíbrio nas relações entre fornecedores e consumidores (SILVA, 2005).<br />

161<br />

Com a criação do CDC foi proibi<strong>da</strong> a publici<strong>da</strong>de abusiva e enganosa, aplicando<br />

sanções administrativas, dentre elas a contrapropagan<strong>da</strong> e a retira<strong>da</strong> do ar <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de proibi<strong>da</strong><br />

e melhorou o acesso à justiça. Ressalta-se que estas penali<strong>da</strong>des somente são aplica<strong>da</strong>s a<br />

publici<strong>da</strong>de irregular não interferindo na liber<strong>da</strong>de de criação.<br />

A ativi<strong>da</strong>de publicitária deve ser exerci<strong>da</strong> observando alguns princípios, tais<br />

como, a identificação <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, ou seja, o consumidor deve saber que o que está vendo é uma<br />

publici<strong>da</strong>de; a veraci<strong>da</strong>de, relativo à honesti<strong>da</strong>de e escorreição; a não abusivi<strong>da</strong>de, pois deve preservar<br />

valores éticos, não induzindo o consumidor a situações prejudiciais; transparência e fun<strong>da</strong>mentação,<br />

que significam que a publici<strong>da</strong>de deve ser basea<strong>da</strong> em <strong>da</strong>dos fáticos, técnicos e científicos;<br />

a obrigatorie<strong>da</strong>de do cumprimento ou <strong>da</strong> vinculação contratual <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, ou seja, ofertou<br />

deve cumprir, e por fim, a inversão do ônus <strong>da</strong> prova, pois o consumidor não tem condições para<br />

provar o que está alegando devido a sua vulnerabili<strong>da</strong>de.<br />

Seguindo o princípio <strong>da</strong> veraci<strong>da</strong>de, a única forma de publici<strong>da</strong>de permiti<strong>da</strong> no<br />

ordenamento jurídico brasileiro é a ver<strong>da</strong>deira, não podendo existir publici<strong>da</strong>de simula<strong>da</strong>, abusiva<br />

ou enganosa. A publici<strong>da</strong>de enganosa é a que deixa de informar <strong>da</strong>do essencial ou contem informações<br />

falsas, mesmo que parcialmente, gerando vício de vontade ao consumidor, podendo-se destacar<br />

neste momento a hipossuficiência do consumidor. Como forma de explicar a publici<strong>da</strong>de enganosa<br />

por comissão: “A publici<strong>da</strong>de enganosa vicia a vontade do consumidor, que, iludido, acaba<br />

adquirindo produto ou serviço em desconformi<strong>da</strong>de com o pretendido. A falsi<strong>da</strong>de está diretamente<br />

liga<strong>da</strong> ao erro, numa relação de causali<strong>da</strong>de” (CARVALHO, 2005).<br />

Já a publici<strong>da</strong>de enganosa por omissão consiste na falta de informação acerca<br />

de um <strong>da</strong>do essencial do produto e A<strong>da</strong>lberto Pascoalotto a explica <strong>da</strong> seguinte forma: “Mesmo<br />

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Proteção <strong>da</strong> Criança em Face <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de de Medicamentos Infantis<br />

sendo ver<strong>da</strong>deira, uma comunicação publicitária pode ser falsa, inteira ou parcialmente. A situação<br />

é freqüente quando há omissão de algum <strong>da</strong>do necessário ao conhecimento do consumidor, provavelmente<br />

determinante <strong>da</strong> compra” (CARVALHO, 2005).<br />

Pode-se considerar abusiva a publici<strong>da</strong>de discriminatória, que incite a violência<br />

ou que explore medo ou superstição, se aproveite de deficiência de julgamento e experiência de<br />

criança, violando valores éticos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Ambas estão proibi<strong>da</strong>s pelo Art. 37, CDC.<br />

Este tipo de publici<strong>da</strong>de não está relacionado apenas às informações divulga<strong>da</strong>s,<br />

mas também à forma que ela é divulga<strong>da</strong>. Devem sempre ser observadoS os princípios éticos,<br />

morais e culturais, não podendo ser utilizados como uma arma. Ressalta-se ain<strong>da</strong> que a publici<strong>da</strong>de<br />

não deve servir para “empurrar” serviços, tampouco deve aproveitar-se <strong>da</strong> ingenui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s crianças<br />

para vender mercadorias e serviços.<br />

162<br />

O controle <strong>da</strong> abusivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de decorre, aliás, de imposição constitucional,<br />

constante no artigo 220, II, e § 4º <strong>da</strong> Lei Maior. Ali, exige-se que a<br />

lei estabeleça os meios que garantam a possibili<strong>da</strong>de, à pessoa e à família, de<br />

se defenderem <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong> de produtos, práticas e serviços que possam<br />

ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Outrossim, o § 4º restringe a propagan<strong>da</strong><br />

dos produtos ali elencados (tabaco, bebi<strong>da</strong>s alcoólicas, agrotóxicos,<br />

medicamentos e terapias) e o art. 221 garante que programação <strong>da</strong>s emissoras<br />

de rádio e televisão atenderá ao princípio do respeito aos valores éticos<br />

e sociais <strong>da</strong> pessoa e <strong>da</strong> família. Tudo isso, combinado com o princípio <strong>da</strong><br />

defesa do consumidor, previsto em diversas passagens <strong>da</strong> Constituição (ver<br />

art. 5º, XXXII, e art. 170, V), dão a necessária fun<strong>da</strong>mentação a tal controle. É<br />

preciso lembrar que não existe, no estado de Direito, liber<strong>da</strong>de fora ou acima<br />

do direito. A liber<strong>da</strong>de é sempre exerci<strong>da</strong> dentro dos limites jurídicos. Se a<br />

publici<strong>da</strong>de não pode se conter dentro dos limites do ordenamento jurídico<br />

democrático, há algo errado com a publici<strong>da</strong>de, não com o ordenamento<br />

jurídico (SILVA, 2005).<br />

Apesar de todos consumidores serem considerados vulneráveis, este fato se<br />

agrava quando se trata de criança, pois além de vulneráveis são hipossuficientes. Apesar disso, um<br />

dos principais alvos <strong>da</strong>s empresas são as crianças, pois se aproveitando de sua imaturi<strong>da</strong>de, inocência<br />

e ignorância tentam direta e indiretamente persuadi-las em suas mensagens.<br />

Para isso, muitas vezes, utilizam crianças para a produção do comercial, pois<br />

assim fica mais fácil de convencer outra criança por viverem no mesmo universo. Antônio Herman<br />

de Vasconcelos Benjamin (apud SILVA, 2005), manifesta-se entendendo que:<br />

tal mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de publicitária não pode exortar diretamente a criança a comprar<br />

um produto ou serviço; não deve encorajar a criança a persuadir seus pais<br />

ou qualquer outro adulto (...); não pode explorar a confiança especial que a<br />

criança tem em seus pais, professores etc.; as crianças que aparecem nos<br />

anúncios não podem se comportar de modo inconsistente com o comportamento<br />

natural de outras <strong>da</strong> mesma i<strong>da</strong>de.<br />

Já a publici<strong>da</strong>de simula<strong>da</strong> disfarça seu caráter promocional para que o consumidor<br />

não perceba que está diante de uma publici<strong>da</strong>de. Antonio Herman de Vasconcelos Benjamim<br />

(apud CARVALHO, 2005) afirma acerca de publici<strong>da</strong>de simula<strong>da</strong>:<br />

A publici<strong>da</strong>de há que ser identifica<strong>da</strong> pelo consumidor. O legislador brasileiro<br />

não aceitou nem a publici<strong>da</strong>de clandestina, nem a subliminar (...) publici<strong>da</strong>de<br />

que não quer assumir a sua quali<strong>da</strong>de é ativi<strong>da</strong>de que, de uma forma ou<br />

de outra, tenta enganar o consumidor. E o engano, mesmo o inocente, é<br />

repudiado pelo Código de Defesa do Consumidor (...) O dispositivo visa<br />

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Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima<br />

impedir que a publici<strong>da</strong>de, embora atingindo o consumidor, não seja por ele<br />

percebi<strong>da</strong> como tal (...) Ve<strong>da</strong>-se, portanto, a chama<strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de clandestina,<br />

especialmente sem sua forma re<strong>da</strong>cional, bem como a subliminar.<br />

É importante a intervenção do Estado na regulamentação de publici<strong>da</strong>des, estando<br />

este fato interligado ao intervencionismo estatal para que não haja abusos nas publici<strong>da</strong>des,<br />

que devem ser analisa<strong>da</strong>s mais cui<strong>da</strong>dosamente quando se trata de publici<strong>da</strong>de de medicamentos,<br />

pois seu consumo inadequado interfere diretamente na saúde <strong>da</strong>s pessoas.<br />

3 PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS<br />

A publici<strong>da</strong>de de medicamentos é uma prática utiliza<strong>da</strong> desde o início do século<br />

XX, e até os dias de hoje essa é uma forma de forte persuasão dos consumidores. No início essas<br />

propagan<strong>da</strong>s resumiam-se em simples mensagens. Hoje, com a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> mídia, os investimentos<br />

em publici<strong>da</strong>de de medicamentos cresceram estrondosamente.<br />

Ocorre que, para a simples divulgação do consumo de um medicamento, existem<br />

muitos fatores que devem ser analisados, observando que ele não é o produto de consumo<br />

comum, pois é um e não o único instrumento de promoção à saúde, devendo sempre existir como<br />

medi<strong>da</strong> preventiva, consultas médicas e até mesmo uma análise crítica de todo o contexto em que<br />

a patologia se insere, não podendo simplesmente consumir o medicamento, acreditando que somente<br />

ele resolverá o problema. Ain<strong>da</strong> ressalta-se o risco sanitário existente no consumo de medicamentos<br />

sem prescrição médica, pois estes somente devem ser consumidos com consciência e<br />

responsabili<strong>da</strong>de.<br />

Por isso, em 1968, durante o 21ª Assembléia Mundial <strong>da</strong> Saúde, aprovaram-se<br />

critérios éticos e científicos para propagan<strong>da</strong> farmacêutica, determinando que para produção <strong>da</strong><br />

publici<strong>da</strong>de de medicamento seriam necessárias as informações exatas do medicamento, sendo<br />

estas as indicações corretas, contra-indicações, cui<strong>da</strong>dos e advertências, posologia. Após foram<br />

elaborados mais documentos estabelecendo como devem ser as publici<strong>da</strong>des de medicamentos<br />

incluindo a Organização Mundial <strong>da</strong> Saúde e a Federação Internacional <strong>da</strong>s Indústrias de Medicamentos,<br />

além <strong>da</strong>s legislações nacionais de ca<strong>da</strong> país.<br />

No Brasil, a primeira legislação sobre a publici<strong>da</strong>de de medicamentos começou<br />

a ser cria<strong>da</strong> em 1976 com a elaboração <strong>da</strong> Lei 6.360/76, que foi regulamenta<strong>da</strong> pelo decreto<br />

79.094/77. Essa legislação sobre publici<strong>da</strong>de de medicamentos era muito superficial, não atendendo<br />

a necessi<strong>da</strong>de de coibir os abusos na publici<strong>da</strong>de de medicamentos. Esta lei e esse decreto<br />

estabeleceram que a publici<strong>da</strong>de de medicamentos deveria ser aprova<strong>da</strong> para ser divulga<strong>da</strong>, além<br />

de que os produtos de ven<strong>da</strong> sob prescrição médica somente poderiam ser divulgados para os<br />

prescritores do medicamento.<br />

Em 1980, foi criado o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação publicitária,<br />

que, em seu anexo I, trata especificamente de produtos farmacêuticos isentos de prescrição médica,<br />

exigindo os seguintes aspectos:<br />

163<br />

2. A publici<strong>da</strong>de de medicamentos populares:<br />

a. não deverá conter nenhuma afirmação quanto à ação do produto que não<br />

seja basea<strong>da</strong> em evidência clínica ou científica;<br />

b. não deverá ser feita de modo a sugerir cura ou prevenção de qualquer<br />

doença que exija tratamento sob supervisão médica;<br />

c. não deverá ser feita de modo a resultar em uso diferente <strong>da</strong>s ações terapêuticas<br />

constantes <strong>da</strong> documentação aprova<strong>da</strong> pela Autori<strong>da</strong>de Sanitária;<br />

d. não oferecerá ao consumidor prêmios, participação em concursos ou recursos<br />

semelhantes que o induzam ao uso desnecessário de medicamentos;<br />

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Proteção <strong>da</strong> Criança em Face <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de de Medicamentos Infantis<br />

164<br />

e. deve evitar qualquer inferência associa<strong>da</strong> ao uso excessivo do produto;<br />

f. não deverá ser feita de modo a induzir ao uso de produtos por crianças,<br />

sem supervisão dos pais ou responsáveis a quem, aliás, a mensagem se<br />

dirigirá com exclusivi<strong>da</strong>de;<br />

g. não deverá encorajar o Consumidor a cometer excessos físicos,<br />

gastronômicos ou etílicos;<br />

h. não deverá mostrar personagem na dependência do uso contínuo de<br />

medicamentos como solução simplista para problemas emocionais ou estados<br />

de humor;<br />

i. não deverá levar o Consumidor a erro quanto ao conteúdo, tamanho de<br />

embalagem, aparência, usos, rapidez de alívio ou ações terapêuticas do produto<br />

e sua classificação (similar/genérico);<br />

j. deverá ser cui<strong>da</strong>dosa e ver<strong>da</strong>deira quanto ao uso <strong>da</strong> palavra escrita ou<br />

fala<strong>da</strong> bem como de efeitos visuais. A escolha de palavras deverá corresponder<br />

a seu significado como geralmente compreendido pelo grande público;<br />

k. não deverá conter afirmações ou dramatizações que provoquem medo ou<br />

apreensão no Consumidor, de que ele esteja, ou possa vir, sem tratamento, a<br />

sofrer de alguma doença séria;<br />

l. deve enfatizar os usos e ações do produto em questão. Comparações<br />

injuriosas com concorrentes não serão tolera<strong>da</strong>s. Qualquer comparação somente<br />

será admiti<strong>da</strong> quando facilmente perceptível pelo Consumidor ou basea<strong>da</strong><br />

em evidência clínica ou científica. Não deverão ser usados jargões<br />

científicos com <strong>da</strong>dos irrelevantes ou estatísticas de vali<strong>da</strong>de duvidosa ou<br />

limita<strong>da</strong>, que possam sugerir uma base científica que o produto não tenha;<br />

m. não deverá conter qualquer oferta de devolução de dinheiro pago ou<br />

outro benefício, de qualquer natureza, pela compra de um medicamento em<br />

função de uma possível ineficácia;<br />

n. a publici<strong>da</strong>de de produto dietético deve submeter-se ao disposto neste<br />

Anexo e, no que couber, nos anexos “G” e “H”. Não deverá incluir ou mencionar<br />

indicações ou expressões, mesmo subjetivas, de qualquer ação terapêutica.<br />

3. A referência a estudos, quer científicos ou de consumo, deverá sempre ser<br />

basea<strong>da</strong> em pesquisas feitas e interpreta<strong>da</strong>s corretamente.<br />

4. Qualquer endosso ou atestado, bem como a simples referência a profissionais,<br />

instituições de ensino ou pesquisa e estabelecimentos de saúde, deverá<br />

ser suporta<strong>da</strong> por documentação hábil, exigível a qualquer tempo.<br />

5. A publici<strong>da</strong>de de medicamentos não oferecerá a obtenção de diagnóstico<br />

à distância.<br />

6. Não conterá afirmações injuriosas às ativi<strong>da</strong>des dos profissionais de saúde<br />

ou ao valor de cui<strong>da</strong>dos ou tratamentos destes.<br />

7. Quando oferecer a ven<strong>da</strong> do produto por meio de telefone ou endereço<br />

eletrônico, deverá explicitar a razão social e o endereço físico do anunciante<br />

a fim de facilitar ação fiscalizatória e reclamações.<br />

Assim, ficaram estabeleci<strong>da</strong>s as limitações do que poderia ser afirmado ou não<br />

e a necessi<strong>da</strong>de de informações.<br />

Poucos anos depois, em 1988, foi promulga<strong>da</strong> a Constituição Federal que estabeleceu,<br />

no Art. 220, a limitação <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de de medicamentos, devido ao estabelecido no Art.<br />

6º, que estabeleceu que é um direito de todos o direito à saúde. Desse modo, os Arts. 196 e 197<br />

estabeleceram que a saúde é dever do Estado, e este deve interferir sempre para sua manutenção.<br />

Dessa forma mesmo o Art. 220, sendo contrário a livre concorrência, é um direito do Estado<br />

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Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima<br />

intervir nesta livre concorrência, pois é seu dever preservar a saúde <strong>da</strong>s pessoas, e o consumo<br />

inadequado de um medicamento pode causar sérios <strong>da</strong>nos à saúde de uma pessoa.<br />

Em 1990, foi criado o Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo, em seu<br />

Art. 4º, que, apesar <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de do consumo, este deve ser atendido respeitando a digni<strong>da</strong>de e<br />

saúde do consumidor, entre outros, mas dessa forma estabelece que, apesar <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de<br />

consumo em que se vive, a saúde de ninguém pode ser afeta<strong>da</strong> pelo consumo. Ain<strong>da</strong> na mesma<br />

legislação ficou estabelecido que a saúde e o esclarecimento do consumo são direitos básicos do<br />

consumidor, segundo estabelecido no Art. 6º, CDC:<br />

Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: I - a proteção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, saúde e<br />

segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados<br />

perigosos ou nocivos;<br />

Na Declaração Universal dos direitos do Homem e do Ci<strong>da</strong>dão, a saúde é um<br />

direito de todos, sendo que o uso inadequado de medicamentos causa <strong>da</strong>nos diretos às pessoas:<br />

Artigo 25º<br />

1. To<strong>da</strong> a pessoa tem direito a um nível de vi<strong>da</strong> suficiente para lhe assegurar<br />

e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação,<br />

ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ain<strong>da</strong> quanto aos serviços<br />

sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença,<br />

na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de per<strong>da</strong> de meios de<br />

subsistência por circunstâncias independentes <strong>da</strong> sua vontade.<br />

Além disso, os Art. 36 a 38, Código Defesa do Consumidor, protegem o consumidor,<br />

exigindo que, em to<strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, esteja claro seu caráter publicitário e não admitindo que<br />

existam publici<strong>da</strong>des enganosas, abusivas e simula<strong>da</strong>s, conforme já foi analisado acima.<br />

Em 1996 foi cria<strong>da</strong> a Lei 9.294/96, regulamenta<strong>da</strong> pelo Decreto 2.018/96 que<br />

determinou alguns critérios de informações essenciais para a publici<strong>da</strong>de de medicamentos, e como<br />

esta pode ser divulga<strong>da</strong>.<br />

Apesar de to<strong>da</strong> legislação cria<strong>da</strong> no Brasil visando proteger a população <strong>da</strong>s<br />

publici<strong>da</strong>des de medicamentos, a Lei 6.360/76 foi submeti<strong>da</strong> a uma consulta pública nº 5, resultando<br />

na Resolução RDC 102/00 cria<strong>da</strong> pela Anvisa, regulamentando a publici<strong>da</strong>de de promoção ou<br />

divulgação ou comercialização de medicamentos, indicando seus critérios, e o que pode ou não ser<br />

afirmado neste tipo de publici<strong>da</strong>de.<br />

Ain<strong>da</strong> em 2000 foi cria<strong>da</strong> a Gerência de Controle e Fiscalização de Medicamentos<br />

e Produtos iniciando-se um melhor controle dos medicamentos postos no mercado e também<br />

de suas publici<strong>da</strong>des, pois possui as seguintes competências:<br />

165<br />

I. avaliar, fiscalizar, controlar e acompanhar, a propagan<strong>da</strong>, a publici<strong>da</strong>de, a<br />

promoção e a informação de produtos sujeitos à vigilância sanitária;<br />

III. coordenar as ativi<strong>da</strong>des de apuração <strong>da</strong>s infrações à legislação de vigilância<br />

sanitária, instaurar processo administrativo para apuração de infrações<br />

à legislação sanitária federal, em sua área de competência;<br />

VIII. formular, regulamentar, planejar, coordenar, avaliar, executar e propor as<br />

diretrizes para implantação de um módulo de propagan<strong>da</strong> de produtos sujeitos<br />

à vigilância sanitária dentro do Sistema de Informação em Vigilância<br />

Sanitária, visando o aprimoramento do desempenho <strong>da</strong>s ações de vigilância<br />

sanitária;<br />

IX. articular-se com órgãos afins <strong>da</strong> administração federal, estaduas, municipal<br />

e do Distrito Federal visando a cooperação mútua e a integração de<br />

ativi<strong>da</strong>des, de modo a incorporar o controle de propagan<strong>da</strong>, publici<strong>da</strong>de,<br />

promoção e informação como uma ação de vigilância sanitária em todos os<br />

níveis de governo.<br />

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Proteção <strong>da</strong> Criança em Face <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de de Medicamentos Infantis<br />

Além de organismos nacionais existem os supranacionais que também visam à<br />

proteção <strong>da</strong> saúde através <strong>da</strong> coibição de publici<strong>da</strong>de de medicamentos. O mais importante deles<br />

é a Organização Mundial <strong>da</strong> Saúde, que, desde 1968, vem estabelecendo critérios éticos e científicos<br />

para a propagan<strong>da</strong> farmacêutica.<br />

Esses critérios foram ampliados em 1988 na Assembléia Mundial <strong>da</strong> saúde<br />

quando foram aprovados os Critérios Éticos para a Promoção <strong>da</strong> Saúde. Nessa assembléia foi<br />

considera<strong>da</strong> promoção qualquer forma de ativi<strong>da</strong>de informativa e de persuasão por parte dos fabricantes<br />

ou distribuidores de medicamentos, com o objetivo de induzir a prescrição, abastecimento,<br />

aquisição ou utilização do medicamento.<br />

Em 1992 a mesma assembléia constatou que a maioria dos países não tinha<br />

adotado meios suficientes de controle <strong>da</strong>s publici<strong>da</strong>des de medicamentos. Assim foi criado o regulamento<br />

WHA47 que recomen<strong>da</strong> aos Estados membros que implementem meios para coibir a<br />

publici<strong>da</strong>de de medicamentos que não observem a ética.<br />

Em 1994 foi elabora<strong>da</strong> a resolução WHA51.9, reafirmando que a regulamentação<br />

de medicamentos deve visar não apenas à segurança, mas também à eficácia, quali<strong>da</strong>de e<br />

exatidão nas informações forneci<strong>da</strong>s aos pacientes e prescritores.<br />

4 DA PUBLICIDADE VOLTADA AO PÚBLICO INFANTIL<br />

166<br />

Um público muito desejado pelos publicitários é o público infantil, pois constituem<br />

um mercado atraente e uma forma de atração aos pais. Somando este fato à hipossuficiência<br />

<strong>da</strong>s crianças, o CDC dispensou uma atenção especial para estes consumidores.<br />

Por isso, as publici<strong>da</strong>des não podem incitar a criança diretamente a comprar<br />

um produto ou contratar um serviço, não podem mostrar crianças tendo ações como outras crianças<br />

<strong>da</strong> mesma i<strong>da</strong>de, persuadindo seus pais a comprarem. Tampouco podem aproveitar-se <strong>da</strong><br />

confiança que as crianças têm nos pais e professores para adquirirem um produto.<br />

A publici<strong>da</strong>de dirigi<strong>da</strong> a crianças deve ser veraz e claramente identificável<br />

como tal; não deve aprovar a violência ou aceitar comportamentos que contrariem<br />

as regras gerais de comportamento social; não se podem criar situações<br />

que passem a impressão de que alguém pode ganhar prestígio com a<br />

posse de bens de consumo, que enfraqueçam a autori<strong>da</strong>de dos pais, contribuam<br />

para situações perigosas para a criança, ou que incentivem as crianças<br />

a pressionarem outras pessoas a adquirirem bens (SANTOS, 2005).<br />

O Código de Defesa do consumidor, como já afirmado anteriormente, resguar<strong>da</strong><br />

a saúde de todos os consumidores. Além disso, no capítulo relativo à publici<strong>da</strong>de, há uma proteção<br />

especial às crianças, por serem um público ingênuo que acredita nas afirmações acerca do<br />

produto, sem ter completo discernimento do ideal. Essa proteção está no Art. 37, § 2º, CDC:<br />

É abusiva, dentre outras, a publici<strong>da</strong>de discriminatória de qualquer natureza,<br />

a que incite à violência, explore o medo ou superstição, se aproveite <strong>da</strong><br />

deficiência de julgamento experiência <strong>da</strong> criança, desrespeita valores<br />

ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de<br />

forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.<br />

Isso se deve ao fato de além, de vulneráveis como todo consumidor, a criança<br />

ser hipossuficiente. Por isso um dos maiores alvos <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, atualmente, são as crianças, pois<br />

não possuem discernimento necessário para escolher o que é melhor para sua vi<strong>da</strong>, são ingênuas e<br />

imaturas, acabando, muitas vezes, ludibria<strong>da</strong>s pelas publici<strong>da</strong>des. “A hipossuficiência leva em consideração<br />

a situação concreta do consumidor, seu grau de cultura, instrução, situação financeira e<br />

o meio em que vive” (SANTOS, 2005).<br />

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Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima<br />

Por tudo isso, foi regulamenta<strong>da</strong> pelo Estado a proteção <strong>da</strong> criança face à<br />

publici<strong>da</strong>de de medicamentos, pois, ocorrendo estes abusos, a saúde <strong>da</strong> criança pode ser afeta<strong>da</strong> e<br />

há diversas legislações protegendo a saúde <strong>da</strong> criança. Visando a proteção <strong>da</strong> saúde <strong>da</strong> criança, a<br />

Constituição Federal é clara ao afirmar que é dever do Estado e <strong>da</strong> família sua proteção:<br />

Art. 227. É dever <strong>da</strong> família, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e do Estado assegurar à criança e<br />

ao adolescente, com absoluta priori<strong>da</strong>de, o direito à vi<strong>da</strong>, à saúde, à alimentação,<br />

à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à digni<strong>da</strong>de, ao<br />

respeito, à liber<strong>da</strong>de e à convivência familiar e comunitária, além de colocálos<br />

a salvo de to<strong>da</strong> forma de negligência, discriminação, exploração, violência,<br />

cruel<strong>da</strong>de e opressão.<br />

§ 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde <strong>da</strong><br />

criança e do adolescente, admiti<strong>da</strong> a participação de enti<strong>da</strong>des não governamentais<br />

e obedecendo os seguintes preceitos:<br />

I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na<br />

assistência materno-infantil;<br />

II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os<br />

portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração<br />

social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o<br />

trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços<br />

coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.<br />

No mesmo sentido, dispôs o Estatuto <strong>da</strong> Criança e do Adolescente (ECA):<br />

Art. 4º. É dever <strong>da</strong> família, <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de em geral e do Poder<br />

Público assegurar, com absoluta priori<strong>da</strong>de, a efetivação dos direitos referentes<br />

à vi<strong>da</strong>, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à<br />

profissionalização, à cultura, à digni<strong>da</strong>de, ao respeito, à liber<strong>da</strong>de e à convivência<br />

familiar e comunitária.<br />

Art. 7º. A criança e o adolescente têm direito a proteção à vi<strong>da</strong> e à saúde,<br />

mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento<br />

e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de<br />

existência.<br />

167<br />

A lei Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente –<br />

PRONAICA, Lei 8642 de 1993, acerca <strong>da</strong> proteção <strong>da</strong> saúde <strong>da</strong> criança, diz:<br />

Art. 2º. O PRONAICA terá as seguintes áreas prioritárias de atuação:<br />

I - mobilização para a participação comunitária;<br />

II - atenção integral à criança de 0 a 6 anos;<br />

III - ensino fun<strong>da</strong>mental;<br />

IV - atenção ao adolescente e educação para o trabalho;<br />

V - proteção à saúde e segurança à criança e ao adolescente;<br />

VI - assistência a crianças portadoras de deficiência;<br />

VII - cultura, desporto e lazer para crianças e adolescentes;<br />

VIII - formação de profissionais especializados em atenção integral a crianças<br />

e adolescentes.<br />

Parágrafo único. Para <strong>da</strong>r suporte às ações de que trata este artigo, subordi-<br />

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Proteção <strong>da</strong> Criança em Face <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de de Medicamentos Infantis<br />

nando-as ao enfoque <strong>da</strong> atenção integral à criança e ao adolescente, e de<br />

acordo com as necessi<strong>da</strong>des sociais locais, serão adotados mecanismos e<br />

estratégias de: integração de serviços e experiências locais já existentes;<br />

a<strong>da</strong>ptação e melhoria de equipamentos sociais já existentes; construção de<br />

novas uni<strong>da</strong>des de serviço.<br />

A Estrutura Regimental Da Secretaria Especial Dos Direitos Humanos protege<br />

a saúde <strong>da</strong> criança <strong>da</strong> seguinte forma em seu Art. 6º:<br />

168<br />

Art. 6º À Subsecretaria dos Direitos <strong>da</strong> Criança e do Adolescente compete:<br />

I - formular medi<strong>da</strong>s necessárias para promover, estimular, acompanhar e<br />

zelar pelo cumprimento do Estatuto <strong>da</strong> Criança e do Adolescente, mediante o<br />

desenvolvimento de ações sociais públicas de proteção à vi<strong>da</strong> e à saúde <strong>da</strong><br />

criança e do adolescente, para viver em condições dignas de existência;<br />

II - propor diretrizes e a adoção de medi<strong>da</strong>s administrativas e de gestão<br />

estratégica, visando garantir a adequa<strong>da</strong> implementação do Estatuto <strong>da</strong> Criança<br />

e do Adolescente;<br />

III - supervisionar e coordenar a elaboração de planos de ação anuais para a<br />

implementação e monitoramento de programas e projetos de atendimento às<br />

crianças e aos adolescentes, com definição de prazos, metas, responsáveis e<br />

orçamento para as ações;<br />

IV - supervisionar e coordenar a execução <strong>da</strong> política de promoção e defesa<br />

dos direitos <strong>da</strong> criança e do adolescente consagrados no Estatuto, bem<br />

como fomentar o apoio a serviços de atendimento direto à criança e ao<br />

adolescente;<br />

V - promover parcerias com órgãos <strong>da</strong> Administração Pública federal, estadual,<br />

municipal e enti<strong>da</strong>des não-governamentais na formulação de propostas<br />

para a implementação de programas de ações em defesa dos direitos <strong>da</strong><br />

criança e do adolescente;<br />

VI - promover ações de proteção <strong>da</strong> criança e do adolescente com direitos<br />

ameaçados ou violados, bem como apoiar o desenvolvimento de projetos de<br />

atendimento aos egressos de medi<strong>da</strong>s socioeducativas;<br />

VII - incentivar o aprimoramento de instituições de atendimento direto aos<br />

adolescentes em conflito com a lei;<br />

VIII - promover e apoiar a execução de programas de proteção e assistência<br />

à criança e ao adolescente, vítimas do narcotráfico e <strong>da</strong> exploração sexual;<br />

IX - promover ações, em articulação com órgãos <strong>da</strong> Administração Pública<br />

federal, estadual, municipal e outras enti<strong>da</strong>des, de apoio à erradicação do<br />

trabalho infantil;<br />

X - estimular e apoiar a execução <strong>da</strong> política de adoção nacional, acompanhando<br />

as ocorrências e denúncias de irregulari<strong>da</strong>des para assegurar nesse<br />

sentido o cumprimento do Estatuto <strong>da</strong> Criança e do Adolescente;<br />

XI - fomentar e contribuir para a formação, a especialização e o aperfeiçoamento<br />

de recursos humanos necessários à execução <strong>da</strong> política de atendimento<br />

e garantia dos direitos <strong>da</strong> criança e do adolescente;<br />

XII - incentivar e apoiar as ações dos governos federal, estadual, do Distrito<br />

Federal e municipal que visem a universalização do direito à documentação<br />

civil básica <strong>da</strong> criança e do adolescente;<br />

XIII - sistematizar, avaliar e disponibilizar os resultados alcançados pelos<br />

programas de ações em defesa dos direitos <strong>da</strong> criança e do adolescente,<br />

difundindo conhecimentos e informações mediante estudos e pesquisas<br />

específicos;<br />

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Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima<br />

XIV - colaborar com o Gabinete do Secretário Especial na execução <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des relaciona<strong>da</strong>s com os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional<br />

de Crianças e Adolescentes e com as ações relativas à Cooperação em Matéria<br />

de Adoção Internacional, de competência <strong>da</strong> Secretaria Especial; e<br />

XV - realizar outras ativi<strong>da</strong>des determina<strong>da</strong>s pelo Secretário Especial.<br />

A Convenção Sobre Os Direitos Da Criança complementa:<br />

1. Os Estados Partes reconhecem o direito <strong>da</strong> criança de gozar do melhor<br />

padrão possível de saúde e dos serviços destinados ao tratamento <strong>da</strong>s doenças<br />

e à recuperação <strong>da</strong> saúde. Os Estados Partes envi<strong>da</strong>rão esforços no<br />

sentido de assegurar que nenhuma criança se veja priva<strong>da</strong> de seu direito de<br />

usufruir desses serviços sanitários.<br />

2. Os Estados Partes garantirão a plena aplicação desse direito e, em especial,<br />

adotarão as medi<strong>da</strong>s apropria<strong>da</strong>s com vistas a:<br />

a) reduzir a mortali<strong>da</strong>de infantil;<br />

b) assegurar a prestação de assistência médica e cui<strong>da</strong>dos sanitários necessários<br />

a to<strong>da</strong>s as crianças, <strong>da</strong>ndo ênfase aos cui<strong>da</strong>dos básicos de saúde;<br />

c) combater as doenças e a desnutrição dentro do contexto dos cui<strong>da</strong>dos<br />

básicos de saúde mediante, inter alia, a aplicação de tecnologia disponível e<br />

o fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em vista os<br />

perigos e riscos <strong>da</strong> poluição ambiental;<br />

d) assegurar às mães adequa<strong>da</strong> assistência pré-natal e pós-natal;<br />

e) assegurar que todos os setores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, e em especial os pais e as<br />

crianças, conheçam os princípios básicos de saúde e nutrição <strong>da</strong>s crianças,<br />

as vantagens <strong>da</strong> amamentação, <strong>da</strong> higiene e do saneamento ambiental e <strong>da</strong>s<br />

medi<strong>da</strong>s de prevenção de acidentes, e tenham acesso à educação pertinente<br />

e recebam apoio para a aplicação desses conhecimentos;<br />

f) desenvolver a assistência médica preventiva, a orientação aos pais e a<br />

educação e serviços de planejamento familiar.<br />

3. Os Estados Partes adotarão to<strong>da</strong>s as medi<strong>da</strong>s eficazes e adequa<strong>da</strong>s para<br />

abolir práticas tradicionais que sejam prejudiciais à saúde <strong>da</strong> criança.<br />

4. Em conformi<strong>da</strong>de com suas obrigações de acordo com o direito humanitário<br />

internacional para proteção <strong>da</strong> população civil durante os conflitos armados,<br />

os Estados Partes adotarão to<strong>da</strong>s as medi<strong>da</strong>s necessárias a fim de<br />

assegurar a proteção e o cui<strong>da</strong>do <strong>da</strong>s crianças afeta<strong>da</strong>s por um conflito<br />

armado.<br />

Os Estados Partes adotarão to<strong>da</strong>s as medi<strong>da</strong>s apropria<strong>da</strong>s para estimular a<br />

recuperação física e psicológica e a reintegração social de to<strong>da</strong> criança vítima<br />

de qualquer forma de abandono, exploração ou abuso; tortura ou outros<br />

tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degra<strong>da</strong>ntes; ou conflitos armados.<br />

Essa recuperação e reintegração serão efetua<strong>da</strong>s em ambiente que<br />

estimule a saúde, o respeito próprio e a digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> criança.<br />

169<br />

O Art. 24, dos Direitos <strong>da</strong>s Crianças, <strong>da</strong> Unicef, prossegue afirmando que<br />

to<strong>da</strong>s as crianças têm direito à saúde:<br />

Artigo 24 - Tens direito à saúde. quer dizer que, se estiveres doente, deves<br />

ter acesso a cui<strong>da</strong>dos médicos e medicamentos. Os adultos devem fazer<br />

tudo para evitar que as crianças adoeçam, <strong>da</strong>ndo-lhes uma alimentação conveniente<br />

e cui<strong>da</strong>ndo bem delas.<br />

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Proteção <strong>da</strong> Criança em Face <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de de Medicamentos Infantis<br />

Por fim, a convenção dos direitos <strong>da</strong> criança, cria<strong>da</strong> pela Organização <strong>da</strong>s<br />

Nações Uni<strong>da</strong>s (ONU), estabeleceu:<br />

170<br />

Artigo 24.º<br />

1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a gozar do melhor estado<br />

de saúde possível e a beneficiar de serviços médicos e de reeducação. Os<br />

Estados Partes velam pela garantia de que nenhuma criança seja priva<strong>da</strong> do<br />

direito de acesso a tais serviços de saúde.<br />

2. Os Estados Partes prosseguem a realização integral deste direito e, nomea<strong>da</strong>mente,<br />

tomam medi<strong>da</strong>s adequa<strong>da</strong>s para:<br />

a) Fazer baixar a mortali<strong>da</strong>de entre as crianças de tenra i<strong>da</strong>de e a mortali<strong>da</strong>de<br />

infantil;<br />

b) Assegurar a assistência médica e os cui<strong>da</strong>dos de saúde necessários a<br />

to<strong>da</strong>s as crianças, enfatizando o desenvolvimento dos cui<strong>da</strong>dos de saúde<br />

primários;<br />

c) Combater a doença e a má nutrição, no quadro dos cui<strong>da</strong>dos de saúde<br />

primários, graças nomea<strong>da</strong>mente à utilização de técnicas facilmente disponíveis<br />

e ao fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em<br />

consideração os perigos e riscos <strong>da</strong> poluição do ambiente;<br />

d) Assegurar às mães os cui<strong>da</strong>dos de saúde, antes e depois do nascimento;<br />

e) Assegurar que todos os grupos <strong>da</strong> população, nomea<strong>da</strong>mente os pais e as<br />

crianças, sejam informados, tenham acesso e sejam apoiados na utilização<br />

de conhecimentos básicos sobre a saúde e a nutrição <strong>da</strong> criança, as vantagens<br />

do aleitamento materno, a higiene e a salubri<strong>da</strong>de do ambiente, bem<br />

como a prevenção de acidentes;<br />

f) Desenvolver os cui<strong>da</strong>dos preventivos de saúde, os conselhos aos pais e<br />

a educação sobre planeamento familiar e os serviços respectivos.<br />

3. Os Estados Partes tomam to<strong>da</strong>s as medi<strong>da</strong>s eficazes e adequa<strong>da</strong>s com<br />

vista a abolir as práticas tradicionais prejudiciais à saúde <strong>da</strong>s crianças.<br />

4. Os Estados Partes comprometem-se a promover e a encorajar a cooperação<br />

internacional, de forma a garantir progressivamente a plena realização<br />

do direito reconhecido no presente artigo. A este respeito atender-se-á de<br />

forma particular às necessi<strong>da</strong>des dos países em desenvolvimento.<br />

Visando a proteção <strong>da</strong> saúde <strong>da</strong>s crianças conforme determinado por to<strong>da</strong> esta<br />

legislação acosta<strong>da</strong>, o legislador brasileiro elaborou leis que protegem a criança face à publici<strong>da</strong>de<br />

de medicamentos.<br />

Em primeiro plano, deve-se destacar o papel do Código de Defesa do Consumidor<br />

que proíbe a publici<strong>da</strong>de abusiva, e estas podem ser considera<strong>da</strong> também as que exploram a<br />

inocência infantil como ensinado anteriormente.<br />

Além disso, a resolução RDC 102/00, em seu Art. 10, II, afirma que não pode<br />

ser dirigi<strong>da</strong> a publici<strong>da</strong>de de medicamentos isentos de prescrição para o público infantil 2 . Diante<br />

disso, infere-se que nenhum medicamento pode ser divulgado para o público infantil, pois os demais<br />

medicamentos somente podem ser divulgados para a classe prescritora deles.<br />

A Conar também decidiu como devem ser as publici<strong>da</strong>des volta<strong>da</strong>s ao público<br />

infantil:<br />

2 II - incluir mensagens de qualquer natureza dirigi<strong>da</strong>s a crianças ou adolescentes; conforme classificação do Estatuto <strong>da</strong> Criança<br />

e do Adolescente, bem como utilizar símbolos e imagens com este fim;<br />

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Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima<br />

Artigo 37 - No anúncio dirigido à criança e ao jovem:<br />

a. <strong>da</strong>r-se-á sempre atenção especial às características psicológicas <strong>da</strong><br />

audiência-alvo;<br />

b. respeitar-se-á especialmente a ingenui<strong>da</strong>de e a creduli<strong>da</strong>de, a inexperiência<br />

e o sentimento de leal<strong>da</strong>de dos menores;<br />

c. não se ofenderá moralmente o menor;<br />

d. não se admitirá que o anúncio torne implícita uma inferiori<strong>da</strong>de do menor,<br />

caso este não consuma o produto oferecido;<br />

e. não se permitirá que a influência do menor, estimula<strong>da</strong> pelo anúncio, leveo<br />

a constranger seus responsáveis ou importunar terceiros ou o arraste a<br />

uma posição socialmente condenável;<br />

f. o uso de menores em anúncios obedecerá sempre a cui<strong>da</strong>dos especiais<br />

que evitem distorções psicológicas nos modelos e impeçam a promoção de<br />

comportamentos socialmente condenáveis;<br />

g. qualquer situação publicitária que envolva a presença de menores deve<br />

ter a segurança como primeira preocupação e as boas maneiras como segun<strong>da</strong><br />

preocupação.<br />

Além disso, ressalta-se que, em seu anexo I, a referi<strong>da</strong> Lei dispõe acerca <strong>da</strong><br />

publici<strong>da</strong>de ao público infantil de medicamentos: “f. não deverá ser feita de modo a induzir ao uso<br />

de produtos por crianças, sem supervisão dos pais ou responsáveis a quem, aliás, a mensagem se<br />

dirigirá com exclusivi<strong>da</strong>de”;<br />

Assim, fica clara a existência de proteção à saúde <strong>da</strong> criança e a tentativa de<br />

minimizar possíveis conseqüências do consumo inadequado de medicamentos, basta agora analisar<br />

os mecanismos de proteção quando estes dispositivos não são respeitados.<br />

5 MEIOS DE PROTEÇÃO<br />

171<br />

Os Meios de defesa do consumidor encontram-se elencados no Art. 5º, CDC.<br />

A educação formal e informal é a primeira forma de proteção e talvez a mais importante, pois a<br />

educação formal consiste na inclusão nos currículos escolares de educação consumerista, como o<br />

objetivo de formar hábitos sadios de consumo e preparar as crianças para as escolhas que farão<br />

durante à vi<strong>da</strong> dentre os produtos ofertados. Por outro lado, a informal decorre de campanhas<br />

divulga<strong>da</strong>s pelo Estado e por organizações não governamentais que forneçam esclarecimentos<br />

para melhor postura como consumidor.<br />

Os órgãos oficiais desempenham importante papel para o atendimento ao público,<br />

procurando solucionar conflitos sendo ora por políticas preventivas ora através de repressão.<br />

As associações civis são cria<strong>da</strong>s através de incentivo estatal e são tão importantes quanto os<br />

órgãos oficiais para proteção do consumidor.<br />

Informação ao consumidor é um direito básico, o princípio <strong>da</strong> transparência e<br />

informação é relevante para proteção do consumidor. Todos os <strong>da</strong>dos relativos aos produtos são de<br />

função do fornecedor indicar para que o consumidor não caia em erro e possa exercer livre e<br />

conscientemente sua escolha. Os serviços de atendimento nas empresas também são importantes,<br />

pois significa uma toma<strong>da</strong> de consciência do fornecedor, evitando o acúmulo de reclamações envolvendo<br />

os produtos que fabrica, resolvendo previamente os problemas surgidos.<br />

Os juizados Especiais Cíveis, como já dito anteriormente, é a forma mais rápi<strong>da</strong><br />

e fácil para solucionar problemas em que o valor <strong>da</strong> causa não seja superior a 40 salários mínimos,<br />

independente de pagamento de custas, taxas ou despesas, e nas causas com até 20 salários mínimos<br />

é possível exercer direito de ação sem a presença de advogado constituído.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Proteção <strong>da</strong> Criança em Face <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de de Medicamentos Infantis<br />

O Ministério Público é responsável pela tutela do consumidor, desempenhando<br />

papel de grande relevância na mediação dos conflitos. Antonio Herman Benjamin (apud ALMEIDA,<br />

2003, p. 29) afirma que<br />

a tutela do consumidor pelo MP tem como premissa básica a defesa do<br />

interesse público, algo mais abrangente que o interesse exclusivo do<br />

consumidor. Aí reside a razão principal por que é o MP, e não outro<br />

órgão, a instituição mais adequa<strong>da</strong> a carrear a tarefa mediativa nas relações<br />

de consumo.<br />

A assistência jurídica consiste na assistência pelo poder público do consumidor<br />

carente, respeitando seus direitos. Ain<strong>da</strong> cabe lembrar as Delegacias especializa<strong>da</strong>s em atendimento<br />

ao consumidor vítima de infrações penais de consumo para tutelar o consumidor.<br />

Além disso, são oferecidos outros instrumentos para a proteção do consumidor<br />

como o instituto de pesos e medi<strong>da</strong>s que analisam fraudes nessas áreas e a Vigilância Sanitária. O<br />

ca<strong>da</strong>stro <strong>da</strong>s reclamações fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s, identificando se as reclamações foram atendi<strong>da</strong>s ou<br />

não pelo fornecedor, tendo os consumidores acesso ao ca<strong>da</strong>stro dos fornecedores, assegurando a<br />

publici<strong>da</strong>de de sua confiabili<strong>da</strong>de e continui<strong>da</strong>de.<br />

Sempre que o estabelecido acerca <strong>da</strong>s publici<strong>da</strong>des não for obedecido, haverá<br />

punição aos infratores, conforme disposto no Art. 50 do CONAR:<br />

172<br />

Artigo 50 - Os infratores <strong>da</strong>s normas estabeleci<strong>da</strong>s neste Código e seus<br />

anexos estarão sujeitos às seguintes penali<strong>da</strong>des:<br />

a. advertência;<br />

b. recomen<strong>da</strong>ção de alteração ou correção do Anúncio;<br />

c. recomen<strong>da</strong>ção aos Veículos no sentido de que sustem a divulgação do<br />

anúncio;<br />

d. divulgação <strong>da</strong> posição do CONAR com relação ao Anunciante, à Agência<br />

e ao Veículo, através de Veículos de comunicação, em face do não acatamento<br />

<strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s e providências preconiza<strong>da</strong>s.<br />

A responsabili<strong>da</strong>de acerca <strong>da</strong> divulgação <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de é tanto <strong>da</strong> empresa<br />

quanto do anunciante, de acordo com o Art. 45, CONAR:<br />

Artigo 45 - A responsabili<strong>da</strong>de pela observância <strong>da</strong>s normas de conduta<br />

estabeleci<strong>da</strong>s neste Código cabe ao Anunciante e a sua Agência, bem como<br />

ao Veículo, ressalva<strong>da</strong>s no caso deste último as circunstâncias específicas<br />

que serão abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s mais adiante, neste Artigo:<br />

a. o Anunciante assumirá responsabili<strong>da</strong>de total por sua publici<strong>da</strong>de;<br />

b. a Agência deve ter o máximo cui<strong>da</strong>do na elaboração do anúncio, de modo<br />

a habilitar o Cliente Anunciante a cumprir sua responsabili<strong>da</strong>de, com ele<br />

respondendo soli<strong>da</strong>riamente pela obediência aos preceitos deste Código;<br />

c. este Código recomen<strong>da</strong> aos Veículos que, como medi<strong>da</strong> preventiva, estabeleçam<br />

um sistema de controle na recepção de anúncios.<br />

Destaca-se que a responsabili<strong>da</strong>de pela publici<strong>da</strong>de inadequa<strong>da</strong> é objetiva, ou<br />

seja, independe de culpa <strong>da</strong> pessoa que a produziu, existindo o nexo causal, o fato e o <strong>da</strong>no,<br />

configura-se a ilicitude devendo ser indenizado. Geralmente a publici<strong>da</strong>de enganosa gera <strong>da</strong>nos<br />

materiais ao passo que a publici<strong>da</strong>de abusiva gera <strong>da</strong>nos morais. Ressalta-se ain<strong>da</strong> que dependen-<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima<br />

do <strong>da</strong> forma que o agente agiu o quantum indenizável é maior, principalmente em caso de abusivi<strong>da</strong>de.<br />

O Código de Defesa do Consumidor apontou algumas práticas como crime<br />

contra o consumo. Essas práticas consistem em divulgação de publici<strong>da</strong>de enganosa ou abusiva,<br />

divulgação de publici<strong>da</strong>de de produto que poderá fazer mal a saúde do consumidor e deixar de<br />

informar <strong>da</strong>dos que são a base <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de:<br />

Art. 67. Fazer ou promover publici<strong>da</strong>de que sabe ou deveria saber ser enganosa<br />

ou abusiva:<br />

Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.<br />

Parágrafo único. (Vetado).<br />

Art. 68. Fazer ou promover publici<strong>da</strong>de que sabe ou deveria saber ser capaz<br />

de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a<br />

sua saúde ou segurança:<br />

Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa:<br />

Parágrafo único. (Vetado).<br />

Art. 69. Deixar de organizar <strong>da</strong>dos fáticos, técnicos e científicos que dão<br />

base à publici<strong>da</strong>de:<br />

Pena - Detenção de um a seis meses ou multa.<br />

A Lei dos crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de<br />

consumo aponta alguns crimes em relação à publici<strong>da</strong>de enganosa de medicamentos:<br />

Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo:<br />

VII - induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação<br />

falsa ou enganosa sobre a natureza, quali<strong>da</strong>de do bem ou serviço, utilizando-se<br />

de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária;<br />

Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.<br />

173<br />

Além <strong>da</strong> ação penal e responsabilização do <strong>da</strong>no causado pela publici<strong>da</strong>de enganosa<br />

ou abusiva, há uma outra forma de punição às publici<strong>da</strong>des, que é a contrapropagan<strong>da</strong>,<br />

estabeleci<strong>da</strong> no Art. 56, XII, CDC, após um procedimento administrativo visando apurar a<br />

enganosi<strong>da</strong>de e abusivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de.<br />

Contrapropagan<strong>da</strong>, na relação de consumo, corresponde ao oposto <strong>da</strong> divulgação<br />

publicitária, pois destina<strong>da</strong> a desfazer efeitos perniciosos detectados<br />

e apenados na forma do CDC (...) punição imponível ao fornecedor de<br />

bens ou serviços, consistente na divulgação publicitária esclarecedora do<br />

engano ou do abuso cometidos em publici<strong>da</strong>de precedente do mesmo fornecedor<br />

(...) a imposição de contrapropagan<strong>da</strong>, custea<strong>da</strong> pelo infrator, será<br />

comina<strong>da</strong> (art. 62) quando incorrer na prática de publici<strong>da</strong>de enganosa ou<br />

abusiva (...) Quer a divulgação do anúncio, capaz de satisfazer a finali<strong>da</strong>de<br />

indica<strong>da</strong> seja feita em jornais e <strong>revista</strong>s, quer seja pela mídia eletrônica, seu<br />

custeio estará sempre a cargo do fornecedor (o fabricante, mesmo não destinando<br />

o produto ao destinatário final, pode ser sujeito passivo <strong>da</strong> obrigação)<br />

(CARVALHO, 2005).<br />

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Proteção <strong>da</strong> Criança em Face <strong>da</strong> Publici<strong>da</strong>de de Medicamentos Infantis<br />

A contrapropagan<strong>da</strong> pode ser considera<strong>da</strong> uma forma de proteção estatal do<br />

consumidor hipossuficiente quando bombardeado por publici<strong>da</strong>des abusiva e/ou enganosas, resultando<br />

em um processo administrativo, mas não se libera de um processo civil de responsabili<strong>da</strong>de<br />

ou penal.<br />

6 CONCLUSÃO<br />

Apesar <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de de medicamentos ser uma arma utiliza<strong>da</strong> pela indústria<br />

farmacêutica, visando convencer o consumidor a adquirir seus produtos, percebe-se que esta prática<br />

é inadimissível na legislação brasileira, devido ao fato de poder causar <strong>da</strong>no à saúde e por ser<br />

este tipo de publici<strong>da</strong>de restrita as condições analisa<strong>da</strong>s alhures. Apesar disso, esta restrição, na<br />

maior parte <strong>da</strong>s vezes não é observa<strong>da</strong> existindo diversos tipos de publici<strong>da</strong>des de medicamentos,<br />

inclusive volta<strong>da</strong>s ao público infantil.<br />

Mecanismos aptos para punição deste tipo de publici<strong>da</strong>de, como se pode analisar,<br />

existem, porém sua aplicabili<strong>da</strong>de é quase nula, precisando assim encontrar outras formas para<br />

proteção <strong>da</strong>s crianças face a publici<strong>da</strong>de de medicamentos. O primeiro ponto e talvez o mais<br />

importante é a informação-educação, ensinando a criança como deve ser consumido o medicamento<br />

e a preparando para possíveis práticas de publici<strong>da</strong>de volta<strong>da</strong> à ela de medicamento, pois<br />

assim, ela deixaria de ser facilmente atingi<strong>da</strong>.<br />

Além disso, faz-se necessária a conduta <strong>da</strong> população buscando denunciar aos<br />

órgãos responsáveis pela fiscalização desta forma de publici<strong>da</strong>de para que sejam coibidos anúncios<br />

abusivos e enganosos.<br />

REFERÊNCIAS<br />

174<br />

ALMEIDA, João Batista de. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2003.<br />

CARNEIRO, Odete Novais. Da responsabili<strong>da</strong>de por vício do produto e do serviço: código<br />

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REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


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Disponível em: , Acesso em: 25 set. 05.<br />

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Aspectos jurídicos. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 05.<br />

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VIEIRA. Tereza Rodrigues e NASCENTES. Claudiene. O idoso, a publici<strong>da</strong>de e o Direito do<br />

Consumidor. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 05.<br />

175<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do<br />

Paraíso/PR<br />

O PROCESSO DE ELABORAÇÃO E A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS<br />

PLANOS DIRETORES DE ASSAÍ/PR E DE BELA VISTA DO PARAÍSO/PR<br />

Miguel Etinger de Araujo Junior*<br />

RESUMO<br />

Desde meados dos anos oitenta, com o fim <strong>da</strong> ditadura militar, o Brasil vem passando por uma<br />

implementação e aperfeiçoamento <strong>da</strong>s práticas democráticas em relação ao Poder Público. A<br />

ativi<strong>da</strong>de de planejamento urbano é uma <strong>da</strong>s áreas onde vem se fortalecendo esta participação<br />

popular, em especial na elaboração do Plano Diretor dos Municípios. Neste particular, esta participação<br />

é obrigatória, por força de dispositivo expresso do Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de, em cumprimento ao<br />

comando constitucional que prevê a democracia direta e participativa como um dos fun<strong>da</strong>mentos<br />

<strong>da</strong> República. Analisa-se neste artigo, como este processo ocorreu em dois Municípios do Paraná.<br />

Palavras-chave: Democracia Participativa. Plano Diretor. Municípios. Constituição Federal.<br />

THE PROCESS OF ELABORATION AND THE POPULAR PARTICIPATION IN<br />

THE MANAGING PLANS OF ASSAÍ/PR AND BELA VISTA DO PARAÍSO/PR<br />

ABSTRACT<br />

176<br />

Since middle of the Eighties, in the military dictatorship ending, Brazil has being passing through an<br />

implementation and perfectioning of democratic practices relationed to the Public Power. The<br />

urban planning activity is one of the areas where this popular participation has being fortified,<br />

specially in the elaboration of the Cities Managing Plan. In this particular one, this participation is<br />

obrigatory, to attend an express device of the City Statute, in order to attend the constitucional<br />

comand that foresees the direct and participatory democracy as one of the Republic bases. In this<br />

article is analysed, how this process ocurred in two Cities at Paraná / Brasil.<br />

Keywords: ParticipAtory Democracy. Managing Plan. Cities. Federal Constitution.<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

A população brasileira vem apresentando um elevado grau de concentração na<br />

área urbana, alcançado em 2000 o índice de 81,25% em uma área de 1,1% do território nacional<br />

(BRASIL, 2001). Esse panorama exige de to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de, em especial dos órgãos públicos, um<br />

planejamento urbano que possa efetivamente apresentar políticas públicas para resolver os problemas<br />

decorrentes desta urbanização.<br />

Um passo importante foi a elaboração do Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de, Lei Federal nº.<br />

10.257/2001 que operacionaliza os artigos 182 e 183 <strong>da</strong> Constituição Federal, estabelecendo diretrizes<br />

gerais <strong>da</strong> política urbana, seguindo a orientação constitucional ao prever em seu artigo 2º,<br />

inciso IV, o “planejamento do desenvolvimento <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des” como uma <strong>da</strong>s diretrizes gerais <strong>da</strong><br />

política urbana (BRASIL, 2001).<br />

* Doutorando em Direito <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de pela UERJ, Professor Assistente <strong>da</strong> UEL, Advogado.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Miguel Etinger de Araujo Junior<br />

Trata-se, pois, de norma de ordem pública e interesse social que, segundo Odete<br />

Me<strong>da</strong>uar (2004, p. 24) significa que “não podem ser derroga<strong>da</strong>s ou mol<strong>da</strong><strong>da</strong>s pela vontade dos<br />

particulares, sendo imperativas, cogentes”. A questão do interesse social, continua a autora, parece<br />

significar “algo relevante para to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de”.<br />

Trata-se de ver<strong>da</strong>deiro “marco regulatório”, expressão cunha<strong>da</strong> por Rogério<br />

Gesta Leal (2003, p. 77) para <strong>da</strong>r a real dimensão do Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de no cenário brasileiro, que<br />

trouxe os princípios e objetivos nacionais na política de desenvolvimento urbano.<br />

O presente estudo analisa como se deu o processo de elaboração dos Planos<br />

Diretores nos Municípios de Assaí e de Bela Vista do Paraíso, ambos no Paraná, bem como os<br />

dispositivos <strong>da</strong>s leis que prevêem o sistema de controle e fiscalização <strong>da</strong> política urbana através<br />

dos Conselhos Municipais.<br />

Procura-se ain<strong>da</strong> demonstrar a importância <strong>da</strong> efetiva participação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

neste processo e sua relação com o princípio constitucional <strong>da</strong> democracia, bem como <strong>da</strong> gestão<br />

democrática <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des, refletindo o que Paulo Bonavides (2003, p. 10-11) chamou de democracia<br />

participativa e Rogério Gesta Leal (2003, p. 65) chama de democracia substantiva.<br />

2 PLANOS DIRETORES E ANÁLISE DOS PROCESSOS DE ELABORAÇÃO<br />

O presente Capítulo destina-se a apresentar os processos de elaboração dos<br />

Planos Diretores dos respectivos Municípios, focando-se no aspecto <strong>da</strong> participação popular efetiva<br />

dos moradores, procurando identificar a capacitação destes para o debate, o interesse na participação<br />

e os resultados obtidos no texto final na lei, levando-se em consideração o reconhecimento<br />

e consoli<strong>da</strong>ção do poder de decisão aos moradores, baseado na idéia de democracia participativa<br />

(ou democracia direta).<br />

O Plano Diretor é a lei municipal, cuja elaboração está p<strong>revista</strong> na Constituição<br />

Federal de 1988, em seu artigo 182, § 1º, considerado o instrumento básico <strong>da</strong> política de desenvolvimento<br />

e de expansão urbana.<br />

O Plano Diretor é, portanto, uma diretriz do Poder Público e <strong>da</strong> própria socie<strong>da</strong>de.<br />

Neste sentido afirma Alaor Caffé Alves (1981, P. 87).<br />

177<br />

Justamente por estar formalizado como modelo e como pauta, serve perfeitamente<br />

como conduta e, portanto, como direito e base de um juízo sobre seu<br />

cumprimento. O plano é uma pauta de conduta que cria diretrizes e deveres<br />

para o Governo e que dá lugar a responsabili<strong>da</strong>des políticas e jurídicas.<br />

Tem-se verificado no Brasil uma crescente elaboração de Planos Diretores de<br />

Desenvolvimento Urbano. Dados do Ministério <strong>da</strong>s Ci<strong>da</strong>des informam que até novembro de 2006<br />

93% dos Municípios com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes já havia elaborado seu Plano Diretor<br />

(BRASIL, 2007).<br />

Segundo José Afonso <strong>da</strong> Silva (1995, p. 130) o Plano Diretor<br />

estabelecerá as normas ordenadoras e disciplinadoras pertinentes ao<br />

planejamento territorial. Definirá sobre a ordenação do solo, estabelecendo<br />

as regras fun<strong>da</strong>mentais do uso do solo, incluindo o parcelamento, o<br />

zoneamento, o sistema de circulação, enfim sobre aqueles três elementos<br />

antes indicados: Sistema viário, Sistema de Zoneamento e Sistema de Lazer<br />

e Recreação.<br />

O Plano Diretor deverá ain<strong>da</strong> ser complementado por outros instrumentos jurídicos<br />

específicos como leis de zoneamento, posturas, proteção ambiental, etc. É papel do Plano<br />

Diretor balizar as duas vias de concretização do urbanismo que, segundo José Afonso <strong>da</strong> Silva<br />

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O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do<br />

Paraíso/PR<br />

(2002, 245) são: a) as regulamentações edilícias e b) a ordenação física e social <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Sob o aspecto social, Luiz Cézar de Queiroz Ribeiro e A<strong>da</strong>uto Lúcio Cardoso<br />

afirmam (1990, p. 12):<br />

A nossa participação na elaboração de planos diretores deve ser encara<strong>da</strong><br />

como uma forma de defesa do compromisso do Poder Público em assegurar<br />

um determinado nível de bem-estar coletivo. Partindo deste ponto de vista,<br />

torna-se um desafio a busca de um novo formato de planejamento que seja<br />

capaz de gerar intervenções governamentais que efetivamente promovam a<br />

melhoria <strong>da</strong>s condições urbanas de vi<strong>da</strong>, sobretudo para o conjunto dos<br />

trabalhadores.<br />

178<br />

Uma característica dos processos de elaboração destas leis é a obrigatória<br />

participação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, através consulta, audiências públicas e outras formas que dêem<br />

efetivi<strong>da</strong>de ao princípio constitucional <strong>da</strong> democracia direta previsto no artigo 1º, parágrafo único<br />

<strong>da</strong> Constituição Federal de 1988.<br />

Essa obrigatorie<strong>da</strong>de foi reforça<strong>da</strong> pelo Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de que, em seu artigo<br />

40, § 4º, incisos I, II e III, prevê diversas formas de participação e controle <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, classificando<br />

como ato de improbi<strong>da</strong>de adminstrativa do Prefeito, impedir ou deixar de garantir os requisitos<br />

constantes dos dipositivos mencionados acima.<br />

Os aspectos determinantes para a escolha dos Municípios analisados foram:<br />

1 – elaboração do Plano Diretor após o Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de (Lei nº 10.257 de 10 de julho de<br />

2001); 2 – a possibili<strong>da</strong>de de comprovação <strong>da</strong> veraci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s informações presta<strong>da</strong>s.<br />

Foi elaborado um questionário, que buscava identificar os aspectos mencionados<br />

acima, e entregue aos coordenadores ou profissionais diretamente envolvidos na elaboração<br />

dos planos diretores.<br />

Deve-se ressaltar que, no Estado do Paraná, onde foram colhi<strong>da</strong>s as informações,<br />

em especial na região próxima ao Município de Londrina, o processo de elaboração dos<br />

Planos Diretores foi impulsionado por dois grandes fatores que não necessariamente veio acompanhado<br />

<strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de técnica espera<strong>da</strong> em assunto tão importante.<br />

O primeiro fator, em termo nacional, foram as eleições locais para prefeitos e<br />

vereadores. O segundo aspecto foi a expedição de um Decreto do Poder Executivo Estadual, de<br />

nº. 2.581, publicado em 17 de abril de 2004, que vinculava a assinatura de convênios entre o Estado<br />

do Paraná para financiamento de obras de infra-estrutura e serviços somente com Municípios que<br />

já possuíssem Planos Diretores ou que estivessem em processo de elaboração.<br />

2.1 Município de Assaí / Paraná<br />

O Município de Assai (2005) está localizado no norte do Estado do Paraná,<br />

distante 386 Km <strong>da</strong> Capital do Estado, Curitiba, e a 36 Km de Londrina, principal Município <strong>da</strong><br />

região. Sua área é de 447.408 Km 2 , e no ano de 2000 possuía uma população total de 18.050<br />

habitantes, sendo 13. 521 na área urbana e 4.529 na área rural.<br />

Vale neste aspecto observar que o Município não estava obrigado a elaborar<br />

seu Plano Diretor, nos termos do artigo 41 do Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de 1 . O Plano Diretor foi aprovado<br />

pela Lei municipal nº. 824, de 1º de dezembro de 2004. O processo de elaboração durou em torno<br />

de 08 (oito) meses e foi coordenado por uma organização não-governamental (2004), vencedora<br />

do processo de licitação elaborado pelo Poder Executivo Municipal.<br />

1 Art. 41 – O plano diretor é obrigatório para ci<strong>da</strong>des:<br />

I – com mais de vinte mil habitantes;<br />

II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;<br />

III – onde o Poder Público Municipal preten<strong>da</strong> utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 <strong>da</strong> Constituição Federal;<br />

IV – inseri<strong>da</strong>s na área de influência de empreendimentos ou ativi<strong>da</strong>des com significativo impacto ambiental de âmbito<br />

regional ou nacional.<br />

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Miguel Etinger de Araujo Junior<br />

As informações foram presta<strong>da</strong>s por um dos integrantes <strong>da</strong> equipe coordenadora,<br />

Solange Nozaki Souza (2005). Durante o processo de elaboração, foram realiza<strong>da</strong>s 03 (três)<br />

audiências públicas oficiais que visavam discutir os assuntos que haviam sido abor<strong>da</strong>dos em diversas<br />

outras audiências setoriais preparatórias <strong>da</strong>s propostas e levantamentos. O Município disponibilizou<br />

espaços e infra-estrutura para as audiências, e a convocação <strong>da</strong> população se deu através <strong>da</strong><br />

distribuição de cartilhas explicativas elabora<strong>da</strong>s pelo Instituto Polis (2005) sobre o que é Plano<br />

Diretor, divulgação em carro de som, rádio e jornal local. Essa divulgação foi considera<strong>da</strong> insuficiente,<br />

sendo que um dos fatores que influenciaram foi o orçamento limitado para o projeto como um<br />

todo.<br />

O comparecimento <strong>da</strong> população aos debates não se deu <strong>da</strong> forma espera<strong>da</strong>,<br />

tendo havido uma maior participação de líderes de bairros, representantes de classes e pessoas<br />

liga<strong>da</strong>s ao setor educacional, sendo que de um total de 11 (onze) vereadores no Município, no<br />

máximo 03 (três) participaram efetivamente. Verificou-se a presença de gerentes e funcionários<br />

<strong>da</strong>s agências bancárias públicas (Caixa Econômica, Banco do Brasil). Além dos debates e consultas<br />

públicas, foi feita uma abor<strong>da</strong>gem informal dos moradores acerca de suas opiniões.<br />

Vale observar que a Prefeitura Municipal enviou convites oficiais para todos os<br />

líderes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, como líderes religiosos, políticos, representantes de classe, etc. Essa técnica<br />

não se mostrou eficaz, em algumas situações, devido à falta de experiência e até timidez de alguns<br />

elementos em expressar suas idéias em público.<br />

Alguns temas específicos foram abor<strong>da</strong>dos, tais como:<br />

1. potencial turístico étnico-cultural (colonização japonesa) como ativi<strong>da</strong>de econômica;<br />

2. sugestões quanto à “terceirização” ou parceria no transporte de escolares,<br />

na coleta do lixo urbano e do hospital municipal;<br />

3. meio ambiente: quanto ao lançamento de esgoto in natura nos córregos e<br />

nas galerias de água pluvial.<br />

Quanto ao interesse dos participantes no encontro, pode-se dizer que alguns lá<br />

estavam por questão ideológica e outros apenas como obrigação de representação. Vale observar<br />

que o caráter deliberativo <strong>da</strong>s audiências só ocorreu na última audiência, após as fases anteriores,<br />

de caráter consultivo.<br />

Algumas diretrizes e propostas já estão sendo implementa<strong>da</strong>s ou em vias de<br />

implementação como a reativação do eixo turístico gastronômico cultural, a “terceirização” do<br />

transporte escolar, dentre outros. Deve-se registrar, no entanto, a falta de experiência <strong>da</strong> população<br />

no processo de elaboração de políticas públicas, passando a conviver com uma nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de administração, como a gestão democrática, orçamento participativo, etc.<br />

Além desse aspecto, mencionado na ent<strong>revista</strong>, outros se apresentam em relação<br />

ao texto final <strong>da</strong> Lei nº. 824/2004, (2004) que constitui o PDDMA – Plano Diretor de Desenvolvimento<br />

Municipal de Assaí. Um dos mais relevantes, dentro do propósito do presente trabalho,<br />

é o relativo à criação do SIP – Sistema Integrado de Planejamento, encarregado de gerenciar os<br />

objetivos do Plano Diretor.<br />

O SIP é composto por diversos órgãos, dentre os quais o CDM – Conselho de<br />

Desenvolvimento Municipal – com atribuições deliberativas em relação aos planos, programas e<br />

projetos de desenvolvimento territorial. Oportuna é a transcrição de sua composição, disposto no<br />

artigo 220 <strong>da</strong> lei municipal nº. 824/2004:<br />

179<br />

Art. 220 – O CDM compõe-se de 12 (doze) membros titulares e seus respetivos<br />

suplentes, eleitos ou indicados pelos respectivos órgãos ou categorias, e<br />

homologa<strong>da</strong>s pelo Prefeito Municipal, com renovação quadrienal e obedecendo<br />

a seguinte composição:<br />

I – 05 (cinco) representantes de enti<strong>da</strong>des governamentais vincula<strong>da</strong>s às<br />

questões de desenvolvimento territorial, assim distribuí<strong>da</strong>s:<br />

01 (um) representante do nível estadual;<br />

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O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do<br />

Paraíso/PR<br />

04 (quatro) representantes do nível municipal.<br />

II – 07 (sete) representantes de enti<strong>da</strong>des não-governamentais, defini<strong>da</strong>s<br />

por ocasião <strong>da</strong>s conferências municipais de avaliação do PDDMA e assim<br />

distribuídos:<br />

01 (um) representante <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des representativas dos trabalhadores;<br />

01 (um) representante <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des representativas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil (clube<br />

de serviço e associações comunitárias);<br />

01 (um) representante dos conselhos municipais;<br />

01 (um) representante <strong>da</strong>s associações profissionais, sendo um, preferencialmente,<br />

<strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des de classe vincula<strong>da</strong>s ao planejamento urbano;<br />

01 (um) representante <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des empresariais e sindicatos patronais<br />

preferencialmente vinculado à construção civil;<br />

01 (um) representante <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des educacionais;<br />

01 (um) representante <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des ambientais.<br />

Esse dispositivo, aliado a outros constantes <strong>da</strong> lei que prevêem e condicionam a<br />

gestão pública à efetiva participação popular, consubstancia a observância <strong>da</strong>s diretrizes, princípios<br />

e objetivos <strong>da</strong> idéia de gestão democrática, constante <strong>da</strong> Constituição Federal de 1988 e do Estatuto<br />

<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de.<br />

2.2 Município de Bela Vista do Paraíso / Paraná<br />

180<br />

O Município de Bela Vista do Paraíso está localizado no norte do Estado do<br />

Paraná, distante 429 Km <strong>da</strong> Capital do Estado, Curitiba, e a 37 Km de Londrina, principal Município<br />

<strong>da</strong> região. Sua população em 2000 era de 15.029 habitantes, sendo 13.858 na área urbana e<br />

1.171 na área rural, distribuídos em uma área de 214.342 Km 2 (BELA VISTA DO PARAISO,<br />

2005).<br />

O Município está inserido na Região Metropolitana de Londrina, por força <strong>da</strong><br />

Lei Complementar Estadual nº 86 de 07 de julho de 2000 (PARANÁ, 2000), estando, portanto,<br />

obriga<strong>da</strong> a elaborar seu Plano Diretor, por força do artigo 41, II do Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de. Vale<br />

observar que, a despeito <strong>da</strong> lei estadual, só recentemente, em 2006 foram criados cargos de direção<br />

<strong>da</strong> Região Metropolitana de Londrina.<br />

A elaboração do projeto de lei final, enviado à Câmara dos Vereadores, durou<br />

cerca de onze meses e foi coordena<strong>da</strong> pela empresa Genius Loci Arquitetura e Planejamento SS<br />

Lt<strong>da</strong>, vencedora do processo de licitação, cujo integrante, Nestor Razente (2005), prestou as informações<br />

que subsidiam o presente trabalho.<br />

A exemplo <strong>da</strong> maioria dos Municípios do Estado do Paraná, a elaboração do<br />

Plano Diretor de Bela Vista do Paraíso foi financia<strong>da</strong> por recursos do Governo do Estado, através<br />

do Paranaci<strong>da</strong>de, autarquia estadual cria<strong>da</strong> para o desenvolvimento urbano no Paraná.<br />

Neste contexto, foi cria<strong>da</strong> uma Comissão Técnica, forma<strong>da</strong> por funcionários<br />

municipais e uma Comissão de Acompanhamento e <strong>da</strong> Elaboração do Plano Diretor. Essa comissão<br />

foi organiza<strong>da</strong> entre os presentes na primeira audiência pública realiza<strong>da</strong> em 18 de outubro de<br />

2004 e escolhidos dentre os membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de local. Foram realiza<strong>da</strong>s três audiências públicas<br />

durante o processo de elaboração do Plano Diretor.<br />

Em relação à participação popular, vale observar que além dessas três audiências<br />

públicas, de caráter geral, foram realiza<strong>da</strong>s reuniões temáticas com segmentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de,<br />

como assistência social e saúde, por exemplo.Tanto as audiências públicas como as reuniões tiveram<br />

caráter deliberativo. Além disso, no projeto de lei, foi criado o Conselho do Plano Diretor de<br />

Desenvolvimento Municipal, encarregado de fiscalizar a efetiva implementação do Plano Diretor e<br />

servir como fórum de discussão de futuras alterações.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Miguel Etinger de Araujo Junior<br />

A convocação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de para o debate foi promovi<strong>da</strong> pelo Gabinete do<br />

Prefeito, através de convocação por jornais e convites dirigidos às representações de classes,<br />

sindicatos, representantes de comuni<strong>da</strong>des de bairro, ONGs e outros. Para um Município com<br />

aproxima<strong>da</strong>mente quinze mil habitantes, o comparecimento <strong>da</strong> população foi considerado satisfatório.<br />

A falta de experiência <strong>da</strong> população no processo de elaboração de políticas públicas, assim como<br />

em Assaí também foi um fator também observado neste Município.<br />

Quanto ao Plano Diretor, em especial em relação à participação popular, alguns<br />

dispositivos merecem especial atenção. Num primeiro momento, vale observar que o Plano Diretor<br />

não se constitui de um único corpo de lei. Há diversos estudos que fun<strong>da</strong>mentam o texto de lei, e<br />

esta lei inclusive faz menção expressa de que o Plano Diretor de Bela Vista do Paraíso constitui-se<br />

em “avaliação temática integra<strong>da</strong>”, “condicionantes, deficiência e potenciali<strong>da</strong>des”, “diretrizes e<br />

proposições para a política de desenvolvimento municipal”, “plano de ação municipal e projetos<br />

prioritários” e diversos textos de lei, a saber, como do Sistema Viário, Uso e Ocupação do Solo<br />

Urbano, dentre outras.<br />

Em relação ao Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal, vale<br />

transcrever os artigos que se seguem.<br />

Art. 27. Fica criado o Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal,<br />

de caráter consultivo e deliberativo, naquilo que a lei indicar, com as<br />

seguintes atribuições:<br />

Examinar, emitir pareceres, sugerir propostas relaciona<strong>da</strong>s a planos, projetos<br />

e programas setoriais desenvolvidos pelo poder Executivo Municipal.<br />

Examinar, emitir pareceres, sugerir propostas relaciona<strong>da</strong>s a legislação urbanística<br />

e do Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso.<br />

Opinar e sugerir propostas relativas aos Planos Plurianuais de Investimentos<br />

e Lei de Diretrizes Orçamentárias.<br />

Analisar e emitir pareceres sobre Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV).<br />

Atuar como auxiliar do poder Executivo e Legislativo Municipal na fiscalização<br />

<strong>da</strong> implementação do Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso e<br />

legislação decorrente.<br />

Elaborar seu Regimento Interno.<br />

181<br />

Art. 28. Os integrantes, titulares e suplentes, do Conselho do Plano Diretor<br />

de Desenvolvimento Municipal serão indicados por suas respectivas enti<strong>da</strong>des<br />

e nomeados por Decreto do Executivo Municipal. Será presidido pelo<br />

Assessor Municipal de Planejamento e constituído pelos seguintes representantes:<br />

Assessoria de Planejamento do poder Executivo municipal.<br />

Poder Legislativo Municipal.<br />

De ca<strong>da</strong> Conselho Municipal existente no Município.<br />

Associação Comercial e Industrial do Município.<br />

Associação de Moradores.<br />

Comissão Municipal de Defesa Civil – CMDEC.<br />

Loja Maçônica Visconde de Taunay.<br />

Rotary Clube de Bela Vista do Paraíso.<br />

Do órgão de planejamento <strong>da</strong> Região Metropolitana de Londrina, quando<br />

houver.<br />

Concessionária de saneamento básico.<br />

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O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do<br />

Paraíso/PR<br />

Companhia Paranaense de Energia Elétrica.<br />

Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural – EMATER.<br />

Ordem dos Advogados do Brasil.<br />

Sindicato Patronal Rural.<br />

Sindicato dos Trabalhadores Rurais.<br />

Art. 31. São princípios gerais que norteiam a Política de Desenvolvimento<br />

Municipal:<br />

[...]<br />

III - Assegurar a participação do ci<strong>da</strong>dão na gestão do desenvolvimento.<br />

Art. 32. A Política de Desenvolvimento Municipal será composta pelas seguintes<br />

vertentes.<br />

[...]<br />

V - Gestão democrática e desenvolvimento institucional<br />

Seguindo a estrutura do Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de, constitui-se como objetivo geral do<br />

Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso a gestão democrática <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, assegurando a<br />

participação comunitária, conforme estabelece seu artigo 3º, inciso II.<br />

Por fim, atentando para o fato <strong>da</strong> precarie<strong>da</strong>de dos órgãos internos <strong>da</strong> Administração<br />

Pública Municipal, o projeto prevê uma reformulação do modelo existente, com o intuito de<br />

trazer efetivi<strong>da</strong>de à participação popular no processo de gestão do desenvolvimento municipal.<br />

182<br />

3 CONCLUSÃO<br />

O que se pretendeu abor<strong>da</strong>r neste trabalho é o modo de elaboração dos Plano<br />

Diretores, ain<strong>da</strong> que de forma superficial, em especial quanto à participação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, bem<br />

como salientar que a criação de Conselhos Municipais para a questão urbana, além de ser uma<br />

deman<strong>da</strong> por parte <strong>da</strong> própria socie<strong>da</strong>de, é uma exigência do Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de, pela interpretação<br />

do artigo 42, II, que prevê um sistema integrado de acompanhamento e controle do Plano<br />

Diretor, do artigo 43, I, que dispõe sobre a obrigatorie<strong>da</strong>de de órgão colegiados de política urbana,<br />

nacional, estadual e municipal, e do artigo 2º, II que estabelece como diretriz <strong>da</strong> política urbana a<br />

gestão democrática <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Deve-se observar, ademais, que o artigo 1º, parágrafo único <strong>da</strong> Constituição<br />

Federal de 1988 estabeleceu o princípio <strong>da</strong> democracia direta, onde “todo o poder emana do povo,<br />

que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos temos desta Constituição”.<br />

Sob outro aspecto, as leis criadoras destes conselhos municipais são ver<strong>da</strong>deira<br />

conquista <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, e qualquer tentativa de eliminar ou diminuir esta conquista se configura<br />

afronta ao princípio constitucional que ve<strong>da</strong> o retrocesso <strong>da</strong>s garantias fun<strong>da</strong>mentais.<br />

Sobre o tema, J. J. Gomes Canotilho (1998, 327) leciona:<br />

O princípio <strong>da</strong> proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o<br />

núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de<br />

medi<strong>da</strong>s legislativas (‘lei de segurança social’, ‘lei do subsídio de desemprego’,<br />

‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente garantido,<br />

sendo inconstitucionais quaisquer medi<strong>da</strong>s estaduais que, sem a<br />

criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na<br />

prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse<br />

núcleo essencial. A liber<strong>da</strong>de de conformação do legislador e inerente autoreversibili<strong>da</strong>de<br />

têm como limite o núcleo essencial já realizado.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Miguel Etinger de Araujo Junior<br />

Do ponto de vista prático, esta conquista não pode se transformar em mera<br />

formali<strong>da</strong>de, valendo neste particular o alerta de Maria Paula Dallari Bucci sobre os problemas que<br />

ocorrem no Brasil quanto à falta de infra-estrutura para o conselhos, acrescentando ain<strong>da</strong>:<br />

Isso sem falar em problemas de índole mais política, entre eles o chamado<br />

“elitismo popular”, em que se verifica uma certa especialização dos representantes<br />

<strong>da</strong> função, restando pouco espaço para o ci<strong>da</strong>dão não engajado<br />

em qualquer ONG, ou ain<strong>da</strong>, a superposição de representações, como indicou<br />

uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Administração Municipal<br />

(IBAM), que apontava os secretários de saúde e as primeiras-<strong>da</strong>mas dos<br />

Municípios como integrantes de quase todos os conselhos <strong>da</strong>s pequenas<br />

ci<strong>da</strong>des, independentemente <strong>da</strong> área temático.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ALVES, Alaor Caffé. Planejamento metropolitano e autonomia municipal no direito brasileiro.<br />

São Paulo: Bushatsky, 1981.<br />

ASSAÍ/PR. Lei nº 824 de 01 dez 2004. Dados disponíveis em: .<br />

Acesso em: 30 out. 2005.<br />

BELA VISTA DO PARAISO/PR. Dados disponíveis em:. Acesso<br />

em: 03 dezembro 2005.<br />

.ECOPOLIS. Plano diretor de desenvolvimento municipal de Assaí 2004. Londrina, 2005. 1<br />

CD-ROM.<br />

BONAVIDES, Paulo. “Teoria constitucional <strong>da</strong> democracia participativa”. São Paulo:<br />

Malheiros, 2003.<br />

183<br />

BRASIL. IBGE. Mapa de distribuição <strong>da</strong> população 2000. Disponível em: . Acesso em: 17 set 2007.<br />

______. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. “Diário Oficial <strong>da</strong> República Federativa do<br />

Brasil”. Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jul. 2001.<br />

______. Ministério <strong>da</strong>s Ci<strong>da</strong>des. Disponível em: . Acesso em: 05 set 2007.<br />

BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão democrática <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. In: DALLARI, Adilson Abreu;<br />

FERRAZ, Sérgio. Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de: comentários à lei federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros,<br />

2003.<br />

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria <strong>da</strong> constituição. Coimbra:<br />

Almedina, 1998.<br />

INSTITUTO POLIS. Disponível em: . Acesso em 30 de out. 2005.<br />

LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> constituição do espaço<br />

urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.<br />

MEDAUAR, Odete. ALMEIDA, Fernando Dias Menezes (Coord.). Estatuto <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de: lei<br />

10.257, de 10.07.2001: comentários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta do<br />

Paraíso/PR<br />

MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002.<br />

PARANÁ. Lei Complementar nº. 86 de 07 de julho de 2000.<br />

RAZENTE, Nestor. Questionário sobre planos diretores. [mensagem pessoal]. Mensagem<br />

recebi<strong>da</strong> por 25 set 2005.<br />

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz, CARDOSO, A<strong>da</strong>uto Lucio. Plano diretor e gestão democrática<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Revista de Administração Municipal - IBAM, Rio de Janeiro, v. 37, n. 196, p. 8-20,<br />

jul./set. 1990, p. 12.<br />

SILVA, José Afonso <strong>da</strong>. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1995.<br />

SOUZA, Solange Nozaki. Questionário sobre planos diretores. [mensagem pessoal]. Mensagem<br />

recebi<strong>da</strong> por 20 set 2005.<br />

184<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Resenha


Luciana MendesPereira Roberto<br />

RESENHA<br />

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpreta<strong>da</strong>. 2. ed. São<br />

Paulo: Saraiva, 1996. p. 89 a 173 (Arts. 4º e 5º).<br />

Luciana Mendes Pereira Roberto*<br />

A Professora Doutora Maria Helena Diniz é Titular de Direito Civil <strong>da</strong> Pontifícia<br />

Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo, Professora de Direito Civil Comparado, de Filosofia do Direito<br />

e de Teoria Geral do Direito nos cursos de Pós-Graduação em Direito <strong>da</strong> Pontifícia Universi<strong>da</strong>de<br />

Católica de São Paulo, Coordenadora <strong>da</strong> sub-área de Direito Civil Comparado dos Cursos de<br />

Pós-Graduação em Direito <strong>da</strong> Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo. Diante de breve<br />

exposição do currículo <strong>da</strong> autora, resta clara a sua experiência e sabedoria no que pertine ao tema<br />

<strong>da</strong> Lei de Introdução ao Código Civil - Decreto-Lei nº 4657 de 04 de setembro de 1942, a qual<br />

brilhantemente discorre nesta obra.<br />

Ao interpretar o Art. 4º 1 <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> lei, trata <strong>da</strong> integração e o problema <strong>da</strong>s<br />

lacunas no Direito, referindo o fato de quando o magistrado não encontra norma aplicável a um<br />

caso concreto, não sendo possível subsumir o fato a nenhum preceito, esta-se diante do problema<br />

<strong>da</strong>s lacunas, que pode ocorrer pela falta de conhecimento sobre um status jurídico de certo comportamento,<br />

um defeito do sistema, uma ausência de norma ou uma disposição legal injusta ou em<br />

desuso. Para tanto deverá haver um desenvolvimento aberto, uma consciência <strong>da</strong> modificação que<br />

as normas experimentam para a aplicação do Direito. Essa integração, de acordo com os limites<br />

estabelecidos pelo Direito, de criar uma norma individual, em consonância com o ordenamento, é<br />

que suprirá a lacuna, atendo-se aos subconjuntos valorativo, fático e normativo que compõem o<br />

sistema jurídico.<br />

Em segui<strong>da</strong> abor<strong>da</strong> a localização sistemática do problema <strong>da</strong>s lacunas jurídicas,<br />

o levantamento <strong>da</strong>s questões relativas à lacuna dentro <strong>da</strong> ordenação jurídica e <strong>da</strong>s questões<br />

desencadea<strong>da</strong>s paralelamente a ela. Há o problema <strong>da</strong>s lacunas com a própria concepção do<br />

Direito (se o direito constitui ou não uma ordem limita<strong>da</strong>), tendo em vista o prescrito no Art. 4º <strong>da</strong><br />

Lei de Introdução ao Código Civil, e o problema lógico <strong>da</strong> completude ou <strong>da</strong> incompletude do<br />

sistema. Admitindo as lacunas, há os problemas de sua constatação, de seu preenchimento, <strong>da</strong><br />

legitimi<strong>da</strong>de de seu uso; e, assim, distingue três questões básicas para tanto: <strong>da</strong> existência, constatação<br />

e preenchimento <strong>da</strong>s lacunas.<br />

O tema discute a questão <strong>da</strong> existência <strong>da</strong>s lacunas, o qual sub-divide em<br />

quatro partes. Inicia com considerações gerais sobre a existência <strong>da</strong>s lacunas, ou seja, traça perguntas<br />

sobre a completude do sistema, sobre o dinamismo ou estática do sistema jurídico, entre<br />

outras, mostrando que deve haver a discussão do Direito como um ordenamento. Assim, o problema<br />

<strong>da</strong> existência de lacunas vai depender <strong>da</strong> concepção que se tem do ordenamento jurídico, ou<br />

sob um prisma pragmático (preenchimento), e que ambos constituirão as bases <strong>da</strong>s investigações<br />

sobre o problema <strong>da</strong>s lacunas. A seguir trata <strong>da</strong> lacuna como problema inerente ao sistema jurídico,<br />

ou seja, depende de consciência <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de e temporali<strong>da</strong>de do sistema. Para tanto há duas<br />

corrente antitéticas: uma que afirma a inexistência <strong>da</strong> lacuna (plenitude hermética do Direito -<br />

Kelsen) e outra que sustenta sua existência (concepção de sistema aberto e incompleto).<br />

187<br />

* A resenhista é Advoga<strong>da</strong>. Mestre em Direito Negocial pela Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina. Especialista em Direito<br />

Empresarial e em Bioética pela Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina. Docente na Universi<strong>da</strong>de Estadual de Londrina e no<br />

Centro Universitário Filadélfia - UNIFIL.<br />

1 Lei de Introdução ao Código Civil: Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os<br />

costumes e os princípios gerais de direito.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Resenha: DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpreta<strong>da</strong><br />

188<br />

Há lacuna nos casos em que o direito objetivo não oferece uma solução de<br />

pronto para o caso concreto, uma determina<strong>da</strong> circunstância não encontra satisfação na ordem<br />

jurídica. A autora defende a corrente <strong>da</strong> existência <strong>da</strong>s lacunas, entendendo que o Direito é uma<br />

reali<strong>da</strong>de dinâmica, dentro de um contexto de atualização com as mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas<br />

em socie<strong>da</strong>de, que traz novas situações, como alterações nos fatos, nos valores e nas normas,<br />

considerando que o Direito não é estático, está sob constante progresso.<br />

É apresentado, de forma gráfica, o que traz bastante clareza ao leitor, que o<br />

sistema normativo é aberto e está relacionado com os sistemas fático e de valores (axiológico).<br />

Assim, quando o juiz aplica o Direito ao caso concreto não se baseia somente no sistema normativo,<br />

mas também no fático e no axiológico, não sendo relevante apenas se determina<strong>da</strong> conduta é<br />

proibi<strong>da</strong> ou permiti<strong>da</strong> no sistema normativo, mas sim se há possibili<strong>da</strong>de de solução pelos outros<br />

sistemas. Presente a lacuna, o juiz transita pelos “subsistemas”, até supri-la, e dessa forma a<br />

lacuna fica com caráter sempre provisório, pois o Direito tem uma temporali<strong>da</strong>de própria. Fica<br />

expresso o entendimento, pela autora, que o Direito é lacunoso, sob uma análise dinâmica.<br />

Há o apontamento de três espécies de lacunas: a normativa (ausência de norma);<br />

ontológica (a norma não corresponde aos fatos sociais) e axiológica (há ausência de norma<br />

justa). Apresenta, ain<strong>da</strong>, a lacuna como problema de jurisdição, considerando-a uma questão processual,<br />

pois é este que, na aplicação <strong>da</strong>s normas, levanta o problema <strong>da</strong> lacuna. Refere-se a<br />

Kelsen que a princípio afasta a idéia <strong>da</strong> existência de lacunas, mas acaba por admiti-la como mera<br />

ficção, estabelecendo limites ideológicos à ativi<strong>da</strong>de judicial, ou seja, reconhece a incompletude do<br />

sistema.<br />

A colmatação de lacunas, em um determinado processo judicial, soluciona um<br />

problema individualmente e não tem a finali<strong>da</strong>de de eliminar conflitos. Dessa forma, o Direito será<br />

sempre lacunoso e, ao mesmo tempo, sem lacunas. Isso implica em dizer que a lacuna faz um fato<br />

indecidível, e cabe ao Judiciário torná-lo decidível.<br />

Trata, assim, <strong>da</strong> aporia <strong>da</strong>s lacunas (raciocínios coerentes, conclusões contrárias):<br />

“[...] o Direito é sempre lacunoso, mas é também, ao mesmo tempo, sem lacunas”, de forma<br />

que o sistema jurídico não é completo, mas completável, exercendo as lacunas dupla função, ora<br />

fixando os limites para as decisões dos magistrados, ora justificando a ativi<strong>da</strong>de do Legislativo.<br />

O fato de que o termo lacuna, trata-se de uma aporia é porque alberga idéias<br />

conflitantes, “uma questão sem saí<strong>da</strong> a que não há resposta unânime”. No entender <strong>da</strong> autora,<br />

to<strong>da</strong>s as doutrinas pertinentes aos temas, na reali<strong>da</strong>de se compartilham, partindo de parâmetros<br />

diferentes.<br />

Na següência, escreve sobre a constatação e preenchimento <strong>da</strong>s lacunas, mostrando<br />

que o primeiro passo é a identificação (constatação) <strong>da</strong> lacuna, a partir <strong>da</strong> admissão de sua<br />

existência. Para tanto se faz necessária a análise de duas situações: o ordenamento jurídico e a<br />

existência de fato <strong>da</strong> lacuna (ausência de norma ti<strong>da</strong> como lacuna), resultante de um juízo de<br />

apreciação e de integração. A constatação e o preenchimento <strong>da</strong>s lacunas são aspectos correlatos,<br />

mas independentes e indicados pela própria lei (Art. 4º Lei de Introdução do Código Civil).<br />

Quanto aos meios supletivos <strong>da</strong>s lacunas, mostra que são eles:<br />

A analogia, consistente na aplicação de uma norma p<strong>revista</strong> para uma situação<br />

distinta, a um caso que não seja contemplado por norma jurídica, a este semelhante. Envolve duas<br />

fases: a constatação e um juízo de valor <strong>da</strong>s lacunas, levando à decisão do magistrado, que atenderá<br />

aos fins sociais e às exigências do bem comum. É um processo revelador de normas implícitas,<br />

com fun<strong>da</strong>mento na igual<strong>da</strong>de jurídica, em “razões relevantes de similitude” e na teleologia. Se o<br />

caso sub judice não estiver previsto em norma jurídica, se houver uma semelhança com outro<br />

previsto, que esse elemento de identi<strong>da</strong>de entre eles for fun<strong>da</strong>mental, será o caso <strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong><br />

analogia. Esta pode ser distinta em analogia legis (aplicação de uma norma existente) e a analogia<br />

juris (conjunto de normas, do qual se extrai elementos de aplicabili<strong>da</strong>de no caso concreto não<br />

contemplado e similar). Na reali<strong>da</strong>de to<strong>da</strong> analogia é juris, devido ao fato de que to<strong>da</strong> aplicação<br />

prescinde do sistema jurídico que o envolve. Cita também os argumentos analógicos: argumentum<br />

a simili ad simile (razão), argumentum a fortiori (as notas convenham ao segundo caso em grau<br />

distinto do primeiro; podem ser a maiori ad minus e a minori ad maius), e argumentum a<br />

contrario (instrumento integrador do sistema, uma “redução teleológica”).<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Luciana MendesPereira Roberto<br />

O costume, está em plano secundário, e é também uma fonte jurídica decorrente<br />

do uso pelo interessado, pelos tribunais e doutrinadores, forma<strong>da</strong> por dois elementos necessários:<br />

o uso e a convicção jurídica, sendo que de acordo com o Art. 4º <strong>da</strong> LICC, deve ser aplicado<br />

“conforme usos e costumes” e em “respeito aos bons costumes”, respeitando sua continui<strong>da</strong>de,<br />

sua uniformi<strong>da</strong>de, sua diuturni<strong>da</strong>de, sua morali<strong>da</strong>de e sua obrigatorie<strong>da</strong>de, levando em conta os fins<br />

sociais, as exigências do bem comum, os ideais de justiça e de utili<strong>da</strong>de comum. Existem em três<br />

espécies: o secundum legem (previsto na lei), o praeter legem (supre a lei em caso de omissão) e<br />

o contra legem (em sentido contrário à lei: norma de costume oposta à lei ou o não-uso formal <strong>da</strong><br />

lei, respectivamente consuetudo abrogatoria e desuetudo). É útil não apenas para o caso <strong>da</strong><br />

lacuna normativa, mas também para a lacuna axiológica (injustiça ou inconveniência <strong>da</strong> aplicação<br />

<strong>da</strong> lei vigente) e para a lacuna ontológica (incompatibili<strong>da</strong>de entre fatos e normas). Assim, nota-se<br />

que a aplicação dos costumes, para a integração do sistema normativo, exige sensibili<strong>da</strong>de e atuali<strong>da</strong>de<br />

social por parte do aplicador.<br />

Os princípios gerais de direito, estão contidos de forma imanente no ordenamento<br />

jurídico e são úteis quando <strong>da</strong> falha <strong>da</strong> analogia e do costume no preenchimento <strong>da</strong> lacuna. Eles não<br />

têm existência própria, sendo vitalizados pelo juiz, ao descobri-los. Devem conter uma resposta<br />

segura para o caso duvidoso e não podem apresentar oposição ao disposto no ordenamento. Devido<br />

à imprecisão de seu caráter, os princípios gerais de direito possuem diversas concepções pelas<br />

escolas jurídicas. Há doutrinadores que simplesmente combatem a concepção de princípios gerais<br />

de direito; há a escola que os identifica com as normas de direito natural; há a que os entende como<br />

normas basea<strong>da</strong>s na eqüi<strong>da</strong>de, a própria eqüi<strong>da</strong>de (a autora é contrária a esse entendimento, pois<br />

considera a eqüi<strong>da</strong>de meio diverso de preenchimento de lacunas); há a que os considera como<br />

tendo caráter universal, ditados pela ciência e pela Filosofia do Direito; há a que os caracteriza<br />

como princípios historicamente contingentes e variáveis e norteadores extraídos <strong>da</strong>s diversas normas<br />

do ordenamento jurídico; há, ain<strong>da</strong>, uma posição eclética, que busca conciliar to<strong>da</strong>s as demais<br />

posições. Porém, existe um elemento comum a to<strong>da</strong>s as doutrinas, que é a justiça.<br />

Maria Helena Diniz ensina a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> natureza dos princípios gerais de<br />

direito, que podem ser decorrentes <strong>da</strong>s normas do ordenamento jurídico, derivados <strong>da</strong>s idéias políticas<br />

e sociais vigentes e reconhecidos pelas nações civiliza<strong>da</strong>s com historici<strong>da</strong>de comum. Isso<br />

significa que recaem sobre os sistemas normativo, fático e valorativo, preenchendo as lacunas.<br />

Ocorre que muitos dos princípios gerais do direito encontram-se prescritos em normas e, mesmo<br />

não estando positiva<strong>da</strong>s, guiam o magistrado pelo senso de justiça, pelo valor genérico que integram<br />

o sistema jurídico. O magistrado deve procurar, ao aplicá-los, primeiramente buscar os princípios<br />

fun<strong>da</strong>mentais do ordenamento positivado do caso sub judice, atingir os princípios que informam<br />

o diploma onde se insere a instituição, procurar os princípios de direito consuetudinário, recorrer<br />

ao direito internacional e invocar os elementos de justiça.<br />

A eqüi<strong>da</strong>de, conforme se posicionou a autora, trata-se de meio diverso de preenchimento<br />

de lacunas, devendo ser utiliza<strong>da</strong> nos casos em que o juiz, constatando semelhança<br />

entre fatos diversos, faz um juízo de valor, e assim não consegue usar a analogia, o costume e os<br />

princípios gerais de direito Há três acepções que ligam a eqüi<strong>da</strong>de (Alípio Silveira): a latíssima<br />

(suprema regra de justiça), a lata (idéia absoluta de justiça) e estrita (a justiça no caso concreto).<br />

Pode ser dividi<strong>da</strong> em (Agostinho Alvim): legal (contido no texto <strong>da</strong> norma) e judicial (o legislador<br />

permite o seu uso no caso concreto), sendo que o pressuposto de qualquer <strong>da</strong>s duas é a flexibili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> lei. Apresenta, ain<strong>da</strong>, os requisitos <strong>da</strong> eqüi<strong>da</strong>de (Limongi França): decorrência do sistema e<br />

do direito natural; inexistência de texto claro e inflexível sobre a matéria; omissão, defeito ou<br />

generali<strong>da</strong>de acentua<strong>da</strong> <strong>da</strong> lei; apelo para as formas complementares de expressão do direito antes<br />

<strong>da</strong> livre citação <strong>da</strong> norma eqüitativa; elaboração científica em harmonia com o sistema e com os<br />

princípios o objeto <strong>da</strong> decisão. O legislador, ao elaborar uma lei, deve ter em conta todos os fatores<br />

econômicos e morais, as atualizações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong>de, as tendências, a vontade, a consciência<br />

do povo. Assim, a eqüi<strong>da</strong>de exerce influência <strong>da</strong> elaboração legislativa, além de desempenhar<br />

importante papel na interpretação <strong>da</strong>s normas, destacando a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lei sobre a sua<br />

letra e a preferência <strong>da</strong> mais favorável e humana interpretação. Exercendo, assim, a a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong><br />

norma ao caso concreto, ao caso sub judice, suplementando a lei, integrando o sistema jurídico.<br />

Nessa função integrativa que exerce, a eqüi<strong>da</strong>de preenche as lacunas voluntárias (pelo próprio<br />

189<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Resenha: DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpreta<strong>da</strong><br />

190<br />

legislador), além dos casos que fogem à previsão do elaborador <strong>da</strong> norma. Nesse contexto, é a<br />

eqüi<strong>da</strong>de o poder conferido ao magistrado para revelar o direito latente, um poder discricionário,<br />

mas de forma alguma arbitrário, que se utiliza no preenchimento <strong>da</strong>s lacunas, relacionando os<br />

sistemas normativo, fático e valorativo.<br />

Na seqüência, registra-se a interpretação do Art. 5º 2 <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> Lei de Introdução<br />

ao Código Civil, expondo a princípio a utili<strong>da</strong>de prática do citado artigo.<br />

A autora ensina que a ciência do Direito surge como uma teoria hermenêutica<br />

por ter a tarefa de interpretar normas, verificar a existência <strong>da</strong> lacuna jurídica e afastar contradições<br />

normativas; é a teoria <strong>da</strong> decisão. Para tanto, deverá estabelecer a sistematização de normas,<br />

<strong>da</strong>í a sua função de organização, com a finali<strong>da</strong>de de decisão, ou seja, <strong>da</strong> busca de condições de<br />

possibili<strong>da</strong>de de resolução de conflitos. A ciência do Direito não se separa <strong>da</strong> técnica, o conhecimento<br />

e domínio de meios para atingir certo objetivo, sendo instrumento de viabilização do Direito.<br />

A dogmática jurídica tem uma função social, no dever de limitar as possibili<strong>da</strong>des de variação na<br />

aplicação do Direito e de controlar a consciência <strong>da</strong>s decisões, com base em outras decisões.<br />

É apresenta<strong>da</strong> uma interessante construção silogística (Engisch): norma geral<br />

(premissa maior); caso conflitivo (premissa menor) e conclusão (decisão), referindo-se à subsunção<br />

<strong>da</strong> norma ao caso concreto, em que a grande dificul<strong>da</strong>de é encontrar a premissa maior, conduzindo<br />

a dois problemas para a efetiva decisão jurídica: a qualificação jurídica e as regras decisórias.<br />

Quanto à qualificação jurídica, a dificul<strong>da</strong>de está no emprego de linguagem natural ou comum e<br />

falta de informação sobre os fatos do caso, remedia<strong>da</strong> pelas presunções legais. Diante de tais<br />

apontamentos, entende-se que o jurista fará uma consideração dinâmica do Direito (sistemas<br />

normativo, fático e valorativo), para fornecer os caminhos <strong>da</strong> decisão, aplicando a norma ao caso<br />

concreto, e atendendo à finali<strong>da</strong>de social e ao bem comum.<br />

Em continui<strong>da</strong>de, analisa-se o conceito, funções e caráter necessário <strong>da</strong> interpretação.<br />

Tanto a lei clara como a obscura devem ser interpreta<strong>da</strong>s; porém à obscura deverá ser<br />

soma<strong>da</strong> certa dose de ativi<strong>da</strong>de intelectual, pois tal norma contém palavras fora de seu significado,<br />

apresenta imprecisões, fórmulas falhas, pensamento incompleto ou confuso, ou, ain<strong>da</strong>, ambigüi<strong>da</strong>de,<br />

que pode aparecer na letra <strong>da</strong> lei ou no seu pensamento ou conteúdo.<br />

Interpretar é, então, descobrir o sentido e o alcance <strong>da</strong> norma, buscando o<br />

significado dos conceitos jurídicos, que se a<strong>da</strong>ptam a mu<strong>da</strong>nças com a evolução e o progresso <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de, extraindo <strong>da</strong> norma o sentido apropriado que leve a uma decisão. As funções <strong>da</strong> interpretação<br />

são conferir a aplicabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> norma às relações sociais, estender o sentido <strong>da</strong> norma a<br />

relações novas, temperar o alcance do preceito normativo.<br />

A hermenêutica é a teoria científica <strong>da</strong> arte de interpretar, a ela deve ser soma<strong>da</strong><br />

a intersubjetivi<strong>da</strong>de, ou seja, o intérprete deve levar em conta os fatores valorativos e sociais<br />

contidos na norma, baseado no momento histórico em que está vivendo, garantindo, ain<strong>da</strong>, seus fins<br />

sociais. A interpretação pode ser considera<strong>da</strong> não-autêntica (Kelsen: determinar o quadro <strong>da</strong>s<br />

significações possíveis <strong>da</strong> norma geral) e autêntica (cria direito para o caso concreto).<br />

O texto destaca a liber<strong>da</strong>de do Judiciário, que não ficará dependente de decisões<br />

anteriores, pois o magistrado é o intérprete necessário e permanente <strong>da</strong> lei, com a obrigação<br />

apenas de fun<strong>da</strong>mentar suas decisões, podendo interpretar diversamente em casos concretos semelhantes.<br />

Interpretar é estabelecer uma norma individual, assim a interpretação é um ato normativo.<br />

E em segui<strong>da</strong> passa a tratar, então, a questão <strong>da</strong> vontade <strong>da</strong> lei ou do legislador como critério<br />

hermenêutico, em duas teorias: a subjetiva (vontade do legislador) e a objetiva (vontade <strong>da</strong> lei,<br />

concentra<strong>da</strong> em quatro argumentos: a vontade, a forma, a confiança e a integração). Ambas são<br />

critica<strong>da</strong>s, a primeira por favorecer ao autoritarismo e a segun<strong>da</strong> por favorecer ao anarquismo. Os<br />

dogmas (caráter objetivo) e a liber<strong>da</strong>de (caráter subjetivo) levam ao caráter deontológico e normativo<br />

<strong>da</strong> interpretação, em que um ato de vontade se efetiva por razões axiológicas e cria uma norma<br />

individual (decidibili<strong>da</strong>de), com um mínimo de perturbação social.<br />

Com referências às técnicas interpretativas, estas podem ser: gramatical, lógica,<br />

sistemática, interpretativa histórica, sociológica ou teleológica. Tais processos interpretativos se<br />

<strong>completa</strong>m, são operações distintas que devem atuar conjuntamente na descoberta do sentido e<br />

alcance <strong>da</strong> norma.<br />

2 Art. 5º. Na aplicação <strong>da</strong> lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Luciana MendesPereira Roberto<br />

Destaca, a seguir, a técnica interpretativa teleológica e integração <strong>da</strong> lacuna<br />

ontológica e axiológica, mostrando que o Art. 5º <strong>da</strong> LICC indica o critério do fim social e o do bem<br />

comum, para a a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> lei às novas exigências sociais e aos valores positivos, mostrando que<br />

a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> norma não é ser dura, mas justa e de acordo com as necessi<strong>da</strong>des fático-sociais<br />

vigorantes na socie<strong>da</strong>de no momento de aplicação jurídica.<br />

Quanto ao fim social, ensina a autora que não há lei que não contenha uma<br />

finali<strong>da</strong>de social imediata, e é aí que está presente a necessi<strong>da</strong>de de sua correta aplicação a um<br />

<strong>da</strong>do caso, pois o aplicador deverá ter por escopo a felici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de política, a busca do fim<br />

social.<br />

O bem comum, por sua vez, é a liber<strong>da</strong>de, a paz, a justiça, a segurança, a<br />

utili<strong>da</strong>de social, a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, almejados pela socie<strong>da</strong>de, ficando acima dos interesses particulares<br />

dos indivíduos. Assim, são justas as leis que têm por finali<strong>da</strong>de o bem comum, que aten<strong>da</strong>m ao<br />

interesse social; e, no caso <strong>da</strong> solução de conflitos duvidosos, o intérprete deverá seguir o caminho<br />

que mais se aproxime <strong>da</strong> utili<strong>da</strong>de comum dos ci<strong>da</strong>dãos, <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de em geral. O bem comum<br />

é a preservação dos valores positivos vigentes na socie<strong>da</strong>de, que dão sustento a determina<strong>da</strong><br />

ordem jurídica.<br />

Ao tratar dos efeitos do ato interpretativo, o texto esclarece que, tanto na interpretação<br />

extensiva quanto na restritiva, deve ser considerado o fim e os valores <strong>da</strong> criação e <strong>da</strong><br />

aplicação <strong>da</strong> norma. O hermeneuta deverá observar o espírito do texto normativo, a eqüi<strong>da</strong>de, o<br />

interesse geral, o paralelo entre a norma interpretan<strong>da</strong> e outras, e ao tipo <strong>da</strong> disposição normativa<br />

interpretan<strong>da</strong>, e assim chegará a uma interpretação declarativa com a correspondência entre a<br />

expressão lingüístico-legal e a vontade <strong>da</strong> lei.<br />

O papel <strong>da</strong> ideologia, na aplicação jurídica, é neutralizador do valor, pois é o<br />

universo dos valores possíveis de uma pessoa, um grupo, uma cultura. A decisão a ser proferi<strong>da</strong><br />

deverá obedecer às exigências legais, atendendo aos fins sociais e valorativos do direito. Haverá<br />

ideologia quando se neutraliza uma escolha no estabelecimento de objetivos (fim social, bem<br />

comum).<br />

Finalizando a análise do Art. 5º <strong>da</strong> LICC, trata <strong>da</strong> discricionarie<strong>da</strong>de judicial,<br />

devido ao fato de que cabe ao Judiciário, no caso de lacunas, adequar o Direito em relação à<br />

reali<strong>da</strong>de, fática, social e normativa, selecionado a melhor solução que a lei comporte, buscando a<br />

justiça.<br />

Diante de todo o aduzido, conclui-se que a função jurisdicional, seja de subsunção,<br />

seja de integração, é ativa, tendo em vista as mu<strong>da</strong>nças sociais e a ativi<strong>da</strong>de intelectiva do juiz ao<br />

aplicar a norma individual, nos limites de sua jurisdição, conforme a lei e o Art. 4º e o Art. 5º <strong>da</strong> Lei<br />

de Introdução do Código Civil, que trazem contribuições valiosas para a referi<strong>da</strong> aplicação no<br />

Brasil.<br />

191<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Resenha <strong>da</strong> obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman<br />

RESENHA<br />

Resenha <strong>da</strong> obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman. Editora Martins Fontes. São Paulo,<br />

1996.<br />

Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva*<br />

192<br />

Das lições de Perelman, é possível extrair-se o entendimento de que o sentimento<br />

de injustiça nasce no homem a partir do desconforto que experimenta em face de alguma<br />

falta ou privação cuja causa é a ação de um outro homem. Inviável, por outro lado, pensar-se o<br />

justo sem que o agir do homem seja referido ao agir de outro homem.<br />

A sensação de injustiça se dá ao experimentar a carência de algo de que se<br />

necessita e de que se foi privado. As regras <strong>da</strong> justiça assentam nessa premissa e por isso mesmo<br />

precisam, forçosamente, ser referi<strong>da</strong>s aos “sistemas de necessi<strong>da</strong>des”. Somente quando se põe<br />

para o homem o desafio de responder à in<strong>da</strong>gação de como agir quando há um conflito de interesses<br />

é que adquire relevo o problema <strong>da</strong> Justiça.<br />

A definição de quem perde e quem ganha e em que extensão isso se dá, quem<br />

se priva e quem será satisfeito, quem desfrutará de uma situação de vantagem e quem sofrerá as<br />

conseqüências <strong>da</strong> desvantagem correspectiva é problema de justiça. Neste crucial momento <strong>da</strong><br />

convivência humana é que o problema se apresenta e para solucioná-lo buscam-se respostas de<br />

natureza ética. Neste espaço também opera o Direito.<br />

Refletindo sobre a Justiça, Perelman acentua que de to<strong>da</strong>s as noções prestigiosas,<br />

a de justiça parece uma <strong>da</strong>s mais eminentes e a mais irremediavelmente confusa, pela forte<br />

carga emocional que sempre carrega consigo. Buscando escapar a essa contingência, ou reduzi-la<br />

ao máximo, o autor começa por analisar as concepções mais correntes de justiça, demonstra como<br />

são inconciliáveis e carecedoras de operacionali<strong>da</strong>de e alinha as seguintes:<br />

a) a ca<strong>da</strong> qual a mesma coisa;<br />

b) a ca<strong>da</strong> qual segundo os seus méritos;<br />

c) a ca<strong>da</strong> qual segundo suas obras;<br />

d) a ca<strong>da</strong> qual segundo suas necessi<strong>da</strong>des;<br />

e) a ca<strong>da</strong> qual segundo sua posição e<br />

f) a ca<strong>da</strong> qual segundo o que a lei lhe atribui.<br />

Para Perelman, se dermos a todos a mesma coisa, seremos injustos para os<br />

que têm como correto, precisamente, um tratamento diferenciado, como se depreende de to<strong>da</strong>s as<br />

subseqüentes posições, sem esquecer que a mesma coisa não proporcionaria a todos os homens a<br />

mesma satisfação.<br />

Se elegermos, por exemplo, o mérito de ca<strong>da</strong> um como fun<strong>da</strong>mento, por que<br />

modo definir este mérito e que critérios devem ser levados em conta para sua determinação?<br />

Adotando-se a regra de atribuir a ca<strong>da</strong> qual o que for devido segundo suas<br />

obras, além <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de de se definir a escala de valor capaz de medir estas obras, as mais<br />

diversifica<strong>da</strong>s que seriam, ain<strong>da</strong> se estaria diante de um critério que não é moral, pois deixa de<br />

levar em conta a intenção e os sacrifícios realizados, considerando unicamente o resultado <strong>da</strong><br />

ação.<br />

* Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo, Coordenador do Curso de Direito <strong>da</strong><br />

<strong>UniFil</strong> e Advogado.<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Osmar Vieira <strong>da</strong> Silva<br />

Optar pela regra de <strong>da</strong>r a ca<strong>da</strong> qual segundo suas necessi<strong>da</strong>des coloca o<br />

homem diante do óbice de termos que definir essas necessi<strong>da</strong>des, para o que seria forçado a adotar<br />

critérios meramente formais, porquanto as divergências a respeito ocasionariam inúmeras variantes<br />

<strong>da</strong> mesma fórmula.<br />

Impensável admitir-se como regra de justiça <strong>da</strong>r a ca<strong>da</strong> qual segundo sua posição,<br />

fórmula aristocrática, privilegiadora e necessariamente desigualizadora. A última regra, <strong>da</strong>r<br />

a ca<strong>da</strong> um o que a lei lhe atribui resultaria, necessariamente, em transferir, de modo absoluto, o<br />

poder de definir o justo para quem é investido do poder de ditar a lei.<br />

Diante disso, três atitudes são possíveis, diz Perelman. A primeira consistiria<br />

em declarar que essas diversas concepções de justiça não têm absolutamente na<strong>da</strong> em comum e<br />

não estão uni<strong>da</strong>s por nenhum vínculo conceitual, donde o dilema de ter que rejeitar to<strong>da</strong>s, em nome<br />

<strong>da</strong> justiça, ou ter que eleger uma dentre elas, e esta escolha já se demonstrou ser insatisfatória e<br />

não operacional. Evitar esse dilema é o que leva Perelman a tentar uma terceira solução. Afirma o<br />

autor ser possível superar o impasse, procurando-se pesquisar o que há de comum nas diferentes<br />

concepções de justiça precedentemente referi<strong>da</strong>s. Conclui por encontrar esse elo na idéia de “igual<strong>da</strong>de”,<br />

subjacente a to<strong>da</strong>s as posições precedentemente analisa<strong>da</strong>s. A noção de justiça sugere a<br />

todos, inevitavelmente, a idéia de certa igual<strong>da</strong>de. A igual<strong>da</strong>de perfeita, porém, todo mundo percebe<br />

imediatamente, é irrealizável e constitui apenas um ideal para o qual se pode tender, um limite do<br />

qual se pode tentar aproximar na medi<strong>da</strong> do possível.<br />

É imprescindível existir certa semelhança entre os seres aos quais se aplica a<br />

justiça, pois, inexistindo uma medi<strong>da</strong> comum, isto é, não havendo identi<strong>da</strong>de, a questão <strong>da</strong> realização<br />

<strong>da</strong> justiça nem sequer tem de ser coloca<strong>da</strong>. E se hoje se reivindica tratamento justo para todos<br />

os homens, é porque o homem reconheceu semelhança em todos os outros homens, é porque a<br />

noção de humani<strong>da</strong>de foi ficando pouco a pouco evidente.<br />

Ocorre que esta igual<strong>da</strong>de essencial dos homens está emoldura<strong>da</strong> por inúmeras<br />

e complexas diferenças. Daí o dilema – há que se tratar a todos <strong>da</strong> mesma forma ou devem<br />

existir formas diferencia<strong>da</strong>s de tratamento, para assegurar, precisamente, o igual tratamento que<br />

se deseja? E se formas diferencia<strong>da</strong>s forem necessárias, o que se deverá levar em conta para<br />

tornar justo o tratamento diferenciado? Recai-se, então, nas divergências e inconciliabili<strong>da</strong>des antes<br />

referi<strong>da</strong>s.<br />

É possível, entretanto, superar esse impasse, diz Perelman. Em to<strong>da</strong>s as concepções<br />

de justiça há uma atitude comum – trata-se igualmente os iguais. Pretende-se que se leve<br />

em conta o mérito de igual tratamento para os que têm “igual” mérito, valendo o mesmo para<br />

necessi<strong>da</strong>des, posição social, etc. Seja qual for a divergência sobre outros pontos, todos estão de<br />

acordo sobre o fato de ser justo tratar <strong>da</strong> mesma forma os seres que são iguais de certo ponto de<br />

vista, que possuem uma “característica comum”, a única que se deve levar em conta na administração<br />

<strong>da</strong> justiça.<br />

Perelman propõe seja esta característica qualifica<strong>da</strong> de “essencial” e os que a<br />

tiverem em comum pertencem a uma mesma categoria, à mesma categoria essencial. Portanto,<br />

pode-se definir a justiça formal ou abstrata como um princípio de ação segundo o qual os seres de<br />

uma mesma categoria essencial devem ser tratados <strong>da</strong> mesma forma. Abandonar-se-ia, de uma<br />

vez por to<strong>da</strong>s, a improfícua procura <strong>da</strong> “justiça material” como algo suscetível de prévia determinação.<br />

Conclui, portanto, que “o único meio que temos de dizer sobre a justiça ou injustiça de um ato<br />

consiste na igual<strong>da</strong>de de tratamento que reserva a todos os membros de uma mesma categoria<br />

essencial”.<br />

A partir <strong>da</strong>í, pode-se definir a noção de “eqüi<strong>da</strong>de” como técnica de superação<br />

<strong>da</strong>s antinomias <strong>da</strong> justiça, decorrentes do desejo de se aplicar simultaneamente várias regras de<br />

justiça incompatíveis.<br />

Por outro lado, se, de uma perspectiva formal, o pensamento de Perelman<br />

oferece diretivas que parecem fun<strong>da</strong>mentais, permanece irresolvido o problema <strong>da</strong> plena legitimi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> ordem jurídica.<br />

193<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4


Resenha <strong>da</strong> obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman<br />

Destarte, se é exato que só pela ordem jurídica se assegura, em última instância<br />

(com impositivi<strong>da</strong>de), a justiça relativa, contingente, possível em determinado momento histórico<br />

e em certo espaço político, isso implica o problema <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de desta ordem jurídica, sempre<br />

em permanente questionamento.<br />

To<strong>da</strong> ordem jurídica é tão mais legítima quanto mais amplamente possibilita a<br />

explicitação <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des pelos indivíduos e grupos que sob seu império se colocam, a par de<br />

viabilizar-lhes a organização para tê-las atendi<strong>da</strong>s (PROCON, Juizados Especiais, etc). É mais<br />

justo o ordenamento que menos necessi<strong>da</strong>des deixa insatisfeitas e mais injusto o que maior número<br />

de necessi<strong>da</strong>des deixa desatendi<strong>da</strong>s.<br />

O Direito é, portanto, e sempre, uma forma possível de realização histórica e<br />

social <strong>da</strong> justiça, não de uma justiça absoluta, nem necessariamente a mais perfeita. Ele apenas<br />

formaliza e busca implementar o projeto de justiça possível nos limites <strong>da</strong> contingência que lhe dita<br />

e lhe põe a correlação real <strong>da</strong>s forças operantes na socie<strong>da</strong>de. Pode-se, pois, dizer que to<strong>da</strong> ordem<br />

jurídica realiza alguma justiça e que ela será tanto mais quanto menos necessi<strong>da</strong>des deixar insatisfeitas<br />

e menos expectativas desatendi<strong>da</strong>s instituir. E tanto mais é injusta quanto mais desiguala,<br />

privilegiando, com o que agrava o número dos excluídos e dos insatisfeitos. Portanto, a medi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

justiça ou injustiça de uma ordem jurídica se afere pelo maior ou menor grau de coerção que o<br />

poder político institucionalizado precisa exercer para assegurar a paz social, ou em outros termos,<br />

paradoxalmente, o Direito é tão mais necessário quanto mais injustiça determina a ordem social<br />

existente, donde as socie<strong>da</strong>des mais perfeitas serem aquelas menos necessita<strong>da</strong>s <strong>da</strong> coerção do<br />

Direito e, conseqüentemente, dos juristas.<br />

194<br />

REVISTA JURÍDICA <strong>da</strong> <strong>UniFil</strong>, Ano IV - nº 4

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