Belarmino de Jesus Souza - Uesb
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CC 25 – Cultura Popular e política no Sertão da Ressaca<br />
Coor<strong>de</strong>nador: <strong>Belarmino</strong> <strong>de</strong> <strong>Jesus</strong> <strong>Souza</strong><br />
O BACHARELISMO NA POLÍTICA CONQUISTENSE DOS ANOS 20.<br />
<strong>Belarmino</strong> <strong>de</strong> <strong>Jesus</strong> <strong>Souza</strong> *<br />
A formação inicial da vida política conquistense.<br />
Vitória da Conquista é uma cida<strong>de</strong> localizada no sudoeste do Estado da Bahia, numa região<br />
<strong>de</strong>nominada inicialmente pelos conquistadores portugueses como Sertão <strong>de</strong> Ressaca, compreendida entre<br />
o Rio Pardo, ao sul e o Rio das Contas ao norte (15º <strong>de</strong> latitu<strong>de</strong> sul / 41º <strong>de</strong> longitu<strong>de</strong> oeste).<br />
Ao longo <strong>de</strong> seu processo histórico a localida<strong>de</strong> contou com diferentes <strong>de</strong>nominações.<br />
Inicialmente, no final do século XVIII, a povoação incrustada no sopé da Serra do Periperi recebeu a<br />
<strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> Arraial da Vitória. Em 1840, após ter sido vinculada a Jacobina, Rio <strong>de</strong> Contas e, <strong>de</strong>pois, a<br />
Caetité, por meio da Lei Provincial n º 124, foi elevada a condição <strong>de</strong> vila, recebendo a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong><br />
Imperial Villa da Victória. Após a implantação do regime republicano, a vila foi elevada à condição <strong>de</strong><br />
cida<strong>de</strong>, passando a <strong>de</strong>nominar-se a partir <strong>de</strong> 1º <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1892, Conquista. Por meio do <strong>de</strong>creto n º 141,<br />
datado <strong>de</strong> 31 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1943, ocorreu a última modificação, passando finalmente a Vitória da<br />
Conquista.<br />
O processo <strong>de</strong> ocupação do Sertão <strong>de</strong> Ressaca por parte <strong>de</strong> agentes a serviço da Coroa<br />
Portuguesa, não foi uma iniciativa isolada, levada a termo apenas pelo espírito aventureiro dos primeiros<br />
<strong>de</strong>sbravadores. Tratou-se <strong>de</strong> uma investida sintonizada com as necessida<strong>de</strong>s econômicas lusitanas. A<br />
Coroa Portuguesa enfrentando uma conjuntura <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência na Segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII passou<br />
a <strong>de</strong>senvolver uma política <strong>de</strong> intensificação da exploração <strong>de</strong> sua principal colônia, o Brasil, buscando<br />
<strong>de</strong>scobrir novas fontes <strong>de</strong> minerais preciosos ou mesmo abrir novas áreas <strong>de</strong> ocupação e expansão da<br />
pecuária, o que também resultaria na ampliação da receita fazendária. Foi neste contexto histórico que o<br />
Rei D. João V, autorizou ao ban<strong>de</strong>irante João da Silva Guimarães, <strong>de</strong>sbravar o Sertão <strong>de</strong> Ressaca. Já eram<br />
conhecidas as potencialida<strong>de</strong>s mineradoras <strong>de</strong> terras mais a oeste (Chapada Diamantina). Vislumbra-se a<br />
princípio êxito semelhante na área entre o Rio Pardo e o Rio das Contas. Este ban<strong>de</strong>irante havia recebido<br />
em 1735 a “Patente do posto <strong>de</strong> Mestre <strong>de</strong> Campo da Conquista”.
2<br />
Na empreitada da conquista, Guimarães contou o auxilio do seu futuro genro João Gonçalves da<br />
Costa, para tanto interce<strong>de</strong>u junto ao governo colonial, para que o mesmo recebesse a Patente <strong>de</strong> Capitão.<br />
Quando da época da conquista, o Sertão da Ressaca era ocupado em consi<strong>de</strong>rável extensão por povos<br />
indígenas: Mongoiós ou Camacans e Botocudos. Não se tem número preciso dos indivíduos existentes. Na<br />
fase inicial da conquista, sempre que possível os colonizadores buscavam manter uma relativa relação <strong>de</strong><br />
paz. Ao final do século XVIII e início do século XIX, à medida que vão se implantando fazendas ligadas à<br />
pecuária extensiva e rudimentar <strong>de</strong> gado bovino, vão também, se intensificando as contradições entre os<br />
dois grupos (conquistadores e indígenas). Pois o sistema <strong>de</strong> criação implantado requisitava cada vez áreas<br />
mais extensas, o que colocava os primeiros pecuaristas da região em rota <strong>de</strong> colisão com os nativos. Era a<br />
substituição do mo<strong>de</strong>lo comunitário primitivo indígena, pela apreensão privada da terra por parte dos<br />
conquistadores. A implantação das fazendas <strong>de</strong> pecuária, a submissão/eliminação dos nativos e a<br />
implantação do núcleo <strong>de</strong> povoamento confirmaram o êxito no processo <strong>de</strong> conquista do Sertão <strong>de</strong><br />
Ressaca. Este feito teve o comando inicial da família <strong>de</strong> João Gonçalves da Costa. A <strong>de</strong>scendência <strong>de</strong> João<br />
Gonçalves da Costa seria o núcleo inicial em torno do qual se formou um número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong><br />
parentelas, base da endogamia conquistense. Estas parentelas, ao longo do século XIX, consolidariam um<br />
controle sobre uma estrutura econômica marcadamente voltada para a pecuária, e exerceriam o controle da<br />
superestrutura por meio <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo endogâmico, que teria a sua unida<strong>de</strong> garantida pela presença <strong>de</strong><br />
li<strong>de</strong>ranças carismáticas, oriundas do seio das parentelas.<br />
O tronco familiar formado pela seqüência: Gonçalves da Costa; Oliveira Freitas e Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Oliveira serviu <strong>de</strong> base para a formação <strong>de</strong> uma organização <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r local firmado na articulação <strong>de</strong><br />
famílias que se juntaram a estas. Tal fenômeno é aqui tratado como endogamia conquistense. O po<strong>de</strong>r<br />
endogâmico controlava toda a superestrutura, em seus aspectos políticos, jurídicos e i<strong>de</strong>ológicos<br />
(incluindo aqui a cultura). No âmbito da estrutura, eram estas famílias que controlavam o principal meio<br />
<strong>de</strong> produção, a terra, e as principais ativida<strong>de</strong>s econômicas. Entretanto, tal po<strong>de</strong>r só foi possível, através da<br />
presença <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças carismáticas, como força <strong>de</strong> coesão e articulação, que contavam com<br />
respeitabilida<strong>de</strong> nas diferentes famílias. A maior expressão disto foi José Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira, o Cel.<br />
Gugé. Oriundo do tronco principal da endogamia conquistense contava com relação <strong>de</strong> parentesco com as<br />
<strong>de</strong>mais famílias da cida<strong>de</strong>. Este indubitavelmente foi um dos elementos que contribuíram para a primazia<br />
política exercida pelo Cel. Gugé, primazia esta que estava inserida nos parâmetros do coronelismo, forma<br />
típica assumida pelo mandonismo local na Primeira República.<br />
*<br />
Professor <strong>de</strong> História da UESB e Mestre em Ciências Sociais / PUC – SP. E-mail:<br />
bjsouza@uesb.br
3<br />
Uma reflexão acerca do coronelismo em Conquista.<br />
O coronelismo indubitavelmente foi um dos fenômenos mais marcantes da história política<br />
brasileira, especialmente no período que se convencionou chamar <strong>de</strong> Primeira República ou República Velha,<br />
compreendido entre os anos <strong>de</strong> 1889 e 1930. Existem divergências quanto sua continuida<strong>de</strong> ou não após o<br />
período citado.<br />
Segundo Barbosa Lima Sobrinho 1 : “A Guarda Nacional, criada em 1831, para substituição das<br />
milícias e or<strong>de</strong>nanças do período colonial, estabelecera uma hierarquia, em que a patente <strong>de</strong> coronel<br />
correspondia a um comando municipal ou regional, por sua vez <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do prestígio econômico ou<br />
social <strong>de</strong> seu titular, que raramente <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> figurar entre os proprietários rurais”.<br />
O historiador e filólogo Prof. Basílio <strong>de</strong> Magalhães, a pedido <strong>de</strong> Victor Nunes Leal (1997: 289-290),<br />
apresentou a seguinte origem do vocábulo “coronelismo”: “(...) incontestavelmente a remota origem do seu<br />
sentido translato aos autênticos e falsos ‘coronéis’ da extinta Guarda Nacional. (...) A Guarda Nacional<br />
nasceu a 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1831, tendo tido o Padre Diogo Antônio Feijó por pai espiritual. Determinou a lei<br />
ficasse ela sujeita ao ministro da Justiça (cargo então <strong>de</strong>sempenhado pelo imortal paulista), <strong>de</strong>clarando-se<br />
extintos os corpos <strong>de</strong> milícias e <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nanças (assim como os mais recentes guardas municipais) que<br />
<strong>de</strong>pendiam do ministro da Guerra”.<br />
O coreano Eul-Soo Pang, por sua vez, apresenta a origem da seguinte forma: “A raiz do coronelismo<br />
brasileiro encontra-se no período colonial, entretanto essa forma <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r político atingiu a culminação<br />
entre 1850 e 1950. O termo ‘coronel’ significa literalmente coronel, um posto militar originado nas milícias<br />
coloniais do fim do século XVIII, apesar <strong>de</strong> muitos acharem que o título provém da Guarda Nacional. O<br />
‘coronel’, <strong>de</strong> modo geral era o comandante militar <strong>de</strong> uma brigada da Guarda Nacional ou <strong>de</strong> um regimento<br />
num município. (...) Em suma, o coronelismo é um exercício do po<strong>de</strong>r monopolizante por um coronel cuja<br />
legitimida<strong>de</strong> e aceitação se baseiam em seu status, <strong>de</strong> senhor absoluto, e nele se fortalecem, como elemento<br />
dominante nas instituições sociais, econômicas e políticas, tais como as que prevaleceram durante o período<br />
<strong>de</strong> transição <strong>de</strong> uma nação rural e agrária para uma nação industrial. Os anos-limite <strong>de</strong>ssa fase são 1850-<br />
1950” ( PANG, 1979: 20).<br />
Quanto à questão da origem mais remota do coronelismo, a história <strong>de</strong> Vitória da Conquista<br />
confirma a afirmação do estudioso coreano. A conquista do Sertão <strong>de</strong> Ressaca, como foi relatado acima, se<br />
<strong>de</strong>u por meio da investida <strong>de</strong> uma Capitão, posteriormente, <strong>de</strong>vido aos próprios feitos no território em<br />
questão , elevado a Coronel. João Gonçalves da Costa fazia parte - como foi visto no primeiro tópico do
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presente capítulo – do terço <strong>de</strong> Henrique Dias, uma milícia criada no período colonial, criada por D. João IV,<br />
ainda no século XVII. Entretanto, as patentes utilizadas pelos seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes (Coronel Pompílio Nunes,<br />
Coronel Gugé, <strong>de</strong>ntre outros), já fazia parte da tradição criada a partir da instituição da Guarda Nacional.<br />
Excetua-se neste caso, a patente <strong>de</strong> Capitão usada Antônio Dias <strong>de</strong> Miranda, esta ele herdou <strong>de</strong> João<br />
Gonçalves da Costa, seu pai, quando aquele ascen<strong>de</strong>u à condição <strong>de</strong> Coronel do terço <strong>de</strong> Henrique Dias.<br />
Em termos <strong>de</strong> conceito Nunes Leal, concebeu o coronelismo enquanto: “(...) uma forma peculiar <strong>de</strong><br />
manifestação do po<strong>de</strong>r privado, ou seja, uma adaptação em virtu<strong>de</strong> da qual os resíduos do nosso antigo e<br />
exorbitante po<strong>de</strong>r privado têm conseguido coexistir com um regime político <strong>de</strong> extensa base representativa.<br />
(...) O coronelismo é sobretudo um compromisso, uma troca <strong>de</strong> proveitos entre o po<strong>de</strong>r público,<br />
progressivamente fortalecido, e a <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores<br />
<strong>de</strong> terras. (...) Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes <strong>de</strong> privatismo são alimentados pelo po<strong>de</strong>r<br />
público, e isso se explica justamente em função do regime representativo, com sufrágio amplo, pois o<br />
governo não po<strong>de</strong> prescindir do eleitorado rural, cuja situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência ainda é incontestável. (...)<br />
Desse compromisso fundamental resultam as características secundárias do sistema ‘coronelista’, como<br />
sejam, entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a <strong>de</strong>sorganização dos serviços<br />
públicos locais”. (1997: 40-41)<br />
O autor reconhece que nem todos os chefes políticos municipais são autênticos “coronéis”, pois com<br />
a difusão <strong>de</strong> cursos superiores no Brasil, difundiram-se por toda parte profissionais liberais, <strong>de</strong>stacando-se aí<br />
os bacharéis em direito e os médicos, que com a sua relativa ilustração, somada à <strong>de</strong>dicação e capacitação <strong>de</strong><br />
comando, passam em muitos locais à chefia política. Mas mesmos estes, serão parentes, e/ou aliados dos<br />
coronéis. Neste ponto, Leal ven<strong>de</strong> a idéia do “autêntico coronel” ser apenas o gran<strong>de</strong> proprietário pouco<br />
ilustrado, <strong>de</strong> certa forma <strong>de</strong>scartando a possibilida<strong>de</strong> dos “ilustrados doutores” <strong>de</strong> também serem “autênticos<br />
coronéis”. Com este perfil encontramos na política conquistense do período em questão, nomes como o do<br />
advogado Antônio Agripino Borges e do médico Luís Régis Pacheco Pereira. Abordaremos as atuações dos<br />
mesmos no capítulo seguinte.<br />
O processo <strong>de</strong> ocupação <strong>de</strong>senvolvido no Sertão <strong>de</strong> Ressaca, <strong>de</strong>senvolvido pelo ban<strong>de</strong>irante João<br />
Gonçalves da Costa, seus filhos e comandados, foi marcado por uma conduta <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira ocupação e<br />
privatização da área. O território conquistado, foi tratado como área privada, passada nos testamentos para os<br />
her<strong>de</strong>iros dos conquistadores, alienada, quando conveniente pelos mesmos. Os compradores, famílias<br />
oriundas <strong>de</strong> outras regiões, se integrariam ao longo do século XIX, aos troncos familiares já fixados na região<br />
(ver o primeiro tópico). A posse da terra e o controle das ativida<strong>de</strong>s econômicas na região, ficaram<br />
1 Prefácio à segunda edição do livro Coronelismo, Enxada e Voto, <strong>de</strong> Victor Nunes Leal, reapresentado na 3ª
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efetivamente sob o controle privado das famílias potentadas. A cida<strong>de</strong>, e as questões pertinentes à<br />
administração, também, foram controladas pelas mesmas famílias. Era a consolidação do po<strong>de</strong>r privado,<br />
originado no mandonismo, herdado dos conquistadores da região, ainda no período colonial.<br />
A economia da cida<strong>de</strong> permaneceu voltada para ativida<strong>de</strong>s primárias, tendo maior peso a pecuária,<br />
mas esta, contando com ativida<strong>de</strong>s subsidiárias como a agricultura <strong>de</strong> subsistência. Estas ativida<strong>de</strong>s eram<br />
<strong>de</strong>senvolvidas nos latifúndios controlados pelas famílias, que formavam verda<strong>de</strong>iras parentelas. O relativo<br />
isolamento da região, que perdurou até as primeiras décadas do século XX, reduzia as possibilida<strong>de</strong>s da<br />
ativida<strong>de</strong> comercial. O maior volume do que era <strong>de</strong>senvolvido em termos <strong>de</strong> comércio, era também<br />
controlado por indivíduos oriundos das parentelas. Estas limitações econômicas, aviltavam as condições <strong>de</strong><br />
vida e ampliavam a <strong>de</strong>pendência e a submissão, por parte dos segmentos sociais que estavam à margem das<br />
parentelas.<br />
O po<strong>de</strong>r na Conquista do período em estudo tinha um nítido caráter oligárquico. O po<strong>de</strong>r era<br />
exercido <strong>de</strong> forma endogâmica, pelas parentelas. Ter o controle do Colegiado Municipal da Imperial Vila da<br />
Vitória, ou ser Inten<strong>de</strong>nte, ou Conselheiro Municipal em Conquista (após a implantação do Regime<br />
Republicano), era ter o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> colocar o público a serviço dos interesses privados das parentelas. As<br />
disputas políticas entre facções, já no período republicano, representava interesses e vaida<strong>de</strong>s individuais, na<br />
busca pelo controle da municipalida<strong>de</strong> e das possibilida<strong>de</strong>s oriundas <strong>de</strong> vínculos com os grupos hegemônicos<br />
na política estadual. Em nenhum momento tais disputas representavam diferenças e/ou divergências<br />
i<strong>de</strong>ológicas.<br />
Entre 1840 e 1889, período em que a cida<strong>de</strong> gozou dos direitos da municipalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do<br />
Império, fato do po<strong>de</strong>r municipal ser exercido por um Colegiado <strong>de</strong> cinco membros, gerava a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um equacionamento <strong>de</strong> tensões individuais. Diferentes membros da parentela compunham no Colegiado, o<br />
po<strong>de</strong>r endogâmico legalmente constituído. O isolamento da cida<strong>de</strong>, somando à distância do centralizado<br />
po<strong>de</strong>r imperial, garantiam um certo autonomismo para os mandões locais.<br />
O advento do Regime Republicano com o tempo mudou a forma <strong>de</strong> se encarar o po<strong>de</strong>r na cida<strong>de</strong>. O<br />
cargo <strong>de</strong> Inten<strong>de</strong>nte personalizava o po<strong>de</strong>r da municipalida<strong>de</strong>. Tal fato agora suscitava ambições e excitava<br />
as vaida<strong>de</strong>s pessoais. As disputas no seio das parentelas conquistenses tornam-se comuns, gerando o<br />
faccionismo político. Outro aspecto modificado pelo novo regime é a maior proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma instância<br />
superior <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. O fe<strong>de</strong>ralismo republicano reduziu sensivelmente o autonomismo do qual gozavam, os<br />
mandões locais. Agora fazia necessário negociar com o po<strong>de</strong>r estadual. Doravante, seria imprescindível a<br />
articulação com li<strong>de</strong>ranças e grupos políticos da capital. Para a cida<strong>de</strong>, o po<strong>de</strong>r dos “coronéis” permanecia<br />
edição.
6<br />
intacto, contudo, mais do que nunca, tal po<strong>de</strong>r seria baseado na reciprocida<strong>de</strong> com as instâncias superiores do<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Estado.<br />
No novo contexto republicano, <strong>de</strong>spontaram li<strong>de</strong>ranças no seio das parentelas conquistenses. As<br />
principais li<strong>de</strong>ranças foram os Coronéis Francisco José dos Santos Silva (conhecido como Chico Santos) e<br />
José Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira (conhecido como Cel. Gugé). O primeiro nascido em 1848, era filho dos<br />
fundadores da família Santos, Manoel José dos Santos Silva e Ana Angélica <strong>de</strong> Lima, casal que teve seis dos<br />
seus nove filhos e filhas, se casaram com pessoas da família Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira. O segundo como foi<br />
apontado no primeiro capítulo, era filho <strong>de</strong> Luiz Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira e Tereza <strong>de</strong> Oliveira Freitas (neta do<br />
ban<strong>de</strong>irante João Gonçalves da Costa), nascido em 1844. A família Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira , como já foi dito,<br />
formava o troco inicial e principal, ao qual as outras famílias que formariam a endogamia conquistense se<br />
vincularam. O pai <strong>de</strong> José Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira foi membro já da primeira Câmara instalada na cida<strong>de</strong>,<br />
quando da emancipação em 1840.<br />
Os Coronéis Chico Santos e Gugé, ao final do século XIX e início do século XX, eram a<br />
corporificação da tradição <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r das parentelas conquistenses, por sua origem seus vínculos familiares e<br />
<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>. Representavam uma centralida<strong>de</strong> da endogamia conquistense no tronco Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira /<br />
Santos. O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sses coronéis não emanava apenas da fortuna, mas também do reconhecimento que<br />
gozavam entre seus pares, emanava sem dúvida do carisma que eram dotados para o exercício da li<strong>de</strong>rança,<br />
este último aspecto era muito mais presente no Coronel Gugé.<br />
Ao longo do período republicano até 1918 (ano do seu falecimento), foi a gran<strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança política<br />
em Conquista. Dos inten<strong>de</strong>ntes do período, apenas o Cel. José Antônio <strong>de</strong> Lima Guerra, que governou a<br />
cida<strong>de</strong> no período <strong>de</strong> 1896 a 1903, era <strong>de</strong> oposição à li<strong>de</strong>rança do Cel. Gugé. O primeiro Inten<strong>de</strong>nte, Cel.<br />
Joaquim Correia <strong>de</strong> Melo (1872 – 1895), era seu amigo e articulado politicamente. Estevão José dos Santos<br />
(1904 – 1906), também era ligado ao Cel. Gugé e casado com uma sobrinha sua. Dr. João Diogo <strong>de</strong> Sá<br />
Barreto (1906 – 1907), era seu genro, e com seu apoio tornou-se Deputado Estadual. O Cel. José<br />
Maximiliano Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira (1908 – 1911), era sobrinho do po<strong>de</strong>roso coronel. No período <strong>de</strong> 1912 a<br />
1915 o Cel. Gugé exerceu pessoalmente a Intendência. Foi substituído por Leôncio Satiro dos Santos, que era<br />
seu genro, e governou a cida<strong>de</strong> no período <strong>de</strong> 1916 a 1919.<br />
A li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Gugé suscitava oposições. Destacaram nesta posição: o Cel. Pompílio Nunes <strong>de</strong><br />
Oliveira e o Cel. Manoel Emiliano Moreira <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (Cel. Maneca Moreira). Estes homens eram os<br />
<strong>de</strong>tentores da primeira e da segunda maiores fortunas da cida<strong>de</strong>. O primeiro era primo em terceiro grau do<br />
Cel. Gugé. O Cel. Maneca Moreira, por sua vez, era afilhado <strong>de</strong> Gugé. Tinham a fortuna, talvez faltasse o
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carisma. Os vínculos <strong>de</strong> parentesco que tinham, reforça ainda mais a hipótese da endogamia <strong>de</strong>fendido neste<br />
trabalho.<br />
A relação entre os partidários <strong>de</strong> Gugé e seus opositores se dava nos momentos <strong>de</strong> disputas nos<br />
pleitos, contudo num clima <strong>de</strong> relativa tranqüilida<strong>de</strong>, nos intervalos dos mesmos. Esta situação é justificada<br />
pelo carisma e respeitabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>tidos pelo velho coronel. Mesmo sendo opositor do padrinho, Maneca<br />
Moreira preservava um certo respeito, como mais uma vez aponta Orrico: “Maneca tornara-se adulto,<br />
ouvindo contar estórias a respeito do padrinho e fizera-se seu admirador. Gostava realmente <strong>de</strong>le. De certa<br />
feita, quando o velho atravessava sérias dificulda<strong>de</strong>s financeiras, auxiliou-o espontaneamente, enviando-lhe<br />
polpudos presentes, através da madrinha. Uma elegante maneira <strong>de</strong> o auxiliar naquela emergência, sem lhe<br />
ferir o amor próprio” (1982: 55). A figura do velho Gugé, representou um equilíbrio, que conteve iniciativas<br />
violentas, nas disputas no seio da endogamia conquistense nas duas primeiras décadas da República.<br />
O falecimento <strong>de</strong> José Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira, em 9 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1918, rompeu o equilíbrio da<br />
endogamia conquistense. A rivalida<strong>de</strong> gerada pela disputa do exercício <strong>de</strong> uma nova primazia, levou a uma<br />
radicalização <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s, que culminou com um conflito armado entre duas facções políticas das parentelas<br />
conquistenses: os Peduros e os Meletes<br />
A vitória dos peduros consolidou a hegemonia <strong>de</strong>sse grupo na política conquistense, contudo, não<br />
representou a afirmação <strong>de</strong> uma nova e incontestável li<strong>de</strong>rança na cida<strong>de</strong>. Vários indivíduos ao longo das<br />
duas décadas seguintes buscariam em diferentes momentos a conquista <strong>de</strong> uma condição <strong>de</strong> primazia na<br />
li<strong>de</strong>rança política em Conquista.<br />
A li<strong>de</strong>rança dos peduros, na vitória sobre os meletes em janeiro <strong>de</strong> 1919, cre<strong>de</strong>nciou Ascendino<br />
Melo (Dino Correia) como li<strong>de</strong>rança em Conquista. No dia 12 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1919, o governador Antônio<br />
Ferrão Muniz <strong>de</strong> Aragão, nomeou o Major 2 Ascendino Melo dos Santos como Inten<strong>de</strong>nte, seria uma<br />
complementação do mandato do Leôncio Satyro dos Santos (VIANA, 1982: 220). O mandato terminaria em<br />
31 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro do mesmo ano. No dia 1º <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1920, o Dr. Jesulindo <strong>de</strong> Oliveira assumiu a<br />
Intendência, por ser na época o Presi<strong>de</strong>nte do Conselho Municipal.<br />
Em meados <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1919, Ascendino dos Santos Melo foi novamente nomeado Inten<strong>de</strong>nte pelo<br />
governador, para exercer o mandato no biênio 1920-1922. No dia 22 <strong>de</strong> agosto, ocorreu uma eleição que<br />
confirmou Dino Correia no cargo, não existiu outro candidato. O Major governaria a cida<strong>de</strong> até <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />
1921, foi sucedido pelo Cel. Paulino Fonseca, que fora eleito inten<strong>de</strong>nte no dia 13 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1921,<br />
tomando posse em 1º <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1922 (VIANA, 1982: 220).<br />
2 Posto que ocupava na Guarda Nacional.
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Terminado o mandato, Ascendino dos Santos Melo retornou para a sua ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pecuarista na<br />
região <strong>de</strong> Macarani. 3<br />
O Cel. Paulino Fonseca 4 , sucessor <strong>de</strong> Ascendino Melo na Intendência, era comerciante local,<br />
correspon<strong>de</strong>nte do Banco do Brasil e representante <strong>de</strong> firmas comerciais <strong>de</strong> Salvador e Rio <strong>de</strong> Janeiro, antes<br />
era também fazen<strong>de</strong>iro. Segundo Aníbal Lopes Viana: “Não era homem político no sentido mais amplo da<br />
palavra, porém, para satisfazer aos amigos políticos, exerceu o cargo <strong>de</strong> Conselheiro Municipal e o <strong>de</strong><br />
Inten<strong>de</strong>nte eleito em novembro <strong>de</strong> 1921 como candidato único do povo conquistense, tendo porém,<br />
renunciado o cargo no segundo ano <strong>de</strong> administração por ‘questão <strong>de</strong> coerência com seus princípios e<br />
consigo mesmo por não se submeter às exigências dos companheiros políticos’.” (1982:270)<br />
Em sendo verídico o perfil traçado por Viana acerca do Cel. Paulino Fonseca, a indicação <strong>de</strong> alguém<br />
que não se envolvia diretamente com as questões políticas, aponta para o fato <strong>de</strong> não existir ninguém que<br />
ocupasse a primazia da li<strong>de</strong>rança política na cida<strong>de</strong>. Paulino Fonseca seria um candidato <strong>de</strong> consenso, e sua<br />
indicação prorrogaria disputas mais acirradas entre os preten<strong>de</strong>ntes à condição <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r político da endogamia<br />
conquistense.<br />
Com a renúncia do Cel. Paulino Fonseca, o Dr. Antônio Agripino da Silva Borges, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Presi<strong>de</strong>nte do Conselho Municipal, completou o biênio administrativo municipal 1922 / 1923.<br />
Nas eleições <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1922, o Dr. Agripino Borges seria sufragado para uma ca<strong>de</strong>ira no<br />
Legislativo Estadual, sendo reeleito em 1924 para uma Segunda legislatura. Em Conquista o Dr. Borges<br />
havia <strong>de</strong>spontado como uma das li<strong>de</strong>ranças após a morte do Cel. Gugé (agosto <strong>de</strong> 1918): ocupou a posição <strong>de</strong><br />
Presi<strong>de</strong>nte do Diretório local do Partido Republicano Democrata da Bahia, quando se <strong>de</strong>u a recomposição<br />
daquela instância em outubro <strong>de</strong> 1918, após a saída do grupo oposicionista li<strong>de</strong>rado por Maneca Moreira; foi<br />
nomeado Delegado <strong>de</strong> Polícia pelo governador Antônio Muniz, em substituição ao Tenente Júlio Costa<br />
(1919) e como foi escrito acima, tornou-se Conselheiro Municipal, Inten<strong>de</strong>nte e Deputado Estadual. Reuniu<br />
em poucos anos dados curriculares dignos <strong>de</strong> uma li<strong>de</strong>rança, o que aparentemente po<strong>de</strong> dar-lhe um perfil <strong>de</strong><br />
novo chefe político local. Contudo, o Dr. Borges não se enquadraria nas mudanças políticas ocorridas no<br />
Estado a partir <strong>de</strong> 1924 (mudanças que abordaremos adiante), permaneceria seabrista, porém, na nova<br />
conjuntura J. J. Seabra per<strong>de</strong>ria espaços. Na política local, novas li<strong>de</strong>ranças <strong>de</strong>spontariam e com maior<br />
3 Mesmo afastado da política na se<strong>de</strong> do município, o Major Ascendino dos Santos Melo ainda teve participação<br />
marcante em dois importantes episódios: na emancipação política do arraial do Verruga - que foi elevado a município<br />
em agosto <strong>de</strong> 1927 – e no combate ao grupo <strong>de</strong> jagunços li<strong>de</strong>rados por Olímpio <strong>de</strong> Carvalho (1925). Por não serem<br />
questões <strong>de</strong>cisivas na construção <strong>de</strong> uma nova li<strong>de</strong>rança hegemônica em Conquista, tais episódios não serão aqui<br />
abordados. Ascendino Melo faleceu no dia 1º <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1928.<br />
4 Paulino Fonseca foi mais legítimo representante da endogamia conquistense. Nascido em julho <strong>de</strong> 1880, era neto do<br />
Alferes <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças João José <strong>de</strong> <strong>Souza</strong> Fonseca, que em 1815 era administrador dos bens da Igreja e homem <strong>de</strong><br />
confiança do Capitão Antônio Dias Miranda, filho do Cel. João Gonçalves da Costa, o fundador da cida<strong>de</strong>.
9<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> articulação na nova conjuntura baiana (processo que abordaremos mais adiante). A<br />
combinação <strong>de</strong>sses novos elementos conjunturais minaram a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Agripino Borges (DANTAS,<br />
FONSECA e MEDEIROS, 1995: 19). Ao término da segunda legislatura Dr. Borges se afastaria da política<br />
conquistense, passando a residir a partir <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1927 na vizinha cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Poções. 5<br />
Régis Pacheco e o advento do bacharelismo na política conquistense.<br />
Em 1919, meses após a disputa armada entre peduros e meletes, Conquista foi atingida por uma<br />
epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> varíola. Aten<strong>de</strong>ndo às solicitações do Inten<strong>de</strong>nte Ascendino dos Santos Melo, o governador<br />
Antônio Ferrão Muniz <strong>de</strong> Aragão, nomeou um jovem médico para combater o surto da enfermida<strong>de</strong>, tratavase<br />
do Dr. Luiz Régis Pacheco Pereira, que chegou à cida<strong>de</strong> em abril <strong>de</strong> 1922. Fixou-se inicialmente na casa<br />
do Inten<strong>de</strong>nte, on<strong>de</strong> fez amiza<strong>de</strong> com Otávio Santos 6 . (DANTAS, FONSECA e MEDEIROS, 1995:14)<br />
“Terminada a epi<strong>de</strong>mia, Conquista inteira protestava eviternos agra<strong>de</strong>cimentos ao seu benfeitor,<br />
pedindo-lhe, reiteradamente, que aqui se <strong>de</strong>morasse, que para sua residência escolhesse esta terra. (...) Fezse<br />
logo, o Dr. Régis Pacheco o mais procurado clínico em Conquista.” (DANTAS, FONSECA e<br />
MEDEIROS, 1995:17)<br />
Em 1º <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1922, Régis Pacheco casou-se com Enerina Fernan<strong>de</strong>s Pacheco Pereira, filha do<br />
Cel. João Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira Santos e dona Sibéria Fernan<strong>de</strong>s Ribeiro (DANTAS, FONSECA e<br />
MEDEIROS, 1995: 18). Com o casamento, o Dr. Régis passou a integrar ao a décadas tronco dominante da<br />
endogamia conquistense, os Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira / Santos.<br />
Contando com uma formação superior (coisa rara na região naqueles dias) e com a simpatia popular,<br />
reunida por meio da prática médica, valorizada pela <strong>de</strong>belação da epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> varíola e integrado à<br />
endogamia por meio do casamento, o Dr. Régis Pacheco, passou a dispor <strong>de</strong> elementos fundamentais para<br />
<strong>de</strong>spontar como uma li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> peso em Conquista, o que ficou <strong>de</strong>monstrado com a <strong>de</strong>manda sobre o seu<br />
nome por parte <strong>de</strong> políticos locais, como aponta o professor Eucli<strong>de</strong>s Dantas: “Os Srs. Paulino Fernan<strong>de</strong>s<br />
Oliveira Gugé, Zeferino Correia <strong>de</strong> Melo e outros cavalheiros <strong>de</strong> elevado <strong>de</strong>staque não cessavam <strong>de</strong> insistir,<br />
convocando várias reuniões, em que se procurava convencer ao ilustre médico a conveniência <strong>de</strong> aceitar o<br />
convite.” (1995: 20)<br />
5 Faleceria na Casa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> São Geraldo (Vitória da Conquista) no dia 25 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1969.<br />
6 Otávio Santos era filho <strong>de</strong> José Satiro dos Santos, portanto, irmão <strong>de</strong> Leôncio Satyro dos Santos (ex-inten<strong>de</strong>nte e<br />
genro do falecido Cel. Gugé). Era um jovem <strong>de</strong> 30 anos, que havia sido eleito conselheiro municipal em 23 <strong>de</strong><br />
novembro <strong>de</strong> 1919.
10<br />
A partir <strong>de</strong> 1923, o jovem médico passou a atuar <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>stacada na política conquistense, sendo<br />
candidato a Inten<strong>de</strong>nte pela Concentração Republicana <strong>de</strong> Conquista, articulação oposicionista local, criada<br />
em contraposição ao situacionismo seabrista, que era representado na região pelo então Deputado Estadual<br />
Antônio Agripino Borges. Tal a<strong>de</strong>são é apresentada <strong>de</strong> forma peculiarmente laureante pelo biógrafo Eucli<strong>de</strong>s<br />
Dantas: “Assim é que o Dr. Régis Pacheco, vencido pela vonta<strong>de</strong> dos seus amigos e levado pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
concorrer para a restauração <strong>de</strong> costumes com favor <strong>de</strong> melhores dias <strong>de</strong> paz, <strong>de</strong> tolerância, <strong>de</strong> respeito<br />
mútuo, o Dr. Régis Pacheco aceita a incumbência, com algumas restrições. (...) Não quisera jamais, assumir<br />
a chefia. (...) Aclamado Presi<strong>de</strong>nte da Concentração Republicana <strong>de</strong> Conquista, o Cel. Zeferino Correia <strong>de</strong><br />
Melo, ao Dr. Régis Pacheco foi concedido o posto imediato, dando-se-lhe toda a consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>vida e<br />
ouvindo-lhe com acatamento igual ao se presta a um chefe.” (1995:20)<br />
Na eleição <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1923 em Conquista, saiu vitorioso o candidato situacionista articulado<br />
com o Deputado Estadual Agripino Borges, o Cel. Justino da Silva Gusmão 7 (DANTAS, FONSECA e<br />
MEDEIROS, 1995: 22 – 25).<br />
Após doze anos <strong>de</strong> hegemonia no Estado, o seabrismo dava mostras <strong>de</strong> exaustão, o que ficava<br />
<strong>de</strong>monstrado com as divergências entre J. J. Seabra e Artur Bernar<strong>de</strong>s (o então presi<strong>de</strong>nte da República ) e o<br />
reconhecimento do fortalecimento da oposição na Bahia por parte do próprio Seabra, quando inicialmente<br />
aceitou apoiar um nome fora do seu grupo político como candidato a governador, o Dr. Francisco Marques<br />
<strong>de</strong> Góes Calmon. A situacionismo conquistense, fiel ao seabrismo, também apoiou à candidatura <strong>de</strong> Góes<br />
Calmon. “Como é sabido, em véspera das eleições governamentais o Dr. José Joaquim Seabra, num gesto<br />
memorável, rompeu com a candidatura Góes Calmon. (...) Em face ao rompimento Seabra – Calmon, a<br />
oposição local <strong>de</strong> Conquista <strong>de</strong>liberou também apoiar o candidato Francisco Marques <strong>de</strong> Góes Calmon”.<br />
(DANTAS, FONSECA e MEDEIROS, 1995: 26).<br />
A eleição <strong>de</strong> Góes Calmon em 1924 marcou o final da hegemonia seabrista no Estado e abriu<br />
caminho para uma maior centralização política nos anos finais da Primeira República, especialmente com a<br />
fundação do segundo Partido Republicano da Bahia, processo que é apresentado com objetivida<strong>de</strong> pela<br />
professora Consuelo Novais Sampaio: “Nos últimos anos da República Velha, o unipartidarismo foi<br />
restaurado. O executivo atraiu à sua sorte os diversos po<strong>de</strong>res locais que atuavam isolada e<br />
inconsistentemente. Acelerou a marcha para a centralização do po<strong>de</strong>r. O segundo P. R. B., fundado em<br />
1927, foi o instrumento utilizado. A política do clientelismo foi formalizada e surgiu, então, mais burilada,<br />
7 Nascido no dia 23 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1879. Foi aliado do Cel. Gugé e foi eleito Conselheiro Municipal em 9 <strong>de</strong><br />
novembro <strong>de</strong> 1919. Eleito em 1923, governou a cida<strong>de</strong> pelo biênio 1924 – 1925. Contava apenas com a instrução<br />
primária. Em 1927 conciliou-se com Dr. Régis Pacheco, apoiando a candidatura <strong>de</strong> Otávio Santos a inten<strong>de</strong>nte. Foi<br />
preso por cinco dias em 1932 juntamente com Régis Pacheco, foram acusados <strong>de</strong> apoiarem a Revolução Paulista que
11<br />
pela participação crescente <strong>de</strong> jovens bacharéis nos postos legislativos e administrativos do Estado. O<br />
governador Góes Calmon (1924 – 1928), financista e advogado, imprimiu uma mentalida<strong>de</strong> empresarial não<br />
só no setor econômico, mas também no setor político da socieda<strong>de</strong>.” (1975: 26).<br />
Diferentemente dos seus irmão Antônio e Miguel, que foram políticos presentes ao longo da<br />
Primeira República, Francisco Marques <strong>de</strong> Góes Calmon primeiro atuou como jurista e financista,<br />
preservando um certo distanciamento da política, só como homem <strong>de</strong> meia ida<strong>de</strong>, foi que se inseriu numa<br />
disputa eleitoral, sendo o mandato <strong>de</strong> governador no quadriênio 1924 – 1928, o primeiro por ele exercido.<br />
As articulações políticas em Conquista na década <strong>de</strong> 1920 estavam inseridas na conjuntura política<br />
baiana. O surgimento <strong>de</strong> um grupo oposicionista em 1923 foi um indício do enfraquecimento da hegemonia<br />
seabrista na política estadual. A disputa entre Régis Pacheco da Concentração Republicana <strong>de</strong> Conquista e<br />
Justino Gusmão do Partido Republicano Democrático da Bahia foi versão local do quadro político estadual<br />
apresentado pela professora Consuelo Sampaio: “Verificou-se, a seguir, o retorno ao bipartidarismo com<br />
dissidência, fruto da candidatura <strong>de</strong> Francisco Marques <strong>de</strong> Góes Calmon ao governo do Estado. Duas<br />
organizações partidárias se conflitavam: o P. R. D., que congregando os seabristas, surgia agora dividido<br />
em duas facções – os seguidores <strong>de</strong> Antônio Moniz e os do Coronel Fre<strong>de</strong>rico Costa; e a Confe<strong>de</strong>ração<br />
Republicana da Bahia (C. R. B.), que, arregimentando as forças oposicionistas, manifestava duas tendências<br />
– a calmonista (Miguel Calmon) e a mangabeirista (Octávio Mangabeira). A instalação do governo <strong>de</strong> Góes<br />
Calmon, passou o executivo a li<strong>de</strong>rar a corrente calmonista.” (1975: 25) Ao final do biênio do Inten<strong>de</strong>nte<br />
Justino da Silva Gusmão (1925 –1925), foi articulado um novo acordo geral no seio da endogamia<br />
conquistense, sendo lançado como candidato único para administrar a comuna sertaneja no período 1926 a<br />
1927 o Sr. Paulino dos Santos Silva. A nova unificação da endogamia conquistense “coinci<strong>de</strong>” com a<br />
articulação e a consolidação do unipartidarismo do Partido Republicano da Bahia controlado pelo então<br />
governador Góes Calmon. Foi mantido o velho pragmatismo oportunista do coronelismo <strong>de</strong> ficar sempre com<br />
o governo, vínculo preservado pelos lí<strong>de</strong>res da endogamia até o final da Primeira República, Pedro Lago o<br />
candidato oficial (e único) ao governo do Estado, visitou Conquista em campanha no ano <strong>de</strong> 1930, quando<br />
foi recebido pelos lí<strong>de</strong>res locais – em <strong>de</strong>staque Dr. Régis Pacheco – e por cerca <strong>de</strong> cinco mil populares.<br />
Victor Nunes Leal aborda tal pragmatismo político com maestria, se faz necessária uma relativamente longa<br />
citação <strong>de</strong> um trecho <strong>de</strong> sua obra-prima: “A rarefação do po<strong>de</strong>r público em nosso país contribui muito para<br />
preservar a ascendência dos ‘coronéis’, já que, por esse motivo, então em condições <strong>de</strong> exercer, extraoficialmente,<br />
gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> funções do Estado em relação aos seus <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. (...) Ainda assim, como<br />
a organização agrária do Brasil mantém a <strong>de</strong>pendência do elemento rural ao fazen<strong>de</strong>iro, impedindo o<br />
havia eclodido a 9 <strong>de</strong> julho. Foi eleito vereador pelo Partido Autonomista, cujo o chefe local era Régis Pacheco.
12<br />
contato direto dos partidos com essa parcela notoriamente majoritária do nosso eleitorado, o partido do<br />
governo estadual não po<strong>de</strong> dispensar o intermédio do dono <strong>de</strong> terras. (...)Sabe, por isso, o ‘coronel’ que a<br />
sua in<strong>de</strong>pendência só lhe traria <strong>de</strong>svantagens: quando, ao contrário, são boas as relações entre o seu po<strong>de</strong>r<br />
privado e o po<strong>de</strong>r instituído, po<strong>de</strong> o ‘coronel’ <strong>de</strong>sempenhar, indisputadamente, uma larga parcela <strong>de</strong><br />
autorida<strong>de</strong> pública. E assim nos parece este aspecto importantíssimo do ‘coronelismo’, que é o sistema <strong>de</strong><br />
reciprocida<strong>de</strong>: <strong>de</strong> um lado, os chefes municipais e os ‘coronéis’, que conduzem magotes <strong>de</strong> eleitores como<br />
quem toca tropa <strong>de</strong> burros; <strong>de</strong> outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário,<br />
dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o po<strong>de</strong>r da<br />
<strong>de</strong>sgraça. (...) É claro portanto, que os dois aspectos - o prestígio próprio dos ‘coronéis’ e o prestígio <strong>de</strong><br />
empréstimo que o po<strong>de</strong>r público lhes outorga - mutuamente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e funcionam ao mesmo tempo como<br />
<strong>de</strong>terminantes e <strong>de</strong>terminados. (...) em todos esses graus da escala política impera, como não podia <strong>de</strong>ixar<br />
<strong>de</strong> ser, o sistema <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong>, e todo o edifício vai assentar na base, que é o ‘coronel’, fortalecido pelo<br />
entendimento que existe entre ele e a situação política dominante em seu Estado, através dos chefes<br />
intermediários.(...)Com chefe local - quando amigo - é que se esten<strong>de</strong> o governo do Estado em tudo quando<br />
respeite aos interesses do município. Os próprios funcionários estaduais, que servem no lugar, são<br />
escolhidos por sua indicação. Professoras primárias, coletor, funcionário da coletoria, serventuários da<br />
justiça, promotor público, inspetores do ensino primário, servidores da saú<strong>de</strong> pública etc.(...)A influência do<br />
chefe local nas nomeações atinge os próprios cargos fe<strong>de</strong>rais, como coletor, agente do correio, inspetor <strong>de</strong><br />
ensino secundário e comercial etc. e os cargos das autarquias ( cujos quadros <strong>de</strong> pessoal têm sido muito<br />
ampliados), porque também é praxe do governo da União, em sua política <strong>de</strong> compromisso com a situação<br />
estadual, aceitar indicações e pedidos dos chefes políticos nos Estados. (...)A lista <strong>de</strong> favores não se esgota<br />
os <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pessoal. É sabido que os serviços públicos do interior são <strong>de</strong>ficientíssimos, porque as<br />
municipalida<strong>de</strong>s não dispõem <strong>de</strong> recursos para muitas <strong>de</strong> suas necessida<strong>de</strong>s.(...)O critério mais lógico,<br />
sobretudo por suas conseqüências eleitorais, é dar preferência aos municípios cujos governos estejam nas<br />
mãos dos amigos.(...)O apoio oficial revela-se ainda precioso no capítulo das <strong>de</strong>spesas eleitorais, que os<br />
chefes locais não po<strong>de</strong>m custear sozinhos, embora muitos se sacrifiquem no cumprimento <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>ver.(...)<br />
assumem relevo especial as figuras do <strong>de</strong>legado e do sub<strong>de</strong>legado <strong>de</strong> polícia. A nomeação <strong>de</strong>ssas<br />
autorida<strong>de</strong>s é <strong>de</strong> sumo interesse para a situação dominante no município e constitui uma das mais valiosas<br />
prestações do Estado no acordo político com os chefes locais.(...)a regra é o recurso simultâneo ao favor e<br />
ao porrete. recorre-se à violência, quando outros processos são mais morosos, ou ineficazes, para o fim<br />
visado.(...)a situação <strong>de</strong> oposicionista, no âmbito municipal. É tão <strong>de</strong>sconfortável que a regra é ficar na<br />
Faleceu no dia 5 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1936. (VIANA, 1982: 243-245).
13<br />
oposição somente quem não pô<strong>de</strong> ficar no governo.(...) as correntes políticas municipais se digladiam com<br />
ódio mortal, mas comumente cada uma <strong>de</strong>las o que preten<strong>de</strong> é obter as preferências do governo no território<br />
do município, a fim <strong>de</strong> fortalecer a posição <strong>de</strong> um partido estadual ou nacional não-governista: batem-se<br />
para disputar, entre si, o privilégio <strong>de</strong> apoiar o governo e nele se amparar.(...)da parte dos chefes locais,<br />
incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e fe<strong>de</strong>rais; da parte da situação<br />
estadual, carta-branca ao chefe local governista (<strong>de</strong> preferência o lí<strong>de</strong>r da facção local majoritária) em<br />
todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação <strong>de</strong> funcionários estaduais do lugar.” (<br />
1997: 63 – 70)<br />
Uma nova configuração conjuntural se afirmou na Bahia a partir <strong>de</strong> 1923, marcada pelos seguintes<br />
elementos: final da dominância do Partido Republicano Democrático da Bahia, o partido li<strong>de</strong>rado pelo Dr.<br />
José Joaquim Seabra; uma transição para o monopartidarismo, marcada pelo bipartidarismo com dissidência<br />
do P. R. D. B. e da Concentração Republicana da Bahia; consolidação do monopartidarismo do Partido<br />
Republicano da Bahia, controlado pelo calmonismo e maior espaço para os jovens doutores e bacharéis na<br />
política. Em Conquista os dois chefes políticos que haviam emergido da vitória dos peduros nas acirradas<br />
disputas <strong>de</strong> 1918 e 1919, não se integraram no novo contexto. Ascendino dos Santos Melo (Dino Correia),<br />
como já foi escrito, havia se retirado do centro da política do município ao final do seu mandato em 31 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1922, passando a se envolver fundamentalmente com questões pertinentes ao arraial Verruga<br />
(futura Itambé) e à ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pecuarista. Agripino Borges não se adaptou às mudanças da política<br />
estadual, permanecendo seabrista, caiu no isolamento na medida em que a endogamia conquistense se<br />
articulava com a nova hegemonia, a calmonista. Borges retirava-se da política conquistense ao final da sua<br />
segunda legislatura em 1927.<br />
O lí<strong>de</strong>r que se afirmou em Conquista na nova configuração conjuntural foi o Dr. Luiz Régis Pacheco<br />
Pereira. Como pouquíssimos na Conquista dos anos 20 contava com uma formação superior. A simpatia<br />
popular, reunida por meio da prática médica, valorizada pela <strong>de</strong>belação da epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> varíola, foi ampliada<br />
com o passar dos anos e consolidada com o êxito do combate ao surto <strong>de</strong> peste bubônica que se abateu sobre<br />
a cida<strong>de</strong> no final dos anos vinte. Além disso, integrado à endogamia por meio do casamento, o Dr. Régis<br />
Pacheco, passou a ser o principal articulador e vínculo da cida<strong>de</strong> com o calmonismo hegemônico no Estado,<br />
sendo citado com <strong>de</strong>staque entre os doutores que compunham o Conselho Geral do Partido Republicano da<br />
Bahia (SAMPAIO, 1975: 157), <strong>de</strong>staque que até então nunca fora dado a nenhum político conquistense, nem<br />
mesmo ao velho Coronel Gugé.<br />
Apesar <strong>de</strong> só exercer o seu primeiro mandato legislativo em 1946, o Dr. Régis Pacheco se<br />
enquadrava perfeitamente no perfil do político emergente no período calmonista, apresentado pela professora
14<br />
Consuelo Sampaio: “Em termos amplos, po<strong>de</strong>r-se-ia concluir que o recuo do coronelismo resultou, em<br />
contrapartida, no avanço do bacharelismo. Não que constituíssem forças antagônicas; bem ao contrário,<br />
uma completava e consolidava a outra. Os jovens doutores e bacharéis eram elementos <strong>de</strong> uma nova<br />
geração, mais vibrantes, <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> forte po<strong>de</strong>r persuasivo, graças ao melhor domínio da palavra. Eram<br />
os porta-vozes, os elementos intermediários entre as elites políticas locais e o executivo, na conquista <strong>de</strong><br />
empregos e favores <strong>de</strong> cunho pessoal, bem como na <strong>de</strong>fesa dos municípios que representavam no legislativo.<br />
De formação tipicamente urbana, ainda que vinculados à velha or<strong>de</strong>m, por relações <strong>de</strong> parentesco e<br />
amiza<strong>de</strong>, não contavam os jovens doutores com uma força eleitoral própria. Dos chefes políticos locais<br />
<strong>de</strong>pendiam os votos que os reconduziam ou não ao Legislativo.” (1975: 163 –164)<br />
A projeção política dos doutores e bacharéis, também foi objeto <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> Victor Nunes Leal,<br />
que consi<strong>de</strong>rou tal fenômeno, como algo total e perfeitamente integrado ao contexto do coronelismo: “Os<br />
chefes políticos municipais nem sempre são autênticos ‘coronéis’. A maior difusão do ensino superior no<br />
Brasil espalhou por toda parte médicos e advogados, cuja ilustração relativa, se reunida a qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
comando e <strong>de</strong>dicação, os habilita à chefia. Mas esses mesmos doutores, ou são parentes, ou afins, ou aliados<br />
políticos dos ‘coronéis’(...)” (1995:41)<br />
A primazia da li<strong>de</strong>rança do Dr. Régis Pacheco, produto dos elementos acima elencados, foi sendo<br />
<strong>de</strong>monstrada gradativamente pela ocupação <strong>de</strong> espaços na socieda<strong>de</strong> conquistense: fora o candidato da<br />
Concentração Republicana <strong>de</strong> Conquista em novembro <strong>de</strong> 1923; foi eleito Conselheiro Municipal em 1925 e<br />
como Presi<strong>de</strong>nte do Conselho, completou o mandato <strong>de</strong> Paulino Santos que havia renunciado em 1927; em<br />
1926 foi eleito Vice-Presei<strong>de</strong>nte da primeira Associação Comercial <strong>de</strong> Conquista (havia comprado a<br />
Farmácia Oliveira); entre 1927 e 1928 exerceu a condição <strong>de</strong> Provedor da Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia; no<br />
ano <strong>de</strong> 1930, ocupava mais uma vez a condição a condição <strong>de</strong> Presi<strong>de</strong>nte do Conselho Municipal, Vice-<br />
Presi<strong>de</strong>nte do Diretório Partido Republicano da Bahia, sócio-fundador da Associação dos Fazen<strong>de</strong>iros e<br />
Agricultores do Sertão e do Sudoeste Baiano (maio) e Presi<strong>de</strong>nte da Diretoria do primeiro Tiro <strong>de</strong> Guerra<br />
(julho). Régis Pacheco se tornou ao longo da década <strong>de</strong> vinte, a gran<strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança política em Conquista,<br />
tendo com seu grupo o controle da municipalida<strong>de</strong> e o centro político da endogamia conquista, passando a<br />
ser uma referência semelhante a que fora o Coronel José Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira Gugé, entretanto, com uma<br />
projeção estadual que o velho coronel não conhecera.<br />
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
15<br />
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1977 a <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1978.<br />
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Jornal <strong>de</strong> Conquista”, 1982, 783p.
16<br />
REZAS E PROCEDIMENTOS CURATIVOS – ASPECTOS DA BENZEDURA EM<br />
VITÓRIA DA CONQUISTA<br />
AUTORA: Grayce Mayre Bonfim <strong>Souza</strong><br />
A benzeção é um importante elemento que faz parte da cultura popular do nosso país. Fazer uso <strong>de</strong> orações e simpatias<br />
para curar algumas doenças e ou aflições é um tipo <strong>de</strong> conhecimento ainda bastante presente e difundida por todo o Brasil, em<br />
especial nas cida<strong>de</strong>s do interior e na zona rural. Esse ofício é normalmente exercido por mulheres 8 humil<strong>de</strong>s que possuem um<br />
gran<strong>de</strong> conhecimento das proprieda<strong>de</strong>s terapêuticas das plantas medicinais, resultado das observações e classificações <strong>de</strong> raízes e<br />
ervas benéficas à saú<strong>de</strong> do homem.<br />
A benze<strong>de</strong>ira conhece rezas, remédios e simpatias. Por meios <strong>de</strong>sses mecanismos trabalha no sentido <strong>de</strong> promover a cura<br />
em pessoas que sofrem <strong>de</strong> alguma doença como erisipela, espinhela caída 9 , dor <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte, dor <strong>de</strong> cabeça, mau-olhado 10 e outros<br />
tipos <strong>de</strong> males. Ela é consi<strong>de</strong>rada, e também se consi<strong>de</strong>ra, portadora <strong>de</strong> um dom investido por Deus. Essas qualida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ntre<br />
outras, são responsáveis pela legitimação e “eficácia” (mesmo que simbólica) <strong>de</strong>ssa agente da medicina popular e, também, fazem<br />
com que tenha uma credibilida<strong>de</strong> cada vez maior perante a comunida<strong>de</strong> em que vivem.<br />
8<br />
Segundo constatações, a maior parte das pessoas que exercem tal ativida<strong>de</strong> é na sua<br />
gran<strong>de</strong> maioria mulheres, porém ainda é possível encontrar homens que benzem.<br />
9 A espinhela é o nome vulgar do apêndice xifói<strong>de</strong>, uma cartilagem localizada na porção terminal do osso esterno. Ocorrendo<br />
anormalida<strong>de</strong>s na calcificação <strong>de</strong>ssa cartilagem, estas estimulariam seu encurvamento sobre o epigástrio, e daí provocando as<br />
alterações relatadas pelos doentes. O mal é i<strong>de</strong>ntificado vulgarmente como espinhela caída.<br />
10<br />
O quebranto e mau-olhado são males para os quais, segundo explicações produzidas<br />
pelas benze<strong>de</strong>iras, não existem remédios, apenas a reza po<strong>de</strong> curar. Os remédios que<br />
po<strong>de</strong>m ser utilizados são apenas mecanismos (por assim dizer, acessórios) para eliminar<br />
os efeitos da força que vem dos olhos: mal estar, moleza no corpo, falta <strong>de</strong> apetite,<br />
vômito, diarréia e outros.
17<br />
A prática realizada por essas terapeutas populares não é um privilegio do mundo contemporâneo e<br />
nem um fenômeno exclusivamente brasileiro, muito pelo contrário. Essa experiência vem sendo realizada<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o aparecimento dos primeiros homens, surge junto com os mitos e as magias.<br />
Para muitas pessoas, que tem uma visão fragmentada do fenômeno, a benzedura é consi<strong>de</strong>rada apenas como algo rústico,<br />
pitoresco e exótico. Entretanto para outros, ela se traduz em uma questão vital, enraizada nas suas práticas e com uma presença<br />
cada vez mais forte na fé. Além disso, o ato <strong>de</strong> benzer significa, para estes últimos, prevenir contra “maleficium”, pois as<br />
benze<strong>de</strong>iras possuem o dom <strong>de</strong> evitar e <strong>de</strong> curar mau-olhado e quebranto e para cada tipo <strong>de</strong> mal, elas possuem jaculatórias<br />
(orações curtas e suplicantes) e/ou ensalmos que, segundo Laplantine e Rabeyron são:<br />
“Historietas rimadas – às quais se associa o nome do cliente –,<br />
ingênuas e solenes ao mesmo tempo, construídas com palavras sonoras,<br />
esdrúxulas, organizadas conforme uma versificação sincopada, ofegante,<br />
que relatam sempre o combate entre a doença e a cura e a vitória inevitável<br />
<strong>de</strong>sta sobre aquela” (1989:52).<br />
Para que possamos ter uma melhor visão acerca do ofício das benze<strong>de</strong>iras, faz-se necessário compreen<strong>de</strong>r o marco inicial<br />
<strong>de</strong>sse processo, bem como os mecanismos <strong>de</strong> aprendizagem/iniciação utilizados. O processo <strong>de</strong> ensinar e apren<strong>de</strong>r na benzedura<br />
não ocorre <strong>de</strong> forma aleatória, pelo contrário, existem regras a serem obe<strong>de</strong>cidas, cumpridas, tanto pelo mestre como pelo aprendiz.<br />
No caso das benze<strong>de</strong>iras da corrente católica – que é o centro <strong>de</strong> nossa pesquisa –, constatamos que as principais regras,<br />
ou melhor, as exigências, para iniciar-se no ofício são: acreditar no que está se propondo a fazer, ou seja, na benzeção; o aprendiz<br />
<strong>de</strong>ve ter uma boa memória; reproduzir na íntegra as diversas orações para diferentes males, pois só assim po<strong>de</strong> ser evitada, na<br />
medida do possível, a mudança no sentido das palavras; socorrer a quem necessitar, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> quem quer que seja; e a<br />
gratuida<strong>de</strong> do serviço, pois o dom é dado por Deus, como elas próprias dizem, e, portanto, esse serviço não <strong>de</strong>ve ser cobrado.<br />
A gratuida<strong>de</strong> da benzedura foi, nas entrevistas realizadas, um aspecto levantado por todas as<br />
benze<strong>de</strong>iras frente à pergunta acerca do preço que cobravam pela benzedura. A justificativa para o serviço<br />
gratuito foi quase sempre a seguinte: o dom foi dado por Deus e não lhes pertence, elas são apenas<br />
intermediárias para fazer o bem a quem necessitar. Contudo isso não impe<strong>de</strong> que recebam algumas<br />
gratificações 11 , um agrado – às vezes ganham mantimento ou pequenos animais – como retribuição pelo<br />
serviço prestado.<br />
Elda Rizzo <strong>de</strong> Oliveira, em um artigo apresentado no congresso da ANPOCS <strong>de</strong><br />
1995, inicia o texto fazendo uma abordagem acerca do “chamamento para o dom”, ou seja, o<br />
11 Segundo nos foi relata, quando a gratificação vem em forma <strong>de</strong> dinheiro elas a utiliza para comprar vela para os santos: “eu<br />
nunca cobrei, agora quem me dá eu recebo, e eu compro vela e cendo pra minha santa. As vezes <strong>de</strong> noite eu rezo o terço..., rezo<br />
aquelas oração e cendo uma velinha pra quele santo, Santa Madalena...” (Dona Argemira Calisto, resi<strong>de</strong>nte na zona rural –<br />
entrevista realizada em junho <strong>de</strong> 1998).
18<br />
processo inicial em que a benze<strong>de</strong>ira percebe que possui o dom <strong>de</strong> benzer. Esse processo<br />
po<strong>de</strong> se dar <strong>de</strong> várias maneiras, citaremos aqui apenas algumas.<br />
Segundo as apresentações da referida autora, a percepção para as benze<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> que elas possuem o<br />
dom <strong>de</strong> benzer, po<strong>de</strong> ocorrer em circunstâncias bem diferentes, a saber: a constatação po<strong>de</strong> acontecer através<br />
<strong>de</strong> uma visão ou revelação por meio <strong>de</strong> um espírito ou uma divinda<strong>de</strong>; po<strong>de</strong> ser mediante um “dom inato”;<br />
uma evidência e uma necessida<strong>de</strong>; po<strong>de</strong> iniciar como uma retribuição <strong>de</strong> uma graça alcançada, pagamento <strong>de</strong><br />
uma promessa por exemplo; po<strong>de</strong> ter recebido um aviso ou escutado uma voz; <strong>de</strong>vida uma necessida<strong>de</strong>, ou<br />
mesmo uma preocupação em ajudar o próximo; uma herança <strong>de</strong>ixada por sua mãe, avó ou outras pessoas<br />
mais próximas; ou ainda por meio <strong>de</strong> uma cura obtida.<br />
Diante das observações realizadas no trabalho <strong>de</strong> campo na região, percebemos que a<br />
gran<strong>de</strong> maioria das benze<strong>de</strong>iras relatam que a percepção inicial do dom ocorreu basicamente<br />
<strong>de</strong> duas maneiras: através <strong>de</strong> uma revelação, ou seja, mediante uma experiência mística; ou<br />
por meio <strong>de</strong> um aprendizado, uma herança <strong>de</strong> família ou mesmo ensinamento por intermédio<br />
<strong>de</strong> amigos.<br />
No primeiro caso, a aprendizagem mediante uma “experiência sobre-humana”, o chamamento para do dom e o processo<br />
<strong>de</strong> aprendizagem é atribuído, basicamente, a uma “entida<strong>de</strong> sobrenatural”, geralmente, através da visita <strong>de</strong> um ou mais santos.<br />
Quase todas as benze<strong>de</strong>iras entrevistadas que fazem menção ao dom adquirido através <strong>de</strong> uma experiência mística,<br />
acreditam que o fenômeno ocorreu em um momento bastante específico: foram visitadas por santos ou outras entida<strong>de</strong>s (um guia,<br />
por exemplo) que proporcionaram a cura, pois essas pessoas estavam passando por algum problema relacionado à saú<strong>de</strong>. Essa<br />
percepção do dom vem juntamente com a certeza <strong>de</strong> que haviam sido escolhidas por Deus para propiciar a cura e levar conforto a<br />
quem precisasse.<br />
A segunda categoria é aquela em que estão inseridas as benze<strong>de</strong>iras que receberam o dom por hereditarieda<strong>de</strong>, ou seja, o<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> benzer e preparar soluções para curar <strong>de</strong>terminadas doenças foi ensinada por um membro da família, ou por meio <strong>de</strong><br />
amigos e/ou vizinhos. É bom <strong>de</strong>ixar claro, e elas procuram enfatizar todo tempo, que apesar <strong>de</strong> terem adquirido o dom através do<br />
ensinamento, não se consi<strong>de</strong>ram inferiores àquelas que o receberam <strong>de</strong> uma divinda<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> um aviso. Apesar <strong>de</strong> terem sido<br />
ensinadas por outra benze<strong>de</strong>ira, elas também se julgam portadoras <strong>de</strong> um dom dado por Deus e se consi<strong>de</strong>ram escolhidas, apesar<br />
<strong>de</strong>le (Deus) utilizar-se <strong>de</strong> outra pessoa, como mediadora, para o processo da aprendizagem.<br />
Encontramos também, em uma entrevista realizada, um elemento novo, e único em todo nosso trabalho <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong><br />
campo, acerca da <strong>de</strong>scoberta vocacionada. Ao perguntar uma das benze<strong>de</strong>iras que resi<strong>de</strong> na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vitória da Conquista, quando<br />
foi que ela havia percebido que era possuidora do dom da benzer, ela nos respon<strong>de</strong>u da seguinte forma:<br />
...com a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sete anos... eu vivia só doente... não tinha mais remédio que<br />
me <strong>de</strong>sse, porque aqueles tempo mais era remédio mesmo assim do mato... Aí<br />
um dia eu saí, sentei na beira <strong>de</strong> uma cacimba, ai veio um sinhô com uma
19<br />
roupinha, uma tanguinha <strong>de</strong> pena... marradinha assim como uma esteira e<br />
agora toda enfiada <strong>de</strong> pena, marrada assim na cintura e aquela coroinha na<br />
cabeça, também <strong>de</strong> pena e na mão também... (dona Flora) 12<br />
O senhor a que ele se referiu e as <strong>de</strong>scrições que faz (<strong>de</strong> como ele estava trajado), nos lembram a imagem <strong>de</strong> um índio, ou<br />
seja, um elemento novo – elemento indígena – que até aquele momento não se fazia presente em nossas constatações.<br />
A experiência vivenciada na <strong>de</strong>scoberta do dom, ponto <strong>de</strong> partida para a prática da benzedura, é interpretada pelas<br />
benze<strong>de</strong>iras como sendo uma dádiva divina, uma graça alcançada, e que por terem sido escolhidas, eleitas, elas passam a ter não<br />
apenas direito, mas também <strong>de</strong>veres e obrigações para com o grupo que representa (OLIVEIRA, 1983). A benze<strong>de</strong>ira se julga (e é<br />
efetivamente) um sujeito social <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valia para o grupo social que ela representa e do qual faz parte.<br />
Segundo constatação mediante conversas informais e entrevista, percebemos que as benze<strong>de</strong>iras, após a <strong>de</strong>scoberta do<br />
dom e o processo <strong>de</strong> iniciação no ofício da benzedura, passam a acreditar que o acesso ao mundo sobrenatural, bem como a<br />
manipulação <strong>de</strong>sse mundo, possibilita criar laços, pactos e contatos no campo do sobrenatural e no meio social, ou seja, uma<br />
relação muito próxima com Deus e com os homens.<br />
O dom para a benzedura não torna a benze<strong>de</strong>ira “acima ou à margem” das outras pessoas, mas lhe impõe uma sagrada<br />
missão: a <strong>de</strong> praticar a benzeção a quem procurar e necessitar.<br />
“A percepção do dom é um acontecimento único, sem <strong>de</strong>sdobramento na<br />
vida da benze<strong>de</strong>ira. Por ser uma acontecimento singular (...) não se repete.<br />
Ele produz ao mesmo tempo uma mudança <strong>de</strong> estado naquele que o vive e é<br />
pressentido pela comunida<strong>de</strong>”. (OLIVEIRA, 1983:188-9)<br />
O dom e o ofício da benze<strong>de</strong>ira são atos <strong>de</strong> “filosofia popular”, a qual explica a origem, o processo <strong>de</strong> iniciação, a atuação<br />
no ofício não como algo distante e ultrapassado, mas como um fenômeno “vivido a cada instante” tanto pela pessoa que benze<br />
como por aqueles que as procuram. “A benze<strong>de</strong>ira é alguém que executa uma profissão popular específica” uma “representação da<br />
realida<strong>de</strong> concreta”. (OLIVEIRA, 1983). A benzedura, não é uma ativida<strong>de</strong> que ficou no passado, ela é atual, sendo renovada,<br />
modificada e reconstruída a cada tempo, tornando-se uma “realida<strong>de</strong> dinâmica”.<br />
Na gran<strong>de</strong> maioria das entrevistas, ficou bastante claro que o processo <strong>de</strong> aprendizagem/iniciação, a passagem <strong>de</strong><br />
conhecimento e regras, se <strong>de</strong>ram através da transmissão da mãe para a filha ou da avó para a neta e ate mesmo casos <strong>de</strong><br />
transmissão da sogra para a nora, bem como por intermédio <strong>de</strong> vizinhos ou amigos <strong>de</strong> forma espontânea.<br />
Encontramos benze<strong>de</strong>iras que, em um momento <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>, apelaram para os po<strong>de</strong>res curativos<br />
dos santos, pagando a graça alcançada com uma promessa <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r rezas preparar remédios para<br />
proporcionar curas em quem tivesse fé. Em uma entrevista realizada na cida<strong>de</strong>, encontramos um relato muito<br />
interessante acerca do processo <strong>de</strong> aprendizagem: conta-nos dona Vitória, que quando estava doente fez uma<br />
promessa <strong>de</strong> que, alcançando a graça da cura, iria procurar, por todos os cantos, pessoas que soubessem rezar<br />
12<br />
Entrevista realizada em julho <strong>de</strong> 1998 com dona Florita Teixeira Caitite, resi<strong>de</strong>nte na<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vitória da Conquista.
20<br />
para todos os tipos <strong>de</strong> doenças e que pu<strong>de</strong>ssem ensinar-lhe, para que a partir daí ela pu<strong>de</strong>sse ajudar a quem<br />
precisasse.<br />
“...eu pedi a Deus pra mo<strong>de</strong> me mostrá uma reza, uma benze<strong>de</strong>ira e presentasse<br />
lá pra mo<strong>de</strong> rezar nessa mão, pra mo<strong>de</strong> abrandar aquela isipa que eu tava<br />
sentindo e tava toda roxa a mão. Se presentasse e eu ... sarasse <strong>de</strong>ssa mão, eu<br />
saí cansando que me ensinasse rezar, <strong>de</strong> tudo quanto é reza que eu precisasse.<br />
Bem, <strong>de</strong> zipa, <strong>de</strong> conturpação, <strong>de</strong> dor <strong>de</strong> cabeça,... <strong>de</strong> dismitidura, tudo. Eu<br />
pedia a Deus pra ele me mostrar, santo Antônio me mostrar, que ele me<br />
mostrasse daquele dia em diante eu melhorasse. Eu saía procurando quem<br />
sabia, se quisesse me ensinar, ensinasse e fosse pra pará eu parava”. (dona<br />
Vitória) 13 .<br />
Esse tipo <strong>de</strong> iniciação, segundo Elda Rizzo <strong>de</strong> Oliveiras, é <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> “iniciação autodidata”, pois o ponto <strong>de</strong> partida<br />
se dá mediante constatação feita pela própria pessoa que preten<strong>de</strong> iniciar-se e daí passa a procurar – entre vizinhos, amigos e<br />
parentes – benze<strong>de</strong>iras que conheçam ensalmos e jaculatórias para que possa ensinar-lhe. Esse tipo <strong>de</strong> transmissão é fortemente<br />
regido pela tradição oral (1983).<br />
O processo <strong>de</strong> iniciação do ofício nem sempre se dá no momento da revelação do dom. Muitas<br />
benze<strong>de</strong>iras levam meses e até anos para terem clareza <strong>de</strong> que realmente <strong>de</strong>ve percorrer essa trilha. Muitas,<br />
por receberem a revelação muito cedo, ainda enquanto crianças, só começam a exercer esse ofício <strong>de</strong>pois da<br />
ida<strong>de</strong> adulta. Isso ocorre por motivos bem diversificados: pelo fato <strong>de</strong> serem muito jovens e não houver um<br />
respaldo por parte da família ou da comunida<strong>de</strong> e por serem tão jovens, a credibilida<strong>de</strong> futura po<strong>de</strong> ficar<br />
ameaçada. Sendo assim, o processo <strong>de</strong> legitimação social, processo este que garante a sobrevivência da<br />
benzeção, po<strong>de</strong> ser inviabilizado.<br />
Um outro fator que merece esclarecimento é a insegurança por parte da pessoa que vai iniciar-se. A falta <strong>de</strong> conhecimento<br />
a assusta, pois para se tornar uma benze<strong>de</strong>ira, ela precisa ter um vasto conhecimento <strong>de</strong> rezas para cada tipo <strong>de</strong> doença, além do<br />
domínio das proprieda<strong>de</strong>s terapêuticas <strong>de</strong> alguns tipos <strong>de</strong> ervas e raízes. Esse conhecimento só po<strong>de</strong> ser adquirido com o tempo e a<br />
prática, principalmente no que se refere à preparação <strong>de</strong> remédio que geralmente são receitados após o ritual da benzedura. Enfim,<br />
a benze<strong>de</strong>ira não po<strong>de</strong> ser – e na sua gran<strong>de</strong> maioria não é – uma pessoa <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> conhecimentos empíricos dos instrumentos<br />
necessários ao seu ofício.<br />
Mais dois fatores são muito importantes para ajudar a compreen<strong>de</strong>r melhor o ofício das benze<strong>de</strong>iras<br />
da região que propomos estudar. O primeiro <strong>de</strong>les é que as formulas oracionais e preparo <strong>de</strong> medicamentos<br />
não são direcionados apenas para proporcionar o bem estar <strong>de</strong> pessoas, mas também po<strong>de</strong>m intervir nas<br />
13<br />
Entrevista realizada em fevereiro <strong>de</strong> 1999 com dona Maria Vitória Oliveira Santos,<br />
resi<strong>de</strong>nte na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vitória da Conquista.
21<br />
plantações e nas doenças <strong>de</strong> animais 14 . Com isso elas se tornaram essenciais à sobrevivência das pessoas<br />
simples que vivem da terra. O outro fator é a carência que a maior parte da população rural tem em relação a<br />
assistência médica. Hospitais lotados, gran<strong>de</strong>s filas nos postos da Previdência e remédios caros aumenta a<br />
procura dos serviços e da boa vonta<strong>de</strong> das benze<strong>de</strong>iras.<br />
As benze<strong>de</strong>iras não escolhem tipos <strong>de</strong> situações nas quais <strong>de</strong>vem interferir. Todas as doenças e<br />
aflições são importantes para elas, caso sejam procuradas. Contudo existem aquelas que elas julgam <strong>de</strong><br />
interferência direta do benzedor; aquelas que, segundo <strong>de</strong>poimentos, médico não resolve.<br />
Na realização da benzeção e do processo <strong>de</strong> cura mediante administração <strong>de</strong> algumas fórmulas, a<br />
benze<strong>de</strong>ira apela para o domínio da religião e o da medicina popular.<br />
Quebranto e mau-olhado, cobreiro 15 , engasgamento, erisipela 16 , dores <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte, dores <strong>de</strong> cabeça e<br />
outras doenças mais, males que afligem uma parte consi<strong>de</strong>rável da população brasileira, são também um<br />
campo <strong>de</strong> atuação das benze<strong>de</strong>iras. No ritual da benzeção, através das rezas, elas invocam os po<strong>de</strong>res<br />
curativos dos santos com a convicção <strong>de</strong> que estes irão aten<strong>de</strong>r os seus pedidos, pondo fim àquelas dores que<br />
maltratam os seus clientes.<br />
Recorrer aos po<strong>de</strong>res curativos dos santos com o intuito <strong>de</strong> promover a saú<strong>de</strong>, como bem coloca<br />
Márcia Moisés Ribeiro (1997), é uma herança do catolicismo medieval – ou mesmo antes disso – e muito<br />
difundido no Brasil durante o período colonial. Essa tradição, como iremos <strong>de</strong>monstrar a seguir, é ainda<br />
bastante utilizada em nossos dias. Os santos representam uma intermediação entre Deus e os homens.<br />
Os termos contidos nas orações para esses males quase sempre recorrem aos po<strong>de</strong>res dos santos.<br />
Mediante análises comparativas das entrevistas, com benze<strong>de</strong>iras da região, que fazem menção ao sagrado,<br />
po<strong>de</strong>mos verificar que há uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> santos para tipos específicos <strong>de</strong> doenças e mesmo santos<br />
responsáveis por mais <strong>de</strong> um mal, a exemplo <strong>de</strong> São Roque e Santa Apolônia para dores <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte; São Roque<br />
e Santa Maria para as dores <strong>de</strong> cabeça. Estes são apenas alguns exemplos.<br />
14<br />
Este é uma característica bastante presente na atuação das benze<strong>de</strong>iras da zona rural<br />
da região <strong>de</strong> Vitória da Conquista.<br />
15<br />
O cobreiro (ou cobrêro) é uma <strong>de</strong>rmatose, cientificamente i<strong>de</strong>ntificada como herpeszoster.<br />
Esta doença é uma infecção gerada pelo herpesvirus varicellae, caracterizada<br />
por erupções <strong>de</strong> vesículas na pele, com fortes sensações <strong>de</strong> queimaduras e em alguns<br />
casos dores muito constantes. A herpes-zoster é muito comum em pessoas que tiveram<br />
catapora e que não foram totalmente imunizados, ou seja, o vírus permaneceu em estado<br />
latente no organismo. É uma erupção cutânea.<br />
16<br />
Doença é caracterizada por uma inflamação aguda da pele, atingindo na gran<strong>de</strong> maioria<br />
das vezes os membros inferiores, tendo como sintomas febre alta, calafrios e uma<br />
vermelhidão cutânea.
22<br />
Para melhor compreen<strong>de</strong>r como se <strong>de</strong>u (ou ainda se dá) essa variação <strong>de</strong> santos e especialida<strong>de</strong>s<br />
curativas, achamos por bem recorrer a Marc Bloch – em “Os reis taumaturgos” – pois, ao fazer uma<br />
comparação dos po<strong>de</strong>res taumatúrgicos dos reis da França e da Inglaterra <strong>de</strong> curar as escrófulas com as<br />
especialida<strong>de</strong>s curativas dos santos, esclarece que:<br />
“A maioria dos santos verda<strong>de</strong>iramente populares também possui seus talentos<br />
específicos: as pessoas dirigem-se a um <strong>de</strong>les rogando-lhe que cure os males dos<br />
olhos; a outro pe<strong>de</strong>m que reme<strong>de</strong>ie os males do ventre; e assim por diante. Mas,<br />
até on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> ver, essas especializações raramente estão lá <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início; a<br />
maior prova está em que às vezes elas variam. Todo santo passa por médico<br />
junto ao povo; pouco a pouco, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> associações <strong>de</strong> idéias<br />
freqüentemente obscuras, algumas vezes por um simples calembur, seus fiéis<br />
acostumam-se a atribuir-lhe o dom <strong>de</strong> mitigar sobretudo esta ou aquela<br />
enfermida<strong>de</strong>; o tempo faz sua obra; ao fim <strong>de</strong> certo número <strong>de</strong> anos, a crença<br />
nesse po<strong>de</strong>r bem <strong>de</strong>terminado tornou-se no pobre mundo dos sofredores um<br />
verda<strong>de</strong>iro artigo <strong>de</strong> fé”. (1993:59)<br />
Como po<strong>de</strong>mos perceber, os santos eram, e ainda são, consi<strong>de</strong>rados como miraculosos, portadores <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res<br />
sobrenaturais capazes <strong>de</strong> remediar enfermida<strong>de</strong>s e sofrimentos em geral. As pessoas acionam suas crenças com o intuito <strong>de</strong><br />
restaurar a harmonia no corpo que foi afetado pela doença. Assim, cada santo possuía po<strong>de</strong>res para curar males específicos 17 .<br />
Para melhor elucidar essa questão, optamos por utilizar o exemplo <strong>de</strong> Santo Apolônia (já<br />
mencionada anteriormente). Santa Apolônia é a santa, protetora dos que sofrem <strong>de</strong> dores <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte, mais<br />
invocada nas benzeções encontradas. Essa <strong>de</strong>voção po<strong>de</strong> ser justificada pela história <strong>de</strong> sua vida. Segundo<br />
Camara Cascudo (1984), Apolônia viveu em Alexandria e foi con<strong>de</strong>nada a ser queimada viva no ano <strong>de</strong> 248<br />
e antes da execução todos os seus <strong>de</strong>ntes foram extraído com “seixos e lhe martirizaram todo o rosto”. Os<br />
<strong>de</strong>ntes se tornaram santas relíquias e foram distribuídos por diferentes Igrejas da Cristanda<strong>de</strong>.<br />
O martírio <strong>de</strong> Santa Apolônia foi tão violento que são encontradas em Breviários <strong>de</strong> várias Igrejas da<br />
Europa, orações que têm por objetivo pedir a intercessão <strong>de</strong> Deus para conce<strong>de</strong>r a cura <strong>de</strong> todos aqueles<br />
sofredores <strong>de</strong> dores <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte e <strong>de</strong> cabeça, que supliquem pelos po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>ssa santa. Camara Cascudo<br />
apresenta uma <strong>de</strong>ssas orações encontrada em uma igreja <strong>de</strong> Colônia, na Alemanha:<br />
17<br />
Santa Luzia para curar doenças dos olhos; São Lázaro protetor dos leprosos e assim<br />
por diante.
23<br />
“‘Ô Deus, por amor <strong>de</strong> quem a bem-aventurada Apolônia, Virgem e Mártir,<br />
sofreu com tanta constância, que se lhe arrancassem todos os <strong>de</strong>ntes; nós vos<br />
suplicamos nos concedais que todos aqueles que imploram a sua intercessão<br />
sejam preservados das dores <strong>de</strong> cabeça, e dos <strong>de</strong>ntes, e que <strong>de</strong>pois das<br />
misérias <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>sterro, vós lhes façais a graça <strong>de</strong> chegar à glória eterna. Por<br />
nosso Senhor <strong>Jesus</strong> Cristo vosso Filho, que sendo Deus vive e reina<br />
convosco em a unida<strong>de</strong> do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos.<br />
Amém.’” (1984:66). 18<br />
Invocar Santa Apolônia para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus <strong>de</strong>votos das dores <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes é uma tradição antiga e<br />
difundida por toda a Europa e no Brasil (ainda no período colonial), chegou por meio dos Portugueses e<br />
ainda hoje – como po<strong>de</strong> ser observado através <strong>de</strong> entrevista que faz referência à santa Pelonha (Apolônia) 19<br />
– resiste ao tempo.<br />
As orações utilizadas pelas nossas benze<strong>de</strong>iras, invocando os santos ou não, são geralmente repetidas por três vezes,<br />
como sendo o primeiro procedimento da benzedura. Caso seja necessário, elas pe<strong>de</strong>m aos doentes que retornem para que a<br />
benzeção seja repetida por mais duas vezes em dias <strong>de</strong>terminados por elas. E por fim a administração <strong>de</strong> medicamentos preparados<br />
– pelas mesmas ou mediante ensinamento – à base <strong>de</strong> folhas, ervas e raízes para que sejam usados na <strong>de</strong>pendência da gravida<strong>de</strong> da<br />
moléstia.<br />
É nesse terceiro momento que as benze<strong>de</strong>iras colocam em prática os seus conhecimentos medicinais<br />
daquilo que a natureza lhes oferece: proprieda<strong>de</strong>s vegetais – em maior escala –, animais e minerais. Esse é o<br />
apelo para domínio da medicina popular. Parte das benze<strong>de</strong>iras entrevistadas disseram que são gran<strong>de</strong>s<br />
conhecedoras das proprieda<strong>de</strong>s terapêuticas das ervas e raízes.<br />
Vários são males, bem como são seus graus <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong>, suas interpretações e fórmulas oracionais. Doenças <strong>de</strong> longa<br />
duração, <strong>de</strong> duração limitada ou ainda aquelas que não são clinicamente classificadas. Núbia P. <strong>de</strong> Magalhães Gomes e Edimilson<br />
<strong>de</strong> Almeida Pereira, no livro Assim se benze em Minas Gerais, têm uma abordagem interessante acerca das chamadas doenças<br />
auto-limitadas, ou seja, aquelas moléstias que têm uma duração específica, com prazo para aparecimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecimento, a<br />
saber:<br />
18<br />
Oração semelhante a essa foi encontrada no livro <strong>de</strong> Márcia Moisés Ribeiro, no<br />
capítulo referente Magia permitida e práticas ilícitas do seu livro A ciência dos<br />
Trópicos.<br />
19 “Senhora santa Pelonha /estava sentada na sua pedra <strong>de</strong> ouro fino /chorando e se mal dizendo. /Passou São Clemente /Que é<br />
que tem, Pelonha? /Dor <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte, senhor. /Quer que reze, Pelonha? /Quero sim, senhor. /Pelonha, /assim como o sol é nascente, /o<br />
sol é poente, /vai passar essa dor <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte, /nas horas /<strong>de</strong> Deus, senhor São Clemente”. (dona Laurência – benze<strong>de</strong>ira resi<strong>de</strong>nte na<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vitória da Conquista)
24<br />
“Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar doenças <strong>de</strong> duração específica manifestações<br />
<strong>de</strong>rmatológicas (fogo selvagem, erisipela, sapinho, cobreiro), processos<br />
inflamatórios (unheiro, terçol, bicheira, coqueluche, peito arruinado, dor <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>nte) e distúrbios causa-efeito, isto é, as conseqüências óbvias <strong>de</strong> um fator<br />
<strong>de</strong>terminante (queimadura, <strong>de</strong>stroncamentos, engasgamento, envenenamento,<br />
cisco no olho, sangramento <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>nte, azia, dor <strong>de</strong> cabeça)” (1989: 27).<br />
A benzedura, enquanto um fenômeno presente na mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> parte da população <strong>de</strong> nossa<br />
região, resiste às transformações e à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> que os novos tempos apresentam. Ensalmos, jaculatórias e<br />
procedimentos curativos à base, essencialmente, <strong>de</strong> plantas medicinais rompem preconceitos, barreiras <strong>de</strong><br />
espaço e <strong>de</strong> tempo, e perpassam gerações – através da transmissão oral – com pequenas modificações. A<br />
valorização da vida, a <strong>de</strong>fesa e reflexão das tradições e das crenças, uma visão <strong>de</strong> mundo partilhada com seus<br />
pares, são formas <strong>de</strong> veiculação do saber acumulado pelos agentes da benzedura. Penetrar nesse universo foi<br />
essencial para a compreensão que hoje temos dos seus significados e representações.<br />
Enveredar por esse mundo da benzedura foi o que mais nos permitiu perceber os motivos que levam quotidianamente<br />
pessoas <strong>de</strong> <strong>de</strong>ferentes segmentos sociais procurarem os serviços das benze<strong>de</strong>iras e acreditarem que elas possuem po<strong>de</strong>res<br />
sobrenaturais dados por Deus, e por isso mesmo capazes <strong>de</strong> interce<strong>de</strong>r junto a ele, para aliviar os seus problemas, sejam <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />
física, emocional ou social.<br />
A legitimação e conseqüentemente a sobrevivência <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> prática na região está intrinsecamente ligada às ações<br />
diretas <strong>de</strong>ssas terapeutas populares, bem como a forte religiosida<strong>de</strong> presente na sua clientela.<br />
Apesar <strong>de</strong> todo avanço da medicina hoje nas socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas, a benzedura ainda é um elemento forte na cultura das<br />
regiões do interior do Brasil, e, não obstante todas as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> perpetuação, ainda são bastante procuradas. Percebemos que<br />
o oficio não está sendo transmitido. A filiação “mágica” que antes era uma constante, hoje já não está ocorrendo com a mesma<br />
freqüência. Ao perguntarmos às benze<strong>de</strong>iras acerca da reprodução do conhecimento, as respostas foram quase sempre às mesmas: a<br />
juventu<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna não crê mais nos conhecimentos dos antigos; a fé nos nossos ensinamentos não está mais presente na realida<strong>de</strong><br />
vivida da juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossos dias.<br />
Em todo o corpo do trabalho, fizemos referências às benze<strong>de</strong>iras ao invés <strong>de</strong><br />
benze<strong>de</strong>iros. Isso se <strong>de</strong>ve ao fato (como justificado no início) <strong>de</strong> que a benzedura,<br />
comprovadamente, é um ofício exercido majoritariamente por mulheres – na gran<strong>de</strong> maioria,<br />
senhoras com ida<strong>de</strong>s acima <strong>de</strong> cinqüenta anos; fato comprovado pelo nosso diagnóstico. O<br />
perfil feminino da benzedura é inquestionável não apenas na localida<strong>de</strong> em estudo, mas em<br />
quase todas as regiões do Brasil com que tivemos contato através livros e relatos <strong>de</strong><br />
experiências. No levantamento cadastral dos agentes da benzedura na zona rural e na cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Vitória da Conquista, encontramos alusões a apenas quatro homens, sendo três <strong>de</strong>stes
25<br />
moradores da zona rural. É, sobretudo em função <strong>de</strong>ste quadro, que optamos por usar<br />
benze<strong>de</strong>iras e não benze<strong>de</strong>iros.<br />
Todos os passos da nossa pesquisa – leitura <strong>de</strong> obras que tratam pontualmente <strong>de</strong>ssa temática, informais com as<br />
benze<strong>de</strong>iras e seus <strong>de</strong>poimentos – foram essenciais para a compreensão da benzedura e conseqüentemente a concretização <strong>de</strong>ste<br />
trabalho.<br />
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:<br />
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do po<strong>de</strong>r régio,<br />
França e Inglaterra. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.<br />
CASCUDO, Luis da Camara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo<br />
Horizonte: Itatiaia, 1984.<br />
GOMES, Núbia Pereira <strong>de</strong> Magalhães & PEREIRA, Edimilson <strong>de</strong> Almeirda. Assim<br />
se benze em Minas Gerais. Juiz <strong>de</strong> Fora. EDUFJ / Mazza Edições, 1989<br />
(Minas & mineiros, 2).<br />
LAPLANTINE, François & RABEYRON, Paul-Louis. Medicinas paralelas. Tradução <strong>de</strong> Ramon Américo<br />
Vasques. São Paulo: Brasiliense, 1989.<br />
OLIVEIRA, Elda Rizzo <strong>de</strong>. Doença, cura e benzedura: um estudo sobre o ofício da benze<strong>de</strong>ira em<br />
Campinas. Campinas: s.n., 1983. (dissertação <strong>de</strong> mestrado pela Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas).<br />
RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos – A arte médica no Brasil<br />
do século XVIII. São Paulo: Cia. das Letra, 1997.<br />
PALAVRAS-CHAVES: Benzimento, religiosida<strong>de</strong> popular, medicina popular.<br />
DADOS PESSOAIS: Professora da Área <strong>de</strong> História Mo<strong>de</strong>rna do Departamento <strong>de</strong> História da Universida<strong>de</strong><br />
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica<br />
<strong>de</strong> São Paulo (PUC - SP). E-mail: grayce@uesb.br.
26<br />
Mandos e <strong>de</strong>smandos: juízes, vereadores e <strong>de</strong>legados da Imperial Vila da Vitória do<br />
século XIX.<br />
Isnara Pereira Ivo. Professora Assistente do Departamento <strong>de</strong> História da Universida<strong>de</strong> Estadual do Sudoeste<br />
da Bahia/UESB. Mestre em História/UFMG. isnara@uesb.br<br />
A conquista da região que <strong>de</strong>u origem a Imperial Vila da Vitória, atual município <strong>de</strong> Vitória da<br />
Conquista, foi iniciada pelo ban<strong>de</strong>irante João Gonçalves da Costa e sua família. A maioria <strong>de</strong> seus<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, proprietários <strong>de</strong> terras, ocupou as funções da administração local durante todo o século XIX.<br />
Os limites entre as instâncias públicas e privadas mostram-se com tênues quando se analisa a justiça local na Imperial Vila<br />
da Vitória. Assuntos <strong>de</strong> família e assuntos <strong>de</strong> polícia misturavam-se. Pequenos <strong>de</strong>litos ganhavam amplitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> perseguições a<br />
<strong>de</strong>safetos e inimigos “políticos”. A arbitrarieda<strong>de</strong>, imprecisão e parcialida<strong>de</strong> foram os preceitos que guiaram a aplicação da justiça<br />
pelos donos do lugar.<br />
Os homens encarregados <strong>de</strong> julgar e punir a população da Imperial Vila da Vitória investiram-se <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
processo <strong>de</strong> conquista. A família do Capitão-mor João Gonçalves da Costa, novo dono da terra, foi também pioneira nas funções <strong>de</strong><br />
dominar e subjugar a população primitiva, formada por grupos indígenas que habitavam a região.<br />
A ocupação e a conquista empreendidas pela ban<strong>de</strong>ira dos Gonçalves da Costa, como as <strong>de</strong>mais ban<strong>de</strong>iras brasileiras,<br />
tiveram um caráter eminentemente militar (QUEIROZ, 1976a, p.48). A cada território incorporado, a cada região conquistada,<br />
reorganizava-se o serviço militar.<br />
A historiografia tem <strong>de</strong>monstrado que o processo <strong>de</strong> ocupação da terra, no Brasil, por chefes <strong>de</strong> famílias, garantiu a<br />
criação <strong>de</strong> normas <strong>de</strong> controle para a comunida<strong>de</strong> em formação, vinculando-a, em seguida, ao Estado organizado com o<br />
estabelecimento <strong>de</strong> normas jurídicas (OLIVEIRA, 1988/89).<br />
De membros das Or<strong>de</strong>nanças, os Gonçalves da Costa e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes passaram a ocupar funções policiais, jurídicas e<br />
administrativas no Arraial da Conquista e, posteriormente, na recém criada Imperial Vila da Vitória.<br />
O estudo das localida<strong>de</strong>s brasileiras tem <strong>de</strong>monstrado que as ativida<strong>de</strong>s jurídicas foram <strong>de</strong>finidas por componentes<br />
inerentes ao imaginário social e político das elites locais: a in<strong>de</strong>finição das ativida<strong>de</strong>s públicas e privadas – condição da qual
27<br />
germina o embaralhamento <strong>de</strong>sses dois setores – articula-se à dominação pessoal, o princípio mais geral <strong>de</strong> regulamentação das<br />
relações sociais (FRANCO, 1983, p. 129-130).<br />
O <strong>de</strong>sprezo eminente pelas garantias e liberda<strong>de</strong>s civis e sociais sempre esteve presente no comportamento dos homens<br />
encarregados <strong>de</strong> julgar e punir. Os direitos privados, sempre comprometidos com o Estado, a escravidão e o latifúndio foram<br />
empecilhos para a consolidação dos direitos civis, pouco se realizando em matéria <strong>de</strong> assistência social (CARVALHO, 1995,<br />
p.39,45), fazendo com que os donos da justiça e da política se tornassem o único recurso da população alijada <strong>de</strong> suas garantias<br />
pessoais.<br />
Visitando um pouco o cotidiano da justiça da Imperial Vila da Vitória, é possível constatar, com alguns exemplos, como a<br />
extensão do po<strong>de</strong>r privado às funções públicas permitiu que a aplicação da justiça fosse utilizada para resolver questões<br />
particulares. Pendências do mundo privado transformaram-se em problemas políticos, posto que anular um processo, ou “provar” a<br />
inocência <strong>de</strong> um capitão, <strong>de</strong> um tenente ou <strong>de</strong> um coronel, pertencentes aos bastidores da política local, fosse como <strong>de</strong>legado,<br />
conselheiro e, acima <strong>de</strong> tudo, um gran<strong>de</strong> proprietário, era garantir o funcionamento “correto” da justiça, uma vez que romper com<br />
esses obséquios significava romper com os donos da política e da justiça do lugar.<br />
O exemplo a seguir refere-se a um fato ocorrido em 13 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1895, que envolveu Saturnino Nunes Bahiense e seu<br />
cunhado Sebastião Muniz <strong>de</strong> Faria, ambos homens públicos que já tinham exercido funções <strong>de</strong> Delegado <strong>de</strong> Polícia. O primeiro foi<br />
Juiz Municipal e Delegado <strong>de</strong> Polícia em 1878 e o segundo fora nomeado em 1897, dois anos após esse fato. Registrando uma<br />
queixa-crime contra Sebastião Muniz <strong>de</strong> Faria, diz o autor da <strong>de</strong>núncia que<br />
“nas noites <strong>de</strong> 19,20 e 21 <strong>de</strong>ste corrente mês andavam em roda <strong>de</strong> sua casa e em sua mediação Sebastião<br />
Muniz <strong>de</strong> Faria acompanhado <strong>de</strong> Augusto José <strong>de</strong> <strong>Souza</strong>, Pedro José <strong>de</strong> Mello, Máximo <strong>de</strong> tal, conhecido por<br />
Cunha e outros (cita-os) (...) avisado que os referidos indivíduos queriam assassiná-lo, pelo que tratou <strong>de</strong><br />
trazer sempre a casa fechada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que escurecia, mas que às 10 horas da noite do dia 21 <strong>de</strong>ste mês tendo<br />
parado em frente da sua casa um grupo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros, cantando acompanhadas <strong>de</strong> harmônica e violão<br />
imoralida<strong>de</strong>s inauditas(...), arrebentaram o quintal (...) com algazarras o insultava[m], bor<strong>de</strong>java[m] e<br />
fazia[m] todo o possível afim <strong>de</strong>le respon<strong>de</strong>nte abrir a porta do quintal e ser pelos mesmos assassinado (...)<br />
que é do domínio público a atroz inimiza<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sebastião Muniz <strong>de</strong> Faria para com ele tanto assim que por<br />
três vezes tem vindo a casa <strong>de</strong>le para assassiná-lo do que também Pedro José <strong>de</strong> Mello é seu inimigo porque<br />
ele respon<strong>de</strong>nte tem dado <strong>de</strong>núncia contra o mesmo como criminoso em Ilhéus e Canavieiras e Augusto José<br />
<strong>de</strong> <strong>Souza</strong> e Eloy <strong>de</strong> tal são jagunços bem como aqueles <strong>de</strong> Sebastião Muniz <strong>de</strong> Faria são reconhecidos nesta<br />
cida<strong>de</strong> como escareadores e bandidos (...)” 20 .<br />
Foi instaurado um inquérito policial no qual foram arroladas e ouvidas sete testemunhas que, em seus <strong>de</strong>poimentos,<br />
<strong>de</strong>monstraram que nada queriam confirmar e nada disseram saber sobre o ocorrido, numa atitu<strong>de</strong> clara <strong>de</strong> <strong>de</strong>scomprometimento<br />
com quaisquer das partes envolvidas. Ora, percebe-se que é praticamente impossível numa pequena Vila, on<strong>de</strong> um homem público<br />
teve sua casa cercada por grupos inimigos por três vezes, que este fato não tenha chegado ao conhecimento da população da<br />
cida<strong>de</strong>.<br />
Por outro lado, foi notória a rapi<strong>de</strong>z da justiça em solucionar o problema. Pouco mais <strong>de</strong> um mês após o registro da<br />
<strong>de</strong>núncia, os autos foram remetidos ao Promotor da comarca, Camilo <strong>de</strong> Azevedo Lima, que em 20 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1895, “baseado no<br />
que dispõe a nossa legislação penal no § 1 o da exceção feita ao art. 407, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r no presente feito por julgar<br />
incompetente a sua intervenção em crimes <strong>de</strong> tal natureza”. 21<br />
20 Queixa-crime contra Sebastião Muniz <strong>de</strong> Faria. AFJM - Arquivo 1 a Vara Cível. Caixa Diversos: 1890- 1899.<br />
21 Ibid.
28<br />
O Promotor concluiu que, não se tratando <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> flagrante <strong>de</strong>lito, o réu não po<strong>de</strong> ser pronunciado. Po<strong>de</strong>-se<br />
perceber que essa também foi a leitura feita pelo comissário <strong>de</strong> polícia da Vila, pois não convidou o <strong>de</strong>nunciado a <strong>de</strong>por no<br />
processo. Assim, concluiu o Promotor da comarca que<br />
“a <strong>de</strong>núncia por parte da junta pública não tem cabimento porquanto não está provada a última parte do<br />
citado §, isto é, “não havido prisão em flagrante” condição sine qua non 22 não tem lugar a intervenção da<br />
justiça pública nos crimes <strong>de</strong> dano (...) solicita o arquivamento” 23 .<br />
Um outro exemplo faz perceber como a justiça, “com base na lei”, anulava processos, além <strong>de</strong> ignorar <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong><br />
tentativas <strong>de</strong> homicídio, assassinatos consumados e <strong>de</strong> domínio público. Foi o caso <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia do assassinato <strong>de</strong> Firmino da Silva<br />
Gusmão por mandado do capitão Antônio Ferraz <strong>de</strong> Araújo Catão.<br />
O acusado era um homem <strong>de</strong> família tradicional, filho do patriarca Joaquim Ferraz <strong>de</strong> Araújo, gran<strong>de</strong> proprietário e ex-<br />
Delegado <strong>de</strong> Polícia. Recebeu a patente <strong>de</strong> capitão da 3 a companhia do Batalhão nº 93 da Infantaria da comarca da Vitória em<br />
1880 24 .<br />
Nesse inquérito, mais uma vez é percebida a brevida<strong>de</strong> do encaminhamento processual que, como no primeiro caso,<br />
envolvia membro da elite local. O fato se <strong>de</strong>u no dia 14 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1891 conforme queixa do pai da vítima. Quando Firmino<br />
da Silva Gusmão passava<br />
“pela rua dos veteranos (...) e daí partiram três tiros dois dos quais produziram os referidos ferimentos, tem<br />
certeza que fora mando <strong>de</strong> Antônio Ferraz <strong>de</strong> Araújo Catão que foi tudo presenciado por Militão Soares da<br />
Rocha pelo Dr. Promotor Público Bel. João Alves Pedreira França e pelo preto por nome Clemente<br />
conhecido por Bocauina e por mais outras pessoas que não po<strong>de</strong> recordar-se” 25 .<br />
Segundo o auto <strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito, foi encontrado no ofendido<br />
“um ferimento no ombro esquerdo, outro n[a] omoplata <strong>de</strong> traz para diante <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro produzidos<br />
por chumbo e bala outro ferimento gran<strong>de</strong> sobre a espinha dorsal região renal produzido por bala. Um<br />
gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> ferimentos nas pernas e ná<strong>de</strong>gas um outro ferimento no punho da mão esquerda um outro<br />
no braço direito, todos <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro e <strong>de</strong> trás para adiante produzidos por chumbo grosso” 26 .<br />
O acusado (suplicante), por sua vez, usando do conhecimento <strong>de</strong> que possuía da justiça, escreve ao Juiz Municipal e<br />
Delegado <strong>de</strong> Polícia, orientando-o como <strong>de</strong>veria proce<strong>de</strong>r no encaminhamento do processo. Informava a inviabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o mesmo<br />
instaurar processo contra ele,<br />
“1 o , por ser inimigo capital do suplicante tanto que em um dos números do Diário da Bahia do ano passado<br />
fez as maiores injúrias ao suplicante atacando até a sua honra e dignida<strong>de</strong>, 2 o por que V. S., não po<strong>de</strong> servir<br />
<strong>de</strong> juiz neste termo pelo parentesco <strong>de</strong> que existe entre V. S. e o escrivão do juízo não obstante que este tenha<br />
jurado suspeito por quanto a petição <strong>de</strong> queixa já estava <strong>de</strong>spachada por V. S. e a lei <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1843<br />
indica o modo <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r em tal caso finalmente por que V. S. é parente em grau proibido da mulher do<br />
suplicante (...)” 27 .<br />
O inquérito policial foi instaurado e foram ouvidas oito testemunhas que confirmaram a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> mandado do<br />
assassinato pelo capitão Antônio Ferraz <strong>de</strong> Araújo Catão. A primeira testemunha foi Terêncio Nunes Bahiense, parente em 3 o grau<br />
do acusado. O <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong>ssa testemunha, repetido pelas <strong>de</strong>mais, exceto pelo Promotor Público que também presenciara o<br />
22 Grifo do original.<br />
23 Ibid.<br />
24 Patente <strong>de</strong> capitão da 3 a companhia do Batalhão nº 93 da Infantaria da comarca da Vitória. 21.06.1880. APEB. Seção Colonial e<br />
Provincial. Série: Militares, Patentes, Registros. 1879-1883. Maço 5408.<br />
25 Queixa-crime contra Antônio Ferraz <strong>de</strong> Araújo Catão. APEB. Seção Judiciária. Autos Crimes. 38.1351.14.<br />
26 Ibid.<br />
27 Ibid.
29<br />
assassinato, esclarece que o capitão Catão, o acusado, já havia comentado em outras ocasiões sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agressão a<br />
membros da família Gusmão:<br />
“(...) ele perguntara ao Sr. capitão Catão se não se achava horrorizado com o que se havia passado, teve em<br />
resposta que não, que o sentimento que lhe restava era ter ficado em frente <strong>de</strong> sua casa (...) que daquela data<br />
em diante não <strong>de</strong>sceria camarada algum seu às ruas da cida<strong>de</strong> e que também não passaria membro algum da<br />
família Gusmão em frente <strong>de</strong> sua casa sob pena <strong>de</strong> receber tiros (...) perguntado ao Cap. Catão se por<br />
ventura passasse Mathias Gusmão, homem <strong>de</strong> avançada ida<strong>de</strong> o que faria (...) teve em resposta que mandarlhe-ia<br />
dar um tiro nas pernas (...) que os queixados estiveram com o Cap. Catão na ocasião que viu o<br />
estampido dos tiros (...) que no dia do conflito a cida<strong>de</strong> estava alarmada esperando graves conflitos e por<br />
isso achavam-se quase todos armados” 28<br />
Em 3 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1892, menos <strong>de</strong> um ano do fato ocorrido, o promotor público João Alves Ferreira França, que, segundo<br />
a vítima, fora uma das testemunhas do crime, em seu <strong>de</strong>poimento revelou que não consi<strong>de</strong>rava como crime o fato presenciado e<br />
também não vira como contravenção a ameaça <strong>de</strong> assassinato aos membros da família Gusmão proferida pelo capitão Catão:<br />
“conquanto os tiros houvessem partido <strong>de</strong> uma casa <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> do queixado Cap.<br />
Catão nenhuma prova direta ou indireta existe no presente processo que mostre a sua<br />
culpabilida<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong> que se trata (...) nenhuma prova estabelece em direito maximé em<br />
matéria criminal, como ensinam os fatos pátrios e foi <strong>de</strong>cidido pelo supremo tribunal <strong>de</strong><br />
justiça por acórdão <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1861 e portanto nenhuma força probante tem o<br />
<strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> testemunhas que assim <strong>de</strong>poram em juiz (...)” ;<br />
tiros:<br />
Continua a <strong>de</strong>fesa do acusado, afirmando a inocência do Capitão Catão e pronunciando como culpados os autores dos<br />
“dissera que daquela data em diante não passaria membro algum da família Gusmão pela rua da<br />
In<strong>de</strong>pendência sem sofrer alguma agressão, foi posterior aos acontecimentos do dia 12 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro e<br />
portanto não po<strong>de</strong>rá servir <strong>de</strong> base para <strong>de</strong>monstrar que achava-se ele possuído <strong>de</strong> intenção criminosa<br />
quanto ao fato <strong>de</strong> que se trata e quando muito po<strong>de</strong>rá sê-lo para fatos que corressem posteriormente(...) não<br />
há criminoso sem má fé, isto é, em pleno conhecimento do mal e intenção <strong>de</strong> o praticar e <strong>de</strong>stes autos coligese<br />
a falta <strong>de</strong> intenção do queixado.<br />
(...) Como mandatários apenas há no presente sumário <strong>de</strong> culpa veemente indício contra João <strong>de</strong> tal e<br />
Gustavo <strong>de</strong> tal, <strong>de</strong> terem sido os autores dos tiros que ofen<strong>de</strong>ram a Firmino (...) por que são os únicos que há<br />
certeza <strong>de</strong> se acharem na dita casa na ocasião em que os tiros foram disparados”. 29<br />
Após a conclusão do processo criminal, feita pelo Promotor Público, foi anexado o atestado <strong>de</strong> óbito do Capitão Catão<br />
que, <strong>de</strong> acordo sua esposa Zeferina Maria <strong>de</strong> Oliveira, “fora barbaramente assassinado com um tiro nas costas ao chegar na<br />
porteira da Fazenda em 02 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1893” , 30 ou seja, menos <strong>de</strong> um ano, após a conclusão do Promotor Público.<br />
Ora, se O Capitão Catão fora absolvido da acusação <strong>de</strong> mandante do crime e acusados apenas os autores, por qual motivo<br />
a justiça teria anexado o atestado <strong>de</strong> óbito do Capitão nos autos do processo? Apesar <strong>de</strong> não haver nos autos solicitação <strong>de</strong> recurso<br />
por parte da família da vítima, é possível que a conclusão do Promotor tenha provocado polêmica entre os moradores da Vila, uma<br />
vez, que após a morte do Capitão, um outro juiz <strong>de</strong> direito, Augusto Vergne <strong>de</strong> Abreu, em 24 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1894, anulou o<br />
processo crime usando outros argumentos:<br />
“(...) consi<strong>de</strong>rando que a queixa só compete ao ofendido, seu pai ou mãe, tutor ou curado sendo menor,<br />
senhor ou cônjuge (art. 72 do Cód. do Processo Crime); Consi<strong>de</strong>rando que a queixosa <strong>de</strong>u a presente queixa<br />
28 Ibid.<br />
29 Ibid.<br />
30 Ibid.
30<br />
no caráter <strong>de</strong> mãe do ofendido que é maior e não menor, caso em que não tem a mãe tal competência e que<br />
esta tem sido a doutrina seguida pelos juízes e tribunais do país” 31 .<br />
Observe-se que a justificativa para a anulação da culpa do Capitão não é feita em função <strong>de</strong> sua inocência, mas da<br />
improcedência legal do registro da queixa.<br />
Como po<strong>de</strong> ser visto, a parcialida<strong>de</strong> no julgamento <strong>de</strong> crimes pelos homens públicos era uma constante da justiça local da<br />
Imperial Vila da Vitória. É perceptível a falta <strong>de</strong> precisão dos juízes <strong>de</strong> direito à frente da comarca e também dos juízes municipais<br />
em julgar e punir as contravenções cometidas pela população, seja no julgamento e punição dos homens comuns, seja nos<br />
inquéritos envolvendo homens públicos. Por qualquer motivo, a queixa-crime po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>rada improce<strong>de</strong>nte.<br />
Foi o que aconteceu com a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> agressão física que recebeu Severiano Ângelo Rodrigues por José <strong>de</strong> tal,<br />
conhecido por José Correio, morador na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caetité, em 4 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1882. De acordo com o auto <strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito as<br />
agressões recebidas foram:<br />
“cinco facadas sendo uma entre as clavículas mais pen<strong>de</strong>ndo para o lado direito que terá<br />
uma polegada <strong>de</strong> extensão e mais <strong>de</strong> ½ <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>, outra facada no vão da clavícula<br />
junto ao pescoço vizinho a artéria que terá <strong>de</strong> extensão meia polegada que sendo<br />
empregada do lado direito do lugar mencionado parece ter perpetrado até o véu do vão<br />
outra facada sobre as costelas do lado esquerdo acima da boca do estômago que terá uma<br />
polegada <strong>de</strong> extensão <strong>de</strong> três partes <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> outra facada na ponta do queixo do<br />
lado esquerdo que tem 2 polegadas <strong>de</strong> extensão que po<strong>de</strong>rá ter profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 3 ou 4<br />
partes e outra facada sobre a parte externa do fulcro do braço esquerdo que terá uma<br />
polegada <strong>de</strong> extensão, que ofen<strong>de</strong>ra apenas a pele”.<br />
A <strong>de</strong>scrição contida no auto <strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito comprovou os inúmeros ferimentos recebidos pelo autor da queixa-crime.<br />
Acrescente-se o fato <strong>de</strong> que após a abertura do inquérito policial, as testemunhas que foram arroladas confirmaram também a<br />
<strong>de</strong>núncia. Ocorre que, apesar <strong>de</strong> todas essas evidências, ou melhor, provas do crime, o promotor público da comarca, Antônio<br />
Querobim Luiz Lopes afirmou<br />
“pelas respostas dos ditos peritos do auto <strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito e mais provas que se coliguem do inquérito vêse<br />
que os ferimentos recolhidos por Severiano Ângelo Rodrigues são leves (...) esta promotoria <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />
oferecer a <strong>de</strong>núncia por não caber procedimento oficial” 32 .<br />
É importante registrar que, nesse inquérito policial, o Juiz Municipal e Delegado <strong>de</strong> Polícia era o capitão Antônio Ferraz<br />
<strong>de</strong> Araújo Catão, o mesmo acusado <strong>de</strong> autoria do crime perpetrado contra Firmino da Silva Gusmão, cujo processo-crime fora<br />
anulado pela justiça. É importante registrar ainda, que, num processo crime instaurado, cabe ao Juiz Municipal e Delegado <strong>de</strong><br />
Polícia 33 remeter ao Juiz <strong>de</strong> Direito da comarca ou Promotor Público do termo os autos <strong>de</strong> todos os inquéritos policiais, cuja<br />
direção e conclusão são <strong>de</strong> sua responsabilida<strong>de</strong>.<br />
Po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>duzir <strong>de</strong>sse fato que a conclusão dos autos com parecer do Juiz Municipal da Vila influenciou a <strong>de</strong>cisão da<br />
Promotoria. Isso não quer dizer que em todos os casos a Promotoria ou o Juiz <strong>de</strong> Direito da comarca se orientassem sempre pela<br />
conclusão do Juiz Municipal da Vila, uma vez que foram vários os inquéritos em que a Promotoria assumiu uma <strong>de</strong>cisão<br />
processual completamente diferente da tomada pelo Juiz Municipal e pelo Delegado <strong>de</strong> Polícia.<br />
Por lei, os cargos <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Direito, <strong>de</strong> Juiz Municipal e <strong>de</strong> Promotor Público <strong>de</strong>veriam ser ocupados por advogados<br />
formados em universida<strong>de</strong>s. Era muito difícil esse critério ser obe<strong>de</strong>cido nos grotões do sertão da Bahia, daí o suplente <strong>de</strong> Juiz<br />
31 Ibid.<br />
32 Inquérito Policial. 04.03.1882. AFJM - Arquivo 1 a Vara Cível. Caixa Diversos: 1890-1899.
31<br />
Municipal ter escrito ao Presi<strong>de</strong>nte da Província, solicitando esclarecimentos acerca do seu ofício, <strong>de</strong>monstrando, por falta <strong>de</strong><br />
formação acadêmica, incapacida<strong>de</strong> em exercer sua função:<br />
“porque não sou bacharel e nem tenho preparatório algum acadêmico, difícil se torna nesse meu juízo a<br />
resolução <strong>de</strong> dúvidas (mesmo até pela falta absoluta <strong>de</strong> jurisconsultos ou advogados) permita V. Exª que eu<br />
roube a V. Exª o tempo em dar-me o esclarecimento que passo a pedir e que me servirá <strong>de</strong> linha <strong>de</strong> conduta<br />
(...)” 34 .<br />
A “falta absoluta <strong>de</strong> jurisconsultos e advogados” para servirem à justiça não foi uma situação sui generis na Imperial Vila<br />
da Vitória. A falta <strong>de</strong> bacharéis em direito nas vilas e cida<strong>de</strong>s do interior do Brasil verificou-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período colonial e esten<strong>de</strong>use<br />
até os fins do século XIX.<br />
Somadas à falta <strong>de</strong> preparação acadêmica dos juízes, os elos <strong>de</strong> parentesco existentes na Vila forjaram um aparato judicial<br />
longe <strong>de</strong> ter a qualificação inerente ao ofício <strong>de</strong> julgar e punir. Os postos <strong>de</strong> comando judicial e policial da Imperial Vila da Vitória,<br />
como se vê no anexo I, foram revezados entre os membros das parentelas que comandavam a política local: Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira,<br />
Oliveira Freitas, Lopes Moitinho, Ferraz <strong>de</strong> Araújo.<br />
A instrumentalização das instâncias públicas pelo mandonismo local <strong>de</strong>finiu o caráter da<br />
administração da Vila. As querelas inerentes às disputas eleitorais, conforme indica a documentação<br />
consultada, ocorriam, na maioria das vezes, durante as eleições primárias quando, através da mesa<br />
paroquial, eram eleitos os eleitores.<br />
A ocasião das eleições indicava sempre uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> modificação <strong>de</strong> interesses e <strong>de</strong> posição<br />
dos grupos na socieda<strong>de</strong>, motivo pelo qual a medição <strong>de</strong> forças se fazia com todos os meios, o que levava<br />
algumas vezes à inviabilização do próprio processo eleitoral, e, no limite dos dissídios e rivalida<strong>de</strong>s, a<br />
Câmara era <strong>de</strong>posta com o acirramento das contendas entre os grupos. Foi o que ocorreu em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />
1860, conforme relataram os oficiais da Câmara ao Presi<strong>de</strong>nte da Província:<br />
“(...) A parcialida<strong>de</strong> política criada neste Município na Igreja Matriz pelo Doutor Casemiro<br />
Pereira <strong>de</strong> Castro, Juiz Municipal <strong>de</strong>ste termo, que esquecido das funções <strong>de</strong> seu cargo, <strong>de</strong> sua<br />
posição, aproveitando-se da ausência do <strong>de</strong>legado, e do Juiz <strong>de</strong> Direito, que já o havia arredado<br />
da discussão, em que com acrimônia tomou parte sem ser eleitor, pôs tudo em conflagração,<br />
dando o sinal <strong>de</strong> alarme com as seguintes palavras anunciadas em altas vozes: tome-se, ou<br />
rasgue-se o livro!!! (...) se lançaram sobre o eleitor Tenente José Nunes Bahiense, Presi<strong>de</strong>nte da<br />
Câmara, para tomarem o livro, o que conseguiram, tomando igualmente o que pertencia à mesa<br />
[Paroquial], colocado ali pelo mesmo Presi<strong>de</strong>nte para as atas das eleições (...) sendo levemente<br />
feridos o capitão José Lopes e o vereador Francisco <strong>de</strong> Paula Moreira Gigante”. 35<br />
O legislativo municipal havia sido eleito em 12 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1856 para o próximo quatriênio. O mandato legislativo<br />
<strong>de</strong>ssa administração encerrar-se-ia após as eleições realizadas em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1860. Ocorre que a ação do grupo li<strong>de</strong>rado pelo<br />
Juiz Municipal, que agrediu a mesa paroquial durante as eleições primárias em <strong>de</strong>zembro, resultou na <strong>de</strong>posição do executivo e<br />
legislativo locais ainda em outubro <strong>de</strong> 1860.<br />
33 Neste momento, as funções <strong>de</strong> Juiz Municipal e Delegado <strong>de</strong> Polícia acumulavam-se numa só pessoa.<br />
34 Correspondência do 1 o suplente <strong>de</strong> Juiz Municipal ao Presi<strong>de</strong>nte da Província. 15.11.1855. APEB. Seção Colonial e Provincial.<br />
Série: Juízes. Maço 2647.
32<br />
Em correspondência ao Presi<strong>de</strong>nte da Província, em 1860, os vereadores legalmente eleitos, e posteriormente <strong>de</strong>postos<br />
relataram ao Presi<strong>de</strong>nte da Província que os cargos da Câmara foram assumidos à força por um “grupo partido enviado e<br />
<strong>de</strong>clarado pelo Doutor juiz municipal Casemiro Pereira <strong>de</strong> Castro”:<br />
“Protestam contra o abuso e violência praticada pelo Procurador <strong>de</strong> papéis Ladislau da Silva<br />
Mello, o escrivão Ludovico G Chaves e os vereadores João Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira e Joaquim<br />
Carlos Andra<strong>de</strong>, por haverem no dia 8 do corrente mês, por insinuações malignas, formado<br />
Câmara artificiosa para seus fins, sendo todos do grupo partido enviado e <strong>de</strong>clarado pelo<br />
Doutor juiz municipal Casemiro Pereira <strong>de</strong> Castro (...)”.<br />
Segundo os vereadores, a <strong>de</strong>posição da Câmara, li<strong>de</strong>rada pelo Juiz Municipal, ocorreu porque o<br />
Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>ste órgão havia faltado a uma sessão ordinária no mês <strong>de</strong> outubro<br />
“(...) em conseqüência da calamida<strong>de</strong> pública, com a enorme seca, que cuja causa se acham retirados para o<br />
Termo diferente (...) aproveitando-se disso aqueles ditos senhores e com a chegada do próprio Doutor juiz<br />
municipal, e o seu partido enviara a capital, eleva-se o 3 o vereador em Presi<strong>de</strong>nte, e sem nenhum aviso ou ciência<br />
ajunta, digo ciência <strong>de</strong> efetivo Presi<strong>de</strong>nte, se alguma urgência havia, ajunta com mais dois vereadores; e suplentes<br />
e [formaram] ontem 8 do corrente, Câmara, sem que tivesse em pedido, ou oficiado o Presi<strong>de</strong>nte efetivo a seu<br />
substituto legal (...)”.<br />
Nota-se que os momentos <strong>de</strong> renovação do legislativo, além <strong>de</strong> serem a ocasião <strong>de</strong> disputas e<br />
medição <strong>de</strong> forças, era também o momento <strong>de</strong> aflorarem as divergências e acusações mútuas entre grupos<br />
que estavam em flagrante oposição e em situação <strong>de</strong> confronto. É o que se percebe no relato dos vereadores<br />
<strong>de</strong>postos, ao registrarem que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o grupo do Juiz Municipal e seu fiel substituto, João Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Oliveira, assumiram a comarca, <strong>de</strong>sapareceu<br />
“(...) a tranqüilida<strong>de</strong> que então gozava este Município. Sendo alterado o sossego público <strong>de</strong> dois anos a esta parte;<br />
pois que reina a intriga, a discórdia que todos lamentamos. Está esta Vila passando por uma terrível crise on<strong>de</strong> são<br />
ameaçadas com mortes pessoas, como o Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sta Comarca pelo mesmo Dr. juiz municipal João Fernan<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> Oliveira”. 36<br />
O secretário da Câmara, Ladislau da Silva Mello, que fora acusado <strong>de</strong> ter ficado com o livro <strong>de</strong> atas,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se trazendo à tona acusações ao então Presi<strong>de</strong>nte da Câmara <strong>de</strong>posta, o coronel José Nunes<br />
Bahiense:<br />
“Ainda meu maior inimigo (...) já tendo anteriormente há esse tempo, alguma aversão contra<br />
mim por ter sido eu um do número dos que <strong>de</strong>saprovaram o assassinato que o representante<br />
mandou fazer barbaramente por seu primo Dimas Gonçalves na pessoa <strong>de</strong> seu agregado o<br />
octogenário Domingos Patuá; pelo que e por outros fatos <strong>de</strong> igual natureza e que o<br />
representante e seus parentes há muitos anos me perseguem para po<strong>de</strong>r obter prescrição<br />
escandaloso meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa (no crime) e que <strong>de</strong>veria ser riscado <strong>de</strong> nossas leis!!! (...) é um dos<br />
35<br />
Correspondência da Câmara ao Presi<strong>de</strong>nte da Província. 17.02.1861. APEB. Seção: Colonial e Provincial. Série:<br />
Correspondências para o Presi<strong>de</strong>nte da Província. Câmaras. Maço 1463.<br />
36 Correspondência dos vereadores da Vila ao Presi<strong>de</strong>nte da Província. 09.10.1860. APEB. Seção: Colonial e Provincial. Série:<br />
Correspondências para o Presi<strong>de</strong>nte da Província. Câmaras. Maço 1463.
33<br />
chefes ou subchefe graduado do Partido Munheca 37 e que ao mesmo tempo advoga neste foro,<br />
intrigou-se comigo por que fui advogado numa causa contra ele (...)”. 38<br />
Em 11 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1861, os oficias da Câmara informaram ao Presi<strong>de</strong>nte da Província que<br />
membros eleitos legalmente haviam reassumido seus postos.<br />
No entanto, parece que a situação ainda não estava resolvida, pois, em 2 <strong>de</strong> abril do mesmo ano, o <strong>de</strong>legado Antônio<br />
Coelho Sampaio escreveu ao Presi<strong>de</strong>nte da Província confirmando a ação dirigida pelo Juiz Municipal da Vila quando, num ato <strong>de</strong><br />
violência, agrediu o Presi<strong>de</strong>nte da Câmara, tomando-lhe o livro <strong>de</strong> atas <strong>de</strong>stinado ao registro da eleição. Ao mesmo tempo, o<br />
<strong>de</strong>legado registrou que a instauração do processo por ele empreendida, como se esperava, não teria resultado:<br />
“Devolvo a representação <strong>de</strong> alguns eleitores e votantes <strong>de</strong>sta Paróquia sobre os fatos ocorridos no dia 30 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro do ano passado por ocasião das eleições É exato tudo que alegam os representantes, pois <strong>de</strong> fato foram<br />
os representados autores do conflito havido na Igreja Matriz, do qual resultou não haver eleição; (...) O resultado<br />
do processo instaurado pelo <strong>de</strong>legado foi nenhum como se esperava (...)”. 39<br />
De fato, <strong>de</strong>corridos quatro meses após a <strong>de</strong>posição da Câmara, os eleitos legalmente ainda não haviam assumido suas<br />
funções. Posteriormente, em correspondência ao Presi<strong>de</strong>nte da Província, o então <strong>de</strong>legado Irênio Ramos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u-se diante das<br />
acusações do então juiz municipal, Theôtonio Gomes Roseira, <strong>de</strong> não ter resolvido a situação justificando-se, junto ao Presi<strong>de</strong>nte,<br />
“que tem se mantido com estranheza às intrigas locais e ao processo eleitoral” do Município, algo quase impossível pela função<br />
que exercia:<br />
“Não me surpreen<strong>de</strong> (...) a inação <strong>de</strong> que sou acusado pelo representante, porque, <strong>de</strong>srespeitado com a exoneração<br />
do cargo <strong>de</strong> <strong>de</strong>legado don<strong>de</strong> tirava toda a influência com que estava preparando o terreno para a nova luta<br />
eleitoral, 40 não vê um minha atitu<strong>de</strong> senão um obstáculo aos seus <strong>de</strong>sígnios.<br />
Meu procedimento aqui tem sido o que V. Exª me recomendou tendo sempre me conservado com a maior<br />
estranheza às intrigas locais e [ao] processo eleitoral (...). 41<br />
Não foi encontrado registro que confirme se a Câmara <strong>de</strong>posta conseguiu retomar suas funções, mas esses<br />
acontecimentos <strong>de</strong>monstram o quanto era conturbada e disputada a renovação dos postos da administração local. As eleições<br />
primárias foram adiadas para o mês <strong>de</strong> julho, ainda em 1861, e o pleito “correu placidamente”, em função da ajuda militar cedida<br />
pela presidência da Província:<br />
“(...) que a eleição <strong>de</strong> Eleitores <strong>de</strong>sta [Paróquia] correu placidamente no <strong>de</strong>signado dia 30 <strong>de</strong> julho e seguinte; e<br />
para o que muito concorreu o Tenente comandante da força policial Antônio Pedro da Costa, que essa presidência<br />
mandou em comissão da capital assistir a eleição <strong>de</strong>sta Freguesia (...)”. 42<br />
Não é difícil compreen<strong>de</strong>r porque as arbitrarieda<strong>de</strong>s faziam parte do processo eleitoral durante todo<br />
o século XIX. As ré<strong>de</strong>as <strong>de</strong> todo o processo estavam nas mãos dos chefes locais. Controlavam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
37 Partido Munheca. Neste momento li<strong>de</strong>rado pelo Tenente José Nunes Bahiense e em oposição ao “Partido da Vereda”, reduto dos<br />
Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira e Ferraz <strong>de</strong> Araújo.<br />
38 Ata da Câmara Municipal datada <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1861. AFJM. 1 ª Vara Cível. Caixa Diversos. 1860-1869.<br />
39 Correspondência do <strong>de</strong>legado, Antônio Coelho Sampaio ao Presi<strong>de</strong>nte da Província. 02.04.1861. APEB. Seção: Colonial e<br />
Provincial. Série: Judiciário. Juízes. Vitória. 1837-1872. Maço 2647.<br />
40 Grifo da autora<br />
41 Correspondência do <strong>de</strong>legado Irênio Ramos ao Presi<strong>de</strong>nte da Província. 26.03.186. APEB. Seção: Colonial e Provincial. Série:<br />
Judiciário. Juízes. Vitória. 1837-1872. Maço 2647.<br />
42 Correspondência da Câmara ao Presi<strong>de</strong>nte da Província. Julho <strong>de</strong> 1861. APEB. Seção: Colonial e Provincial. Série:<br />
Correspondências para o Presi<strong>de</strong>nte da Província. Câmaras. Maço 1463.
34<br />
alistamento dos eleitores até a apuração dos votos. Eles também estavam encarregados <strong>de</strong> indicar a<br />
composição das mesas eleitorais e os locais <strong>de</strong> votação.<br />
Durante muito tempo, na Imperial Vila da Vitória, por falta <strong>de</strong> prédios públicos, as eleições foram<br />
realizadas na se<strong>de</strong> da Igreja Matriz. Nos Arraiais, os pleitos eram realizados na casa <strong>de</strong> residência do<br />
sub<strong>de</strong>legado do distrito ou <strong>de</strong> algum Juiz <strong>de</strong> Paz, isto é, dos chefes locais.<br />
Essa situação propiciava ao mandonismo local usar <strong>de</strong> seus instrumentos <strong>de</strong> intimidação e repressão sem maiores<br />
problemas. As milícias privadas, sempre a postos nos períodos <strong>de</strong> eleição, eram arregimentadas a serviço <strong>de</strong> seu comandante. Nas<br />
eleições primárias <strong>de</strong> 1862, essa situação configurou-se quando Paulino Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira usou sua gente armada para tentar<br />
roubar a urna, conforme <strong>de</strong>screveu o 1 o suplente <strong>de</strong> juiz municipal, Theôtonio Gomes Roseira, ao Presi<strong>de</strong>nte da Província:<br />
“Não po<strong>de</strong>ndo o queixoso Paulino Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira, levar a efeito com os <strong>de</strong> seu lado político os<br />
sanguinolentos planos eleitorais que haviam preparado para a eleição <strong>de</strong> eleitores em agosto do ano próximo<br />
passado (...) É verda<strong>de</strong> que na noite do dia 11 <strong>de</strong> agosto do dito ano o <strong>de</strong>legado 1 o suplente Joaquim Gonçalves<br />
Limoeiro fez sobrar patrulhas <strong>de</strong> gente armada com espingardas das 10 horas <strong>de</strong>ssa noite às 6 horas da manhã e<br />
reforçar a força da polícia que estava <strong>de</strong> guarda da urna <strong>de</strong>ntro da Igreja Matriz <strong>de</strong>ssa Vila, porque há essa hora<br />
recebi da pessoa fi<strong>de</strong>digna a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> que um grupo <strong>de</strong> homens a cavalo do lado político do queixoso tentaram<br />
<strong>de</strong> assalto roubar a mesma urna (...)”. 43<br />
Diante da situação, o juiz municipal, titular do cargo, Virgílio Silva Faria, tentando mostrar a sua<br />
autorida<strong>de</strong> junto ao Presi<strong>de</strong>nte da Província, justificou-se esclarecendo que<br />
“(...) Esta localida<strong>de</strong> está dividida em dois partidos, <strong>de</strong> um é chefe o Tenente coronel Theôtonio<br />
Gomes Roseira, e <strong>de</strong> outro, o representante Paulino Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira; a informação <strong>de</strong>ste<br />
tornou-se suspeita, tanto mais quanto a primeira, porque os fatos são muitos exagerados (...)” 44 .<br />
O talento dos chefes locais em fazer cumprir seus <strong>de</strong>sejos era medido pela capacida<strong>de</strong> que possuíam<br />
<strong>de</strong> arregimentar pessoas armadas para cumprir, através da força, suas <strong>de</strong>cisões. As milícias privadas, também<br />
símbolos <strong>de</strong> prestígio, <strong>de</strong>monstravam, para o chefe local, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilizar o maior número <strong>de</strong><br />
homens (jagunços) sob suas or<strong>de</strong>ns.<br />
A ocasião das eleições era um momento privilegiado para pôr em ação grupos armados que cometiam as mais variadas<br />
arbitrarieda<strong>de</strong>s e formas <strong>de</strong> violência. As autorida<strong>de</strong>s, por sua vez, redobravam a segurança da se<strong>de</strong> do Município, aumentando o<br />
efetivo da patrulha como forma <strong>de</strong> agir diante das ações <strong>de</strong> violência já aguardadas para o momento. Foi essa a medida adotada<br />
pelo juiz municipal, José Cardoso da Cunha, durante as eleições <strong>de</strong> 1876, conforme <strong>de</strong>screveu em 1 o <strong>de</strong> outubro do mesmo ano, ao<br />
Presi<strong>de</strong>nte da Província:<br />
“(...) na data <strong>de</strong> ontem às 10 horas da noite, (...) um fato revoltante qual o do assassinato do<br />
infeliz Aprígio : o fato passou-se pela forma seguinte. Sendo hoje o dia <strong>de</strong>signado para as<br />
Eleições <strong>de</strong> Eleitores, Juízes <strong>de</strong> Paz e vereadores, como era natural compareceu um número<br />
mais ou menos consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> [cidadãos] para votarem. O <strong>de</strong>legado <strong>de</strong> polícia do termo<br />
formou uma patrulha composta <strong>de</strong> quarenta a cinqüenta indivíduos para policiar a Vila (...) a<br />
pessoa encarregada <strong>de</strong> capitaneá-la foi Antônio Vieira da Costa tido e havido por um homem <strong>de</strong><br />
43 Correspondência do juiz municipal <strong>de</strong> Órfãos, Theôtonio Gomes Roseira ao Presi<strong>de</strong>nte da Província. 21.01.1862. APEB. Seção:<br />
Colonial e Provincial. Série: Judiciário. Juízes. Vitória. 1837-1872. Maço 2647.<br />
44 Ibid.
35<br />
má índole, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro e <strong>de</strong> [maus] prece<strong>de</strong>ntes, e alguns dos indivíduos que [compunham] a dita<br />
patrulha eram <strong>de</strong> reconhecida incapacida<strong>de</strong> para o mister <strong>de</strong> policiar: patrulha que <strong>de</strong>veria ser<br />
policiada, policiosa, como um acinte à moralida<strong>de</strong> pública!”.<br />
Os <strong>de</strong>smandos afloravam também as divergências entre os dirigentes locais. Observa-se que o Juiz Municipal <strong>de</strong>nunciou<br />
o Delegado <strong>de</strong> Polícia <strong>de</strong> ter posto no comando da patrulha “um homem <strong>de</strong> má índole, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iro e <strong>de</strong> [maus] prece<strong>de</strong>ntes”. Da<br />
mesma forma, acusou o <strong>de</strong>legado <strong>de</strong> ter formado a patrulha com indivíduos “<strong>de</strong> reconhecida incapacida<strong>de</strong> para o mister <strong>de</strong><br />
policiar: patrulha que <strong>de</strong>veria ser policiada”.<br />
Da acusação do Juiz Municipal po<strong>de</strong>-se até concluir que os ditos indivíduos que compunham a patrulha eram também<br />
homens em débito com a polícia e a justiça do lugar. Da mesma forma, conclui-se que ao Juiz Municipal nada restava, senão<br />
queixar-se ao Presi<strong>de</strong>nte da Província, assinando o atestado <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resolver problemas <strong>de</strong> tal natureza e lamentar o<br />
crime, resultante do <strong>de</strong>smando, cometido pela patrulha no exercício <strong>de</strong> “garantir a or<strong>de</strong>m” do processo eleitoral:<br />
“Semelhante patrulha <strong>de</strong>senfreada, tendo encontrado na referida rua o infeliz Aprígio, bruscamente or<strong>de</strong>nou-lhe<br />
que lhe fizesse pronta entrega <strong>de</strong> um facão que trazia à cintura e como não fosse <strong>de</strong> pronto obe<strong>de</strong>cida, enfurecida<br />
colocou-se sobre ele, e o assassinaram, não obstante haver o infeliz corrido, o que foi presenciado por pessoas<br />
fi<strong>de</strong>dignas <strong>de</strong>sta Vila, tanto que sofreu uma facada nas costas.!” 45<br />
No entanto, parece que o Juiz Municipal se i<strong>de</strong>ntificava com algum grupo político no Município, pois justificou o nãoagravamento<br />
da situação “graças à prudência <strong>de</strong> alguns indivíduos que pertencem ao lado liberal <strong>de</strong>sta Vila”. 46 Possibilida<strong>de</strong><br />
provável, uma vez que o cargo <strong>de</strong> Delegado <strong>de</strong> Polícia era <strong>de</strong>stinado a alguém <strong>de</strong> confiança <strong>de</strong> algum chefe local.<br />
É certo, porém, que as práticas do mandonismo não se manifestam somente nos períodos <strong>de</strong> eleição,<br />
estão imersas nas correntes do cotidiano da vida política e social durante todo o século XIX e também nos<br />
anos republicanos. Apenas se expan<strong>de</strong>m nesses momentos, sendo instrumentalizadas em benefício dos<br />
grupos locais que disputam o controle dos órgãos da administração pública do Município.<br />
Estando esses homens no comando dos postos <strong>de</strong> mando não é muito difícil imaginar o quanto era<br />
arbitrário e pessoal o exercício <strong>de</strong>ssas funções, que, pelo seu caráter, <strong>de</strong>veriam ser exercidas <strong>de</strong> forma pública<br />
e impessoal.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />
CARVALHO, J. M. <strong>de</strong>. Desenvolvimiento <strong>de</strong> la ciudadanía en Brasil. México: Fondo <strong>de</strong> Cultura Econômica, 1995.<br />
FRANCO, M. S. <strong>de</strong> C. Homens livres na or<strong>de</strong>m escravocrata. 3. ed. São Paulo: Kairós Livraria Editora Ltda, 1983.<br />
OLIVEIRA, F. A. M. <strong>de</strong>. Famílias proprietárias e estratégias <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r local no século passado. Revista brasileira <strong>de</strong> história, São<br />
Paulo, v. 9, nº 17, p. 65-85, set. 88 / fev. 89.<br />
QUEIROZ, M. I. P. <strong>de</strong>. O mandonismo local na vida política brasileira. In: __. O mandonismo local na vida política brasileira e<br />
outros ensaios. São Paulo: Editora Alfa Ômega, 1976a.<br />
45 Correspondência do juiz municipal, José Cardoso da Cunha, ao Presi<strong>de</strong>nte da Província. 01.10.1876. APEB. Seção: Colonial e<br />
Provincial. Série: Judiciária. Vitória. 1874-1889. Maço 2648.
46 Ibid.<br />
36