A questão dos ressentimentos e a imigração alemã-judaica para o ...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA<br />
CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS<br />
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL<br />
Narrativas e lágrimas: A questão <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> e a<br />
imigração alemã-<strong>judaica</strong> <strong>para</strong> o Brasil (1938-1981)<br />
Valdir Pimenta <strong>dos</strong> Santos Junior<br />
Londrina, Setembro, 2008.
2<br />
Narrativas e lágrimas: construções de <strong>ressentimentos</strong> e<br />
fronteiras – A imigração alemã-<strong>judaica</strong> <strong>para</strong> o Brasil<br />
(1938-1981)<br />
Valdir Pimenta <strong>dos</strong> Santos Junior<br />
Orientador (a): Marco Antonio Neves Soares<br />
Dissertação de Mestrado apresentada ao<br />
Programa de Pó-Graduação em História<br />
Social do Centro de Letras e Ciências<br />
Humanas, da Universidade Estadual de<br />
Londrina – UEL, em cumprimento às<br />
exigências <strong>para</strong> obtenção do título de<br />
Mestre em História Social, na linha de<br />
Culturas, Representações e<br />
religiosidades.<br />
Londrina, Setembro, 2008.
3<br />
Valdir Pimenta <strong>dos</strong> Santos Junior<br />
Narrativas e lágrimas: construções de <strong>ressentimentos</strong> e<br />
fronteiras – A imigração alemã-<strong>judaica</strong> <strong>para</strong> o Brasil (1938-<br />
1981)<br />
Avaliado em_____________com conceito ____________<br />
Banca examinadora da Dissertação de Mestrado:<br />
Profº ___________________________________________<br />
Orientador<br />
Profº___________________________________________<br />
Examinador externo<br />
Profº___________________________________________<br />
Examinador interno
4<br />
DEDICATÓRIA<br />
Gostaria de dedicar este trabalho a meu pai, por sua<br />
inestimável presença e confiança. Também a minha mãe, por seu cuidado e<br />
carinho.<br />
Não poderia deixar de mencionar meu orientador, Prof. Doutor<br />
Marco Antonio Neves Soares, do departamento de História da Universidade<br />
Estadual de Londrina, pelas longas horas de conversa e orientação, por sua<br />
amizade e paciência, a você sou muito grato.<br />
Gostaria ainda de dedicá-lo a meus irmãos, Aline e Diego, pela<br />
força incondicional que nos une.<br />
Também aos queri<strong>dos</strong> amigos Ana Albara e Manoel Nasser,<br />
pela intensa caminhada nas ruas de Londrina. A Raquel Palma, por ter feito<br />
meus dias mais ternos e mais vivos.<br />
Dedico também a to<strong>dos</strong> aqueles que partici<strong>para</strong>m de alguma<br />
forma de toda a minha história, familiares, oriun<strong>dos</strong> de Itália ou Portugal,<br />
amigos de diferentes lugares, professores, a vocês minha gratidão.<br />
Por fim, gostaria de agradecer aqueles que iniciaram comigo<br />
esta jornada em Londrina e sem os quais eu seria literalmente um peixe fora<br />
d’água: Isadora Librais, Jaquis Greter e Jorge Bacco. A vocês três minha<br />
imensa reverência. Sem me esquecer ainda de amigos conquista<strong>dos</strong> por<br />
aqui: Janaina Palmar, Igor Galdino e Thiago Pizutti. A vocês também sou<br />
eternamente grato pelo tempo compartilhado.<br />
Ainda meus agradecimentos a outros não cita<strong>dos</strong> , mas não<br />
menos importantes: Matheus Passianoto, Letícia, Gabriel Del Grossi, Daniel<br />
Bruhl, Caroline Minorelli, Nilo, Juca San Martin, Raphael Batista, Diego<br />
Velho, Fernando Murya, Thiago Roncon, Marcos Ursi, Lívia Harfuchi e a<br />
to<strong>dos</strong> os queri<strong>dos</strong> amigos de Rancharia não menciona<strong>dos</strong> aqui. Muito<br />
Obrigado.
5<br />
O sofrimento é repartido ao longo da vida e<br />
se<strong>para</strong>do por blocos de esquecimento. (Carlos<br />
Drummond de Andrade)
6<br />
AGRADECIMENTOS<br />
Pela elaboração da pesquisa gostaria de agradecer a<br />
Universidade Estadual de Londrina, que durante quase uma década me<br />
acolheu enquanto estudante.<br />
Gostaria de agradecer aos professores do departamento de<br />
História por suas aulas ministradas ao longo desses anos.<br />
Também aos colegas que partici<strong>para</strong>m igualmente desta<br />
caminhada desde a graduação em História.<br />
Gostaria de agradecer aos imigrantes ainda vivos de Rolândia<br />
por sua colaboração e também aos descendentes que muito nos ajudaram<br />
com suas entrevistas e seu material fornecido <strong>para</strong> o desenvolvimento de<br />
nosso trabalho.<br />
Ainda meus agradecimentos a to<strong>dos</strong> aqueles que direta ou<br />
indiretamente partici<strong>para</strong>m da construção desta pesquisa. A to<strong>dos</strong> vocês<br />
meus agradecimentos.
7<br />
PREFÁCIO<br />
O presente trabalho foi elaborado a partir de uma pesquisa<br />
desenvolvida na Universidade Estadual de Londrina acerca das relações<br />
estabelecidas a partir <strong>dos</strong> eventos que se desenvolveram no contexto da<br />
Segunda Grande Guerra (1939-1945).<br />
Particularmente, a pesquisa se colocou sobre as questões que<br />
envolvem o anti-semitismo praticado pela estrutura do nazismo alemão.<br />
Foram utilizadas fontes literárias <strong>para</strong> investigar a construção histórica <strong>dos</strong><br />
<strong>ressentimentos</strong> em refugia<strong>dos</strong> estabeleci<strong>dos</strong> no município de Rolândia -PR a<br />
partir do final da década de 1930. Duas obras foram escolhidas como<br />
fontes primárias: Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva<br />
brasileira – Relato de um imigrante (1938-1975), de Max Hermann Maier e<br />
Os jardins de minha vida, de Mathilde Maier. A partir da narrativa <strong>dos</strong> dois<br />
autores surgiu então a idéia de uma investigação da formação <strong>dos</strong><br />
<strong>ressentimentos</strong>. Ambos os autores refugiaram -se no Brasil em 1938, tendo<br />
então estabelecido moradia em uma fazenda de nome Jaú aos arredores da<br />
cidade de Rolândia, ainda em formação naquele momento.<br />
Os livros esboçam aquilo que definimos como trabalhos<br />
memorialísticos, ou seja, buscam expor as expe riências a que foram<br />
submeti<strong>dos</strong>. Max Hermann Maier parte de uma análise ligada ao momento<br />
em que abandonaram a Alemanha, seguindo até a chegada ao Brasil e a<br />
conseqüente adaptação em terra estrangeira. Mathilde Maier trabalha de<br />
forma distinta, aborda toda a trajetória de sua vida, desde a infância até a<br />
imigração <strong>para</strong> o Brasil.<br />
A história <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> se revelou uma difícil abordagem<br />
daquilo a que os homens possuem ampla dificuldade de expressão. Desta<br />
forma, analisar o não dito em suas narrativas foi o objetivo principal da<br />
pesquisa, procurando assim analisar de que forma sua análise seria possível
8<br />
através de um olhar historiográfico de desconstrução de valores intrínsecos,<br />
a fim de estabelecer como é possível sua viabilidade social.<br />
Ao lado da historiografia foram utilizado s instrumentos<br />
forneci<strong>dos</strong> pela antropologia, a partir daquilo que a mesma estabelece<br />
enquanto interpretação <strong>dos</strong> grupos étnicos e a forma como definem valores<br />
ou características que sejam pertinentes a identificação de tais grupos.<br />
Desta forma, a pesquisa utilizou -se de fontes literárias e não<br />
documentos formais <strong>para</strong> sua elaboração. Esta peculiaridade forneceu<br />
caminhos interessantes ao trabalho historiográfico, de forma que a partir da<br />
narrativa <strong>dos</strong> dois imigrantes é que buscamos definir nosso foco, nesse<br />
caso, a investigação da construção histórica <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>.<br />
Sendo assim, aquilo a que chamamo s <strong>ressentimentos</strong> estaria<br />
ligado a uma construção subjetiva, individual ou coletiva, mas sempre em<br />
comunicação com os eventos que os precedem, ou seja, a form ação de um<br />
sujeito ou grupo envolvido em <strong>ressentimentos</strong> se dá a partir da experiência<br />
que produzem e comungam com os outros, entendi<strong>dos</strong> aqui no sentido da<br />
alteridade, onde a experiência sempre negativa de tal manifestação se<br />
coloca somente na intervenção de um ou muitos sobre estes.<br />
Particularmente, a experiência histórica da etnia <strong>judaica</strong>,<br />
apresenta nesse sentido um ilimitado campo de investigação <strong>para</strong><br />
historiadores, sobretudo quando tornamos relevante o anti -judaismo<br />
praticado ao longo <strong>dos</strong> séculos em diversas regiões do mundo. É importante<br />
ressaltar o caráter estritamente investigativo deste trabalh o, não se tratando<br />
aqui de um discurso em defesa da vasta comunidade <strong>judaica</strong> ou ainda de<br />
expor tal grupo enquanto vítimas da história, ao contrário, nosso objetivo se<br />
debruça sobre a necessidade de desconstruir historicamente um <strong>para</strong>digma<br />
que não se abstém de ações igualmente humanas, e, por isso, inválidas de<br />
serem concretizadas de outra forma.<br />
Mantendo o ponto inicial que expunha a experiência <strong>judaica</strong>,<br />
juntamente às fontes utilizadas, foram escolhi<strong>dos</strong> outros personagens<br />
históricos que pudessem também contribuir com o desenvolvimento da
9<br />
pesquisa, reforçando assim o estudo acerca <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>. Para tanto,<br />
dois autores e suas respectivas biografias foram escolhi<strong>dos</strong>: Primo Levi e<br />
Stefan Zweig, além destes o trabalho passa também por uma reflexão acerca<br />
de ações de descendentes judaicos no Brasil dentro do contexto do período<br />
militar no país. Tais passagens parecem demonstrar, no contexto da<br />
pesquisa, construções de <strong>ressentimentos</strong> em momentos distintos , através de<br />
igualmente distintas perspectivas. Os trabalhos a respeito da literatura<br />
produzida por escritores de ascendência <strong>judaica</strong> renderam em outros<br />
momentos pesquisas referentes a certa peculiaridade da produção literária<br />
<strong>judaica</strong>, de forma a demonstrarem como o fato de estarem liga<strong>dos</strong> ao<br />
judaísmo dava aos textos um tipo de melancolia, um humor específico.<br />
Estes elementos configurariam assim uma relação textual estabelecida com<br />
a procedência étnica de seus autores. Ao longo da dissertação essa questão<br />
será abordada com mais detalhes e as devidas referência s.<br />
Portanto, o trabalho que se desenvolveu aqui não é mais que<br />
uma reflexão acerca das relações estabelecidas na história entre os<br />
<strong>ressentimentos</strong> e a produção literária de escritores de ascendência <strong>judaica</strong>.<br />
O recorte temporal se estabelece no período contemporâneo, de 1938 a<br />
1981, a data inicial foi escolhida por ser o ano da imigração do casal Maier<br />
<strong>para</strong> o Brasil e a data final por ser o ano da publicação do livro de Mathilde<br />
Maier, que evidentemente foi publicado posteriormente ao de Max Hermann<br />
Maier. Este teve sua publicação em 1975, mas somente no idioma alemão,<br />
mais tarde, entre 1976 e 1977, Mathilde Maier e Elmar Joenck, professor e<br />
amigo do casal, finalizaram a versão em português iniciada por Max<br />
Hermann Maier e não finalizada devido ao seu falecim ento em 1976.
10<br />
RESUMO<br />
SANTOS JUNIOR, Valdir Pimenta <strong>dos</strong>. Narrativas e lágrimas: A questão <strong>dos</strong><br />
<strong>ressentimentos</strong> e a imigração alemã-<strong>judaica</strong> <strong>para</strong> o Brasil (1938-1981). [Dissertação de<br />
Mestrado]. Londrina: UEL, 2010, pp.<br />
O trabalho intitulado Narrativas e Lágrimas – A questão <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong><br />
e a imigração alemã-<strong>judaica</strong> <strong>para</strong> o Brasil (1938-1981) se define como um<br />
esforço historiográfico que buscou compreender a estruturação histórica que<br />
permeia a formação <strong>dos</strong> chama<strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>. A partir da análise de<br />
duas obras produzidas por imigrantes alemães, Um advogado de Frankfurt<br />
se torna cafeicultor na selva brasileira – Relato de um imigrante (1938-<br />
1975), de Max Hermann Maier, editado em 1975 no idioma alemão e<br />
traduzido <strong>para</strong> o português em 1977, e Os jardins de minha vida, de<br />
Mathilde Maier, editado em 1981, o trabalho foi desenvolvido. As duas<br />
narrativas utilizadas serviram como fontes <strong>para</strong> a investigação da<br />
construção <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> em refugia<strong>dos</strong> de ascendência <strong>judaica</strong> no<br />
município de Rolândia-PR. Tais refugia<strong>dos</strong> chegaram ao Brasil no ano de<br />
1938 após as restrições impostas pelo partido nacional socialista alemão aos<br />
alemães-judeus residentes na Alemanha. Desta forma se configurou o<br />
cenário que mais tarde levou Max e Mathilde Maier a produzirem suas<br />
obras, tratadas aqui como relatos memorialísticos, ou seja, narrativas que<br />
buscaram expor suas experiências na Europa e em terra estrangeira.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Imigração – Judaísmo – Ressentimentos –<br />
Religião – História – Memória<br />
ABSTRACT<br />
SANTOS JUNIOR, Valdir of pepper. Narratives and tears: The issue of resentment and<br />
German-Jewish immigration to Brazil (1938-1981). [Dissertation]. Londrina: UEL, 2010,<br />
pp.<br />
The work entitled Narratives and Tears - The issue of resentment and German-Jewish<br />
immigration to Brazil (1938-1981) is defined as a historiographical effort that sought to<br />
understand the historical structure that permeates the formation of so-called resentment.<br />
From the analysis of two works created by German immigrants, a lawyer from Frankfurt<br />
becomes grower in the Brazilian jungle - Report of an immigrant (1938-1975), Max<br />
Hermann Maier, published in 1975 in German and translated into Portuguese in 1977, and
11<br />
gardens of my life, Mathilde Maier, published in 1981, the work was done. The two<br />
narratives were sources used to research the construction of the resentments of Jewish<br />
refugees in the city of Rolândia-PR. These refugees arrived in Brazil in 1938 after the<br />
restrictions imposed by the German National Socialist Party of German-Jewish residents in<br />
Germany. This should set the scene who later took Max and Mathilde Maier to produce<br />
their works treated here as reports memoirs, or stories that sought to explain their<br />
experiences in Europe and in a foreign land.<br />
KEY WORDS: Immigration - Judaism - Resentments - Religion - History -<br />
Memory
12<br />
SUMÁRIO<br />
I – INTRODUÇÃO.......................................................14<br />
I.I – CONTEXTUALIZAÇÃO......................................21<br />
II – JUSTIFICATIVA..................................................26<br />
III – A HISTÓRIA E OS RESSENTIMENTOS.............28<br />
III,I – OS RESSENTIMENTOS E OS IMIGRANTES<br />
ALEMÃES DE ROLÂNDIA-PR...................................44<br />
IV – O OUTRO NA HISTÓRIA E A FIGUEIRA<br />
BRAVA........................................................................57<br />
IV.I – O ESTRANHAMENTO, O JUDEU E A<br />
HISTÓRIA...................................................................57<br />
IV.II – MATHILDE MAIER E A FIGUEIRA BRAVA<br />
OU O DISCURSO DO ESTRANHAMENTO.................70
13<br />
IV.III – OUTRAS DUAS HISTÓRIAS..........................77<br />
V -CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................82<br />
VI – ANEXOS..............................................................87<br />
VI.I – FOTOGRAFIAS................................................87<br />
VI.II – ENTREVISTA KLAUS KAPHAN.....................99<br />
VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................109
14<br />
I – INTRODUÇÃO<br />
A questão da memória, aos trabalhos historiográficos, é de<br />
suma importância. Aos povos antigos, a ideia de tempo mítico, alheia ao<br />
tempo histórico, tirava-lhes a necessidade de um significado na história.<br />
Mais tarde, o significado na história, segundo alguns pesquisadores , passou<br />
a ser significativo, com e <strong>para</strong> os judeus:<br />
“Dizem que Heródoto é reconhecido como o “pai da história”<br />
(afirmativa que requer reavaliação, mas não me deterei aqui em<br />
fazê-la), e até bem recentemente todas as pessoas cultas sabiam<br />
que os gregos produziram uma linhagem de grandes<br />
historiadores, que podem ainda ser li<strong>dos</strong> com prazer e empatia.<br />
Entretanto, nem os historiadores gregos, nem a civilização que<br />
os criou percebeu qualquer significado transcendente ou<br />
fundamental na história como um todo; realmente, eles nunca<br />
chegaram a elaborar bem o conceito de históri a universal, da<br />
história “como um todo”. Heródoto escreveu com a aspiração<br />
humana característica de – em suas próprias palavras –<br />
“preservar do perecimento a lembrança daquilo que os ho mens<br />
realizaram e impedir as grandes e maravilhosas ações <strong>dos</strong> gregos<br />
e <strong>dos</strong> bárbaros de perder sua merecida recompensa de glória”.<br />
Para Heródoto, narrar a história era uma garantia contra a erosão<br />
inexorável da memória engendrada pela passagem do tempo. Em<br />
geral, a historiografia grega foi expressão daquela esplêndida<br />
curiosidade helênica de conhecer, e investigar, que ainda nos<br />
aproxima deles, ou ainda de buscar no passado exemplos morais<br />
ou insights políticos. Além disso, a história não tinha verdades a<br />
oferecer, e assim não tinha lugar na filosofia ou religião gregas.<br />
Se Heródoto, foi o pai da história, os pais do significado na<br />
história foram os judeus. O antigo Israel foi quem primeiro<br />
determinou um significado decisivo à história, e assim forjou
15<br />
nossa visão de mundo, cujas premissas foram essenciais foram<br />
por fim apropriadas pelo cristianismo a também pelo islamismo.<br />
“Os céus” nas palavras do salmista podem ainda proclamar a<br />
“glória do senhor”, mas foi a história humana que revelou seu<br />
desejo e propósito. Essa nova percepção não foi resultado de<br />
especulação filosófica, mas da natureza peculiar da fé israelita.<br />
Emergiu da compreensão intuitiva e revolucionária de Deus, e<br />
foi refinada através de experiências históricas profundamente<br />
vivenciadas. 1<br />
Desta forma, a afirmação se coloca sobre uma espécie de lugar<br />
dominante da história no antigo Israel, ou seja, sobre o fato de que o<br />
próprio deus judaico só se revela na medida em que é historicamente<br />
conhecido. Yerushalmi acrescenta:<br />
“Enviado <strong>para</strong> trazer as novas da libertação <strong>para</strong> os escravos<br />
hebreus, Moisés não vem em nome do cr iador do Céu e da Terra,<br />
mas em no me do “Deus <strong>dos</strong> antepassa<strong>dos</strong>”, isto é, o Deus<br />
histórico: “Vai e reúne os anciãos de Israel, dizendo -lhes: o<br />
Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de<br />
Jacó apareceu-me e disse-me: Eu vos visitei e vi o que se vos faz<br />
no Egito...” 2<br />
Portanto, se assim direcionamos nosso olhar <strong>para</strong> a experiência<br />
<strong>judaica</strong>, assim podemos concluir que a memória tornou -se fundamental <strong>para</strong><br />
o exercício da própria fé hebraica e, em última instância, <strong>para</strong> sua própria<br />
existência. 3 A ordem de lembrar-se é assim absoluta, havendo porquanto<br />
uma sabedoria antiga que os remetia ao fato de compreender quão curta e<br />
instável é a memória humana. Não se trata aqui de afirmarmos que o<br />
judaísmo caminhou no sentido da formação de uma “nação” de<br />
1 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história <strong>judaica</strong> e memória <strong>judaica</strong>; tradução de Lina G. Ferreira<br />
da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Yosef Hayim Yerushalmi é professor de História, Cultura e<br />
Sociedade Judaica e diretor do Centro de estu<strong>dos</strong> Judaicos e de Israel da Universidade de Columbia.<br />
2 O trecho citado por Yerushalmi encontra-se na Tora, livro máximo da expressão <strong>judaica</strong>, em Êxodo, 3:16.<br />
3 Idem 2.
16<br />
historiadores, sobretudo por que se esta história é real, não poderá se<br />
repetir, apenas o tempo mítico se repete, ou seja, a fuga do Egito ou a<br />
libertação do cativeiro da Babilônia só poderiam uma vez dar -se<br />
historicamente, o que obriga a to<strong>dos</strong> os outro s que lá não estiveram, a um<br />
exercício de preservação de tais acontecimentos, também porque, na<br />
concepção hebraica, o homem,<br />
“lançado na história, veio <strong>para</strong> afirmar sua existência histórica,<br />
apesar do sofrimento que esta encerra e, gradual e<br />
laboriosamente, descobre que Deus o revela a ele próprio<br />
durante o decurso da hist ória. Os rituais e festas no antigo Israel<br />
não são mais repetições de arquétipos míticos destina<strong>dos</strong> a<br />
aniquilar o tempo histórico. Quando evocam o passado, não mais<br />
se trata do passado p rimevo, mas do passado histórico, no qual<br />
realizaram-se os momentos cruciais da história de Israel. Longe<br />
de tentar uma fuga da história, a religião bíblica se permite ser<br />
impregnada por ela, e não pode ser concebida se apartada da<br />
história” 4<br />
Assim, se a preocupação com o tempo histórico está presente<br />
na cultura <strong>judaica</strong>, esta se faz na narrativa e também nos rituais. As festas,<br />
mesmo preservando seus laços orgânicos (primavera e primeiros frutos),<br />
foram transformadas, por exemplo, em comemorações do Êxodo do Egito e<br />
da estada no deserto. Em Deuteronômio 26, diz -se que um celebrante<br />
israelita na cerimônia <strong>dos</strong> primeiros frutos deve proferir as seguintes<br />
palavras:<br />
“Meu pai era um arameu errante que desceu ao Egito com poucas<br />
pessoas e ali residiu; e lá torno u-se uma nação grande, forte e<br />
numerosa. Os egípcios nos afligiram e nos oprimiram, impondo -<br />
nos uma penosa servidão. Chamamos então ao Senhor, o Deus de<br />
nossos pais, e ele ouviu nosso clamor e viu nossa aflição e nossa<br />
miséria e nossa opressão. E o Senhor nos tirou do Egito com mão<br />
4 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história <strong>judaica</strong> e memória <strong>judaica</strong>; tradução de Lina G. Ferreira<br />
da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Página 29.
17<br />
forte e braço estendido, e com grande terror, e com sinais, e com<br />
prodígios. E ele nos trouxe até este lugar, e nos deu esta terra,<br />
uma terra onde mana leite e mel...” 5<br />
Parece-nos um tipo de história concisa, onde o essencial a ser<br />
lembrado está claramente presente sob uma forma ritualizada. Não se trata,<br />
é claro, de uma história “factual” no sentido moderno, mas aos povos<br />
antigos tratava-se de tipos de percepção e interpretações históricas<br />
legítimas. A historiografia bíblica n ão apresenta uniformidade nesse<br />
sentido, mesmo porque sua narrativa foi escrita em diferentes momentos<br />
históricos e inevitavelmente, por diferentes autores. Sobre isto afirma<br />
Yerushalmi:<br />
“As narrativas históricas que abrangem os perío<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> inícios<br />
da humanidade até a conquista de Canaã são necessariamente<br />
mais lendárias, os relatos da monarquia muito menos, e mesmo<br />
dentro de cada segmento existem acentuadas variações de grau.<br />
Isso já era de se esperar. Os textos históricos da Bíblia, escritos<br />
por diferentes autores em épocas diversas, frequentemente eram<br />
também produtos de um longo processo de transmissão de<br />
tradições e documentos mais antigos”. 6<br />
Podemos expor, desta maneira, que mesmo aos sábios hebreus<br />
que viveram após os tempos bíblicos, o tempo q ue lhes importou foi<br />
sobretudo aquilo que sentiam ser relevante, ou seja, destaca -se aqui aquilo<br />
que era então relevante ao avanço da vida religiosa e comunitária do povo<br />
judeu. Não preservaram, portanto, a história política da Antiguidade, ou<br />
ainda revelaram escasso interesse na história de Roma, mas não<br />
esqueceram a perseguição sofrida sob o imperador Adriano e o martírio<br />
<strong>dos</strong> sábios. 7 Há uma relação direta na compreensão histórica <strong>judaica</strong> entre<br />
5 Deuteronômio 26:5-9, in Tora.<br />
6 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história <strong>judaica</strong> e memória <strong>judaica</strong>; tradução de Lina G. Ferreira<br />
da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Página 33.<br />
7 Idem. Página 44.
18<br />
destruição e redenção, como se aquilo que pode emergir ou sustentar a<br />
comunidade enquanto povo sagrado é sempre algo que não apenas surge da<br />
interferência divina na história, mas também que esta interferência é<br />
determinada por momentos de intensa ruptura, como o Messias que nascera<br />
somente no dia em que o Templo fora destruído. Trata-se de uma história de<br />
significa<strong>dos</strong> cria<strong>dos</strong> a partir de eventos históricos, de significações<br />
escolhidas detalhadamente e, por conseguinte definidora não de uma<br />
verdade, mas de uma interpretação específica da história.<br />
Juntamente à interpretação histórica que os judeus criaram e<br />
suas amplas necessidades de memória podemos observar a questão do<br />
sofrimento e mais adiante aquilo que nos é mais importante neste trabalho:<br />
a construção de seus <strong>ressentimentos</strong>, ou ainda a construção de seus<br />
<strong>ressentimentos</strong> a partir da experiência histórica:<br />
“Ele que respondeu a Abraão, nosso pai, no monte Moriá.<br />
Ele nos responderá, e a todas as comunidades sagradas,<br />
e a to<strong>dos</strong> imersos em sofrimento e aflição,<br />
e a to<strong>dos</strong> prisioneiros de reis e príncipes.<br />
Ele que respondeu a Moisés no Mar Vermelho,<br />
Ele nos responderá.<br />
Ele que respondeu a Josué em Gilgal,<br />
Ele nos responderá.<br />
Ele que respondeu a Samuel em Mizpah,<br />
Ele nos responderá.<br />
Ele que respondeu a Elias nos monte Carmel,<br />
Ele nos responderá.<br />
Ele que respondeu a J onas na barriga da baleia,<br />
Ele nos responderá.<br />
Ele que respondeu a Davi e a Salomão em Jerusalém,<br />
Ele nos responderá”. 8<br />
Não apenas a memória de seus antepassa<strong>dos</strong> e de suas<br />
experiências frente a intervenção divina, mas também a memória de suas<br />
8 Da liturgia de um jejum bíblico (baseado na Mishnah Ta’anit 2:4)
19<br />
dores e a memória daquilo que julgaram definidor de seu papel junto a<br />
Deus. A memória trágica do povo judaico parece então definidora de sua<br />
própria expectativa enquanto povo sagrado. Para uma comunidade que<br />
impõe o tempo histórico como valor de pertença e símbolo <strong>para</strong> que as<br />
gerações futuras atentem sobre sua responsabilidade, os acontecimentos<br />
trazem e afirmam aquilo que os define, ou seja, <strong>para</strong> que possam somente<br />
enxergar a si mesmos quando então evocam aquilo que seus antepassa<strong>dos</strong><br />
fizeram em nome da própria comunidade e a serviço de Deus, ou ainda<br />
somente a partir da intervenção divina é que é feita a manutenção de sua<br />
trajetória na história e estas intervenções quase sempre se manifestaram na<br />
narrativa hebraica quando necessitavam de uma espécie de milagre <strong>para</strong><br />
livraram-se ou serem libertos de uma imposição terrena, como os perío<strong>dos</strong><br />
de escravidão ou submissão a um grupo que lhes era hostil.<br />
Sendo assim, como se formou ou como é definida a experiência<br />
de dor do povo judeu? Quais são os elementos que definem aquil o que<br />
julgam pertinente <strong>para</strong> a permanência, quais os acontecimentos mais<br />
importantes <strong>para</strong> a memória do sofrimento judaico, ou ainda quais<br />
acontecimentos devem jamais ser esqueci<strong>dos</strong>? Quais fundamentos<br />
justificam-nos? Ao que nos parece inicialmente, o sentim ento coletivo<br />
colocado sobre situações de intensidade em hostilidade e violência, pode a<br />
priori poder ser o mais rápido argumento <strong>para</strong> justificar a construção de<br />
uma memória de tal grupo. No caso da história <strong>judaica</strong>, as constantes<br />
dispersões e movimentos anti-judaicos a que seus antepassa<strong>dos</strong> foram<br />
expostos, seriam suficientes <strong>para</strong> tal argumento. Embora isso, o tratamento<br />
dado a este grupo poderia então encaixar-se a qualquer outro. Mas a questão<br />
<strong>dos</strong> judeus parece possuir suas peculiaridades e assim necessit a de uma<br />
investigação própria que justifique suas particularidades.<br />
Na literatura <strong>judaica</strong> não é difícil encontrarmos o lamento, não<br />
referimo-nos somente a palavra em seu sentido etimológico, mas<br />
principalmente ao peso que tal expressão possui ao povo jude u, onde a<br />
mesma refere-se ao conjunto de valores que define os elementos e não mais
20<br />
os coloca num mundo disperso e incerto. Ao contrário, a definição de<br />
sofrimento de seus semelhantes justifica sua estada em qualquer local que<br />
se encontrem e reforça sua aliança com um Deus que olha somente aos seus.<br />
Tal é a importância disso, que a memória construída sobre os lamentos<br />
praticamente atropela a memória rigidamente histórica, ou seja, embora<br />
saibam de diversos acontecimentos que exigem seu lamento e devoção, o<br />
momento ou datas exatas não requerem a mesma importância:<br />
“Os judeus que lamentavam na sinagoga a queda do Templo<br />
sabiam o dia do mês, mas duvido que a maioria soubesse ou se<br />
importasse com o ano exato em que o Primeiro ou o Segundo<br />
Templos foram destruí<strong>dos</strong>, quanto mais com as táticas e armas<br />
que foram empregadas. Sabiam que os babilônios e os romanos<br />
haviam sido os destruidores, mas nem um nem outros poderiam<br />
ter sido realidades históricas <strong>para</strong> eles. As memória articuladas<br />
em cânticos melancólicos de gra nde poder poético eram básicas<br />
e comovedoras, mas expressas em tendências que simplesmente<br />
diferem de nossas noções de “saber história”. Aqui está um<br />
pequeno trecho de um longo lamento pelo nono dia de Ab, que<br />
revela tão somente uma maneira pela qual a mem ória coletiva<br />
<strong>judaica</strong> podia se estruturar:<br />
“Um fogo me incendeia quando me lembro – quando deixei o<br />
Egito. Mas levanto lamentos quando me lembro – quando deixei<br />
Jerusalém. Moisés cantou uma canção que nunca seria esquecida<br />
– quando deixei o Egito. Jeremia s lamentou e gritou em<br />
desespero – quando deixei Jerusalém. As ondas do mar se<br />
recolheram mas ficaram de pé como um muro – quando deixei o<br />
Egito. As águas transbordaram e cobriram minha cabeça –<br />
quando deixei Jerusalém. Moisés me conduziu e Aarão me guiou<br />
– quando deixei o Egito. Nabucodonosor e o imperador Adriano<br />
– quando deixei Jerusalém” “. 9<br />
9 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história <strong>judaica</strong> e memória <strong>judaica</strong>; tradução de Lina G. Ferreira da<br />
Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Segundo Yerushalmi o autor desse lamento é desconhecido. O<br />
poema aparece em várias liturgias.
21<br />
I.I – CONTEXTUALIZAÇÃO<br />
As recentes questões colocadas a partir de fim do século XIX e<br />
princípio do século XX trazem reflexões que se colocam como fundamentais<br />
aos historiadores e pensadores em geral. As ideias de civilização absoluta,<br />
dotada de racionalidade, progresso e dinamismo , encontraram enfim, sua<br />
síntese mais obscura, desta vez repleta d e uma racionalização que caminhou<br />
contra os princípios racionais, mo rais e modernos <strong>dos</strong> novos tempos. 10<br />
As sociedades modernas e o crescente desenvolvimento do<br />
a<strong>para</strong>to estatal instalaram de fato um sentido plenamente antagônico na<br />
humanidade, o progresso então inevitável em uma Europa industrializada<br />
sob os mecanismos do desenvolvimento científico fez-se também aliada à<br />
barbárie, o racional e o irracional como uma dicotomia explosiva que<br />
resultou em processos de extremo terror na primeira metade do século XX. 11<br />
A instalação de regimes totalitários, nazista e fascista, na<br />
Alemanha e Itália respectivamente, mostrou à Europa e ao mundo o poder<br />
de destruição da união do desenvolvimento científico, da racionalidade<br />
instrumental e do surgimento das grandes massas, agora concentradas em<br />
centros urbanos e submetidas às formas de s ubmissão do Estado. Esta<br />
instrumentalização forneceu os mecanismos ideais <strong>para</strong> os acontecimentos<br />
que resultaram na Segunda Grande Guerra Mundial (1939 -1945). Terror ou<br />
irracionalidade são termos utiliza<strong>dos</strong> <strong>para</strong> representar não somente a<br />
10 Em “Dialética do esclarecimento”, “Theodor Adorno e Max Horkheimer apontam <strong>para</strong> o que chamam<br />
“crise da modernidade”:”. O indivíduo não precisa mais recorrer a si mesmo <strong>para</strong> decidir o que deve fazer.<br />
[...] sua vida profissional é determinada pela hierarquia de organizações e pela administração pública, e sua<br />
vida privada pelo esquema da indústria cultural. [...] as massas, privadas até da aparência de uma<br />
personalidade, se conformam mais docilmente aos modelos e às palavras de ordem que as pulsões à censura<br />
interna. Se, na época liberal a individualização de parte da população era necessária <strong>para</strong> adaptar a sociedade<br />
em seu conjunto ao estado atingido pela técnica., hoje o funcionamento do aparelho econômico exige uma<br />
administração das massas que não seja mais perturbada pela individualização”. Tomamos como pertinente<br />
aqui somente a contextualização a que se remetem os autores, observando sobretudo a construção teórica das<br />
relações estabelecidas neste novo momento, não sendo nosso objetivo o aprofundamento conceitual ou<br />
metodológico <strong>dos</strong> mesmos.<br />
11 ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. 1966.
22<br />
formação do totalitarismo, mas, sobretudo, a perseguição, exclusão e<br />
extermínio de significativa parte das comunidades <strong>judaica</strong>s espalhadas por<br />
toda a Europa.<br />
Porém, o ofício historiográfico, de maneira muito interessante,<br />
permite não permanecer ligado somente a esta primeir a reflexão. Embora o<br />
termo anti-semitismo apareça somente em 1879 na Alemanha , o<br />
antijudaísmo como acontecimento social é velha prática na Europa. E, como<br />
reforça Rabinovitch, o antijudaísmo não desaparece com a modernidade,<br />
ele se reposiciona. O anti-semitismo agrava mais ainda sua propensão<br />
mortífera. 12 Desta forma, é possível distinguir práticas de intolerância<br />
contra os israelitas, de formas distintas e movidas por razões igualmente<br />
distintas, onde cada época é filha de seu próprio tempo. Massacres em<br />
massa e violências cíclicas poderiam ser aponta<strong>dos</strong> aqui por toda a História<br />
(Alemanha em 1096, Espanha em 1391, Polônia em 1648 -1649), e, após<br />
1881 é na Rússia que se agrava a prática de pogroms contra as populações<br />
<strong>judaica</strong>s mais pobres 13 . O anti-semitismo moderno é político:<br />
“A democracia que emerge no decorrer do século XIX no<br />
continente europeu permanece de substrato cristão. A perda de<br />
influência política das autoridades eclesiásticas deixa intacta no<br />
coração <strong>dos</strong> combates os mais seculares a pregnância an ti<strong>judaica</strong><br />
do pagano-cristianismo. A recomposição normativa do discurso<br />
público, que passa do teológico ao político, não acarreta a<br />
decomposição da vindita anti<strong>judaica</strong>. A função de “bode<br />
expiatório” que pesou sobre os judeus é retomada. Ao lado da<br />
perpetuação do antijudaísmo clássico desenvolve -se um antisemitismo<br />
político, social ou nacionalista, progressista ou<br />
reacionário”. 14<br />
12 RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepulcros nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004.<br />
13 Em 1905, a Okhrana, polícia secreta do Czar russo, fabrica o conhecido “Protocolos <strong>dos</strong> sábios de Sion”,<br />
plano secreto de dominação mundial atribuído à comunidade judio-maçônica. Os fantasmas do anti-semitismo<br />
estavam de volta, o falso plano funcionou como uma espécie de “licença <strong>para</strong> matar”.<br />
14 Cit. pág. 33. Lembrado aqui o “afair Dreyfus” no início do século XX, onde o o então capitão da marinha<br />
francesa foi acusado de conspiração e apoio aos alemães.
23<br />
Com o início das perseguições muitos abandonaram a Europa,<br />
sobretudo após os episódios que culminaram com a Kristallnacht 15 e se<br />
dirigiram a regiões consideradas seguras, entre elas o Brasil, que acabou<br />
por ser o destino de muitos imigrantes de origem <strong>judaica</strong> na primeira<br />
metade do século XX. 16<br />
Os fenômenos de massa antes orienta<strong>dos</strong> pelas tradições<br />
utópicas do período clássico chegaram ao fim do século XX com uma<br />
emergência da memória como fonte de orientação. A força da memória na<br />
construção <strong>dos</strong> mitos identitários que tem informado contemporaneamente<br />
as ações de reconhecimento social e político. 17 Toda memória é criação do<br />
passado, reconstrução e manipulação, ou seja, desempenha um papel<br />
fundamental na maneira como os grupos sociais apreendem o mundo<br />
presente e reconstroem sua identidade. Desta forma, a relação mais evidente<br />
se torna a que se coloca entre memória e poder, onde também o<br />
esquecimento é igualmente vital na construção de uma memória coletiva .<br />
Phillipe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart alertam sobre a necessidade de<br />
esquecimento no imaginário coletivo francês, visto os conflitos étnicos no<br />
país. 18<br />
Neste sentido, a relação entre História e memória é pertinente,<br />
sendo notório que a historiografia tem recorrido à memória voluntária,<br />
produzida através do desenvolvimento cognitivo, desqualificando assim a<br />
memória involuntária, tida como irracional e muitas vezes avessa à<br />
História.<br />
15 Ou noite <strong>dos</strong> cristais. Episódio que a partir de 1938 define a intolerância fascista e a perseguição<br />
exacerbada contra os judeus.<br />
16 PRÛSER, Friedrich. O Rolasnd e Rolândia in Roland und Rolandia. Bremen. Robert Bargman: 1957.<br />
17 DE SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de Memórias em terras de História: Problemáticas atuais. in:<br />
BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márica. Memória e (res) sentimento. Campinas: Unicamp, 2004.<br />
18 POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998. A noção<br />
de esquecimento desempenha uma relação com as forças dogmáticas de um determinado grupo étnico. Desta<br />
forma, os valores a que estaria ligada a sociedade francesa não permitem a estes se interessar pelo fato de que<br />
sua nação formou-se historicamente por meio da conquista, migrações ou anexações de povos distintos.<br />
Assim, o esquecimento desempenha o papel que permite ao grupo agarrar-se convictamente a conjunto de<br />
valores étnicos.
24<br />
A relação entre memória e História, somamos a já apontada<br />
noção de <strong>ressentimentos</strong>, mas como uma espécie de dinâmica <strong>dos</strong><br />
<strong>ressentimentos</strong>, criadora de valores, de finalidades sentidas como desejáveis<br />
pelos indivíduos e que eles buscam realizar. Tal movimento conduz à ação,<br />
à exteriorização, levando em consideração as satisfações e benefícios que<br />
os <strong>ressentimentos</strong> podem proporcionar. No caso das manifestações anti -<br />
semitas, o ódio 19 recalcado e posteriormente manifestado acaba por criar um<br />
vínculo afetivo que permite uma forte identificação de cada um com seu<br />
grupo de pertença. Como um reagrupamento de indivíduos que se unem <strong>para</strong><br />
gritar sua agressividade, inventando signos que exprimam desejos hostis,<br />
como apedrejar símbolos alheios ou queimar figuras sagradas de um grupo<br />
ao qual se manifesta ódio e desejo de vingança.<br />
As experiências afetivas a que os atores se propõem são em<br />
escalas diferenciadas recalcadas e evitadas, de forma a não serem reveladas<br />
freqüentemente. Poderia então, a memória <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> conduzirem<br />
sempre à das violências e perseguições, uma espécie de dever da memória,<br />
onde fatos e sofrimentos suporta<strong>dos</strong> não são leva<strong>dos</strong> ao esquecimento.<br />
A partir destas referências podemos nos valer de considerações<br />
da História Cultural, a refazer trajetórias de vida que operam como que<br />
janelas ou portas de entrada <strong>para</strong> a compreensão de formas de agir, de<br />
pensar e de representar o mundo em uma determinada época 20 , ou seja,<br />
buscando representações que revelem fatores previamente não observa<strong>dos</strong>,<br />
dando voz a personagens que de outra maneira ficariam no esquecimento, o<br />
que segundo Jaques Revel nos proporciona uma descida ao rés do chão. A<br />
abordagem da obra de Max Hermann Maier e de Mathilde Maier parece<br />
revelar exatamente essa fragmentação, a possibilidade de compreender os<br />
fenômenos decorrentes da segunda grande guerra e principalmente aqueles<br />
que se relacionam com a memória e com os <strong>ressentimentos</strong> desenvolvi<strong>dos</strong><br />
19 É preciso esclarecer que o elemento “ódio” se configura em todas as partes envolvidas, de forma que assim<br />
como aqueles que praticam do anti-semitismo podem ser movi<strong>dos</strong> por tal sentimento, os hostiliza<strong>dos</strong><br />
desenvolvem também o ódio pelos anti-semitas, além também daquele deferido por seu próprio grupo de<br />
pertença.<br />
20 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005
25<br />
nestes imigrantes. Esta análise se fará no discurso embutido em suas obras,<br />
naquilo que não se revela claramente em suas palavras. Como o s<br />
<strong>ressentimentos</strong> se manifestam, a quais comportamentos servem de fonte, que<br />
atitudes inspiram, conscientes ou não?<br />
O trabalho utiliza como fontes duas obras principais: 1)<br />
MAIER, Max Hemann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na<br />
selva brasileira - Relato de um imigrante(1938-1975). Título do original<br />
alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffeepflanzer in Urwald<br />
Brasiliens. Bericht Eines Emigranten (1938-1975). 2) MAIER, Mathilde. Os<br />
jardins de minha vida. São Paulo: Versão: Roswitha Kempf. Massao Ohno<br />
Editor, 1981. Do original Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef Knecht-<br />
Carolusdrukerei. Frankfurt am Main.
26<br />
II – JUSTIFICATIVA<br />
As pesquisas que se debruçaram sobre, não apenas, os<br />
fenômenos da modernidade, mas, também, os regimes totalitários e as duas<br />
grandes guerras mundiais se esforçaram também no sentido de compreender<br />
a trajetória daqueles que sofreram todo o terror e trauma das perseguições,<br />
assim como o trabalho forçado nos campos de concentração e de extermínio.<br />
As diversas linhas de pesquisa historiográficas revelaram e continuam a<br />
revelar um ilimitado campo de interpretações e possibilidades de<br />
investigações dentro do efeito imigratório durante a segunda guerra<br />
mundial, os sobreviventes, a passagem pelos campos nazistas, a perseguição<br />
em território alemão, a investida em terra hostil e toda a tragédia causada<br />
pela experiência da barbárie fornecem ferramentas suficientes <strong>para</strong> a<br />
pesquisa histórica. Uma possibilidade de apoio em uma concepção<br />
multidimensional da realidade social, onde cada nível ou dimensão traça<br />
sua própria história, ao mesmo tempo em que se articula com outras, a fim<br />
de restabelecer o movimento de uma sociedade. A própria história <strong>judaica</strong>,<br />
enquanto grupo étnico dentro <strong>dos</strong> acontecimentos da segunda grande guerra<br />
tornou-se extremamente fragmentada quando relacionada às questões que<br />
envolvem imigração, exílio ou mesmo fuga do território alemão. A presença<br />
de famílias imigradas ao Brasil revela ao s historiadores um amplo campo de<br />
pesquisa e também possibilita ao presente trabalho a utilização de<br />
instrumentos varia<strong>dos</strong>, como os recursos ofereci<strong>dos</strong> pela História Oral ou<br />
consulta de arquivos públicos e priva<strong>dos</strong>.<br />
Partindo deste movimento o trabalho pre tende realizar esforços<br />
nas discussões historiográficas que envolvem o s <strong>ressentimentos</strong>. Conceito<br />
que revela uma multiplicidade de interpretações e significa<strong>dos</strong>, desde a<br />
psicanálise freudiana ou mesmo a filosofia de Nietzsche, em ambos os casos<br />
é sempre presente a relação direta desta dimensão psicológica com as<br />
construções sociais.
27<br />
As práticas de anti-semitismo como ódio aos judeus são<br />
escolhidas como potenciais <strong>para</strong> a investigação da gênese <strong>dos</strong><br />
<strong>ressentimentos</strong>, o que nos permite igualmente relacioná-lo com a memória.<br />
Para Freud não há erradicação <strong>dos</strong> sentimentos, antes dele Maquiavel<br />
teorizou que o medo é o principal motor do ódio. Temos, portanto, uma<br />
busca da compreensão não apenas <strong>dos</strong> conflitos humanos ou <strong>dos</strong> grupos<br />
étnicos em sua essência política, mas também das relações emocionais, de<br />
teor mais subjetivo, que revelam o surgimento de <strong>ressentimentos</strong> a part ir de<br />
experiências trágicas. Vincula<strong>dos</strong> a intensidade e força dificilmente não<br />
possuíram consequências ou manifestações na conduta <strong>dos</strong> indivíduos. Não<br />
objetivamos um trabalho de defesa de grupos supostamente vitimiza<strong>dos</strong> pela<br />
História, pois, ao passo em que escolhemos uma determinada maneira de<br />
encarar o objeto, é importante atentarmo -nos <strong>para</strong> a ilimitação da produção<br />
hstórica desses <strong>ressentimentos</strong>. Seja estarmos falando de personalidades<br />
caracterizadas como ressentidas, feito Adolf Hitler, seja observarmos os<br />
distanciamentos entre as diferentes confissões religiosas. Portanto, os<br />
<strong>ressentimentos</strong> a que nos referimos são amplamente produzi<strong>dos</strong> pelos<br />
grupos em ordens e ritmos inconstantes, escolhi<strong>dos</strong> assim em determina<strong>dos</strong><br />
momentos como mais pertinentes ou não, de forma a optarmos a dar mais<br />
relevância a este ou aquele, e, assim, não estarmos nos posicionando <strong>para</strong><br />
um entre eles, mas sim, estarmos optando por uma conduta de pesquisa.<br />
O trabalho busca uma contribuição <strong>para</strong> os varia<strong>dos</strong> estu<strong>dos</strong> de<br />
anti-semitismo, conflitos étnicos e intolerância, além da própria<br />
contribuição à historiografia e seus estu<strong>dos</strong> acerca do século XX e seus<br />
acontecimentos, mas ainda também uma possibilidade de ampliação das<br />
discussões no que se refere ao lado mais subjetivo da experiência, buscando<br />
a compreensão do fenômeno <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> e as construções que<br />
permeiam as relações de afeto e memória política assim inserida.
28<br />
III - A HISTÓRIA E OS RESSENTIMENTOS<br />
“Existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo<br />
grande <strong>dos</strong> sertões, <strong>dos</strong> mares, <strong>dos</strong> desertos, o medo <strong>dos</strong><br />
solda<strong>dos</strong>, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o<br />
medo <strong>dos</strong> ditadores, o medo <strong>dos</strong> democrat as, cantaremos o medo<br />
da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de<br />
medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e<br />
medrosas”. 21<br />
“A morte a vida estão no poder da palavra”. 22<br />
Sigmund Freud, em sua obra Reflexões <strong>para</strong> os tempos de<br />
guerra e morte 23 , aponta <strong>para</strong> as relações estabelecidas entre aqueles que<br />
sobreviveram a primeira grande guerra (1914 -1918), de forma a buscar a<br />
compreensão <strong>dos</strong> traumas e consequentemente da postura assumida após<br />
1918 diante da vida. De certa forma essa pers pectiva se aproxima daquilo<br />
que o autor buscou explicar através da constituição do psiqu ismo e as raízes<br />
intolerância. Segundo Mara Selaibe:<br />
[...] o tipo de natureza <strong>para</strong>nóica de nosso narcisismo básico e<br />
fundante a fim de complexizar em direção ao reconh ecimento e a<br />
aceitação – inclusive a admiração – por aquilo que nos é<br />
estranho, que nos é outro ou apenas díspar. Tornamo -nos únicos<br />
e humanos pela via dupla da identificação e da<br />
diferenciação/se<strong>para</strong>ção. Tal <strong>para</strong>doxo permanece sempre e<br />
recrudesce a cada situação de perseguição, de impedimento da<br />
afirmação da diversidade, de ataque físico e psíquico à<br />
21 Carlos Drummond de Andrade.<br />
22 Provérbios, 18-21.<br />
23 FREUD, Sigmund. Reflexões <strong>para</strong> os tempos de guerra e morte. Obras completas de Freud, vol. XIV.<br />
Imago Editora, 2006.
29<br />
alteridade visando imobilizá -la e neutralizá -la. A violência<br />
contra um outro humano se impõe totalitária e faz valer a partir<br />
dela a homogeneização , o exterm ínio da diferença. 24<br />
Desta forma, inspirada na reflexão freudiana, a autora caminha<br />
também no referencial psíquico de alteridade do indivíduo, tomando por<br />
conseqüência a coletividade desses mecanismos de ação e diferenciação que<br />
quando toma<strong>dos</strong> em grandes proporções resultaram em episódios de<br />
massacre e extermínio, numa profunda exteriorização da intolerância. No<br />
caminho traçado pela psicanálise o principal texto <strong>para</strong> pensar as<br />
diferenças, a diferenciação – bem como as resistências a elas – seja nos<br />
indivíduos seja nos grupos, nas instituições e nas massas foi O mal estar na<br />
civilização de 1929. 25 Temos nesta obra a solidificação da diferenciação , do<br />
mal estar recalcado nas sociedades e a relação estabelecida entre o próprio<br />
sujeito atuante e o meio social ao qual esteve vinculado e assim voltamos<br />
nossa atenção sobre não apenas as diferenças reconhecidas pelos atores,<br />
mas principalmente como operam tais diferenciações e como os mesmos<br />
atores se sensibilizam em relação a elas e comportam -se reciprocamente no<br />
contato de suas fronteiras.<br />
Ora, aquilo que pretendemos – observar historicamente os<br />
<strong>ressentimentos</strong> – só poderia inicialmente ser abordado na relação<br />
identificada com a idéia de alteridade ou estranhamento 26 , estabelecer as<br />
condições de sua existência e não d e sua validade, ou seja, tomamos a<br />
verdade como uma produção histórica, onde tal análise nos remete ao<br />
aparecimento, organização e transformação de determina<strong>dos</strong> valores. A<br />
regularidade da pesquisa por sua vez individualizada no espaço do<br />
conhecimento estabelece compatibilidades e incompatibilidades.<br />
Em sua Microfísica do Poder, Michel Foucault afirma que o<br />
poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em<br />
ação, como também da afirmação que o poder não é manutenção e<br />
24 SELAIBE, Mara. Raízes da intolerância. In: Psicanálise e intolerância. São Paulo: 2005.<br />
25 SELAIBE, Mara. Raízes da intolerância. In: Psicanálise e intolerância. São Paulo: 2005.<br />
26 Detalhes no capítulo O outro na História e a figueira brava. Págs. 30 à 51.
30<br />
reprodução das forças econômicas, mas acima de tudo uma relação de<br />
força. 27 Desta forma, o poder se configuraria em um exercício, um exercício<br />
de compreensão <strong>dos</strong> mecanismos de repressão, onde as relações de poder<br />
nas sociedades atuais têm essencialmente por base uma rela ção de força<br />
estabelecida, em um momento historicamente determinável. Em seu<br />
percurso rumo à realização de um projeto em relação à história do<br />
pensamento, o autor procurou mostrar como porções particulares de<br />
conhecimento limitaram a liberdade humana e qua is recursos seriam váli<strong>dos</strong><br />
<strong>para</strong> a superação de tais restrições. Des ta forma, Michel Foucault apontou<br />
<strong>para</strong> o que chama de regimes de verdade, ou seja, relações circulares onde<br />
sistemas de poder as produzem e sustentam. Sobre a questão diz o a autor:<br />
“Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral”<br />
de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz<br />
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que<br />
permitem distinguir os enuncia<strong>dos</strong> verdadeiros <strong>dos</strong> falsos, a<br />
maneira como se s ancionam uns e outros; as técnicas e os<br />
procedimentos que são valoriza<strong>dos</strong> <strong>para</strong> a obtenção da verdade;<br />
o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona<br />
como verdadeiro”. 28<br />
As relações de força e a produção de discursos refletem de<br />
maneira inquestionável na conduta <strong>dos</strong> indivíduos. Aquilo a que Michel<br />
Foucault chama “política geral” manifesta -se de maneira heterogênea em<br />
cada sociedade. A transformação <strong>dos</strong> discursos, o surgimento de novos, o<br />
desaparecimento de outros, a mudança lentamente se fe z vencedora, de<br />
forma que se distinguem inevitavelmente em tempo e espaço. Jean<br />
Delumeau, em sua obra sobre o medo no Ocidente 29 , dedica pelo menos um<br />
27 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989.<br />
28 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 1987. A verdade, no pensamento foucaultiano é entendida, portanto, como um sistema de<br />
procedimentos ordena<strong>dos</strong> <strong>para</strong> a produção, regulação, distribuição, circulação e operação <strong>dos</strong> discursos. A<br />
questão fundamental da Filosofia deve ser buscada a partir da relação que estabelece entre nós e a verdade, ou<br />
seja, de que forma devemos conduzir-nos? Através desse trabalho vemos modificadas as relações com a<br />
verdade e, principalmente, vemos modificada a conduta <strong>dos</strong> homens.<br />
29 DELEMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. De<br />
início o autor questiona-se: “Por que esse silêncio prolongado sobre o papel do medo na história?” Trata-se<br />
aqui, assim como em nossa pesquisa sobre os <strong>ressentimentos</strong>, de não apenas abordar o medo puro e<br />
simplesmente, mas de relacionar o complexo de sentimentos que desempenharam um papel crucial na história
31<br />
capítulo ao anti-semitismo e às relações entre a “Europa e os judeus”.<br />
Chama-nos a atenção nesse momento a contextualização e constatação do<br />
autor ao verificar “idas e vindas” ou “altas e baixas” da comunidade<br />
israelita e a relação desta com a população de forma geral e as instituições<br />
de época. Segundo Delumeau, durante parte da História a intolerância<br />
deferida aos judeus aconteceu, sobretudo, pela existência de um anti -<br />
judaísmo popular, ocorri<strong>dos</strong> principalmente nas cidades com episódios<br />
sangrentos anteriores ao século XVI 30 , sendo relata<strong>dos</strong> casos onde a<br />
intervenção papal se fazia necessária quando da acusação de algum cidadão<br />
judeu em relação a qualquer crime, a população insana e determinada não se<br />
contentava senão com a morte <strong>dos</strong> israelitas 31 . Na Idade Média e em sua<br />
sequência, principalmente após o século XVI, a instituição religiosa passou<br />
por modificações significativas no tratamento e no discurso. O aparente<br />
“medo” da ameaça <strong>judaica</strong> solidificou-se no pensamento cristão, o povo<br />
judeu estava, agora, ligado a tudo aquilo que determinasse efetivamente o<br />
mal, o demônio, as trevas. Desta forma, regiões como a Esp anha, antes<br />
conhecida como “território das três religiões” 32 , pela tolerância religiosa<br />
das sociedades humanas. Sobre o assunto o autor cita o texto Pour l’histoire d’um sentiment: Le besoin de<br />
sécurité, de 1956 publicado na Annales e escrito por L. Febvre: “Não se trata [...] de reconstruir a história a<br />
partir da exclusiva necessidade de segurança – como G. Ferrero estava tentado a fazer a partir do sentimento<br />
do medo (no fundo, de resto, os dois sentimentos, um de ordem positiva, o outro de ordem negativa, não<br />
acabam por encontrar-se?) – [...], trata-se essencialmente de colocar em seu lugar, digamos de restituir seu<br />
quinhão legítimo a um complexo de sentimentos que, considerando-se as latitudes e as épocas, não pôde<br />
deixar de desempenhar um papel capital na história das sociedades humanas <strong>para</strong> nós próximas e familiares”.<br />
Aqui o medo fora detectado sobretudo pela análise da segurança, ou seja daquilo que os grupos humanos<br />
fizeram registrar-se em suas preocupações com as edificações, grandes portais, muralhas, feito a descrição<br />
detalhada das fortificações de entrada na Augsburgo do século XVI.<br />
30 Segundo Jean Delumeau “...Os pogroms que acompanharam a Peste Negra na Alemanha e na Catalunha e as<br />
violências de que os judeus foram vítimas em Paris e no resto da França com o advento de Carlos VI (1380)<br />
revelam, no plano local, os <strong>ressentimentos</strong> de uma população - ou antes de uma fração desta – em relação aos<br />
israelitas. Usurários ferozes, sanguessugas <strong>dos</strong> pobres, envenenadores das águas bebidas pelos cristãos: assim<br />
os imaginam freqüentemente os burgueses e o povo miúdo urbano no final da Idade Média. Eles são a própria<br />
imagem do “outro”, do estrangeiro incompreensível e obstinado em uma religião, <strong>dos</strong> comportamentos, de<br />
um estilo de vida diferente daqueles da comunidade que os recebe”.<br />
31 C it. pág. 279: “Essa estranheza suspeita e tenaz aponta-os como bodes expiatórios em tempos de crise.<br />
Inversamente, muitas vezes aconteceu – por exemplo na Espanha e na Alemanha no decorrer da Peste Negra,<br />
mas também na Boêmia no século XIV e na Polônia no século XVII – que soberanos e nobres tomassem a<br />
defesa <strong>dos</strong> judeus contra a cólera popular. Do mesmo modo, os papas tiveram por muito tempo uma atitude de<br />
compreensão em relação a eles”.<br />
32 Sobre este afirma Jean Delumeau: “O país que, nos séculos VXI e VXII, se tornou mais intolerante em<br />
relação aos judeus, a Espanha, foi o que, anteriormente, melhor os acolhera. No final do século XIII, eles
32<br />
durante parte da Idade Média, transformaram-se em palcos de terror e<br />
perseguição, mas desta vez haviam sido fortemente estimuladas pelo<br />
discurso religioso:<br />
“Do mesmo modo que o racismo hitlerista deu ao anti -semitismo<br />
alemão do começo do século XX uma agressividade e uma<br />
dimensão novas, assim também o temor ao judeu – verdadeiro<br />
“racismo religioso” – experimentado pela Igreja militante entre<br />
os séculos XIV e XVII, numa p sicose de cerco um pouco<br />
comparável, não só exacerbou, legitimou e generalizou os<br />
sentimentos hostis em relação aos judeus das coletividades<br />
locais, mas ainda provocou fenômenos de rejeição que, sem essa<br />
incitação ideológica, sem dúvida não se teriam produ zido.<br />
Reencontra-se então um juízo já enunciado por H. C. Lea quando<br />
ele escrevia no começo de sua monumental History of the<br />
Inquisition of Spain: “ Não é exagerado dizer que a Igreja foi a<br />
principal ou mesmo a única responsável pela multidão de<br />
sevícias so fridas pelos judeus no decorrer da Idade Média”. E eu<br />
acrescentarei esta emenda: mais ainda durante a Renascença”. 33<br />
Desta forma, o discurso produzido aponta <strong>para</strong> momentos<br />
diferentes, primeiro aquele onde a “discursividade ideológica” tem papel<br />
determinante nos movimentos anti-judaicos, e segundo, onde a<br />
agressividade popular era tamanha que aqueles mais favoreci<strong>dos</strong> dentro da<br />
hierarquia social tomavam a defesa <strong>dos</strong> judeus frente à intolerância popular.<br />
Ambos apontam também <strong>para</strong> perío<strong>dos</strong> distintos na Históri a, mas embora<br />
tudo isso comunga da mesma hostilidade a um mesmo povo, sendo assim os<br />
judeus vistos como “aliança do mal” e a quem deferem to<strong>dos</strong> os males<br />
surgi<strong>dos</strong> <strong>para</strong> as comunidades.<br />
A idéia de Delumeau e de outros autores que o mesmo nos<br />
aponta corre em direção à formação de um discurso, de uma “incitação<br />
eram ali perto de 300 mil e vivam mistura<strong>dos</strong> ao resto da população. Cristãos e israelitas convidavam-se à<br />
mesa uns <strong>dos</strong> outros. Iam aos mesmos banhos públicos e muitas vezes nos mesmos dias, a despeito de certas<br />
interdições pouco respeitadas. Cristãos assistiam às circuncisões e judeus aos batismos. [...] Tal era, na Idade<br />
Média, a Espanha das “três religiões”, um país tolerante porque não homogêneo”. Também a Polônia por<br />
muito tempo destacou-se como região de tolerância. Na segunda metade do século VXI dizia o estatuto <strong>dos</strong><br />
judeus poloneses: “Nessas regiões, encontram-se massas de judeus que não são despreza<strong>dos</strong> como em outras<br />
partes. Não vivem na submissão e não estão reduzi<strong>dos</strong> aos ofícios vis. Possuem terras, ocupam-se do<br />
comércio, estudam a medicina e a astronomia. Possuem grandes riquezas e não são apenas conta<strong>dos</strong> entre as<br />
boas pessoas, mas por vezes as dominam. Não usam nenhum sinal distintivo, e lhes é permitido até mesmo<br />
portar armas. Em suma, dispõem de to<strong>dos</strong> os direitos do cidadão”.<br />
33 Idem 7. cit. pág 278-279.
33<br />
ideológica” que predominantemente determina o percurso da análise,<br />
sobretudo naquilo em que lhes confere o sentimento, a subjetividade do<br />
medo. O ditado popular “se não podes com eles junte -se a eles” é aqui<br />
utilizado às avessas. Cabia aos judeus atender a uma oportunidade de<br />
conversão, de permanência, de partilhar valores, ainda que de qualquer<br />
maneira jamais o fosse plenamente. Era -lhes em muitos momentos a única<br />
chance:<br />
“No momento em que Lutero confes sava seu imenso medo do<br />
perigo turco, enfurecia -se também contra os judeus que, em um<br />
primeiro tempo, esperara conquistar <strong>para</strong> o Evangelho. A<br />
simultaneidade das duas denúncias não era fortuita. Ao<br />
contrário, ela esclarece uma situação histórica. Na Europa<br />
Ocidental, o antijudaísmo mais coerente e mais doutrinal se<br />
manifestou no período em que a Igreja, percebendo inimigos por<br />
toda parte, sentiu-se presa entre os fogos cruza<strong>dos</strong> de agressões<br />
convergentes. De modo que, no começo da Idade Moderna, o<br />
temor aos j udeus se situou sobretudo no nível religioso”. 34<br />
Esta passagem aponta <strong>para</strong> o momento em que Lutero acreditou<br />
ainda poder converter os judeus e trazê-los <strong>para</strong> o interior da reforma<br />
protestante. Ao mesmo tempo, a Igreja, que ainda sangrava após o cisma do<br />
cristianismo no Ocidente, reagiu imediatamente contra tudo aquilo que lhes<br />
parecesse igualmente passível de estranhamento. Portanto, os israelitas não<br />
encontraram diálogo seguro com nenhuma das confissões cristãs. E assim , a<br />
longa crise da Igreja começada com o grande Cisma, e depois continuada<br />
pelas guerras hussitas, o avanço turco e finalmente a secessão protestante<br />
engendraram nos meios eclesiásticos endurecimentos doutrinais e um medo<br />
maior do perigo judeu. 35<br />
Séculos mais tarde os acontecimentos que culm inaram nas duas<br />
grandes guerras e, sobretudo nas práticas de intolerância e anti -semitismo<br />
durante a segunda guerra mundial elevaram fortemente o prestígio do<br />
Estado, sendo atribuída a ele uma força legítima sobre a vida, a morte e a<br />
liberdade. As massas, privadas até da aparência de uma personalidade, se<br />
34 Cit. pág. 278.<br />
35 Cit. pág. 282.
34<br />
conformaram mais docilmente aos modelos e às palavras de ordem. Ou seja,<br />
as massas são submetidas à exploração e à dominação, por de trás do bem -<br />
estar recalcou-se todo um ambiente caótico. Temos uma maneir a diferente<br />
de manifestação anti-semita, embora alguns elementos, como a ideologia<br />
religiosa, que foram ainda estimula<strong>dos</strong> e ainda assim ao estilo nazista, de<br />
forma que a Igreja não exerceu participação determinante nas perseguições,<br />
formações de campos de concentração ou mesmo extermínios. Nos tempos<br />
de Hitler, segundo Jean Delumeau, o antijudaísmo<br />
“teve dois co mponentes que muitas vezes se somaram: de um<br />
lado, a hostilidade experimentada por uma coletividade – ou por<br />
uma parte desta – em relação a uma minoria empreendedora,<br />
considerada inassimilável e chegando a ultrapassar um limiar<br />
tolerável no plano do número ou do êxito, ou nos dois ao mesmo<br />
tempo; e, do outro, o medo sentido por doutrinários que<br />
identificam o judeu com o mal absoluto e o perseguem com seu<br />
ódio implacável mesmo quando ele foi repelido <strong>para</strong> fora das<br />
fronteiras”. 36<br />
Embora o contexto da primeira metade do século XX possa<br />
assim pensar o anti-semitismo na Europa e o próprio nazismo, as práticas de<br />
intolerância deferidas aos israelitas rem etem a momentos bem mais remotos<br />
da História européia e principalmente não se vinculam necessariamente à<br />
expressão <strong>dos</strong> sentimentos populares ou a uma situação social e econômica.<br />
Delumeau acrescenta que:<br />
“Do mesmo modo que o racismo hitlerista deu ao ant i-semitismo<br />
alemão do começo do século XX uma agressividade e uma<br />
dimensão novas, assim também o temor ao judeu – verdadeiro<br />
racismo “religioso” – experimentado pela Igreja militante entre<br />
os séculos XIV e XVII, numa psicose de cerco um pouco<br />
comparável, não só exacerbou, legitimou e generalizou os<br />
sentimentos hostis em relação aos judeus das coletividades<br />
locais, mas ainda provocou fenômenos de rejeição que, sem essa<br />
incitação ideológica, sem dúvida não se teriam produzido.” 37<br />
Desta forma, o antijudaísmo popular não deve ser visto como<br />
única ou principal força motora das agressões contra os judeus. Há uma<br />
36 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989.<br />
37 Cit. pg. 278.
35<br />
relação entre os chama<strong>dos</strong> “afetos” – conjunto de manifestações e<br />
percepções subjetivas ligadas sobretudo à moral e hombridade <strong>dos</strong> atores –<br />
e o político, ou seja, aquilo que por ventura age diretamente no objeto em<br />
questão: a formação <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>.<br />
A partir destes acontecimentos, tomando principalmente nosso<br />
recorte temporal, remeti<strong>dos</strong>, portanto, ao século XX e ao anti -semitismo<br />
praticado durante sua primeira metade, com os conseqüentes extermínios em<br />
massa nos campos de concentração e os grupos de refugia<strong>dos</strong> espalha<strong>dos</strong><br />
por todo o mundo no antes e pós-1945. Temos assim articuladas<br />
problemáticas que permitem observar a construção <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> entre<br />
os descendentes judaicos.<br />
As perspectivas do medo e das formações discursivas em suas<br />
subjetividades dão aos <strong>ressentimentos</strong> aquilo que podemos colocar como um<br />
pós-operatório, ou seja, como a herança de tempos em que as piores<br />
expectativas confirmaram-se tragicamente <strong>para</strong> os israelitas. A expressão do<br />
sobrevivente ou do hostilizado é manifesta, consciente ou não, em relação<br />
ao seu algoz.<br />
Observamos anteriormente que o antijudaísmo encontra sua<br />
fonte em conflitos antigos entre grupos distintos e nas riv alidades<br />
teológicas. A evangelização <strong>dos</strong> povos europeus o propagou no Ocidente,<br />
daí os estu<strong>dos</strong> sobre anti-semitismo ocuparem-se da relação deste com as<br />
sociedades ocidentais. Transformam as populações <strong>judaica</strong>s em “bode<br />
expiatório”. 38 Desta forma a perseguição e exclusão aos judeus tornou-se<br />
frequentemente praticada em território ocidental.<br />
38 RABINOVITCH, Gerard. Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004. Expressão esta utilizada<br />
também por Jean Delumeau na “História do medo no Ocidente”. O chamado “bode expiatório” caracterizouse<br />
como aquele a quem são credita<strong>dos</strong> feitos ou intervenções, ou seja, se justificou ações muitas vezes<br />
conspiradas por outros ao elemento judeu, de forma que o peso de sua ascendência por si só era suficiente<br />
como prova e podia convencer a grande maioria do grupo. Antes da primeira guerra mundial o caso do oficial<br />
da marinha francesa, Dreyfus, acusado de alta traição e conspiração com os alemães tornou-se um <strong>dos</strong> mais<br />
famosos julgamentos internacionais da História e fonte de inspiração <strong>para</strong> a reflexão nas expressões sociais,<br />
feito a obra de 1925 “O Processo”, de Franz Kafka. Na narrativa kafkiana Josef K. é um bancário de 30 anos<br />
que acorda certa manhã, e, sem motivos sabi<strong>dos</strong>, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por um<br />
crime não revelado, quando se declara inocente é questionado “inocente de quê?”. K. termina morto nos<br />
portões da cidade. Por outro lado, em meio a estes acontecimentos, tivemos também a formação e<br />
estruturação do pensamento sionista, sobretudo com a atuação de seu principal mentor, Theodor Herzl. O
36<br />
Em uma observação particular, tomando aqui os anos que<br />
antecedem o fenômeno nazista, o sociólogo Zygmunt Bauman, em sua obra<br />
Holocausto e Modernidade, alerta <strong>para</strong> o fato de que a Alemanha, antes da<br />
ascensão do partido nacional socialista, com<strong>para</strong>da a outras regiões da<br />
Europa, não apresentou naquele momento (sobretudo a partir do início da<br />
década de 1930) um sentimento extremo de ódio aos judeus, algo muito<br />
mais visto em outras regiões do continente. 39 A explosão do sentimento<br />
anti-semita não é inédita nem formulada ao pé do século XX, trata -se de<br />
valores recalca<strong>dos</strong>, que em momentos de incitação tomam lugares de<br />
destaque no cenário social.<br />
A intolerância <strong>dos</strong> alemães levou mais de cinco milhões judeus<br />
à morte no período compreendido entre os anos de 1939 -1945. Foram estes<br />
trazi<strong>dos</strong> de várias regiões da Europa, dentre estes a maior parte de judeus<br />
russos e poloneses. 40<br />
O discurso da violência e sua heroificação apresentam -se<br />
também como forma de conduta, de salva-guarda de valores de um povo<br />
considerado forte e honrado. Segundo Gérard Rabinovitch:<br />
“Bertold Brecht em sua peça A resistível ascensão de Arturo Ui<br />
com<strong>para</strong>va os nazistas aos gangsters. Os trabalhos <strong>dos</strong><br />
sociólogos e <strong>dos</strong> antropólogos sobre a máfia tradicional podem<br />
confirmar a intuição do autor. A heroificação da violência como<br />
maneira de “estar no mundo”, é o ponto mais flagrante de<br />
similitude entre a subcultura mafiosa e o nazismo (que lhe é<br />
posterior). As regras de ast úcia, de ferocidades, de práticas de<br />
roubo e de embuste, a concepção real de honra baseada na<br />
aptidão <strong>para</strong> a violência homicida, a prática do duplo discurso,<br />
sionismo foi caracterizado como um movimento de direito à autodeterminação do povo judeu e à existência<br />
de um Estado judaico. Em 1896, o livro "Der Judenstaat" ("O estado judaico") de T. Herzl apontava <strong>para</strong> a<br />
necessidade da formação de um Estado judaico, onde somente assim o problema do anti-semitismo seria<br />
resolvido.<br />
39 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. O autor aponta <strong>para</strong><br />
um recorte muito específico que engloba as relações mais superficiais dentro do território alemão, não<br />
expandindo a análise a uma conjuntura de longa duração. A expressão anti-semita deflagrada no Ocidente,<br />
como já exposto aqui, foi hora e outra exteriorizada, em uma relação de continuidade com rupturas<br />
estruturais, feito a incitação ideológica por parte de um ou outro.<br />
40 R. Hilberg. La destruction des Juifs d’ Europe. Fayard, 1988. & E. Jäckel. P. Longerich, J. H. Shoeps,<br />
Enziklopädie dês Holocaust, Argon, 1993. Segundo os autores, que divergem em números totais por uma<br />
questão de demarcações e fronteiras, o número de russos mortos está entre 700.000 e 1.100.000 e o número de<br />
poloneses entre 2.900.000 e 3.000.000. Estima-se que o total de judeus mortos durante a guerra esteja entre<br />
5.100.000 e 5.860.000.
37<br />
do logro, do imperativo de subordinação, da hierarquia<br />
fundamentada na predominância do mais forte , da livre<br />
disposição sádica sobre os fracos e os sem -defesa, da<br />
fanfarronada, os mafiosos têm seus homólogos nos Schwarze<br />
Korps e na Schutzsaffel (SS). “Nos castelos de minha ordem,<br />
crescerá uma juventude que aterrorizará o mundo. Eu quero uma<br />
juventude violenta, despótica, sem medo, cruel...” dirá Hitler. O<br />
emprego da violência homicida é indispensável ao homem de<br />
honra. A hierarquia no seio da sociedade honrada está baseada<br />
na agressividade, na ferocidade,, na solidez <strong>dos</strong> nervos, na<br />
ausência total de escrúpulos, na selvageria, na capacidade de<br />
tomar decisões rapidamente. A heroificação do “Super -Homem”<br />
nazista lhe é homóloga quase termo a termo. Ela está no centro<br />
das expressões de Hitler, Goebbels e de Himmler. É a da SS<br />
como guarda pretoriana na qualida de de corpos de elite e na<br />
função de núcleo da “nova ordem” do Reich de mil anos”. 41<br />
Uma vez instauradas as noções de intolerância e de anti -<br />
semitismo podemos agora dirigir-nos à questão da formação <strong>dos</strong><br />
<strong>ressentimentos</strong> e seu apelo junto à História, quais di scursos viabilizaram, de<br />
que maneira foram opera<strong>dos</strong>, quem os manteve e como aconteceram nas<br />
sociedades ou mesmo grupos que compartilharam da experiência da<br />
hostilidade sobretudo no anti-semitismo moderno. 42<br />
Para tanto a idéia <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> deve concentrar-se em<br />
uma diversidade de formas, <strong>para</strong> que assim possamos trabalhar com a<br />
definição de <strong>ressentimentos</strong> e não ressentimento. Em seu estudo sobre<br />
memória e (res)sentimentos, Márcia Regina Naxara e Maria Stell a Bresciani<br />
alertam os leitores:<br />
“Não pensamos aqui somente na co municação voluntária de<br />
experiências ou na prática da transmissão oral de lendas e<br />
tradições entre populações, o mais das vezes iletradas; a<br />
preocupação maior busca também o avesso da face<br />
historicamente datada da obrigação à memória, es sa memória<br />
voluntária construída como estratégia de luta política, afirmação<br />
positiva de identidade pelos que se vêem excluí<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> direitos<br />
41 RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectivas, 2004. Em seu breve ensaio<br />
sobre o Holocausto e as “raízes do antijudaísmo” o autor expõe dentro daquilo que denomina “cultura da<br />
corja” elementos da formação do ideário e práxis nazista, tais como anti-semitismo, o mito ariano, a cultura<br />
da morte e a heroificação da violência. Desta forma, o conjunto de valores dignos de um representante ariano<br />
deveriam não confrontar-se com estes. Segundo o autor, assim como pensou o poeta alemão Bertold Brecht,<br />
os valores do nazismo estavam próximos daqueles vistos entre as famosas máfias de início do século XX.<br />
42 Entendemos aqui como anti-semitismo moderno as práticas de intolerância deferidas aos judeus a partir da<br />
primeira metade do século XX e a ascensão dessa militância que culminou no movimento nazista na<br />
Alemanha.
38<br />
à cidadania; rememoração dolorosa, mas não menos afirmativa,<br />
de perseguições políticas, religiosas, étnicas, por ve zes<br />
acompanhadas de práticas violentas de genocídio. Como se<strong>para</strong>r<br />
essas memórias de sentimentos negativos, humilhações, afetos<br />
ressenti<strong>dos</strong>, rancores e desejos de vingança das evocações da<br />
parte so mbria, inquietante e frequentemente terrífica da<br />
história?” 43<br />
Portanto, a memória <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> pode conduzir os<br />
indivíduos a uma manutenção negativa de suas experiências passadas, de<br />
forma a preservarem sentimentos hostis.<br />
Uma noção envolvida com a psicologia social definiria os<br />
<strong>ressentimentos</strong> a partir das relações entre os afetos e o político, entre os<br />
sujeitos individuais em sua afetividade e as práticas sociais e políticas,<br />
como expresso por Max Hermann Maier:<br />
“No dia 10 de novembro de 1938, após doze anos de uma vida<br />
conjugal feliz e trabalhosa, após seis anos sob o terror nazista,<br />
depois da “Noite <strong>dos</strong> Vidros Quebra<strong>dos</strong>” (Kristallnacht, em<br />
alemão); depois do “pogrom” ordenado pelos nazistas, pude<br />
enfim sair da minha cidade natal (Frankfurt sobre o Meno) com a<br />
minha família. Pudemos salvar -nos das perseguições do último<br />
dia da nossa estada em Frankfurt co m a ajuda de bons amigos;<br />
sem essa ajuda não teríamos conseguido pegar o trem da noite<br />
<strong>para</strong> a Holanda. Antes da fronteira, na cidade de Emmerich,<br />
fomos deti<strong>dos</strong> pela “SS” e trata<strong>dos</strong> de maneira humilhante. Na<br />
noite de onze de novembro, felizmente nos libertaram.” 44<br />
Desta forma, a multiplicidade de idéias permite ao termo<br />
<strong>ressentimentos</strong> uma variedade de abordagens, sendo, porém, presente na<br />
maioria delas uma questão delicada, pois nos obriga a explorar regiõ es e<br />
temas a que somos resistentes. Questão sensível a das memórias<br />
acorrentadas a <strong>ressentimentos</strong>. 45 Portanto, a referência a memórias<br />
43 BRESCIANI. Stella (org) e NAXARA. Márcia. Memória e ressentimento.Unicamp: 2004.<br />
44 Pág. 4, cap. 2 in: MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva<br />
brasileira – Relato de um imigrante (1938-1975) Nesta passagem Max Hermann Maier narra o desepero da<br />
família que saiu tardiamente da Alemanha, daí as dificuldades em ultrapassar as barreiras nazistas rumo a um<br />
lugar qualquer que lhes fosse mais amistoso .<br />
45 BRESCIANI. Stella (org) e NAXARA. Márcia. Memória e ressentimento.Unicamp: 2004. A advertência<br />
das autoras parece-nos bastante pertinente ao passo em que a pretensão da história <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> se nos<br />
apresenta de maneira bastante subjetiva, sendo necessário a exploração de memórias noturnas, àquelas <strong>para</strong> as<br />
quais desenvolvemos resistências colossais, estando ainda sujeitos a uma deformação dessas memórias,<br />
delírios, invenções. É necessário atenção e cuidado ao trabalho historiográfico.
39<br />
acorrentadas a <strong>ressentimentos</strong> podem ter na perspectiva historiográfica uma<br />
intensa relação com estu<strong>dos</strong> multidisciplinares, onde as utilizações de<br />
ferramentas fornecidas pela psicologia, filosofia e sociologia podem<br />
fornecer suportes <strong>para</strong> a investigação em história.<br />
Pierre Ansart em seu estudo sobre os <strong>ressentimentos</strong> e suas<br />
implicações com a memória já apontava tamb ém <strong>para</strong> uma abordagem plural<br />
do tema, ou seja, uma diversidade das formas de ressentimento, que podem<br />
estar relaciona<strong>dos</strong> a uma intensidade na perspectiva da psicanálise, a<br />
representações, ligadas a crenças, religiões, imaginários ou ideologias além<br />
de relações entre grupos e a reciprocidade entre eles. 46 Assim, a tomada de<br />
manifestações cotidianas, feito a leitura de um livro ou o trabalho em um<br />
pequeno jardim transformam-se em meios diretamente relaciona<strong>dos</strong> ao<br />
ressentimento, exteriorizam valores e revelam a memória:<br />
“Eu vos digo amadas árvores, que plantei já pressentindo...<br />
cresçam como que saindo de minha alma ao puro ar, pois que<br />
dores e prazeres enterrei sob vossos pés. Cada dia tragam<br />
sombra, tragam frutos, regozijos, mas que eu possa perto, perto,<br />
perto dela vos fruir.” 47<br />
Estas palavras de Goethe foram inspiradoras <strong>para</strong> Mathilde<br />
Maier, que assim as comentou:<br />
“Esta poesia Goethe escreveu <strong>para</strong> Charlotte v. Stein, quando<br />
plantou seu jardim – um presente do duque – fora <strong>dos</strong> portais da<br />
cidade de Weimar. I númeras vezes recitamos esta poesia e<br />
identificamo -nos com ela. Da mesma maneira como este jardim<br />
em Weimar possibiltou a se<strong>para</strong>ção definitiva de Goethe de<br />
Frankgurt – e há muitas provas disto – assim o plantio do nosso<br />
jardim, seu crescimento, sua floresc ência e frutificação, fizeram -<br />
nos radicar profundamente neste país novo e esquecer o<br />
sofrimento indizível da se<strong>para</strong>ção da pátria e <strong>dos</strong> entes queri<strong>dos</strong>,<br />
e as amargas experiências do tempo do nazismo. E assim como o<br />
sofrimento em comum aprofunda o amor, assim a formação e a<br />
construção conjunta de jardim e casa nos confortou”. 48<br />
46 Também BARISH, Louis e BARISH, Rebecca. O problema do sofrimento in: Crenças Básicas do<br />
Judaísmo. São Paulo: Ed. Edigraf, 1967.<br />
47 Citação de Goethe feita Mathilde Maier em sua obra “Os jardins de minha vida”.<br />
48 Pág. 64 in: MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Massao Ono Ed. São Paulo: 1981.
40<br />
Há, portanto, uma espécie de dinâmica <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>,<br />
criadora de valores, de finalidades sentidas como desejáveis pelos<br />
indivíduos e que eles buscam realizar. Assim, dificilmente se pode aceitar a<br />
hipótese de que um sentimento do qual sublinhamos a intensidade e força,<br />
não tenha conseqüências nem manifestações na conduta <strong>dos</strong> indivíduos. 49<br />
Ou seja, não se livraram desse passado noturno, ele os acompanha ainda que<br />
no Brasil estejam desde o amanhecer ao fim <strong>dos</strong> dias e a Alemanha tão<br />
distante. Tal movimento conduz à ação, à exteriorização, levando em<br />
consideração as satisfações e benefícios que os <strong>ressentimentos</strong> podem<br />
proporcionar. No caso das manifestações anti -semitas, o ódio recalcado e<br />
posteriormente manifestado acaba por criar um vínculo afetivo que permite<br />
uma forte identificação de cada um com seu grupo de pertença. Como um<br />
reagrupamento de indivíduos que se unem <strong>para</strong> gritar sua agressividade,<br />
inventando signos que exprimam desejo s hostis, como apedrejar símbolos<br />
alheios ou queimar figuras sagradas de um grupo ao qual se manifesta ódio<br />
e desejo de vingança.<br />
Mas, qual a solidariedade viabilizada pelos <strong>ressentimentos</strong><br />
coletivos, ou ainda, como se operam os movimentos que conduzem à a ção?<br />
Os <strong>ressentimentos</strong> se constituiriam em sentimentos criadores, feito a inveja,<br />
ciúme, rancor, maldade, desejo de vingança, humilhação e medo. Devemos<br />
duvidar de que algum tipo de sociedade possa fazer desaparecer a<br />
experiência do ódio, inferioridade, humilhação e potencialidades<br />
permanentes de agressividade. Segundo a perspectiva freudiana as pulsões<br />
inconscientes nos confrontam à dualidade pulsional do amor e do ódio, onde<br />
esta dualidade é redescoberta e incessantemente posta e recomposta.<br />
Ao tentar problematizar os <strong>ressentimentos</strong> e a História devemos<br />
buscar restituir e explicar o devir <strong>dos</strong> sentimentos individuais e coletivos.<br />
Segundo Pierre Ansart,<br />
49 RABINOVITCH, Gerard. Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004.
41<br />
“A dificuldade é redobrada quando se trata não somente de<br />
analisar os ódios, mas de compreender e explic ar aquilo que<br />
precisamente não é dito, não é proclamado; aquilo que é negado<br />
e se constitui, entretanto, como um móbil das atitudes,<br />
concepções e percepções sociais. O objeto esquiva -se, é preciso<br />
formular a hipótese de sua importância e reconstituir o inv isível<br />
que, se não é totalmente inconsciente, ao menos em parte é não<br />
consciente”. 50<br />
E acrescenta:<br />
“O historiador encontra -se na obrigação de acumular o estudo<br />
<strong>dos</strong> indícios, <strong>dos</strong> signos, <strong>dos</strong> traços: estudar a distribuição <strong>dos</strong><br />
camponeses nos solos, estabele cer a curva <strong>dos</strong> casamentos<br />
mistos, observar as estratégias de afastamento, considerar os<br />
limites das terras e <strong>dos</strong> litígios, recompor os rituais religiosos,<br />
observar qual imagem, do outro é ai apresentada, retraçar a<br />
história particular de um estupro e <strong>dos</strong> rumores que o tornaram<br />
público e o transformaram em crime simbólico. Tarefa delicada<br />
que diz mais respeito ao estudo <strong>dos</strong> costumes, <strong>dos</strong> usos da vida<br />
cotidiana que à grande história política.” 51<br />
Portanto as experiências afetivas a que nos propomos , sejam<br />
elas ligadas a circunstâncias particulares, como a história privada de<br />
famílias ou, sejam elas ligadas a valores conti<strong>dos</strong> em situações públicas,<br />
feito os conflitos étnicos, são, em escalas diferenciadas, recalcadas e<br />
evitadas, de forma a não serem reveladas freqüentemente. Poderia então, a<br />
memória <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> nos conduzir sempre à das violências e<br />
perseguições, uma espécie de dever da memória, onde fatos e sofrimentos<br />
suporta<strong>dos</strong> não são leva<strong>dos</strong> ao esquecimento.<br />
Por outro lado a investigação de tais val ores remete o<br />
historiador a uma observação mais minuciosa, de forma que os pormenores<br />
50 ANSART, Pierre. História e Memória <strong>dos</strong> Ressentimentos in: BRESCIANI, Stella. Memória e (res)<br />
sentimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2004.<br />
51 Cit. pág. 29.
42<br />
da vida cotidiana é que irão de fato nos conduzir dentro da pesquisa,<br />
revelando mais tarde acréscimos e subtrações no devir histórico, naquilo<br />
que os grupos tomam <strong>para</strong> si e naquilo que recusam de bom grado, com<br />
hostilidades maiores ou não. No caso <strong>dos</strong> israelitas alguns autores refletem<br />
sobre a assimilação do judeu em relação à Europa, ao passo em que<br />
reconhecem nos povos europeus uma porção de judaísmo. Sobre isso<br />
afirmou Georg Simmel:<br />
“O perigo da absorção não ameaça de modo algum os judeus,<br />
pelo contrário, encontram-se no estágio de judaização da<br />
Europa. Se examinarmos isso com uma lupa psicológica,<br />
encontraremos elementos judaicos no sangue de to<strong>dos</strong> os povos<br />
de cultura e essa judaização do não judeu ocorre <strong>para</strong>lela à<br />
europeização <strong>dos</strong> judeus. Quanto mais os judeus se assimilam,<br />
tanto mais eles se assimilam a si mesmos, e o momento da maior<br />
assimilação <strong>dos</strong> judeus coincidirá com o momento de sua maior<br />
influência enquanto elemento psíquico (...) europeus e judeus<br />
encontram-se em uma profunda ligação cultural. Eles são<br />
indivisíveis.” 52<br />
Árdua tarefa a da memória <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>, configura<strong>dos</strong> em<br />
discriminação, repressão, terror, intolerância, tortura ou violência. Na<br />
perspectiva historiográfica buscar ainda a transformação, no sentido de<br />
compreender a memória que o indivíduo conserva de seus <strong>ressentimentos</strong>, a<br />
memória que conserva <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> daquele de quem foi vítima e<br />
ainda a memória conservada pelo grupo de seus p róprios <strong>ressentimentos</strong>. A<br />
memória híbrida de civilização e barbárie:<br />
“O mundo <strong>dos</strong> campos da morte e a sociedade que engendra<br />
revelam o lado progressivamente mais obscuro da civilização<br />
judaico-cristã. Civilização significa escravidão, guerras,<br />
exploração, e campos da morte. Também significa higiene<br />
médica, elevadas idéias religiosas, belas artes e requintada<br />
52 Georg Simmel (1858-1918)
43<br />
música. É um erro imaginar que civilização e crueldade<br />
selvagem sejam antíteses. Em nosso tempo as crueldades, como<br />
muitos outros aspectos do nosso mu ndo, passaram a ser<br />
administradas de maneira muito mais afetiva que em qualquer<br />
época anterior. Não deixaram e não deixarão de existir. Tanto a<br />
criação como a destruição são aspectos inseparáveis do que<br />
chamamos civilização”. 53<br />
A passagem de Rubenstein atenta <strong>para</strong> um ponto fundamental<br />
em qualquer pesquisa que pretenda elaborar algo realmente significativo<br />
sobre o holocausto e as perseguições anti -semitas: não se deve partir de<br />
pressupostos de isolamento, ou seja, a observação da imigração semita <strong>para</strong><br />
o Brasil deve ser encarada como parte integrante de um movimento de todas<br />
as sociedades, e mais do que isso, igualmente integrante à mentalidade que<br />
conduziram nossos semelhantes às práticas de intol erância. Ora, o<br />
holocausto nasceu e foi executado em nossa sociedade moderna e racional,<br />
no auge do desenvolvimento cultural humano, por essas razões é um<br />
problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura. Como aponta<br />
Rubenstein a barbárie aconteceu juntamente à música e belas artes. 54<br />
A presença <strong>dos</strong> Maier e de outros imigrantes no norte do Paraná<br />
configuram aos historiadores e pesquisadores das Ciências Humanas uma<br />
vasta área de investigações, seja a partir da constituição <strong>dos</strong> grupos étnicos<br />
e suas imigrações ou <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> desenvolvi<strong>dos</strong>, recalca<strong>dos</strong> e ain da<br />
assim, manifesta<strong>dos</strong>. A estruturação <strong>dos</strong> imigrantes torna possível a<br />
possibilidade de apoio em uma concepção multidimensional da realidade<br />
social, onde cada nível ou dimensão traça sua própria história, ao mesmo<br />
tempo em que se articula com outras, a fim de restabelecer o movimento de<br />
uma sociedade. A própria história <strong>judaica</strong>, enquanto grupo étnico dentro <strong>dos</strong><br />
acontecimentos da segunda grande guerra tornou -se extremamente<br />
fragmentada quando relacionada às questões que envolvem imigração, exílio<br />
53 Richard Rubenstein. The Cunning of History. New York: Harper, 1978. in: BAUMAN, Zygmunt.<br />
Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.<br />
54 Assim como nos salientou Benjamin nas famosas teses sobre o conceito de história: “não há um<br />
monumento da cultura que não seja também um monumento da barbárie”.
44<br />
ou mesmo fuga do território alemão. As presenças de famílias com sangue<br />
judaico na cidade de Rolândia revelam aos historiadores um amplo campo<br />
de pesquisa.<br />
Parece-nos que o movimento aqui exposto relaciona -se mais<br />
fundamentalmente com a cultura, entendida aqui de fo rma ampla, ou seja,<br />
tudo que o homem construiu <strong>para</strong> tornar humanizado o seu espaço. To<strong>dos</strong> os<br />
elementos do humano estão inscritos no campo da cultura. Desta forma a<br />
postura não visa uma discursividade sobre espaços específicos que<br />
pretendam dar visibilidade <strong>para</strong> determina<strong>dos</strong> grupos sociais e legitimar o<br />
seu poder. Ao contrário, as manifestações das sensibilidades e a<br />
constituição de imigrantes como grupo étnico em “terras longínquas” são<br />
fenômenos que buscamos compreender no movimento histórico através da<br />
investigação de vontades individuais dentro da estrutura geral da sociedade<br />
humana.<br />
III.I – OS RESSENTIMENTOS E OS IMIGRANTES<br />
ALEMÃES EM ROLÂNDIA-PR<br />
A obra de Mathilde Maier, Os jardins de minha vida 55 , pode ser<br />
compreendida como um retrospecto de sua p rópria história enquanto<br />
personagem de um cenário habitado por outras centenas de histórias que a<br />
precederam. O abandono da Europa em 1938 e a exposição de seu último<br />
jardim em solo alemão refletem não mais que um aspecto de tragédia, a<br />
guerra que se anunciava novamente frente os olhos de uma geração que já<br />
havia passado pelos horrores da primeira grande guerra (1914 -1918):<br />
“ninguém ainda pressentia o terror da Primeira Guerra Mundial que afetou<br />
55 O livro de Mathilde Maier, publicado em 1981, foi editado pela primeira vez pela Editora Massao Ohno, de<br />
São Paulo-SP. A versão é de Roswitha Kempf. Kempf foi também uma refugiada alemã que veio ao Brasil e<br />
mais tarde casou-se com Massao Ohno. Os Maier já os conheciam <strong>dos</strong> tempos vivi<strong>dos</strong> em Rolândia.
45<br />
tão gravemente a nossa geração”. 56 Desta forma, <strong>para</strong> uma geração mais<br />
madura, o anúncio da segunda grande guerra representava não mais espanto,<br />
mas temor e medo, frente ao a experiência de que já haviam comungado<br />
antes. Aos jovens, segundo Mathilde Maier, causava menor angústia a idéia<br />
de transferência <strong>para</strong> terras est rangeiras, embora o não reconhecimento, o<br />
estranhamento em relação ao tempo que viviam fosse o mesmo <strong>para</strong> to<strong>dos</strong>.<br />
“Quando depois da emigração, que se deu em 1938 , fomos pela<br />
primeira vez visitar a Alemanha, então foram os amigos que<br />
sobreviveram ao terror do nazismo e da guerra; a casa de Goethe<br />
o jardim das palmeiras, que nos facultaram de novo este<br />
sentimento de solidariedade com a velha pátria” 57<br />
Não é difícil identificar entre os imigrantes alemães -judeus<br />
que vieram <strong>para</strong> Rolândia uma espécie de a bandono ao modus operandi<br />
germânico. Embora não pudessem eliminar traços característicos de sua<br />
formação, muitos buscaram evitar a permanência de laços com a antiga<br />
pátria. Alguns se recusavam a falar o idioma alemão, outros jamais<br />
retornaram à Alemanha e com o tempo seus descendentes foram criando,<br />
segundo relatos e observações, um desapego ainda maior, e desta vez não<br />
somente com a cultura germânica, mas também com o próprio judaísmo. 58<br />
Ao que parece, o casal Maier não adotou postura tão radical.<br />
Retornaram algumas vezes à antiga pátria, registraram seu estranhamento e<br />
não deixaram de viver no Brasil até o fim de suas vidas. Isto não caracteriza<br />
de certa forma, uma menor formação de <strong>ressentimentos</strong> em relação aos<br />
episódios que os fizeram abandonar a Alemanh a, mas talvez uma relação<br />
diferenciada <strong>para</strong> com suas próprias experiências:<br />
“Em 1938, o destino nos levaria às regiões tropicais com seu<br />
pujante crescimento. Talvez a lembrança do despertar tímido da<br />
56 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />
(primeira edição), 1981. Cit. p. 22.<br />
57 Cit. P. 23.<br />
58 Para compreender esta questão está inserido em anexo, ao final da dissertação, uma entrevista com Klaus<br />
Kaphan, filho de imigrantes e antigos sócios do casal Maier que chegaram a Rolândia ainda no início da<br />
década de 1930.
46<br />
natureza depois do inverno, as campânulas de neve e as<br />
primeiras violetas na grama, sejam o que resta da saudade do<br />
<strong>para</strong>íso perdido da infância, do qual não podemos ser<br />
expulsos”. 59<br />
A narrativa de Mathilde Maier, ao contrário de Max Hermann<br />
Maier, possui uma grande metáfora recalcada em seus jardins, que se<br />
referem não somente às suas experiências de infância, juventude e<br />
maturidade, mas também uma forma bastante específica de expor seu<br />
lamento, de exemplificar de que maneira poderia ela ou não manter seus<br />
laços com aquilo que ninguém poderia lhe arrancar. Neste caso, a vivência<br />
da infância parece ser aquela que melhor traduz o que não podem lhe tirar,<br />
o <strong>para</strong>íso perdido como a autora mesma coloca. E os momentos liga<strong>dos</strong> aos<br />
seus jardins são vastos em toda a narrativa:<br />
“Feliz a criança que pode brincar num jar dim. O meu jardim<br />
estendia-se atrás de uma bela antiga casa renana que, na frente,<br />
apresentava uma portentosa escadaria e atrás, <strong>para</strong> o lado do<br />
jardim, um largo terraço de pedra onde se viam grandes vasos<br />
com oleandros vermelhos, cor de rosa e brancos. No verão, estes<br />
arbustos sempre floriam abundantemente, porque eram bem<br />
trata<strong>dos</strong>, rega<strong>dos</strong> e aduba<strong>dos</strong> e nisto o co mprido cachimbo de<br />
meu pai desempenhava uma função significativa: as cinzas do<br />
tabaco eram colocadas nos vasos. Na minha memória o estranho<br />
perfume sulino das flores de oleandro ficou <strong>para</strong> sempre<br />
associado a um leve cheiro de cachimbo” 60<br />
Ou ainda:<br />
“Como era pacífica a Alemanha, na perspectiva de uma criança<br />
de antes da grande guerra mundial! Agora, aqui no Brasil,<br />
quando a noite estou deitada na n ossa casa de madeira, muitas<br />
vezes deprimida pelas notícias <strong>dos</strong> jornais, eu passo em<br />
pensamentos pelos aposentos e jardins de minha infância. E<br />
então escuto o estorninho cantar do alto da casa, onde está<br />
sentado na entrada de seu ninho, as plumas pretas e lustrosas, e<br />
à sua frente a pereira que esbanja o misterioso e doce perfume<br />
de suas flores. Este estorninho canta em louvor do Criador do<br />
59 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />
(primeira edição), 1981. Cit. p. 10.<br />
60 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />
(primeira edição), 1981. Cit. p. 9.
47<br />
universo e em seu canto eu reencontro a fé na perfeição da<br />
criação”. 61<br />
Aliado à perspectiva de seu passado, Mathild e expressa um<br />
sentimento depressivo, uma nostalgia do lar e da infância, <strong>dos</strong> tempos de<br />
paz. A redenção parece querer surgir através de seu louvor à natureza. Os<br />
jardins representam a forma mais sutil de permanência em um ambiente<br />
ausente da violência e hostilidade daqueles dias.<br />
Depois de imigra<strong>dos</strong>, os Maier se estabeleceram em uma<br />
fazenda, num cenário próximo aquele que a autora imaginava enquanto<br />
liberto, juntamente a isto outro fator determinante <strong>para</strong> a estabilização,<br />
sobretudo emocional, parece ter sido o apego a literatura, que na passagem<br />
de ambos, Max Hermann Maier e Mathilde Maier, ocupou um lugar especial<br />
após a fuga <strong>para</strong> o Brasil:<br />
“Ser católico ou judeu, não fazia diferença na estima humana<br />
recíproca e nos conceitos de ordem divina no mundo. A c ruzinha<br />
de cinzas na testa de Hede, eu a olhava com o acanhado respeito<br />
por uma tradição que <strong>para</strong> mim era estranha. Desde cedo, eu me<br />
tinha desligado das religiões tradicionais em favor de um<br />
conceito religioso mais ou menos no sentido <strong>dos</strong> Hypsistários,<br />
uma seita do século três, cuja doutrina consiste numa mistura do<br />
judaísmo e paganismo. O nome é derivado do grego e significa a<br />
veneração de um Deus só. No Brasil, depois de velhos, onde <strong>para</strong><br />
meu marido e <strong>para</strong> mim, Goethe se tornara uma figura<br />
orientadora, e ncontramos numa carta dele escrita em 1831 a seu<br />
amigo Boisserée, o seguinte trecho que, <strong>para</strong> mim, foi<br />
concludente: “Nenhum ho mem se livrará do sentimento<br />
religioso...entre todas as confissões ainda não achei uma, à qual<br />
eu pudesse me confessar plenamente. Agora nos meus velhos<br />
dias chego a saber de uma seita <strong>dos</strong> Hypsistários que, situa<strong>dos</strong><br />
entre pagãos, judeus e cristãos, declaram estimar o melhor, o<br />
mais perfeito que viesse a seu saber, admirá -lo e venerá-lo e,<br />
desde que esteja em íntima relação com uma di vindade, também<br />
adorá-lo. De uma época obscura surgiu de repente uma luz<br />
alegre, pois eu senti que durante toda minha vida tentara<br />
qualificar-me como Hypsistário, e isso não foi coisa fácil”. 62<br />
61 Idem. Cit. P. 15.<br />
62 Idem. Cit. P. 19.
48<br />
Nesta passagem, além <strong>dos</strong> valores religiosos a que a autora se<br />
coloca, há claramente o valor dedicado ao escritor alemão Johann Wolfgang<br />
Von Goethe (1749-1832), a quem o casal declara em alguns momentos uma<br />
interferência direta em sua estabilidade psicológica, a uma nova concepção<br />
de mundo, que menos antes, quando já o conheciam, não haviam ainda<br />
conseguido exercer tal olhar sobre sua obra. Sobre isso escreveu Max<br />
Hermann Maier:<br />
“Seguir incondicionalmente um homem, e endeusá -lo até, foi<br />
possível unicamente porque os seus sequazes, numa obediência<br />
cega, não tinham mais fé em Deus e, por isso mesmo, não<br />
sentiam mais remorsos em tripudiar sobre a dignidade humana de<br />
seus semelhantes. No estrangeiro lemos co m novos olhos o velho<br />
Kant, <strong>para</strong> o qual a crença em Deus criador era a razão prática<br />
das necessidades inatas ao ser humano. Em nenhum lugar,<br />
porém, a soberania e as exigências de Deus vêm tão claramente<br />
delineadas quanto na Bíblia, na qual aliás se mencionam<br />
inúmeras, arrogantes e fracassadas tentativas humanas de<br />
usurpar-se o lugar de Deus. A Bíblia torna -se sempre o livro<br />
mais importante do emigrante. Sempre de novo lida, comentada e<br />
explicada ela pode ser encontrada na casa de cada emigrante da<br />
Alemanha, muitas vezes em várias edições e exemplares. No<br />
estrangeiro, pudemos chegar também a uma nova noção do maior<br />
poeta alemão, Goethe. Essa noção já nos havia sido anunciada<br />
antes, por Albert Schweitzer e Karl Jaspers, mas ela se tornou<br />
viva e real somente pela própria experiência. Gotthold Ephraim<br />
Lessing expressou de maneira ímpar o que significa experiência<br />
própria: “A riqueza da experiência obtida através de leitura e<br />
livros se chama erudição. Experiência própria é sabedoria. O<br />
capítulo menor da sabedoria vale por milhões de erudição”. Em<br />
1947, após receber o prêmio Goethe da cidade de Frankfurt,<br />
disse Karl Jaspers: “É do espírito de Goethe que se participe da<br />
sua vida, lendo -o cada ano, a ele, suas obras, cartas e discursos.<br />
Ele se torna nosso companheiro e auxiliar constante em todas as<br />
fases da nossa vida. Viver com Goethe nos torna alemães, nos<br />
transforma em pessoas humanas”. Por desejo de minha esposa,<br />
por ocasião da emigração, trouxemos a edição de 8 volumes das<br />
cartas de Goethe, apesar das limitações de bagagem. Tornaram -<br />
se um tesouro em nossa casa, ao lado de outras obras, clássicas e<br />
românticas. A leitura des sas cartas tornou-se justamente uma<br />
fonte de afirmativas <strong>para</strong> se viver em tempos difíceis. Embora<br />
Goethe mesmo tivesse tido suas horas e temporadas de<br />
sofrimento e preocupações, quando “adormecia entre lágrimas”,<br />
tendo até chegado a dizer a seu amigo Ecker mann que em seus<br />
75 anos não tivera “nem um mês de alegria”, suas obras e cartas<br />
são cheias de amor e entusiasmo pelo homem e seu futuro:<br />
“Como quer que ela seja, a vida é um bem, ela é boa”. Sentenças<br />
desse teor, axiomas ou regras de vida, são freqüentes em seus<br />
epigramas: “O que cada dia quer de ti, deves perguntar, o que
49<br />
ele deseja, vai te responder. Alegra -te em tuas obras, e dá valor<br />
às alheias. Que a menor das coisas te dê satisfação. Aproveita<br />
bem a hora presente. Acima de tudo, não odeies a pessoa<br />
alguma. E deixa o futuro nas mãos de Deus”. 63<br />
E acrescenta:<br />
“Ele foi, isso sim, um ser humano de profunda sensibilidade,<br />
vivendo entre semelhantes, de muita bondade e paciência. Para<br />
poder conservar suas energias <strong>para</strong> o trabalho, construiu como<br />
que um muro ao seu redor e, como disse seu venerador Karl<br />
Jaspers, Goethe vislumbrou as mais terríveis coisas, mas não<br />
permitiu que elas o atingissem. Por isso mesmo é que <strong>para</strong> nós,<br />
vítimas de fatos horríveis e desumanos os quais não soubemos<br />
evitar em nossas vida s, <strong>para</strong> nós Goethe se tornou mais que um<br />
guia ou ajudante, tornou -se mestre universal que, pela sua<br />
personalidade e suas obras, nos adverte a que nos empenhemos<br />
to<strong>dos</strong>, e em tudo, <strong>para</strong> sermos pessoas dignas, que honrem a<br />
humanidade”. 64<br />
Desta forma, a importância do pensamento goethiano se fez<br />
bastante presente entre os Maier. A necessidade de uma orientação naquele<br />
momento representava não apenas novas condições de sobrevivência, mas<br />
acima de tudo uma possibilidade de manter-se vivo. A experiência da<br />
hostilidade e violência que levou muitos alemães -judeus a refugiarem-se em<br />
localidades distintas fez com que muitos não encontrassem essa espécie de<br />
porto seguro como os Maier e consequentemente buscaram soluções radicais<br />
<strong>para</strong> aquilo que enfrentavam. 65<br />
Para Mathilde Maier, o fato de estarem vivendo em uma região<br />
de mata tropical, trazia talvez além da perspectiva literária uma relação<br />
construída com suas experiências passadas, com a construção de vida desde<br />
a infância:<br />
63 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 55.<br />
64 Idem. Cit. P. 56.<br />
65 Sobre este assunto ver o item IV. III. Para muitos refugia<strong>dos</strong> a solução mencionada foi o suicídio.
50<br />
“Aqui, no nosso jardim brasileiro, temos u ma arcada com trinta<br />
videiras de várias espécies. Quando na primavera brasileira, em<br />
setembro, passo pela arcada e sinto doce cheiro da flor da uva,<br />
então vejo o jardim de Trier, vejo o rio Mosela entre os morros<br />
cobertos de vinhe<strong>dos</strong>. Um bem-estar independ ente do tempo se<br />
apodera de mim, sinto a natureza eterna, na qual nos é permitido<br />
ficar por um tempo determinado . Este sentimento de fazer parte<br />
da natureza eu já tive naquele tempo do terraço, onde os ramos<br />
das parreiras se enroscavam nas colunas e onde n o fim do outono<br />
colhíamos as uvas Moscatel avermelhadas. Estas uvas têm bagos<br />
firmes, sua casca é grossa e são um tipo bem original de uva,<br />
perfumosas e de bonito aspecto, porém não muito doces”. 66<br />
Assim, a construção <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>, com efeitos não<br />
menores, diga-se aqui, se faz apenas de maneira distinta. Não significa<br />
imaginar que <strong>para</strong> os Maier os acontecimentos liga<strong>dos</strong> à investida nazista<br />
tenham repercutido com pouca intensidade. A formação de tal subjetividade<br />
implica em um auxílio buscado por ambos em formas de superação de sua<br />
própria tragédia. Assim como colocou Max Hermann Maier ao mencionar<br />
Karl Jaspers em seu discurso sobre Goethe, o poeta teria construído ao seu<br />
redor um muro <strong>para</strong> que pudesse continuar a trabalhar e manter suas<br />
perspectivas em relação à condição humana, ainda que tenha vislumbrado<br />
coisas terríveis ele não permitiu que elas o atingissem. Os Maier buscaram<br />
também não se permitir atingir, e como Goethe ou em Goethe, buscaram tal<br />
inspiração.<br />
Em Rolândia, na comunidade formada p or diversas famílias de<br />
refugia<strong>dos</strong>, é presente a figura de Max Hermann Maier como alguém que<br />
reivindicou entre to<strong>dos</strong> a continuação de práticas e valores antes<br />
66 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />
(primeira edição), 1981. Cit. p. 18.
51<br />
experimenta<strong>dos</strong>. Por ocasião de seu falecimento, em 1976, durante o elogio<br />
fúnebre, disse o pastor da igreja luterana Hermann Muelhaeuser:<br />
“Não preciso falar da valiosa e singular importância que teve o<br />
Dr. Maier <strong>para</strong> a comunidade rolandense. Não seria esta a minha<br />
incumbência. Menos ainda seria tarefa minha avaliar uma vida<br />
destas. Quem seria capaz disso? Muito ousado seria pretender -se<br />
fazer o retrospecto ou descrição de uma vida assim, moldada e<br />
esculpida ao mesmo tempo por profecias bíblicas, pela eterna<br />
filosofia, pela mística <strong>judaica</strong> e pela teologia <strong>dos</strong> rabinos, pela<br />
ética religiosa e prática, pela poesia de Goethe, pela<br />
participação no desenvolvimento e sobrevivência de Israel, e<br />
pelos mais atuais e pessoais esforços pela obtenção da paz <strong>para</strong><br />
o mundo. Acima de tudo, a formação e a sabedoria do nosso<br />
querido Dr. Maier nunca constituíram puro dil etantismo, um<br />
destaque pessoal em si e <strong>para</strong> si – mas seu espírito viveu neste<br />
mundo e foi preocupado com a pessoa humana a quem ele<br />
devotava um vivo e amoroso interesse. Dificilmente haveria<br />
entre nós alguém que não tivesse de alguma maneira sido tocado,<br />
influído ou beneficiado pela forte e marcante personalidade do<br />
Dr. Maier”. 67<br />
Embora se trate aqui de um discurso fúnebre que naturalmente<br />
se inclina no intuito de expor qualitativamente aquele que morre, o pastor<br />
coloca Max Hermann Maier como uma figura de determinada importância na<br />
formação da cidade de Rolândia. Por outro lado, o trabalho de campo<br />
realizado com outros imigrantes apontou <strong>para</strong> uma diferenciação entre<br />
aqueles que viveram na cidade e aqueles que foram a área rural aos<br />
arredores da cidade, sendo assim, as famílias que se estabeleceram fora da<br />
zona urbana seriam aquelas com maior potencial financeiro, que<br />
abandonaram a Alemanha e que lá possuíam poder econômico antes da<br />
ascensão nazista. Desta forma, a distinção entre estes imigrantes existiu,<br />
sobretudo no contato entre os mesmos. Não entendemos aqui uma reflexão<br />
67 Idem. Cit. P. 72.
52<br />
com uma determinante econômica, onde a influência <strong>dos</strong> Maier e sua<br />
sobrevivência no Brasil tenha se dado apenas por suas condições materiais,<br />
mesmo porque aqueles que abandonaram a Alemanh a, mesmo possuindo tais<br />
condições, foram desvaloriza<strong>dos</strong> pelos nazistas e acabaram por perder muito<br />
do que possuíam. Sobre estas diferenças escreveu Mathilde Maier:<br />
“Ganhar o suficiente, ter comida, um telhado sobre a cabeça, ter<br />
alguém <strong>para</strong> cuidar em caso de doença ou quando nascia uma<br />
criança, isto criava uma atmosfera de confiança recíproca<br />
agradável <strong>para</strong> to<strong>dos</strong>. Este comportamento básico sempre<br />
considerei como condicionado por religião. Muitas vezes<br />
ouvíamos dizer: “Tem gente rica e gente pobre, se somos bons<br />
uns com os outros é possível viver em harmonia””. 68<br />
Por outro lado, naquilo que consistia em experiência prática,<br />
não haviam os refugia<strong>dos</strong> passado por situações tão distintas assim. Cabe<br />
aqui, ainda sobre a formação destes alemães, acrescentar que durante a<br />
primeira guerra mundial (1914-1918), tiveram, alguns deles uma<br />
participação direta como qualquer outro alemão. Sobre isso escreveu<br />
Mathilde:<br />
“Os eventos da guerra se abatiam como um pesadelo sobre nós.<br />
Vinham notícias de colegas de escola que to mbaram, ou uma<br />
amiga noiva perdia o bem-amado. O entusiasmo pela guerra,<br />
grande a princípio, era fomentado exageradamente nas escolas e<br />
também na nossa. Queriam que nós, alunas do segundo ano<br />
colegial, cantássemos de manhã no início das aulas: “Deus<br />
castigue a Inglaterra”, (nós não o fizemos, devo dizer <strong>para</strong> a<br />
honra de minha classe). – Este entusiasmo cedeu à um luto<br />
abafado pelos terríveis acontecimentos na frente de guerra. Só<br />
mais tarde, na convivência co m meu marido que sempre foi um<br />
homem da política, percebi como éramos pouco escola<strong>dos</strong> nessa<br />
matéria. As questões de Estado, de comunidade humana e de<br />
convivência <strong>dos</strong> povos deviam ocupar um grande espaço na<br />
educação de todo jovem. Nós, estudantes femininas, fomos<br />
convocadas em 1917, no “inverno das beterra bas”, pela<br />
Universidade de Muenchen <strong>para</strong> o “Serviço de Ajuda<br />
Espontânea”. Felizes por finalmente poder fazer alguma coisa<br />
pela coletividade, nós nos apresentamos ao reitor”. 69<br />
68 Idem. Cit. P. 61.<br />
69 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />
(primeira edição), 1981. Cit. p. 26.
53<br />
Também Max Hermann Maier havia participado da primeira<br />
grande guerra enquanto recruta do exército alemão. Por conta de círculos<br />
filosóficos realiza<strong>dos</strong> em Frankfurt no pós -guerra (1919), onde se<br />
estudavam as Teorias do Direito de Fries e mais tarde O Estado de Platão, é<br />
que Max Hermann Maier e Mathilde Maier se conheceram. Estas reu niões<br />
foram organizadas por jovens que eram to<strong>dos</strong> marca<strong>dos</strong> pela guerra 70 , de<br />
forma que eram igualmente envolvi<strong>dos</strong> com as questões políticas. Max<br />
Hermann Maier era quem orientava estas reuniões.<br />
Desta forma, as obras escolhidas enquanto fontes deste trabalh o<br />
representam mentalidades enraizadas na experiência da guerra. Tinham já o<br />
conhecimento da primeira grande guerra em suas memórias. Fato este que<br />
não deve simplificar ou diminuir o terror vivido frente ao regime nazista,<br />
mas que de qualquer forma não os coloca como inexperientes em um cenário<br />
de barbárie promovido por uma Europa às portas de mais um conflito<br />
armado.<br />
Concluímos, portanto que, a exteriorização, a prática cotidiana,<br />
traz em sua simplicidade a capacidade de revelar os sentimentos ocultos,<br />
recalca<strong>dos</strong>, que tem o jardim com a saída de Goethe da cidade de Frankfurt?<br />
Aparentemente nada, assim como a construção <strong>dos</strong> jardins de Mathilde não<br />
teriam, não fosse a história a que se ligam com profundidade e a elas<br />
remetem em seus dias. Ainda que a autora revele o contexto em que está<br />
inserida, os <strong>ressentimentos</strong> não permitiram uma exposição explícita da<br />
argumentação:<br />
“As fantasias do nacional socialismo que prometia tudo a to<strong>dos</strong>,<br />
era como um veneno mortal que infestava toda a Alemanha e que<br />
mais tarde exigiu sacrifícios indizíveis de todo o mundo<br />
civilizado. Sobre isto não quero escrever”. 71<br />
70 Idem. Cit. P. 30.<br />
71 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />
(primeira edição), 1981. Cit. p. 39.
54<br />
Certamente é mais atraente ao escritor narrar os feitos de suas<br />
histórias, sobretudo quando se expõe a própria história, num regime de<br />
escrita autobiográfica, de maneira a concretizar sua subjetividade, suas<br />
emoções, através de um viés, de uma metáfora que sintetize pacificamente<br />
uma trilha obscura, de obstáculos diversos que possuem mais experiências<br />
trágicas do que harmoniosas: “A se<strong>para</strong>ção <strong>dos</strong> velhos amigos sempre foi<br />
ferida que não se fecha na alma”. 72 No prefácio da obra de Max Hermann<br />
Maier escreveu Elmar Joenck:<br />
“Este é um relato diferente. Não se procurem nele baratos<br />
suspenses e empolgações. Para isso existem outros livros. Este é<br />
um relato que deverá agrad ar a to<strong>dos</strong> aqueles que souberem<br />
reconhecer como “mais perene que o bronze” o valor e o<br />
exemplo de uma vida enraizada e vivida conforme as mais puras<br />
tradições da cultura germânica, e iluminada pelo humanismo<br />
europeu e judaico. Além disso, o relato nos atin ge de frente,<br />
pois essa vida veio encerrar entre nós sua peregrinação, a<br />
conselho de mestres como Goethe e Albert Schweitzer, faróis<br />
como poucos, ainda capazes de nos salvar do naufrágio no meio<br />
das tempestades em que to<strong>dos</strong> navegamos.” 73<br />
O comentador refere-se a um texto que os atinge de frente, não<br />
o leitor que mais tarde conhecerá o texto de Max Hermann Maier, mas eles<br />
próprios, também refugia<strong>dos</strong> alemães que vieram <strong>para</strong> Rolândia -PR, onde a<br />
experiência narrada do autor confunde -se com a do tradutor, que finalizou a<br />
obra começada pelo imigrante. De alguma forma, a manutenção de valores<br />
construí<strong>dos</strong> na Europa tinha na figura de Max Hermann Maier um papel<br />
importante na comunidade formada em terras brasileiras: “Árvores hoje<br />
pujantes devem seu viço a seivas antigas. E o respeito às suas raízes é a<br />
melhor garantia ao verdor de seus ramos ansiosos de flores e frutos.” 74<br />
72 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im Urwald<br />
Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975. Rolândia:<br />
Gráfica Velox-PR, 1976.<br />
73 Idem. Cit. P. 2.<br />
74 Esta passagem foi escrita por Elmar Joenck ao final do prefácio do livro de Max Hermann Maier. Encontrase<br />
na página 6. Joenck fala neste prefácio da maneira como concluíram a tradução do livro, feita em parceria<br />
com Mathilde Maier.
55<br />
Por outro lado, o autor apresenta em seu texto uma participação<br />
efetiva no desenvolvimento das questões políticas, como aqu elas que<br />
envolviam diretamente os refugia<strong>dos</strong> no Brasil:<br />
“Para nós, bani<strong>dos</strong> da Alemanha, foi uma grande ajuda podermos<br />
ficar sossega<strong>dos</strong> co mo relação aos títulos das terras da<br />
Companhia, e sermos também acolhi<strong>dos</strong> de maneira agradável<br />
pela direção, inclusive com conselhos acert a<strong>dos</strong> e importantes.<br />
Imigrantes de muitas partes do Brasil e da Europa foram<br />
chegando antes e depois de nós às terras da Co mpanhia. Os<br />
gerentes davam ajuda a to<strong>dos</strong> eles, a começar pelo diretor geral,<br />
o escocês Arthur Thomas, auxiliado pelo brasileiro Willie Davis,<br />
também de origem inglesa. Ajudaram também a aconselhar os<br />
colonos o Boris Kleswerk, um fugitivo da Rússia comunista, e<br />
que falava bem o alemão, sem esquecer o velho oficial da força<br />
aérea inglesa, Gordon Fox Rule. A mentalidade desses homens<br />
se caracteriza por um artigo que Rule escreveu mais tarde, no<br />
qual se lê: “Não podia imaginar, depois da primeira guerra<br />
mundial, que alguns anos mais tarde eu receberia esses alemães,<br />
solda<strong>dos</strong> na primeira guerra e que haviam cumprido seu dever<br />
com a pátria, eu os receberia como expulsos da sua pátria, <strong>para</strong><br />
ajudá-los e instruí-los. Nós os ajudávamos sem aceitar nem<br />
esperar agradecimentos. Esses imigrantes valentes, <strong>para</strong> melhor<br />
dizer, fugitivos, co mpraram as terras da Companhia e criaram<br />
Rolândia. Foram exemplos v ivos das virtudes <strong>dos</strong> heróis com<br />
cujo nome batizaram a cidade: Rolândia, terra de Roland.” 75<br />
Portanto, havia ainda a relação com estrangeiros de partes<br />
diversas, os ingleses, que fundaram a Companhia de Terras e expuseram na<br />
Europa uma forma de negociação, sendo assim, portanto, a maneira como os<br />
alemães tiveram acesso a essas informações e assim puderam comprar os<br />
vale-terras e refugiar-se no Brasil, visto que os nazistas não permitiam que<br />
alemães-judeus retirassem o dinheiro que tinham de dentro da Aleman ha.<br />
Max Hermann Maier comenta o fato de ter deixado na Alemanha parte de<br />
seus livros:<br />
“Para pôr um tijolo definitivo sobre o passado, resolvi não levar<br />
nenhum livro jurídico comigo <strong>para</strong> o Brasil. Com o correr <strong>dos</strong><br />
anos em Rolândia, comecei a lamentar essa decisão. Precisei<br />
comprar de novo tais livros porque algumas tarefas vinham -me<br />
75 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im Urwald<br />
Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975. Rolândia:<br />
Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 18, capítulo 7.
56<br />
ao encontro. No meio do mato, como se diz, percebi que um<br />
jurista, que aprendeu a amar sua profissão, recebe uma marca<br />
indelével, um character indelebilis.” 76 .<br />
Havia uma comunicação entre os imigrantes, e desta forma<br />
puderam organizar-se no sentido de resolver os problemas imediatos a que<br />
foram expostos, a sobrevivência econômica era sem dúvida uma questão que<br />
não podia ser deixada <strong>para</strong> outro momento, nesse sentido o contato com os<br />
ingleses foi fundamental: Os ingleses nos ajudaram, e a muitos e muitos<br />
fugitivos do nazismo, a começar uma vida nova, em liberdade, no Brasil 77 .<br />
Alheio a isso, o advogado Max Hermann Maier desenvolveu atividades<br />
políticas e não deixou de manter rel ações constantes com aqueles que<br />
permaneceram na Alemanha, não menos intensa foi a participação nas<br />
questões ligadas aqueles que estavam no Brasil. Havia uma espécie de<br />
plano, onde outros alemães poderiam também ser trazi<strong>dos</strong> <strong>para</strong> o Brasil e<br />
aqui fixarem residência. 78<br />
Portanto, a reinvenção de práticas cotidianas após a imigração<br />
é o fator que permite a investigação das fontes, de forma a nos possibilitar<br />
assim uma aproximação com o objeto e a observação <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong><br />
desenvolvi<strong>dos</strong>.<br />
76 Idem. Cit p. 2. Capítulo 1.<br />
77 Idem. Cit. P. 12. Capítulo 1.<br />
78 Sobre esta questão ver entrevista com Klaus Kaphan. Kaphan era do filho de Heinrich Kaphan, antigo sócio<br />
de Max Hermann Maier na fazenda Jaú. Sobre ele escreveu: “Numa viagem profissional a Berlim, no fim de<br />
1935, falei com amigos mais i<strong>dos</strong>os sobre nossos planos de emigração, na esperança de ganhá-los <strong>para</strong> o<br />
Brasil. Mas já tinham outros planos em vista. Eles nos puseram em contato com o agricultor Heinrich<br />
Kaphan, de Emilienhof, perto do Dramburg na Pomerânia. Este já estava resolvido a emigrar <strong>para</strong> o Brasil,<br />
com sua mulher Kaete e com três meninos. Após um contato telefônico, o resoluto prussiano apareceu em<br />
Berlim, já no dia seguinte, <strong>para</strong> conhecer-nos”. Klaus Kaphan fala em sua entrevista sobre a formação de uma<br />
espécie de alojamento que abrigaria estudantes alemães refugia<strong>dos</strong>, mas a idéia não chegou a ser concretizada.
57<br />
IV – O OUTRO NA HISTÓRIA E A “FIGUEIRA<br />
BRAVA”<br />
IV.I – O ESTRANHAMENTO, O JUDEU E A HISTÓRIA<br />
Investigar as origens de atração e repulsa na civilização não é<br />
tarefa das mais fáceis. Compreender os diferentes grupos humanos,<br />
se<strong>para</strong><strong>dos</strong> em espaço, tempo ou cultura somente, seria limitar a reflexão.<br />
Quem é o “outro”? Na História, quem é o “outro”? Sabemos que o exército<br />
nazista era um e que o soviético era outro. Teríamos ai um perfeito exemplo<br />
de alteridade: alemães e russos. Cada qual identificou no adversário o<br />
“outro”, distintos geograficamente ou politicamente. Desta forma, o<br />
estrangeiro configura-se claramente no embate bélico, na oposição política<br />
que sacudiu a Europa e fez evidenciar a heterogeneidade do velho<br />
continente. Seguindo este raciocínio podemos elabora r um mapeamento<br />
histórico e concluir que, com conflitos explícitos ou não, o “outro” é aquele<br />
que se estabelece fora do grupo de origem, que não compartilha <strong>dos</strong> mesmos<br />
valores de pertença.<br />
Esta análise parece bastante superficial quando um olhar<br />
profundo é lançado sobre o problema. O estrangeiro, termo há tempos<br />
ligado a uma persona non grata 79 , estabelece em uma sociedade relações de<br />
valores que ocupam posições privilegiadas em suas estruturas morais, no<br />
desenvolvimento das práticas coletivas, que ori entam a sustentação do<br />
grupo enquanto tal. Ginzburg diz aos seus leitores: “ Sou um judeu nascido<br />
79 Persona non grata é um termo do latim, cujo significado literal é pessoa não bem-vinda.
58<br />
num país católico; nunca tive educação religiosa; minha identidade <strong>judaica</strong><br />
é em grande parte fruto da perseguição” 80 . E conclui:<br />
“Compreendi melhor algo que já pensava saber, isto é, que a<br />
familiaridade, ligada em última análise à pertença cultural, não<br />
pode ser um critério de relevância. [...] o mundo é nossa casa<br />
não quer dizer que tudo seja igual; quer dizer que to<strong>dos</strong> nos<br />
sentimos estrangeiros em relação a alguma coisa e a alguém”. 81<br />
Assim, aquilo que por vezes chamam o estranhamento pode ser<br />
encarado como definidor das características de pertença, ou ainda afirmá -<br />
las ou reafirmá-las como elemento de manutenção. O embate nestas<br />
fronteiras subjetivas torna o grupo reconhecedor de valores específicos e<br />
aquilo que por vezes poderia desaparecer, pode permanecer sob olhares de<br />
definição do outro.<br />
A história obscura da perseguição à comunidade <strong>judaica</strong> se<br />
encontra entre acusações de envenenamento das águas, homicí dios,<br />
bruxarias, encontros noturnos, feitiçaria; uma porção de caracterizantes<br />
pode ser encontrada na história <strong>dos</strong> judeus em solo estrangeiro. Fato<br />
interessante é aquele ainda onde temos absorvida a delirante construção<br />
deste estrangeiro. Tal sentimento, muitas vezes configurado em ódio é<br />
expresso de forma não direta e não assumida, mas sempre interiorizado e<br />
mesmo denegado, podendo até fazer-se como construção de um possível<br />
auto-ódio <strong>para</strong> com os iguais e, sobretudo <strong>para</strong> com os próprios judeus,<br />
onde uma tragédia comum entre os grupos étnicos que são hostiliza<strong>dos</strong> ou<br />
persegui<strong>dos</strong> é o fato de que muitas vezes acabam introjetando a deletéria<br />
imagem que deles é construída. 82 Assim sendo, se os dizem as multidões é<br />
por que devem ter razão.<br />
80 Este trecho está na obra Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância, onde o autor italiano Carlo<br />
Ginzburg expõe diferentes olhares sobre o estranhamento, sobre a sensação de reconhecer o estrangeiro e de<br />
perceber-se igualmente como um. “Grandes olhos de madeira, por que olham <strong>para</strong> mim”, pergunta Collodi,<br />
pseudônimo de Carlo Lorenzini, escritor também italiano autor de Pinóquio, obra infantil do final do século<br />
XIX.<br />
81 GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Cia. Das Letras,<br />
2001.<br />
82 BAIBICH, Tânia Maria. Fronteiras da identidade - o auto-ódio tropical. Curitiba: Ed. Moinho, 2001.<br />
Ainda sobre esta passagem é interessante destacar o papel de certos elementos constitutivos da cultura
59<br />
O hostilizado assume voluntariamente o papel do estrangeiro,<br />
embora possa em quase to<strong>dos</strong> os seus aspectos compartilhar de valores<br />
culturais deste mesmo grupo e ter seus descendentes liga<strong>dos</strong> aos mesmos há<br />
séculos 83 . A presença não só <strong>dos</strong> Maier, mas de diversos imigrantes<br />
refugia<strong>dos</strong> em Rolândia enfatizam tal argumento. A manutenção do grupo<br />
enquanto possuidor do espírito cultural alemão é mais presente que as<br />
relações mantidas com o judaísmo. O mais forte expoente da cultura alemã<br />
entre os Maier e outros imigrantes foi sem dúvi da Goethe. O poeta serviu<br />
principalmente ao casal Maier como uma figura orientadora em seus novos<br />
dias.<br />
Portanto, a relação estabelecida com a literatur a alemã e,<br />
sobretudo com Goethe, revela-se na narrativa do advogado como um ponto<br />
seguro e redefinidor suas emoções ligadas ao desespero e tragédia vividas<br />
outrora. Em outras palavras, a esperança e vontade de viver encontravam na<br />
sua voz a liderança. A respeito da coleção particular de livros <strong>dos</strong> Maier é<br />
interessante destacar o conflito entre os hábitos de brasi leiros e alemães.<br />
Tendo sido mais tarde declarada guerra à Alemanha pelo Estado brasileiro,<br />
muitos imigrantes foram intima<strong>dos</strong> a pr estar esclarecimento devido ao peso<br />
de suas bagagens. Muitos traziam caixas enormes e pesadas que continham<br />
somente livros. Tal prática não havia sido compreendida pelas autoridades<br />
brasileiras:<br />
“Como nossos vizinhos, quando chegamos da Europa, trouxemos<br />
caixões de livros que eram cuida<strong>dos</strong>amente transporta<strong>dos</strong> da<br />
estação de trem até nossas casas. No co meço da Segunda Guerra<br />
Mundial, uma denúncia junto às autoridades militares afirmava<br />
que nós, os alemães, escondíamos armas e munições nas casas,<br />
humana, feito a religião, a música, a literatura, como referenciais imprescindíveis <strong>para</strong> a superação de práticas<br />
intolerantes por parte <strong>dos</strong> grupos hostiliza<strong>dos</strong>. Sobre isso trataremos mais detalhadamente em outro momento.<br />
83 Uma análise permitiria reconhecer a heterogeneidade <strong>dos</strong> grupos étnicos. Sobre esta questão, enfatizando o<br />
não reconhecimento desta heterogenia pelos membros <strong>dos</strong> grupos, no prefácio de Teorias da Etnicidade, nos<br />
diz Jean-Willian Lapierre ao pensar a sociedade francesa: “A ideologia jacobina de nossa república, em nome<br />
do dogma do Estado-nação, sempre negou a diversidade étnica da população francesa. [...] Mas a maioria <strong>dos</strong><br />
franceses não está interessada em saber que sua nação formou-se historicamente por meio da conquista, da<br />
migração ou da anexação de povos muitos diferentes e também por uma imigração proveniente de diferentes<br />
regiões da Europa central ou meridional, inclusive das “colônias”, de modo que muitos <strong>dos</strong> cidadãos franceses<br />
da atualidade são descendentes de imigra<strong>dos</strong> que se integraram a nós durante o século XIX ou na primeira<br />
metade do século XX.
60<br />
porque nenhuma outra coisa podia estar nessas caixas pesadas<br />
que chegavam da Alemanha”. 84<br />
De qualquer forma, não é difícil perceber as ín timas relações<br />
estabelecidas com a Alemanha e com toda a cultura envolvida. A primeira<br />
aventura literária de Max Hermann Maier apresentou -se em obra de 1973:<br />
Lembranças da Alemanha – impregnadas em nós, profunda e<br />
maravilhosamente. 85 Poucos anos depois tivemos editadas suas impressões<br />
sobre a imigração <strong>para</strong> o Brasil.<br />
O outro da história fica até aqui como legitimador de práticas<br />
culturais, obriga o estrangeiro a apegar-se àquilo que pode redefini-lo<br />
enquanto ser humano, enquanto agente controlador de seu pr óprio destino.<br />
Depois de estabeleci<strong>dos</strong> em solo brasileiro, os alemães se de<strong>para</strong>ram com o<br />
cenário exótico das matas americanas. Muitas experiências estão descritas<br />
entre a fauna e flora observadas, mas poucas chamaram tamanha atenção na<br />
narrativa de Max Hermann Maier como a figueira:<br />
“A maior parte da nossa fazenda era então mata virgem, na qual<br />
se encontravam grossos troncos de perobas, cedros, paus d’alho,<br />
canelas e figueiras. As figueiras têm enormes copas e raízes<br />
aéreas que se derramam tronco abaixo. S uas sementes numerosas<br />
só se desenvolvem depois de passarem pelo estômago dum<br />
pássaro. Nós observamos com curiosidade um pequeno pé de<br />
figueira brava se desenvolvendo na bifurcação duma árvore no<br />
nosso jardim. Co m os anos, ela abraçou a árvore -suporte como<br />
uma cobra <strong>para</strong> no fim acabar com ela, estrangulando -a; daí seu<br />
nome “figueira -brava”. Presenciamos como que uma tragédia na<br />
natureza” 86<br />
Como compreender as conseqüências de tal experiência? A<br />
assimilação fez-se, sobretudo, pelo reconhecimento da “tragédia ” natural<br />
84 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Trecho do capítulo VII: Brasil, terra de asilo, página 19.<br />
85 Tais lembranças, caracterizadas com as palavras do poeta Rainer Maria Rilke, saíram pela editora Josef<br />
Knecht, de Frankfurt, a mesma que em 1975 lançou seu relato de imigrante. A primeira edição é composta de<br />
208 páginas e editada somente em língua alemã.<br />
86 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Trecho do capítulo IV: O norte do Paraná e a fazenda Jaú, página 13.
61<br />
expressa poeticamente por Max através da figueira -brava, planta que com o<br />
passar do tempo sufoca sua hospedeira primária. A analogia do anti -<br />
semitismo e da figueira-brava pode ser estabelecida em direção ao viés da<br />
imigração, o papel da terra estrangeira em meio aos conflitos do continente<br />
europeu. Após o movimento anti-semita e o nazismo, puderam estes<br />
encontrar, na imigração e em algum momento, sua síntese mundana, mas<br />
síntese de perenidade, de anti-tragédia, de aventura goethiana, de Thomas<br />
Mann e Bach em meio aos pássaros e toda a mata tropical. A figueira -brava<br />
da intolerância não é um olho que tudo vê. Puderam os fugitivos escapar e<br />
não serem sufoca<strong>dos</strong> pela figueira-brava.<br />
Desta forma, o Ostranienie, o estranhamento, desde o lar até<br />
terras longínquas, assume aqui um novo papel no devir humano. No campo<br />
lítero-teatral 87 podemos apreendê-lo como sinônimo de arte em geral ou<br />
produção específica? Ele se manifesta na arte por ser ela edificante aos<br />
homens, tornando possível suportar a realidade, o estranhamento é<br />
necessário <strong>para</strong> que os homens possam encarar a existência e suas<br />
implicações.<br />
No universo religioso a idéia do estranhamento está presente na<br />
medida em que se criaram instrumentos de distanciamento, <strong>para</strong> encarar,<br />
cada qual à sua forma, a realidade. O que se tentou de fato foi caracterizar<br />
o grupo, mantendo os outros distantes, como a fantasia popular da eleição<br />
divina, o mito grego ou a proibição <strong>judaica</strong> da idolatria, onde a imagem é<br />
vista como presença de algo que não existe.<br />
87 O termo ostranienie fora empregado pelo alemão Bertold Brecht, que buscou expor o estranhamento<br />
humano, assim como Tolstoi em suas passagens. Em seus escritos o imperador Marco Aurélio atentava <strong>para</strong> o<br />
reconhecimento da comoção e do envolvimento com aqueles que despertam paixões que deveriam ser<br />
compreendidas: “Cada uma dessas admoestações implicava uma técnica moral específica destinada a adquirir<br />
o domínio sobre as paixões, que nos transformam em marionetes. A voz melodiosa de um canto deve ser<br />
subdividida em cada um <strong>dos</strong> seus sons e, tomando-os um de cada vez, tu te perguntarás se ele te<br />
comove”.Também Viktor Chklovski: “Para ressucitar nossa percepção da vida, <strong>para</strong> tornar sensíveis as coisas,<br />
<strong>para</strong> fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da<br />
coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se serve<br />
de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a qual tende a tornar mais<br />
difícil a percepção, é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o<br />
devir de uma coisa, <strong>para</strong> ela, o que foi não tem a menor importância”.
62<br />
A experiência <strong>dos</strong> Maier pode atentar-nos <strong>para</strong> a legitimação<br />
deste distanciamento na identificação <strong>dos</strong> judeus que abandonaram a<br />
Alemanha na década de 1930, <strong>para</strong> além da caracterização física, feito a<br />
estrela de Davi costurada junto às roupas ou seus passaportes, documento<br />
fundamental <strong>para</strong> qualquer viajante e que trazia um “J”, em vermelho,<br />
destacado na primeira página. Max Hermann Maier apontou as<br />
conseqüências de portar tais sinais: “Os passaportes alemães de judeus<br />
traziam na primeira página um “J” carimbado em vermel ho, que tornava<br />
impossível ao portador o retorno <strong>para</strong> a Alemanha, e visava tornar o<br />
portador “persona non grata” no estrangeiro”. 88 Mais tarde seria a vez do<br />
advogado explicitar suas primeiras impressões sobre o Brasil e o<br />
distanciamento destas com sua cultura de origem:<br />
“Logo após nossa chegada ao recinto da alfândega em Santos,<br />
aprendi que no Brasil é mais conveniente a pessoa entender -se<br />
tanto com as autoridades como com os particulares com um<br />
jeitinho amigável do que se apoiar em leis ou cumprimento de<br />
decretos. O brasileiro está quase sempre disposto a dar um<br />
“jeito” (uma palavra difícil de traduzir: uma “saída” ou um<br />
“acerto”). Max conclui: “Toda a vida aqui era diferente da nossa<br />
habitual vida na Europa”.<br />
Portanto, o estranhamento configurou -se de maneira a atingir<br />
to<strong>dos</strong> os envolvi<strong>dos</strong>, falta-nos aqui apenas o contraponto, a percepção de<br />
estranheza do brasileiro em relação ao alemão. As possibilidades de<br />
pesquisa podem vir a contribuir nesse sentido.<br />
A produção <strong>dos</strong> hábitos no plano do inconsciente pod e também<br />
ser utilizada como argumento agravante, de forma que a manutenção <strong>dos</strong><br />
mesmos cria o auto-reconhecimento e muitas vezes define o distanciamento.<br />
Viktor Chklovski refletiu sobre a questão:<br />
“Se estudarmos com suficiente atenção as leis da percepção, não<br />
tardaremos a perceber que os atos tendem a se tornarem<br />
automáticos. To<strong>dos</strong> os nossos hábitos provêm da esfera do<br />
inconsciente e do auto matismo. O peso <strong>dos</strong> hábitos inconscientes<br />
88 Esta passagem encontra-se no início do livro, capítulo dois, página quinze.
63<br />
é tão forte que a vida passa, se anula. A automatização engole<br />
tudo: coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra”. 89<br />
Portanto, quando Brecht nos fala de seu ostranienie, da<br />
excessiva distância, do estranhamento, devemos reconhecer a construção<br />
historicamente persuadida. Os movimentos, físico, geográfico e também<br />
cultural e psicológico, permitem acumular à experiência individual ou<br />
coletiva uma coleção de novos hábitos, onde, consciente ou não, há um<br />
“sincretismo cultural”, a adoção de novos hábitos, posturas, códigos de<br />
comportamentos que passam a ser novos orientado res de conduta. Mais<br />
adiante poderemos notar as transformações <strong>dos</strong> refugia<strong>dos</strong> em solo<br />
brasileiro, de forma a percebê-los também orienta<strong>dos</strong> por aquilo que nunca<br />
fez parte do universo cultural alemão ou europeu.<br />
Há também uma espécie de inversão, ou seja, nota -se<br />
claramente a manutenção <strong>dos</strong> valores germânicos, desde a língua<br />
amplamente falada até as mínimas manifestações cotidianas, como a<br />
alimentação ou a leitura. Embora isso, agora há uma luta incessante <strong>para</strong> se<br />
fazer manter a perspectiva cultural ligada aos an cestrais, ao universo<br />
europeu sempre impregnado, mas agora apenas na memória, nas lembranças,<br />
nas histórias, não se respira mais o inverno da Europa, quem os acorda é o<br />
verão americano.<br />
A experiência <strong>judaica</strong>, de grupo “legitimamente” apátrida,<br />
assim definido pelos “outros”, é caracterizada levando em conta a<br />
ascendência que não se define exatamente nem como religiosa nem como<br />
étnica.<br />
Não se chama este ou aquele de “cristão”, no que se refere ao<br />
seu valor étnico pelo simples fato de fazer ou não parte de uma cultura<br />
mergulhada no cristianismo. Quando colocamos o que não se diz, apelamos<br />
ao fato da distinção operada pela terminologia quando ela é aplicada ao<br />
elemento judeu. Ou seja, ele o é independente de suas forças autônomas e<br />
subjetivas. O papel <strong>dos</strong> judeus na filosofia contemporânea, a influência do<br />
89 Citado por Ginzburg em “Olhos de madeira”, páginas quinze e dezesseis.
64<br />
judaísmo nas revoluções socialistas do século XX, a participação <strong>dos</strong> judeus<br />
na militância de esquerda durante a ditadura militar no Brasil, enfim, de<br />
diversas formas podemos representar a passagem destes ator es na<br />
experiência civilizatória. A relação estabelecida com a religião criou e<br />
ainda cria sugestões interessantes <strong>para</strong> a compreensão do fenômeno.<br />
Para alguns autores que interpretaram a participação <strong>dos</strong> judeus<br />
em movimentos mais tardios, como as transform ações na década de 1960,<br />
estes possuem estreita relação com o mito do Éden, de forma a definirem o<br />
romantismo revolucionário como aquele que<br />
Apresenta uma crítica da modernidade, isso é, da civilização<br />
capitalista moderna, em nome de valores e ideais do p assado<br />
(pré-capitalista, pré -moderno). [...] Um romantismo<br />
revolucionário e/ou utópico, [que objetivava] instaurar um<br />
futuro novo, no qual a humanidade encontraria uma parte das<br />
qualidades e valores que tinha perdido com a modernidade:<br />
comunidade, gratuidade, doação, a harmonia com a natureza,<br />
trabalho como arte, encantamento da vida. 90<br />
Dessa forma, a luta armada no Brasil contra a ditadura “não foi<br />
senão uma das manifestações mais radicais do romantismo revolucionário<br />
naqueles anos, presente não só no cam po político-partidário, mas também<br />
político-cultural, na música popular, no cinema, no teatro, nas artes<br />
plásticas e na literatura” 91 . A intensidade deste período e de seus eventos<br />
aproxima-se de nosso objeto em questão, sobretudo quando defini<strong>dos</strong> a<br />
partir de conceitos contextuais, como afinidade eletiva, onde a definição de<br />
uma época aproxima valores e ideais naqueles coloca<strong>dos</strong> como<br />
historicamente distintos:<br />
A definição sobre esse conceito baseia -se na definição de<br />
Michael Lövy ( Redenção e Utopia: o judaí smo libertário na<br />
Europa Central. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989, p. 13 -8). O<br />
autor o define co mo “um tipo muito particular de relação<br />
dialética que se estabelece entre duas configurações sociais e<br />
90 LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Romantismo e política. São Paulo: Paz e terra, 1993.<br />
_____________________________. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade.<br />
Petrópolis: Vozes, 1995.<br />
91 RIDENTI, Marcelo. O romantismo revolucionário nos anos 60, cit., p.414.
65<br />
culturais, não redutível à determinação causal direta ou à<br />
“influência” no sentido tradicional. Trata -se, a partir de uma<br />
certa analogia estrutural, de um movimento de convergência, de<br />
atração recíproca, de confluência ativa, de combinação capaz de<br />
chegar até a fusão. [...] Essa força é a afinidade, determinand o a<br />
combinação <strong>dos</strong> corpos heterogêneos numa união que é uma<br />
espécie de casamento, de enlace químico, procede antes do amor<br />
que do ódio. [...] Muitos dão o no me afinidade ao que chamamos<br />
atração. [...] Afinidade é um caso particular de atração. [...]<br />
formam um ser que tem propriedades novas e distintas daquelas<br />
que pertencem a cada um desses corpos antes da co mbinação.<br />
[...] A afinidade eletiva não é a afinidade ideológica inerente às<br />
diversas variantes de uma mesma corrente social e cultural. [...]<br />
A afinidade eletiva também não é sinônimo de influência, na<br />
medida em que implica uma relação bem mais ativa e uma<br />
articulação recíproca (podendo chegar à fusão). É um conceito<br />
que nos permite justificar processos de interação que não<br />
dependem nem da causalidade d ireta, nem da relação expressiva<br />
entre forma e conteúdo (por exemplo, a forma religiosa como<br />
expressão de conteúdo político ou social). [...] A afinidade<br />
eletiva não se dá no vazio ou na placidez da espiritualidade<br />
pura: ela é favorecida (ou desfavorecida) por condições<br />
históricas e sociais. 92<br />
Assim, a atração entre jovens judeus que se tornaram militantes<br />
arma<strong>dos</strong> no Brasil no fim <strong>dos</strong> anos 60 não representa igualmente a<br />
experiência <strong>dos</strong> judeus fugitivos da Segunda Grande Guerra, nem o que<br />
ocorreu nos anos trinta entre imigrantes e nativos pode ser descrito como<br />
uma afinidade neste sentido. O que torna válido o argumento é a relação<br />
desenvolvida entre os próprios imigrantes, que submeti<strong>dos</strong> a um contexto<br />
92 KUSHNIR, Beatriz. Nem bandi<strong>dos</strong> nem heróis: os militantes judeus de esquerda mortos sob tortura no<br />
Brasil (1969-1975). In: Cadernos de Língua e Literatura hebraica. São Paulo: Humanitas-FFLCH-USP, 2001.<br />
A autora trata neste ensaio de dez diferentes casos de tortura e morte durante o auge da repressão militar no<br />
Brasil. To<strong>dos</strong> os militantes envolvi<strong>dos</strong> eram de ascendência <strong>judaica</strong> e partici<strong>para</strong>m <strong>dos</strong> principais grupos<br />
arma<strong>dos</strong> de esquerda no país. O primeiro caso citado é o do estudante de medicina e militante da VPR<br />
(Vanguarda Popular Revolucionária) Chael Charles Schreier, primeiro militante torturado e morto nas<br />
dependências do DEOPS (Destacamento de Operações de informações/Centro de Operações de Defesa<br />
Interna do II Exército) no Rio de Janeiro no ano de 1969. Nos anos seguintes a autora passa por outros<br />
militantes com o desenlace final nos casos Wladimir Herzog e Iara Iavelberg, ambos certamente tortura<strong>dos</strong> e<br />
mortos pela polícia política embora ainda hoje se mantenha em alguns setores a versão de suicídio em ambas<br />
mortes. Wladimir Herzog e Iara Iavelberg jazem na ala reservada aos suicidas no cemitério israelita do<br />
Butantã em São Paulo (setor G. Iara está no G/quadra 26/lápide 57 e Herzog no G/28/64). Em 1996, o artista<br />
plástico Carlos Zílio, ex-militante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), expôs no MAM<br />
(Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) sua arte e política entre os anos de 66/76. No catálogo da<br />
exposição, a dedicatória é <strong>para</strong> os amigos perdi<strong>dos</strong>, sobretudo <strong>para</strong> José Roberto Spiegner, morto em 1970:<br />
“Fico espantado em pensar como tão jovens tínhamos a certeza de poder mudar o mundo e modelar a história.<br />
As mortes e o sofrimento me comovem. Experimentamos a dura realidade da derrota. [...] Gostaria de dedicar<br />
esta exposição a to<strong>dos</strong> que morreram nessa luta, alguns, inclusive, de maneira bastante cruel. Mas queria<br />
homenagear, sobretudo, José Roberto Spiegner. Foi meu primeiro amigo a morrer [...] De certo modo, devolhe<br />
a vida”.
66<br />
histórico sem precedentes e sem nada que pudessem faze r desenvolveram<br />
uma reciprocidade mútua, uma alavanca <strong>para</strong> a superação de males maiores,<br />
seja incorporando novos padrões valorativos e cotidianos ou fazendo<br />
permanecer as manifestações germânicas.<br />
No Brasil, durante a repressão militar após o golpe de 1964,<br />
havia a expressão do Estado que dizia “Ame-o ou Deixe-o”. De certa forma<br />
muitos o deixaram mesmo sob juras de amor eterno. Décadas anteriores,<br />
sobretudo os anos da era Vargas, apresentam não só a repressão e<br />
manipulação da máquina estatal em to<strong>dos</strong> os setores da sociedade, mas<br />
também uma relação peculiar com os estrangeiros e precisamente com os<br />
estrangeiros de ascendência <strong>judaica</strong>. Em 1933, publica -se no Rio de Janeiro<br />
uma coletânea de artigos entre intelectuais brasileiros, cujo título era: “Por<br />
que ser anti-semita?”. Neste livro, embora a maioria criticasse o anti -<br />
semitismo percebe-se certa ambigüidade de opiniões, apesar daquilo que<br />
declaravam sobre os judeus:<br />
“Única raça pura que talvez ainda exista no mundo, vem desde<br />
séculos realizando este milagre único: o de um grande povo, uma<br />
verdadeira nação, sem o menor palmo de território. São, assim,<br />
os primeiros humanistas do mundo. Como brasileiro, porém,<br />
filho de um país novo e ainda fraco, aberto a todas as investidas,<br />
sem defesa, principalmente, <strong>para</strong> to da e qualquer manifestação<br />
de caráter mais espiritual do que real, não deixo de receiar muito<br />
que os judeus se implantem vitoriosamente no Brasil. Bastará<br />
que o queiram, esta é a verdade. Não acredito muito que o<br />
desejem, porém, pois ainda estamos, apesar de tudo, no período<br />
do desbravamento e os judeus preferem chegar mais tarde: no da<br />
colheita”. 93<br />
Assim, persiste no discurso a construção de idéias<br />
questionáveis, como a pretensa formação de uma “raça” <strong>judaica</strong>, distinta de<br />
outros tipos de ”raça”, de outros tipos de pessoas. A definição étnica é<br />
realmente<br />
Naqueles anos o controle sobre os estrangeiros era amplo,<br />
segundo Helena Lewin,<br />
93 NETTO, Américo. Dois pontos de vista. In: Vários Autores. Por que ser anti-semita. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira, 1933.
67<br />
“O controle não se restringiu à correspondência, incluía jornais<br />
e chamadas telefônicas; outras providências foram adotad as,<br />
como a elaboração de listas do movimento portuário de<br />
passageiros desembarca<strong>dos</strong> no Brasil ou em trânsito <strong>para</strong> outros<br />
países, informações sobre passaportes, sobretudo de cidadãos<br />
russos, identificação de to<strong>dos</strong> os estrangeiros, além das fichas de<br />
registro em hotéis da cidade e exame detalhado <strong>dos</strong> pedi<strong>dos</strong> de<br />
naturalização. Por outro lado, as instituições <strong>judaica</strong>s eram<br />
obrigadas a dispor, <strong>para</strong> conhecimento da polícia, seus estatutos,<br />
composição da diretoria e, em alguns casos, a lista de to<strong>dos</strong> os<br />
seus sócio s, principalmente no caso de associações que tinham<br />
vínculo externo, como o Joint, Ica, Wizo, organizações sionistas<br />
e outras como a Socorro às Vítimas da Guerra, obrigatoriamente<br />
dependente da Cruz Vermelha Brasileira. Em muitas ocasiões, a<br />
polícia refuta va os nomes apresenta<strong>dos</strong> <strong>para</strong> aprovação que<br />
deviam ser preferentemente brasileiros ou naturaliza<strong>dos</strong>, e, até<br />
que se pro movesse a substituição, a instituição não obtinha<br />
licença <strong>para</strong> funcionar ”. 94<br />
Desta forma, os vestígios históricos da questão <strong>judaica</strong><br />
convencem àqueles que querem ver. Seja na militância armada ou na<br />
imigração forçada, os judeus estavam etnicamente identifica<strong>dos</strong>, com um<br />
distanciamento, uma subjetiva fronteira, não geográfica, mas cultural, por<br />
que implica na proximidade, no contato entre seus atores. Assim, a<br />
permanência de valores depende do desenvolvimento no choque dessas<br />
fronteiras, do sucesso ou não da reciprocidade estabelecida entre os grupos,<br />
desviando assim o foco da importância fundamental dada ao fato de se<br />
compartilhar uma mesma cultura. 95<br />
A interpretação teórica <strong>dos</strong> grupo s étnicos ligada à<br />
antropologia traz-nos assim um forte campo de discussão e análise,<br />
sobretudo quando parte de uma reflexão contrária à chamada antropologia<br />
94 LEWIN, Helena. Dops: o instrumental da repressão política. In: CAD. Líng. Lit. Hebr., n. 3, p.267-294,<br />
2001.<br />
95 Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos Étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth/Phillipe Poutignat,<br />
Jocelyne Streiff-Fenart; São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. Esta visão a respeito <strong>dos</strong> grupos<br />
étnicos é principalmente encontrada na obra do antropólogo Fredrik Barth. Em Grupos étnicos e suas<br />
fronteiras Barth expõe que o argumento é lucrativo quando visto como uma implicação ou um resultado, mais<br />
do que como uma característica primária e definicional da organização do grupo étnico. Coloca ainda que “a<br />
classificação de pessoas e grupos locais como membros de um grupo étnico deve depender do modo como<br />
demonstram os traços particulares da cultura. [...] A atenção é dirigida à análise das culturas, não à<br />
organização étnica. [...] O ponto de vista abrange igualmente uma “etno-história” que faz a crônica <strong>dos</strong><br />
ganhos e das mudanças culturais e procura explicar por que razão determina<strong>dos</strong> itens foram toma<strong>dos</strong> de<br />
empréstimo”.
68<br />
tradicional no que se refere a uma concepção <strong>dos</strong> grupos étnicos, onde os<br />
designa como populações que: a) perpetuam -se biologicamente de modo<br />
amplo, b) compartilham valores culturais fundamentais, c) constituem um<br />
campo de comunicação e interação, d) possuem um grupo de membros que<br />
se identifica e é identificado por outros. Tal definição se aproxima em<br />
conteúdo da proposição postulada de que uma raça = uma cultura = uma<br />
linguagem e que uma sociedade = entidade que rejeita e discrimina outras.<br />
Esse modelo sem dúvida aproxima-se de várias situações, de objetos<br />
estuda<strong>dos</strong> à luz etnográfica, mas desenvolve de maneira problemática uma<br />
concepção ideal <strong>dos</strong> grupos étnicos, sobretudo em relação à gênese,<br />
estrutura e função <strong>dos</strong> grupos. Isso nos impediria de compreender o<br />
fenômeno étnico e seu papel na cultura humana. A manut enção das<br />
fronteiras nesse caso decorreria do isolamento de cada grupo. Segundo o<br />
pensamento barthiano:<br />
“O mais grave de tudo é que ela nos induz a assumir que a<br />
manutenção das fronteiras não é problemática e decorre do<br />
isolamento implicado pelas caracte rísticas: diferença racial,<br />
diferença cultural, se<strong>para</strong>ção social e barreiras lingüísticas,<br />
hostilidade espontânea e organizada. Isso limita igualmente o<br />
âmbito <strong>dos</strong> fatores que utilizamos <strong>para</strong> explicar a diversidade<br />
cultural: somos leva<strong>dos</strong> a imaginar cada g rupo desenvolvendo<br />
sua forma cultural e social em isolamento relativo,<br />
essencialmente, reagindo a fatores ecológicos locais, ao longo<br />
de uma história de adaptação por invenção e empréstimos<br />
seletivos. Esta história produziu um mundo de povos se<strong>para</strong><strong>dos</strong>,<br />
cada um com sua cultura própria e organizado numa sociedade<br />
que podemos legitimamente isolar <strong>para</strong> descrevê -la co mo se<br />
fosse uma ilha”. 96<br />
Desta forma, o autor não apenas afirma a importância das<br />
fronteiras como elemento fundamental da compreensão do grupo, d e sua<br />
interação com os demais e evitando assim formulações hostis e por vezes<br />
violentas como também dá um papel de destaque à história, enquanto<br />
reveladora <strong>dos</strong> resulta<strong>dos</strong> pragmáticos dessa concepção. Jean Delemeau, em<br />
96 BARTH, F. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne.<br />
Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998.
69<br />
seu trabalho sobre o medo no Ocidente contextualizou a relação entre os<br />
diversos grupos e os judeus em meio a isso, destacando alguns pontos <strong>para</strong><br />
compreender a gênese daquilo que colocaria o judeu como uma face do mal:<br />
[...] outras verdades históricas devem ser ressaltadas: a) as<br />
relações entre cristãos e judeus, antes do tempo <strong>dos</strong> pogroms,<br />
não haviam sido sempre más; b) o fator religioso desempenhou<br />
um papel importante nessa degradação; c) no século XVI, esse<br />
fator religioso tornou -se o elemento motor, a característica<br />
dominante do antijudaí smo ocidental. 97<br />
Somente uma visão de isolamento poderia influenciar<br />
excessivamente na relação entre os grupos ou entre judeus e cristãos. Uma<br />
história que produziu um mundo de povos se<strong>para</strong><strong>dos</strong>, cada qual podendo ser<br />
observado particularmente. É a política do estranhamento. Das dificuldades<br />
de realizar uma manutenção de suas fronteiras e do que podemos dizer<br />
também como uma impossibilidade de suas assimilações plenas, surgindo<br />
assim a obrigatoriedade de sua tolerância mútua. A História mostra que<br />
poucos momentos assim se mantiveram. O judeu foi identifica do, sobretudo<br />
após o ano 1.000 d.C. como uma das faces do diabo. 98 O estranhamento de<br />
cristãos e a exteriorização desses levaram a episódios sangrentos em<br />
diversas partes da Europa, sobretudo na Espanha após o século XVI, França,<br />
Inglaterra, Portugal, além de outras regiões como Polônia ou Alemanha. De<br />
forma geral a hostilização sofrida pelos judeus foi amplamente<br />
caracterizada com expulsões, extermínios, acusações ou sinais de<br />
identificação exteriores.<br />
97 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. Sobre<br />
esta passagem, ao falar do fator religioso o autor cita Jean Paul Sartre em sua obra Reflexões sobre a questão<br />
judia de 1961: “Foram os cristãos que criaram o judeu ao provocar sua assimilação”. Assim, os elementos<br />
aponta<strong>dos</strong> por Delemeau implicam nas relações historicamente produzidas entre, sobretudo, cristãos e judeus,<br />
de forma que a variação ou perío<strong>dos</strong> de maior ou menor hostilidade entre os grupos são provocadas pela<br />
alteração ideológica, que se manifestou principalmente através do discurso de pregadores cristãos. Embora<br />
essa compreensão, o autor aponta também os fatores econômicos, desde as mudanças geográficas das<br />
comunidades israelitas e seus perío<strong>dos</strong> de manutenção, sucesso e decadência até o desenvolvimento tardio <strong>dos</strong><br />
cristãos nas relações comerciais, sobretudo nas internacionais.<br />
98 Ibid. p. 280.
70<br />
IV.II – MATHILDE MAIER E A FIGUEIRA-BRAVA OU O<br />
DISCURSO DO ESTRANHAMENTO<br />
“... Lá nos pilares da sala de estar e da biblioteca estão<br />
penduradas três cápsulas de metal, como é costume entre os<br />
judeus, nas quais estão escritos sobre pergaminho em letras<br />
hebraicas os versos do quinto livro de Moisés: Amarás o Eterno<br />
teu Deus de todo coração e com toda tua alma. Para nós isto<br />
sempre significou que só o amor de Deus manifestado através da<br />
beleza da natureza, pode ajudar ao homem”. 99<br />
Escrever sua própria história, reencontrar largos caminhos<br />
percorri<strong>dos</strong>, trilha<strong>dos</strong>. O homem, Deus e a natureza. Assim Mathilde Maier<br />
poderia ter sua narrativa, intitulada Os jardins de minha vida 100 , justificada<br />
ou interpretada. Inicialmente publicada em alemão, a obra teve, assim como<br />
a Max Hermann Maier, uma versão traduzida ao português 101 . O labirinto<br />
percorrido pela autora e a chave que a conduz ao fim de um escuro e<br />
99 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />
(primeira edição), 1981. Cit. p. 82.<br />
100 Segundo Ethel V. Kosminsky, em seu artigo Literatura judaico-feminina de imigração nos Esta<strong>dos</strong><br />
Uni<strong>dos</strong> e no Brasil, publicado no Caderno de Língua e Literatura Judaica da USP (Universidade de São<br />
Paulo), volume 3 (2001), o estudo da autobiografia e do romance de cunho autobiográfico, escritos por<br />
mulheres imigrantes judias e suas filhas, possibilita a colocação de algumas questões, como o que é possível<br />
conhecer <strong>dos</strong> processos migratórios e de adaptação à nova sociedade de famílias judias por meio da literatura<br />
feminina? Coloca ainda que: “A ampliação do movimento feminista provocou o levantamento da vida de<br />
mulheres, daquelas que tinham sido mantidas à parte, isoladas pelo silêncio. Segundo a socióloga inlgesa<br />
Mary Evans, o reconhecimento <strong>dos</strong> limites das grandes teorias teria conduzido, provavelmente, ao crescente<br />
interesse pela pesquisa, em menor amplitude, do particular e, ainda, a legitimação do crescente<br />
individualismo, com as suas idéias de ressocialização do indivíduo. O novo pluralismo que valoriza a<br />
singularidade e a autonomia social implicou a liberação de uma série de possibilidades, ampliando os limites<br />
do que é aceitável. Esse sentimento de liberação ocorre de forma <strong>para</strong>lela a dois importantes<br />
desenvolvimentos do uso da biografia: a crescente ênfase na documentação das experiências de pessoas<br />
comuns e o surgimento de um novo tratamento <strong>dos</strong> da<strong>dos</strong> pessoais, nos quais a vida é entendida como uma<br />
repetição de certos padrões, que provavelmente se formaram a partir da infância”. Sendo assim, a pertinência<br />
do uso da obra de Mathilde Maier pode ser justificada não apenas pelas transformações de postura, mudanças<br />
sociais ou alterações de méto<strong>dos</strong> acadêmicos, mas, sobretudo por aquilo em que pode sua obra contribuir à<br />
narração do devir migratório de ascendentes israelitas, ou como diz Kosminky: ampliação e adaptação à<br />
nova sociedade por meio da literatura feminina.<br />
101 Feita por Roswitha Kempf, editora, que se estabeleceu em Rolândia juntamente com sua família, em 1936.
71<br />
interminável túnel é a natureza. A memória encontrada e reencontrada<br />
através da mais involuntariosa possibilidade de s e lembrar, de recordar de<br />
sua própria experiência vivida, por vezes tida como sonho no misto com a<br />
aproximação da realidade. Através <strong>dos</strong> jardins constituí<strong>dos</strong> em seus<br />
diversos lares pela Europa e culminando no jardim da grande casa de<br />
madeira na fazenda Jaú, Mathilde Maier traz a história sua que é também a<br />
história do turbulento século XX, com suas aflições e alegrias, relacionadas<br />
à natureza e ao homem, sendo este sua parte essencial. Caminhava pelos<br />
oitenta e três anos de vida quando se dedicou à elaboração do livro. Viúva<br />
em terra estrangeira foi através da reconstituição da caminhada por estes<br />
imensos e memoriosos jardins que a imigrante alemã -judia recompensou<br />
seus últimos momentos de vida no Brasil.<br />
Quando da elaboração e edição do livro os Maier já estavam<br />
no Brasil há mais de quarenta anos. A experiência de fugitivos em solo<br />
desconhecido já não era mais tão evidente. Os colonos alemães -judeus<br />
imigra<strong>dos</strong> já desfrutavam de forte assimilação, sobretudo nas relações<br />
comerciais e na estruturação de fun ções, atividades, novos hábitos, além do<br />
conhecimento da língua local e reciprocidade com os brasileiros. O norte do<br />
Paraná não mais se caracterizava em torno da atividade ferroviária e da<br />
presença estrangeira. A modernidade já havia estruturado grandes ci dades,<br />
centros de produção econômica, todo um a<strong>para</strong>to civilizatório bastante<br />
distinto daquilo que os imigrantes encontraram nos anos 30. Mathilde<br />
encontrou nos jardins seu próprio consolo:<br />
“As mulheres em geral não se destacam na literatura sobre<br />
jardins. Não obstante, encontrei muitas mulheres criativas <strong>para</strong><br />
as quais o jardim era uma fonte de vida. Situado no meio de<br />
Basel, este jardim era tão grande que ocupava dois jardineiros o<br />
tempo todo. Sobre aterros em forma de pequenas elevações havia<br />
jardins de p edra, então em plena florescência com aubrécias<br />
lilazes, iberis brancas, tulipas precoces vermelhas e narcisos<br />
amarelos. Nos la<strong>dos</strong> do jardim vi estufas com orquídeas<br />
tropicais. Quantas horas boas este jardim deve ter proporcionado<br />
a estes exila<strong>dos</strong>”. 102<br />
102 Cit. p. 42.
72<br />
Ao que parece, o mito judaico-cristão do Éden se faz,<br />
consciente ou não, tranqüilizador enquanto simbolicamente manifestado em<br />
jardins públicos, mas principalmente nos particulares, aqueles que foram<br />
caseiramente cuida<strong>dos</strong>, onde era possível encontrar algum ti po de conforto:<br />
“Também nós encontramos conforto no nosso jardim, nestes anos<br />
difíceis da perseguição, em nossa casa aberta <strong>para</strong> o jardim que<br />
abrigou tantos amigos, nos últimos dias antes de emigrarem,<br />
quando não tinham onde ficar. Ajudar os outros na dif ícil<br />
despedida da pátria tornou -se nossa missão. Os jovens confiantes<br />
e isto com toda razão; <strong>para</strong> os mais velhos era penoso. [...] Os<br />
últimos anos em Frankfurt foram difíceis e só valeram pela ajuda<br />
que pudemos dar a outros. Muitos de nossos conheci<strong>dos</strong> pus eram<br />
fim à própria vida. Nós os compreendíamos, sem aprová -los,<br />
porém. [...] O último jardim em Frankfurt foi o do consulado<br />
inglês. Era um jardim pobre, maltratado e mesmo assim ele nos<br />
confortou com suas poucas flores enquanto esperávamos pelo<br />
Visto, tão vitalmente necessário ”. 103<br />
Nesse sentido, a tragédia natural da figueira brava, que ainda<br />
não havia chegado aos olhos <strong>dos</strong> Maier, já se fazia sobre o espectro do<br />
nazismo. Após 1938 e consequentemente o início da guerra a Europa já<br />
deixara de ser um local atrativo aos judeus, e entre aqueles que puderam ou<br />
conseguiram de algum modo deixar o continente, já o haviam feito.<br />
O capítulo oitavo da obra de Mathilde Maier traz suas<br />
primeiras impressões sobre o Brasil e, consequentemente, suas primeiras<br />
formas de estranhamento:<br />
A primeira saudação do Brasil foram as palmeiras de uma ilha,<br />
pouco antes de nosso navio, o Cap Arcona, atracar em Santos.<br />
Era dezembro, a época quente do ano. Na travessia tínhamos<br />
estudado português e tentado imaginar como seria nossa vida no<br />
campo. Na bagagem vinham caixas co m sementes e mudas e eu<br />
tentei visualizar o futuro jardim. Max fazia projetos <strong>para</strong> a<br />
103 Idem / p. 43. O último jardim antes de abandonar a Europa não poderia vir senão como um aspecto trágico.<br />
Assim a autora o descreve, seu estranhamento de cores e formas sob o manto do início da segunda grande<br />
guerra. Frankfurt não é a mesma, entre eles reconheceu-se apenas a solidariedade. Nada mais era reconhecível<br />
aos judeus no final da década de 1930 na Alemanha. Aos jovens menor temor causava o estrangeiro, a<br />
longínqua terra, se não hostil ao menos desconhecida. Nestes casos o estranhamento é <strong>para</strong> com to<strong>dos</strong>, não se<br />
define senão naquilo que não pode ser, em um não reconhecimento, expatriado dentro de um mundo que não<br />
oferece mais espaço.
73<br />
construção de uma casa e estes foram realiza<strong>dos</strong>, ao contrário do<br />
que aconteceu com minhas idéias sobre jardinagem neste clima<br />
totalmente diferente. [...] Soubera eu, que tudo seria em vão,<br />
porque a terra e o clima estranho acabariam em curto tempo co m<br />
elas. 104<br />
Seguindo a narrativa, a autora adentra pelo universo que os<br />
conduziu até seu último lar. O casal Maier não obteve maior problema até<br />
sua chegada em Rolândia-PR. Naquele momento grande parte do norte do<br />
Paraná estava dentro de um desbravamento territorial ligado ao<br />
desenvolvimento econômico e realizado por parcerias entre empresas<br />
estrangeiras e investidores brasileiros. O que se vi u pelas janelas daquele<br />
trem não pareceu muito acolhedor ao casal: “Em 1939, só uma estrada de<br />
ferro primitiva conduzia ao interior, a locomotiva era movida a lenha”. 105<br />
No interior <strong>dos</strong> vagões chamou-lhes a atenção o “desnível, às vezes grande<br />
entre a camada baixa sem pretensões e primitiva, e a camada alta por vezes<br />
sofisticada demais”. 106 De fato não foram boas as expectativas naquele<br />
momento e o cenário fez-se como que um espelho <strong>dos</strong> angustiantes dias que<br />
viveram na Europa. Max Hermann Maier comenta a paisa gem sob seus<br />
olhos:<br />
“Quando da janela do trem olhamos <strong>para</strong> a paisagem,<br />
compreendemos porque tínhamos de viajar seiscentos<br />
quilômetros <strong>para</strong> chegar ao nosso destino: absolutamente não era<br />
convidativa. Pastos magros, plantações de milho mirradas, um<br />
pobre bosque de eucaliptos e áreas imensas de capoeira”. 107<br />
O ambiente tragicamente descrito foi o cenário da incerteza, da<br />
expectativa, do distanciamento entre o que eram e o que viam, mas era<br />
também o cenário do alívio, de uma esperança pela vid a distante <strong>dos</strong><br />
campos de concentração e de toda a segunda guerra na Europ a. As<br />
104 O jardim europeu em terras brasileiras nunca se realizou. Mas o processo de interação e manutenção levou<br />
a novas formas de invenção desses novos cotidianos, sobretudo naquilo em que os despertou o exotismo do<br />
Brasil. Mathilde descreve sua primeira experiência com uma manga ou um mamão e aponta aquele que foi o<br />
primeiro jardim a acompanhar suas memórias: o de um hospital em São Paulo em que se hospedaram por<br />
alguns dias por ocasião de um problema de hérnia em Max H. Maier.<br />
105 Cit. p. 51.<br />
106 Idem.<br />
107 Idem.
74<br />
impressões do casal Maier vieram a transformar -se com o correr <strong>dos</strong> anos.<br />
Mathilde acrescenta sobre a viagem: “De vez em quando o trem <strong>para</strong>va em<br />
pequenas estações de aspecto caótico com nomes que soavam estranho <strong>para</strong><br />
nós, como Ibiporã”. 108 Em Rolândia foram recebi<strong>dos</strong> pelo sócio de Max H.<br />
Maier 109 e seguiram até a fazenda. Sobre os primeiros dias na Fazenda Jaú<br />
comentou:<br />
“Na fazenda fomos recebi<strong>dos</strong> com muita amabilidade pela<br />
família de nosso sócio. Eles moravam com os três filhos numa<br />
modesta casa de madeira; ao lado havia outra casinha <strong>para</strong> o<br />
professor particular e sua mulher. Nós fomos acomoda<strong>dos</strong> na<br />
“casa <strong>dos</strong> estagiários” e logo na primeira noite pudemos dormir<br />
em lençóis limpos. [.. .] A casa <strong>dos</strong> estagiários tinha sido<br />
construída <strong>para</strong> um grupo de jovens que, instruí<strong>dos</strong> em<br />
agricultura na Fazenda Experimental de Grossbreesen na Silésia,<br />
deviam emigrar ao Brasil. Mas o governo fascista de Getúlio<br />
Vargas, influenciado pelos nazistas, nego u o visto de entrada<br />
<strong>para</strong> estes jovens e quase to<strong>dos</strong> pereceram em campos de<br />
concentração. Isto fez com que uma sombra escura pairasse<br />
sobre nosso começo, uma sombra que não podíamos afastar e<br />
nem o queríamos. A casa, na qual além de nós só morava um<br />
estagiário, estava no meio de uma plantação de algodão. Pela<br />
primeira vez vimos flocos brancos de algodão sair das cápsulas<br />
arrebentadas. Dos 114 alqueires co mpra<strong>dos</strong>, 36 tinham sido<br />
transforma<strong>dos</strong> em terra de cultura com 10.000 pés de café e<br />
plantações de milho, arroz, feijão e algodão. Atrás da casa<br />
descia um barranco até a mina de água; na frente via -se a mata<br />
virgem que subia ao lado <strong>dos</strong> cafezais até o espigão. Ali, onde<br />
havia mata, resolvemos fazer a nossa casa porque uma fonte<br />
garantia o abastecimento abundan te de água, o que era muito<br />
importante. Ainda hoje, após quarenta anos, essa fonte é o nosso<br />
suprimento de água e de alegrias. Ela ainda alimenta o pequeno<br />
chafariz perto da varanda, no qual se banham os beija -flores<br />
exibindo sua plumagem brilhante, - um espetáculo incrivelmente<br />
belo”. 110<br />
108 Cit. P. 64.<br />
109 Heinrich Kaplan era também alemão e refugiado, recebeu a família Maier ainda quando de seu<br />
desembarque, mas por ocasião de uma consulta médica <strong>para</strong> Max Hermann Maier, ele e a esposa<br />
permaneceram em São Paulo enquanto a sobrinha seguiu <strong>para</strong> Rolândia com o imigrante alemão Heinrich<br />
Kaplan. In: MAIER, Max Hemann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira -<br />
Relato de um imigrante(1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird<br />
Kaffeepflanzer in Urwald Brasili<br />
ens. Bericht Eines Emigranten (1938-1975).<br />
110 Em 11 de março de 1828 Goethe escreveu a Eckermann: “O ar puro do campo é realmente o lugar ao qual<br />
pertencemos, é como se o espírito de Deus ali envolvesse o homem diretamente e como se uma força divina<br />
exercesse sua influência”. Os Maier consideravam-se felizes por poder passar a segunda metade da vida no<br />
campo, em terra tão aventurosamente estranha. De alguma maneira os fatores externos podem vir a<br />
contribuir com o desenvolvimento <strong>dos</strong> grupos? Os fatores econômicos? De fato, o quase isolamento na mata,<br />
afasta<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> grandes centros urbanos do Brasil e com uma excelente quantidade de terras e estrutura já<br />
desenvolvida, são fatores que poderiam justificar a estada de mais de sessenta anos desses imigrantes. Ma isso
75<br />
Havia, portanto, um evidente distanciamento entre os<br />
imigrantes e a nova terra. A experiência da narrativa expõe o<br />
estranhamento. Mathilde Maier revela seus personagens, mas de forma a<br />
pouco descrevê-los, talvez pela intenção de não causar-lhes ares de<br />
romance, o que tornaria a leitura menos biográfica ou memorialística do que<br />
romancista. Embora isso, a narrativa é certamente bastante instigadora à<br />
compreensão do fenômeno migratório alemão -judaico <strong>para</strong> o sul do Brasil,<br />
tomado aqui evidentemente o caso da comunidade de Rolândia. O elemento<br />
judaico parece igualmente presente, sobretudo na perspectiva digamos<br />
talmúdica de sua obra, ou seja, aquela que segundo a tradição israelita não<br />
permite uma interpretação unívoca e definitiv a pelo respeito ao livro divino<br />
que impede sua cristalização e redução a um sentido único. A visão sobre o<br />
novo mundo que a cerca torna possível a descoberta de novas camadas de<br />
sentido até então ignoradas. Sobre esta influência apontou Walter<br />
Benjamin: “Eu nunca pude pesquisar ou pensar senão num sentido, se me<br />
atrevo a dizê-lo, teológico – isto é, de acordo com a doutrina talmúdica <strong>dos</strong><br />
quarenta e nove níveis de sentido de cada passagem da Torá”. 111 Para Berta<br />
Waldman vistas com distância, essas interpretaçõ es de interpretações<br />
seria limitar a reflexão do movimento migratório. É preciso que se observe os fatores que operam nas<br />
instâncias morais, psicológicas e emocionais, passando por seus conflitos intra e extra grupo. Sendo assim,<br />
não existem regras de avaliação, diferentes casos foram relata<strong>dos</strong> e caracterizam igualmente um mesmo<br />
fenômeno, por ocasião do início da segunda guerra Mathilde disse: “e também na nossa pequena comunidade<br />
em Rolândia houve vítimas; alguns não agüentaram a tensão e se desesperaram”. Certamente que se trata de<br />
um eufemismo <strong>para</strong> suicídio entre os emigra<strong>dos</strong>. De qualquer forma, os Maier sobreviveram aos anos<br />
juntamente com a maior parte <strong>dos</strong> imigrantes alemães. Goethe talvez lhes tenha sido a principal inspiração<br />
literária, onde certos olhares sobre suas palavras parecem ter sido escritos sob encomenda ao destino <strong>dos</strong><br />
refugia<strong>dos</strong>.<br />
111 BERTA, Waldman. A letra e a lei no texto de Clarice Lispector. Cad. Ling. Lit. Hebr., n.3, p. 295-309.<br />
São Paulo, 2001. Segundo a autora essa afirmação de Walter Benjamin sublinha sua ligação não aos preceitos<br />
ou aos dogmas da religião <strong>judaica</strong>, mas a um modelo de leitura herdado do estudo <strong>dos</strong> textos sagra<strong>dos</strong>. Na<br />
tradição teológica <strong>judaica</strong>, e especialmente na tradição talmúdica ( o Talmud integra duas linhas de<br />
comentários: a Halakhá, da raiz hebraica halakh que significa andar ou caminhar, e a Agadáh, da raiz hebraica<br />
higuid que significa dizer ou falar. A primeira inclui a parte normativa da Tora epassou a designar a tradição,<br />
a regra ou o regulamento. Já a segunda é o repositório de vôos imaginativos de muitas gerações de sábios,<br />
podendo ser traduzida por lenda ou fábula.), a interpretação não pretende delimitar um sentido definitivo. [...]<br />
Que Benjamin reivindique essa tradição religiosa no contexto de uma análise materialista <strong>dos</strong> textos literários<br />
é absolutamente notável: significa que a crítica materialista, <strong>para</strong> ele, não tem como meta estabelecer a<br />
verdade definitiva sobre uma obra ou sobre um autor, mas tornar possível a descoberta de novos senti<strong>dos</strong>.
76<br />
desenham uma linha que põe em movimento senti<strong>dos</strong> que não se agrupam<br />
nem se fixam numa figura única. 112 Assim, o argumento da autora parte da<br />
idéia de uma multiplicidade de senti<strong>dos</strong> revela<strong>dos</strong> nas obras de autores de<br />
ascendência <strong>judaica</strong>, como Clarice Lispector, Kafka ou o próprio Walter<br />
Benjamin, conscientes ou não estariam ancora<strong>dos</strong> na tradição talmúdica das<br />
interpretações da Tora, é como se estivessem sempre sobre um manto<br />
ilimitado da compreensão. Mathilde Maier referencia em sua obra a atenção<br />
que davam à natureza (alguns trechos de Goethe aparecem naquilo que o<br />
escritor mencionou a respeito da natureza), inclusive o pequeno temor que<br />
tiveram quando se de<strong>para</strong>ram com cobras, por exemplo. Ou seja, a<br />
preocupação pareceu ter sido a de explanar a perspicácia, a tolerância ou<br />
reciprocidade com que tentavam encarar a tudo e a to<strong>dos</strong>.<br />
A genealogia humana e as facetas de seus grupos<br />
invariavelmente recorrem a elementos similares de sobrevivência.<br />
Experiências traumáticas como a Schoá 113 aproximaram, na mesma medida<br />
em que os repeliram de sua pátria mãe, daqueles que comumente eram<br />
vistos, sobretudo com distanciamento e com a clareza de tratarem -se eles<br />
to<strong>dos</strong> de universos distintos. Portanto, a possibilidade de adequação e<br />
fixação <strong>dos</strong> imigrantes em solo estrangeiro permitiu, ao menos em partes, a<br />
transgressão dessas fronteiras, sua violação e contato contínuo. Nas<br />
palavras de Poutignat e Streiff-Fenart, por que<br />
a etnicidade não é um conjunto imutável de traços culturais<br />
(crenças, valores, símbolos, ri tos, regras de conduta etc.),<br />
transmiti<strong>dos</strong> da mesma forma de geração <strong>para</strong> geração na<br />
história do grupo, ela provoca ações e reações entre este grupo e<br />
os outros em uma organização social que não cessa de evoluir 114 .<br />
112 Cit. p. 297.<br />
113 Catástrofe. Termo hebraico que simboliza as mortes de israelitas durante a segunda grande guerra.<br />
114 POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998.
77<br />
IV.III – OUTRAS DUAS HISTÓRIAS<br />
“Um grupo de sobreviventes de Auschwitz e da Grande Guerra<br />
viaja erraticamente por entre escombros da barbárie, ao sabor do<br />
arbítrio e da burocracia <strong>dos</strong> vencedores. Numa Europa<br />
semidestruída, esta trégua soa como ironia trágica, intervalo<br />
entre a indústria do genocídio e a memória da danação eterna em<br />
cada sonho matinal; também, entre lugares -fantasmas de um<br />
mapa pontilhado de setas <strong>para</strong> o nada. Lento movimento de trens<br />
até a estepe russa, o jogo da sobrevivência é o único retalho do<br />
sentido que se deslocou da história.” 115<br />
Francisco Foot Hardman 116 inicia com estas palavras a breve<br />
apresentação da obra de Primo Levi. La tregua foi publicada pela primeira<br />
vez em 1958, alguns anos após o fim da Segunda Grande Guerra. Primo<br />
Levi nasceu em Turim em 1919, foi químico e destacou-se também como<br />
escritor, atividade a qual se dedicou, sobretudo nos anos pós-nazismo. De<br />
família judaico-piemontesa 117 , foi um sobrevivente de Auschwitz e, pode -se<br />
dizer que dessa condição se esboçou toda a sua obra. A na rrativa 118 , que<br />
segundo Levi conta “coisas verdadeiras, mas filtradas” , situa-se no<br />
ambiente silencioso que se instalou na Europa depois de 1945.<br />
Sobreviventes de um <strong>dos</strong> maiores campos de extermínio da guerra,<br />
Auschwitz, um grupo de pessoas inicia mais um longo capítulo da queles<br />
tempos, que inevitavelmente e mesmo com a memória trágica do terror,<br />
trouxe junto a si inúmeros conflitos: que é agora a Europa? A que<br />
chamamos lar? Por onde devemos seguir? A condição perpetua -se entre os<br />
vitoriosos, a narrativa de Levi apresenta p rincipalmente o contato com o<br />
exército soviético, este o primeiro a estar no coração do III Reich e que<br />
115 LEVI, Primo. A trégua. São Paulo: Cia. Das Letras, 1997.<br />
116 Francisco Foot Hardman é professor titular do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual<br />
de Campinas.<br />
117 Piemonte é uma região situada ao norte da Itália cuja capital é Turim.<br />
118 A Trégua faz parte de uma “trilogia” escrita por Primo Levi, conta ainda com as obras “É isto um<br />
homem?” e “Os afoga<strong>dos</strong> e os sobreviventes”.
78<br />
conduziram este grupo até a Cracóvia, onde foram concentra<strong>dos</strong> em<br />
hospitais, escolas e outros espaços públicos juntamente com outros<br />
sobreviventes.<br />
O argumento não só interessante, mas acima de tudo instigante<br />
do autor nos remete a reflexão que expõe a fragilidade da idéia de que com<br />
o fim <strong>dos</strong> conflitos os sobreviventes estariam a salvo e rapidamente se<br />
reconstruiria suas antigas posições sociais. Em A trégua somos convida<strong>dos</strong><br />
a reconhecer a ineficiência de readequação destas pessoas, as inúmeras<br />
vezes em que foram desacreditadas por suas histórias de cárcere, as pessoas<br />
realmente não podiam acreditar em suas experiências.<br />
“Tínhamos a esperança de uma via gem breve e segura, <strong>para</strong> um<br />
campo pre<strong>para</strong>do <strong>para</strong> nos receber, <strong>para</strong> um substituto aceitável<br />
de nossas casas; e tal esperança fazia parte de uma esperança<br />
maior, a de um mundo reto e justo, milagrosamente restabelecido<br />
em seus fundamentos naturais após uma e ternidade de<br />
transtornos, erros e tragédias, após o tempo de nossa longa<br />
paciência. [...] Mas não; acontecera algo que somente<br />
pouquíssimos sábios dentre nós haviam previsto. A liberdade, a<br />
improvável, impossível liberdade tão distante de Auschwitz, que<br />
apenas nos sonhos ousávamos imaginar, chegara: mas sob a<br />
forma de uma impie<strong>dos</strong>a planície deserta. Esperavam por nós<br />
outras provas, outras fadigas, outras fomes, outros gelos, outros<br />
me<strong>dos</strong>”. 119<br />
A relação entre estranhamento e liberdade pode se configurar<br />
de diferentes maneiras. Embora não estivessem mais sob os olhos <strong>dos</strong><br />
algozes nazistas, o que evidentemente lhes causou o mais profundo <strong>dos</strong><br />
anti-reconhecimentos, o estranhamento e o medo, a idéia de liberdade em<br />
seus imaginários conectava-se diretamente ao reconhecimento, de sons,<br />
cores, cheiros e tudo o que lhes permitisse de volta o mundo que lhes<br />
antecedeu o cárcere. Ingenuamente não se deram conta da nova forma de<br />
liberdade que os aguardou, outras provas, outras fadigas, outras fomes,<br />
outros, outros me<strong>dos</strong>. Percebe-se, talvez totalmente perplexo, o<br />
distanciamento pela própria vida, o estranhamento desta, e não somente<br />
119 LEVI. Cit. p. 54.
79<br />
destes ou aqueles, definitivamente tudo havia mudado e tais feridas jamais<br />
poderiam cicatrizar-se. 120<br />
Uma semana depois do carnaval, no dia vinte e três de<br />
fevereiro de 1942, o casal de emprega<strong>dos</strong> domésticos encontrou Lotte e<br />
Stefan Zweig mortos em duas camas, na casa alugada em Petrópolis<br />
próximo ao Rio de Janeiro. O médico atestou “morte por ingestão de<br />
substância tóxica – suicídio”. 121<br />
O choque e a emoção foram grandes, como comprovam<br />
testemunhas e jornais da época. As fotos da polícia, mostrando o<br />
casal morto, abraçado nas camas simples colocadas lado a lado,<br />
ainda comovem e causam arrepios, e quem as vê não pode deixar<br />
de sentir-se, ao mesmo tempo, um intruso. [...] Como na época,<br />
ainda hoje as pessoas se perguntam por que Stefan Zweig, autor<br />
famoso no mundo inteiro, suicidou -se, e por que sua jovem<br />
esposa, Elisabeth Charlotte, de 34 anos, procurou a mo rte junto<br />
com ele. 122<br />
Certamente, a morte do famoso escritor alemão em um duplo<br />
suicídio com sua esposa ainda antes do fim da segunda guerra chocaram a<br />
to<strong>dos</strong> no Brasil e no mundo. Segundo o próprio autor em carta <strong>para</strong> sua ex -<br />
mulher “a solidão, que no começo tinha efeito tão calmante, começou a ser<br />
opressiva”. Ainda em 1941, Zweig e a esposa conseguiram permissões<br />
120 Segundo a revista <strong>judaica</strong> Morashá, edição 41de junho de 2003 a morte de Levi trouxe alguns<br />
questionamentos sobre um possível suicídio: “Em abril de 1987, aos 68 anos, Primo Levi é encontrado morto<br />
no poço da escadaria do apartamento no qual vivera toda a vida. Na época, sua morte foi atribuída a suicídio.<br />
Acreditou-se que o grande escritor havia posto um fim à vida, pois esta se tornara pesada demais. Mas, nos<br />
últimos anos, três importantes biografias (duas na Inglaterra e uma na França) colocam em dúvida esse<br />
suposto suicídio. Afirmam que, provavelmente, foi um acidente provocado pelos remédios que Primo Levi<br />
tomava na época. Uma das mais completas biografias é da escritora e pesquisadora Myriam Anissimov,<br />
publicada na França em 1996. Primo Levi é retratado como um homem gentil, um tanto reservado. Em sua<br />
essência, era um otimista. Enfrentou a crueldade em sua forma mais irracional. Foi forçado a testar suas<br />
certezas racionais e humanas contra a máquina nazista, determinada a transformar suas vítimas em seres<br />
desprezíveis antes de exterminá-los. Mas, mesmo assim, não perdeu a lucidez, nem sua fé na racionalidade,<br />
sua curiosidade em observar e analisar, mesmo nas horas mais desesperadoras. Por que um homem assim<br />
escolheria o suicídio, pergunta Myriam Anissimov em seu livro. E se ele realmente queria acabar com sua<br />
vida, por que, sendo químico, não usou uma forma menos traumática? Por que não deixou algo escrito, uma<br />
última mensagem? Acreditar que um homem assim se suicidou é difícil, porém a verdade sobre os últimos<br />
instantes do grande escritor nunca será descoberta. Talvez, no fim, Auschwitz tenha atingido seu objetivo,<br />
cobrando-lhe a vida tantos anos depois. Mas não resta dúvida que a vida de Primo Levi pode ser dividida em<br />
dois perío<strong>dos</strong> distintos: antes e depois de Auschwitz.<br />
121 Informações colhidas no prefácio de Ingrid Schwamborn, doutora em Letras Romanas pela Universidade<br />
de Bonn, Alemanha em Grandes mestres da literatura contemporânea – Stefan Zweig, Ed. Record. 1996.<br />
122 Idem.
80<br />
permanentes <strong>para</strong> a estadia no Brasil. Viveram em uma modesta casa de<br />
veraneio em Petrópolis, local este onde escreveu sua obra Schachnovelle ou<br />
Novela de Xadrez, obra que obteve toda a atenção de Zweig em seus últimos<br />
dias. Trata-se esta de uma das primeiras obras literárias com reflexos da<br />
política alemã, ao contrário de suas outras obras, nessa Zweig diminui a<br />
distância em relação a seus próprios sentimentos e também entre tempo<br />
fictício e tempo real.<br />
Trata-se aqui não de um distanciamento nacional ou territorial,<br />
vemos um personagem em puro distanciamento da vida, da impossibilidade<br />
da sensibilidade, da arte, <strong>dos</strong> espíritos criadores frente à barbárie <strong>dos</strong><br />
tempos vivi<strong>dos</strong>. Ainda que tendo decla rado amor ao país acolhedor, o seu<br />
<strong>para</strong>íso, em pleno inferno mundial, a vida se tornou insuportável <strong>para</strong> ele.<br />
Antes de morrer tomou todas as providências necessárias <strong>para</strong> que sua obra,<br />
finanças e todas as atividades particulares em geral fossem devi damente<br />
deixadas em ordem pelo escritor, preocupava-se sobretudo com o destino de<br />
sua produção literária, tendo por isto enviado diversos exemplares <strong>para</strong><br />
amigos e editores, entre eles um brasileiro, Abrahão Koogan, que recebeu<br />
de Zweig um exemplar de Schachnovelle. Anos mais tarde a editora<br />
Guanabara, de Waismann e Koogan, com tradução do médico Odilon Galotti<br />
foi a primeira a publicar a obra em âmbito mundial.<br />
Naqueles anos trinta no Brasil, dizem os biógrafos, Stefan<br />
Zweig foi um <strong>dos</strong> escritores mais fotografad os e li<strong>dos</strong> no país 123 , recebeu<br />
homenagens de autoridades políticas e também da Academia Brasileira de<br />
Letras, onde em discurso dizia estar envergonhado por to<strong>dos</strong> conhecerem<br />
tanto de sua obra e ele tão pouco sobre a literatura brasileira. Tais<br />
depoimentos deixou em “Pequena viagem ao Brasil” (Kleine Reise nach<br />
Brasilien) e “Brasil, país do futuro”. Este último, o mais famoso de seis<br />
livros no Brasil, escreveu em 1940, publicado pela editora Guanabara em<br />
1941. As belezas naturais, a popularidade, a cultura do p ovo, o caráter<br />
123 Os livros de Stefan Zweig foram queima<strong>dos</strong> na Alemanha em 1933 e sua antiga editora Insel, não mais o<br />
publicava.
81<br />
“amável e pacífico” das pessoas, a aparente ausência de barreiras, tudo isso<br />
proporcionou a Stefan Zweig um sentimento tranqüilizador, apaixonante<br />
pelo Brasil, como ele mesmo disse “eine Seelenkur” ou uma “cura de alma”.<br />
Porém, as estreitas relações surpreendentemente construídas tão<br />
rapidamente não foram suficientes <strong>para</strong> Stefan Zweig, o horror daqueles<br />
tempos o abatera profundamente. Paradoxalmente, o escritor abandonou o<br />
solo de seus ancestrais e de seus contemporâneos pátrios, teve seu tr abalho<br />
destruído e sua família ameaçada, os amigos mortos ou expulsos de suas<br />
casas e de seus países. Chegando ao Brasil, uma acolhedora recepção, em<br />
pouco tempo um visto definitivo, o clima tropical, a popularidade, os<br />
livros. Não haveria outra palavra senão mesmo <strong>para</strong>íso <strong>para</strong> aqueles que<br />
conseguiram refugiar-se fora da Alemanha ou <strong>dos</strong> territórios anexa<strong>dos</strong>, feito<br />
Zweig, que era austríaco e não alemão.<br />
Embora as transformações pudessem permitir uma tranqüila<br />
estadia no Brasil, o suicídio lhe veio como a ta ntos outros, a depressão, a<br />
solidão e a angústia daqueles dias foram insuportáveis a ele. Em sua última<br />
novela, “Schachnovelle”, alguns dizem que buscou expor uma nova<br />
modalidade de tortura, mas <strong>para</strong> outros queria apenas relaçar a luta da<br />
sensibilidade e intelectualidade contra a brutalidade e a barbárie, as<br />
questões que atormentam o personagem Dr. B, que havia sido enterrogado<br />
pela Gestapo, certamente incomodavam também a Stefan Zweig. Não por<br />
acaso, o suicídio é uma temática abordada na maioria de suas ob ras, em<br />
“Schachnovelle”, seu único livro escrito inteiramente no Brasi l, nenhum<br />
<strong>dos</strong> personagens pensa em suicidar-se. Segundo Ingrid Schwamborn “A vez<br />
agora, era do próprio autor. Xeque-mate no <strong>para</strong>íso” 124 .<br />
124 Grandes mestres da literatura contemporânea – Stefan Zweig, Ed. Record.
82<br />
V - CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
O caráter historiográfico da pesquisa é essencial neste trabalho.<br />
Aquilo que foi pretendido aqui foi somente uma tentativa de ampla<br />
exposição de um tema antes determinado: a construção histórica <strong>dos</strong><br />
<strong>ressentimentos</strong> a partir da experiência de refugia<strong>dos</strong> alemães -judeus<br />
estabeleci<strong>dos</strong> na cidade de Rolândia-PR.<br />
A segunda grande guerra (1939-1945), sem dúvida alguma,<br />
trouxe e ainda reflete em toda a comunidade israelita, um tipo de memória<br />
recente que expõe talvez o evento de maior teor trágico <strong>para</strong> a história deste<br />
grupo. Desta forma, aquilo a que nos submetemos resolver, foi de encontro<br />
a um tema bastante delicado, sobretudo quando pretendemos realizar uma<br />
reconstrução ou ainda desconstrução de um lado assim por dizer, bastante<br />
subjetivo da experiência individual e coletiva da queles que se<br />
estabeleceram em território brasileiro.<br />
A pesquisa permitiu, através do contato com a narrativa<br />
produzida por Max Hermann Maier e Mathilde Maier, observar não apenas<br />
como reagiram aos eventos que marcaram a Europa entre as décadas de<br />
1930 e 1940, mas ainda como estes imigrantes desenvolveram sua memória<br />
a respeito destes eventos e também como a construção de um “porto seguro”<br />
lhes permitiu superar de alguma maneira a experiência da hostilidade e da<br />
aversão étnica.<br />
Quando tratamos aqui de uma superação, não estamos nos<br />
referindo a um tipo de esquecimento, mesmo porque o esquecimento das<br />
tragédias coletivas não faz parte da tradição <strong>judaica</strong>, ao contrário, é preciso<br />
sempre reforçar tais acontecimentos, de forma que estes identificam e<br />
marcam as características do grupo ao longo de sua própria história. E isto<br />
o fazem com seriedade.<br />
A questão <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> apresenta uma referência social,<br />
de forma que a sua possibilidade de existência se faz a partir de uma
83<br />
relação entre os sujeitos e as práticas socialmente determinadas. Sendo<br />
assim, não tratamos aqui de subjetividades alheias e independentes, ao<br />
contrário, é preciso que a reflexão seja inteiramente relacionada ás práticas<br />
sociais e assim podê-las determinar historicamente.<br />
A literatura enquanto fonte da investigação historiográfica<br />
permite ao historiador uma observação que nos parece diferenciada.<br />
Enquanto o tratamento com documentos ditos formais exigem uma precisão<br />
e um tipo específico de questionamento, o uso de obras ditas literárias e em<br />
nosso caso, memorialísticas, exige uma atenção porque aparece como uma<br />
mistura entre aquilo que a priori é entendido enquanto relato de uma<br />
experiência e aquilo que pode esporadicamente ser construído por seus<br />
autores enquanto ocultação, ou seja, um cui dado dado ao tratamento de suas<br />
narrativas, de forma que isto é, então, a determinante <strong>para</strong> o investigador.<br />
Desconstruir as formas como se criam narrativas e a elas dão um teor de<br />
verdade, de narração exata de uma experiência trágica. Ora, o caráter<br />
trágico de suas narrativas é justamente o elemento que nos conduziu a este<br />
estudo. E sendo assim, o objetivo foi retirar de seus “não ditos” aquilo que<br />
pudesse ser pertinente ao nosso trabalho.<br />
No caso do texto de Mathilde Maier, Os jardins de minha vida,<br />
a narrativa possui, por detrás de uma história aparentemente particular, que<br />
busca um retrospecto desde a infância, uma experiência do cotidiano, uma<br />
exposição de <strong>ressentimentos</strong> liga<strong>dos</strong> a formação de jardins, que<br />
simbolicamente expuseram tudo aquilo que a autor a possuía dificuldade em<br />
relatar explicitamente. A violência, seja física ou moral, não é algo que se<br />
trate facilmente, sendo assim a conveniência de um texto escrito a partir de<br />
memórias individuais, pode de alguma forma, retroceder a tudo aquilo que<br />
porventura se vive com resistência. Em outros casos, poderíamos sim,<br />
encontrar pensamentos que se colocaram de forma a serem igualmente<br />
violentos, taxativos, denunciadores de uma situação vivida. Embora<br />
Mathilde fale constantemente <strong>dos</strong> dias experimenta<strong>dos</strong> na A lemanha, da<br />
saudade de outros tempos, e a idéia de uma narrativa autobiográfica deixa
84<br />
isso bastante claro, os <strong>ressentimentos</strong> não são expostos trivialmente. Há um<br />
cuidado com aquilo que pretende falar de si mesma e da forma como<br />
lidaram com os acontecimentos.<br />
O texto de Max Hermann Maier possui grandes diferenças. Sua<br />
narrativa é feita de maneira mais formal, ou como escreveu Elmar Joenck,<br />
professor que auxilio Mathilde Maier no término da tradução de Um<br />
advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva b rasileira – relato de<br />
um imigrante (1938-1975), Max se expressou em exata terminologia,<br />
clássica, científica e jurídica. 125 Sendo assim, Max Hermann Maier<br />
procurou escrever de maneira mais concisa, onde os eventos não são<br />
evita<strong>dos</strong>, mas escritos de forma diferente.<br />
As narrativas se encontram em muitos momentos, embora sejam<br />
diferentes naquilo que poderíamos chamar de uma estrutura pessoal na<br />
natureza de seus discursos. A questão da imigração <strong>para</strong> o Brasil, os<br />
primeiros acontecimentos em São Paulo por ocasião da chegada, alguns<br />
elementos da perseguição nazista e a forma como foram trata<strong>dos</strong> no<br />
momento em que deixavam a Alemanha, enfim, não poderiam de outra<br />
forma tratar de assuntos distintos que não tomassem estes acontecimentos<br />
como importantes no decorrer da escrita, ainda assim, Max Hermann Maier<br />
se utiliza de um discurso que percorre os <strong>ressentimentos</strong> de forma<br />
redentora, ou seja, se preocupa com a maneira como expõe a construção de<br />
novos cotidianos, da superação de eventos de outrora.<br />
Entre livros, música, teatro, política, plantações de café e<br />
percepções imediatas de um mundo que se transformava a cada momento, os<br />
Maier e outros imigrantes criaram novas maneiras de cotidiano, de<br />
experimentação e construção de realidade. Os <strong>ressentimentos</strong> se refletem<br />
sobretudo na fragmentação de valores antigos, na permanência de tradições<br />
germânicas orientadas pela filosofia, literatura e religião.<br />
125 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. página 6.
85<br />
O elemento religioso, presente nas narrativas de ambos os<br />
autores, não é tomado da maneira como se poderiam imaginar judeus<br />
praticantes de uma ortodoxia. O judaísmo os servia mais como uma<br />
referência étnica e transmissora de valores e não uma postura assumida<br />
radicalmente. Certamente, que os chama<strong>dos</strong> “judeus de Hitler”, que pela<br />
expressão política do partido nazista foram necessari amente assim<br />
designa<strong>dos</strong>, estavam mais assimila<strong>dos</strong> a cultura germânica e ao espírito<br />
europeu do início de século do que ao próprio judaísmo instituído enquanto<br />
prática determinante de suas personalidades.<br />
Talvez seja este um ponto importante <strong>para</strong> a reflexã o acerca<br />
daqueles que foram obriga<strong>dos</strong> a abandonar seu país de origem. Embora<br />
judeus, eram alemães. Em alguns momentos isto se tornou um problema no<br />
Brasil <strong>para</strong> os refugia<strong>dos</strong>, visto que uma vez fora da Alemanha, era<br />
determinado que se colocassem como “sem p átria”, não podendo estes, por<br />
exemplo, em situações formais, apresentarem -se enquanto alemães:<br />
“Meu sócio e eu nos inscrevemos num pequeno albergue, onde<br />
queríamos pernoitar, informando sermos “sem nacionalidade”,<br />
que nesse tempo era uma espécie real de estado civil. O governo<br />
nazista da Alemanha recusara aos judeus a nacionalidade alemã.<br />
Em seguida mandaram-nos dar uma chegada, à noite, ao gabinete<br />
do chefe de polícia. Este disse ser obrigado a nos prender no<br />
caso de insistirmos ser sem nacionalidade”. 126<br />
Desta forma, os problemas com a Alemanha não foram extintos<br />
no momento em que se refugiaram no Brasil, sobretudo no período em que<br />
os nazistas ainda governavam o país. Eles mantiveram -se e trouxeram aos<br />
alemães-judeus uma confusão acerca de suas própri as identidades. E o<br />
chamado aqui de confusão, é por outro lado, a reflexão que permeia uma<br />
formação direta de um tipo de ressentimento <strong>para</strong> com aqueles que lhe<br />
negaram o direito de permanecerem alemães: Profundas eram nossas raízes<br />
126 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 19.
86<br />
na Alemanha; gostávamos demais de nossa casa, linda, com grande jardim,<br />
no bairro de Holzhausen Park, na Rua Kleeberg. 127<br />
Questões identitárias, formações de jardins em diversas partes<br />
da Europa e novos jardins no Brasil, a guerra, a violência; varia<strong>dos</strong><br />
elementos que permearam a situação de refugia<strong>dos</strong> que se espalharam por<br />
muitas regiões do continente americano. A experiência aqui demonstrada<br />
surgiu da relação entre potencialidades de uma perspectiva política que se<br />
utilizou do anti-semitismo como valor de ordem e manutenção de uma<br />
verdade e a coisa em si refletida pragmaticamente, ou seja, na forma como<br />
aqueles que se tornaram hostiliza<strong>dos</strong> reagiram, mantendo assim a<br />
possibilidade de sobrevivência.<br />
127 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 10.
87<br />
VI – ANEXOS<br />
VI.I – FOTOGRAFIAS<br />
Ilustração 1 128<br />
128 A Menorah significa candelabro, suporte <strong>para</strong> lâmpadas. Tradicionalmente a Menorah<br />
possui 07 lumes de lâmpadas, uma haste central e 03 braços que saem de cada lado.
88<br />
Ilustração 2 129<br />
129 Interior da casa de Max e Mathilde Maier.
89<br />
Ilustração 3 130<br />
130 Biblioteca da casa.
90<br />
Ilustração 4 131<br />
131 Piano vertical.
91<br />
Ilustração 5 132<br />
132 Visão lateral.
92<br />
Ilustração 6 133<br />
133 Varanda.
93<br />
Ilustração 7 134<br />
134 Detalhe da construção, o desnível do terreno fez com que a arquitetura da casa recorresse a uma estrutura<br />
lineadora.
94<br />
Ilustração 8 135<br />
135 Varanda.
95<br />
Ilustração 9 136<br />
136 Visão frontal.
96<br />
Ilustração 10 137<br />
137 Visão lateral.
97<br />
Ilustração 11 138<br />
138 Mata ao redor da casa.
98<br />
Ilustração 12 139<br />
139 Entrada da fazenda Jaú, Rolãndia-PR.
99<br />
VI.II – ENTREVISTA<br />
ENTREVISTA - Klaus Kaphan – 20/10/2006 – 15 horas – Fazenda Jaú<br />
K. K:[...] Tudo bem. E, agora, vocês querem que eu conte o que?<br />
Bom, quanto tempo faz que o senhor está aqui em Rolândia?<br />
K.K.:Faça a conta, de 1936 pra cá. Junho de 36.<br />
E como que o senhor veio pra cá?<br />
K.K.:Como ou por quê?<br />
Como...<br />
K.K.:Eu vim de trem (risos)<br />
O senhor desceu em Santos?<br />
K.K.:Desci em Santos, <strong>para</strong>mos em São Paulo e viemos pra cá.<br />
Mas, quais foram as circunstâncias, por que Rolândia.?<br />
K.K.:Bom, o negócio foi o seguinte, como você disse, nós fomos judeus e meus pais<br />
reconheceram em tempo o que tava ... o que iria acontecer na Alemanha e teve a<br />
possibilidade de escolher entre ir <strong>para</strong> Israel e vir <strong>para</strong> o Brasil. E, como naquele tempo<br />
tinha a Companhia de Terras Norte do Paraná que vendia, que tinha essa concessão, uma<br />
área grande aqui no norte do Paraná <strong>para</strong> colonizar e vender terras. Estavam vendendo<br />
terras na Alemanha. Meus pais...meu pai conseguiu vender a propriedade dele lá e com esse<br />
dinheiro comprar um vale <strong>para</strong> x hectares de terra dessa companhia. Essa companhia, pelas<br />
informações que meus pais receberam, era uma companhia séria, como realmente foi, mas<br />
ele poderia ter também chegado aqui no Brasil com um pedaço de papel na mão, com a<br />
esposa e três crianças pequenas e não encontrar nada, né. Mas, deu tudo certo, então...foi<br />
assim que nós chegamos. Chegamos em São Paulo, depois pegamos o trem, ai os meus pais<br />
me deixaram em São Paulo com as crianças na casa duma senhora que tinha uma pensão e<br />
meus pais vieram de trem pra Rolândia que foi a ultima estação que tinha naquele tempo<br />
Terminava ai ... Quer tomar um suco?
100<br />
Então, pelo que o senhor fala foi muito tranqüila a vinda do senhor pra cá.<br />
K.K.:Nossa vinda foi tranqüila, que as coisas ficaram feias mesmo só depois disso, só em<br />
38, 39, que... Agora já quando nós saímos da Alemanha, minha irmã mais velha já sentiu<br />
muita discriminação contra judeus na Alemanha, na escola, pelos professores e tudo isso.<br />
Eu era menor e tava numa escolinha, numa vila perto da fazenda do meu pai, então eu<br />
quase num...<br />
Qual era a idade do senhor?<br />
K.K.:Eu tinha nove anos e... chegamos aqui em Rolândia, meu pai alugou uma casinha na<br />
cidade. A cidade que tinha acho tinha dez, quinze casas, ou menos. Então ele pôde, com a<br />
ajuda do pessoal da Companhia de Terras, pôde escolher onde ele queria a terra, escolheu<br />
essa área aqui, abriu uma clareira e construiu a casa, que é logo ali na frente. Aquela casa<br />
amarela lá pra frente. E, hoje minha filha mora lá. E estamos aí desde 15 de janeiro de<br />
1937, que nós moramos aqui na fazenda.<br />
E, assim, a família do senhor seguia o judaísmo?<br />
K.K.:Não, éramos... meus pais eram bastante liberais, vamos dizer assim. Não éramos<br />
ortodoxos, nem nada, como a maioria das famílias que vieram pra cá naquele tempo. E a<br />
gente... Eles, os adultos se, como posso dizer, eles se juntaram em grupos muito menos pela<br />
religião do que pela descendência de país, por causa da língua e tudo isso. Cultura que<br />
tinham. Então não houve mesmo uma comunidade <strong>judaica</strong> por aí. Teve relativamente<br />
poucos, não teve oitenta imigrantes judaicos aqui em Rolândia, de maneira nenhuma.<br />
Não chega?<br />
K.K.:Não chega a isso, nem de longe. Não sei se vocês sabem que <strong>para</strong> certas cerimônias<br />
<strong>judaica</strong>s[...] quando precisavam fazer uma cerimônia, por exemplo, mesmo um enterro ou<br />
qualquer coisa, tinha que ter treze pessoas, treze homens <strong>para</strong> poder fazer uma celebração<br />
de qualquer coisa <strong>judaica</strong>, né. E, às vezes era difícil encontras treze pessoas, treze homens<br />
adultos <strong>para</strong> fazer.<br />
Aqui em Rolâdia?<br />
K.K.:Aqui em Rolândia. Eu acredito que, assim pode ser que não existam oitenta então, que<br />
seja, né. Mas, existe então um número significativo de famílias judias aqui em Rolândia.
101<br />
Bom, hoje tem muito menos ainda, mas não vieram oitenta famílias pra cá. Hoje a maioria<br />
ou voltaram pra Alemanha, a maioria também já morreram do pessoal que vieram, também<br />
os meus pais e nossos vizinhos, inclusive.<br />
Mas, vieram algumas famílias de judeus pra cá. E, aqui? Vocês se sentiam seguros aqui, em<br />
relação às perseguições que vocês estavam sofrendo?<br />
K.K.:Se a gente se sentia seguro? Sim. Muito, muito, nossa! Bom, meus pais se sentiram<br />
muito bem aqui e nós, crianças, nós... Bom, eu não tenho mais nenhuma ligação com a<br />
Alemanha, eu falo alemão porque meus pais falaram, mas vivi aqui, to naturalizado, meus<br />
filhos são brasileiros, meus netos são brasileiros, então...<br />
O senhor nunca teve a intenção de voltar pra lá?<br />
K.K.:Não.<br />
O senhor se sente brasileiro?<br />
K.K.:Me sinto brasileiro e to muito bem aqui. O pouco tempo que me resta, quero ficar<br />
aqui.<br />
E, quanto ao judaísmo, o senhor se considera um judeu?<br />
K.K.:Bom, eu me considero judeu de descendência, vamos dizer assim. Eu não sou<br />
religioso, nem nada. Não sou praticante. Eu sou judeu porque meus pais eram e na<br />
Alemanha, naquele tempo eu seria considerando judeu, como era, não sei quantas gerações<br />
pra trás.<br />
Sim, mas aqui existiu certa se<strong>para</strong>ção entre os judeus e os outros que não eram judeus.<br />
Existe até o clube concórdia que dizem ter sido um clube nazista, fundado por eles...<br />
K.K.:Bom, principalmente naquele tempo existiam alguns, talvez ainda existam alemães<br />
que vieram, às vezes são descendentes de alemães que ainda acham, que se acham nazistas,<br />
mas nós não... aqui muito pouco. Mas aqui, quando eles vinham pra cá, não tinham...Tinha.<br />
Tinha os alemães que eram nazistas, tinham.<br />
E como eles tratavam vocês?
102<br />
K.K.:Bom, a gente não se misturava, eles formavam o grupo deles e a gente se mantinha<br />
se<strong>para</strong><strong>dos</strong>, não queria saber de política (risos) e cada um queria viver em paz.<br />
E os judeus que vieram pra cá, houve uma união entre essas famílias aqui?<br />
K.K.:Houve uma união assim, não tanto pela religião, quanto pelo grupo <strong>dos</strong> judeus. E<br />
houve também, teve muitos imigrantes não-judeus e que faziam parte do grupo, teve muita<br />
gente que saiu por motivos políticos ou simplesmente não concordavam com o que tava<br />
acontecendo lá.<br />
O Sr. Max Hermann Maier, era sócio do senhor?<br />
K.K.:Era sócio do meu pai.<br />
Eles tinham um alojamento <strong>para</strong> estudantes, não tinham?<br />
K.K.:Tinha. Isso era aqui na fazenda. Eram, meu pai com doutor Maier, juntos e, eles eram<br />
sócios, os dois eram donos daqui da fazenda e tinham, existia um plano de trazer filhos de<br />
proprietários de gente que tinham comprado terras também mais que não vieram e os filhos<br />
deles eram pra vir pra cá pra tomar posse da terra que os pais compraram e aqui ia ser um<br />
centro de treinamento de adaptação eram pra vir quinze, dezesseis jovens, principalmente<br />
de uma escola agrícola alemã, mas judia e desses quinze, dezesseis, não sei mais quantos<br />
eram um único conseguiu vir. A maior parte não conseguiu sair da Alemanha, morreram<br />
em campos de concentração e outros conseguiram sair <strong>para</strong> outros paises e não<br />
conseguiram vir ao Brasil. Então só teve uma pessoa desse grupo de jovens que chegou.<br />
Chegou aqui, morou aqui, e inclusive depois casou com uma irmã minha e ele já faleceu há<br />
tempo também. O nome dele era Hans Rosenthal. Depois ele casou com dona Inge, não sei<br />
se vocês já... Inge Marie Rosenthal que ainda mora aqui na fazenda inclusive.<br />
Então assim, a princípio a ideia era trazer estudantes e refugia<strong>dos</strong>, ao mesmo tempo? Ou<br />
eram só estudantes?<br />
K.K.:Eram estudantes e refugia<strong>dos</strong> ao mesmo tempo. Não, não, judeus, porque aquela<br />
escola era judia. Era uma fazenda – escola. E era pra vir pra cá, se adaptar aqui pra depois<br />
cada um ir pro seu lado.<br />
Existe alguma coisa, mesmo que ruína desse alojamento?
103<br />
K.K.:Não. Foi demolido. Existe da madeira daquele lá, ai onde vocês <strong>para</strong>ram ai, a casa da<br />
direita, o escritório da fazenda, isso foi feito de parte da madeira. Mais isso já faz muitos<br />
anos.<br />
E a adaptação da família do senhor aqui. Não era cidade, né, mas era tudo, acredito que<br />
mato fechado. Foi difícil a adaptação?<br />
K.K.:Bom, quando gente já de idade, não era fácil, né? Chegar num país estranho,<br />
praticamente sem dinheiro, três filhos pequenos, sem saber falar a língua e conhecer... e o<br />
clima diferente e tudo mais, não foi fácil. Agora, meu pai sempre era otimista, meu pai se<br />
adaptou mais fácil, ele não falava o português no começo, mas se fazia entender. E no fim<br />
ele era um <strong>dos</strong> poucos agricultores já que tinha propriedade na Alemanha antes, que tinha<br />
propriedade agrícola, então ele ajudou muito os outros aqui, aconselhando e na parte<br />
agrícola, coisa que ele sabia, ele conseguiu ajudar muita gente aqui.<br />
Ele tinha intenção de voltar <strong>para</strong> Alemanha?<br />
K.K.:Nunca. Nunca. Bom, depois que se sai tocado de um lugar, de um lugar onde<br />
assassinaram teus parentes to<strong>dos</strong>, que quase ninguém escapou de lá, você tem... eu pelo<br />
menos não pretendo, nunca quero voltar pra lá, que pras pessoas mais velhas eu não posso<br />
olhar nem na cara assim dizer: será que você tava no meio disso? Será que você matou<br />
meu tio?<br />
Mas o senhor voltou <strong>para</strong> lá depois?<br />
K.K.:Não.<br />
Nem pra visitar?<br />
K.K.:Nem pra visitar. Não quero, não. Eu falo alemão, tenho amigos alemães e tudo isso,<br />
mas eu não me sentiria à vontade lá, de jeito nenhum.<br />
Tem alguém da família do senhor lá?
104<br />
K.K.:Na Alemanha não. E mesmo que tivesse, eu pessoalmente, eu não... eu sempre falei<br />
que não quero, e não vou, não vou mesmo.<br />
Veio a família do senhor <strong>para</strong> cá, seus pais e seus irmãos, mais ficaram ainda familiares do<br />
senhor na Alemanha?<br />
K.K.:Ficaram. Ficou minha vó, que é a mãe da minha mãe e ficou o pai do meu pai. E eles<br />
conseguiram vir em 38. Eles ainda vieram, viveram aqui com a gente até falecer. Fora os<br />
outros parentes que conseguiram sair, estão esparrama<strong>dos</strong> pelo mundo, em Israel, uns<br />
foram pra China primeiro e outros lugares. O único parente nosso que veio <strong>para</strong> cá,<br />
independente da gente, não sei se vocês já ouviram falar do Max Moser? Ele era primo do<br />
meu pai.<br />
O senhor falou que a maioria das famílias que vieram <strong>para</strong> cá, já eram mais liberais, que<br />
não seguiam tanto o judaísmo, mas em alguns momentos vocês tentavam seguir a tradições<br />
porque o senhor mesmo fala que...<br />
K.K.:Bom, meus pais tentaram manter as festas religiosas, por exemplo. Nós tínhamos no<br />
começo, como não tinha escola, a gente tava longe da cidade, mesmo na cidade não tinha<br />
escola, então veio uma moça junto com meus pais <strong>para</strong> ser professora nossa no primeiro<br />
ano, depois ela foi embora, veio um casal também eram refugia<strong>dos</strong> alemães, também eram<br />
professores e viveram aqui por três anos.<br />
Quem era esse casal?<br />
K.K.:Esse casal era, ele chamava [...], acho que ninguém menciona, eles moraram aqui na<br />
fazenda e deram aulas em alemão, um curso mais ou menos escolar e deram aula de<br />
religião também. Sabiam um pouquinho de religião. Mas ficou nisso, quando tinham as<br />
festas, ano novo e o dia do perdão, tudo ai então eles celebravam com a gente, pra manter a<br />
tradição. Agora, tem outras famílias que mantém mais a religião ainda, por exemplo, a<br />
senhora Inge Rosenthal, ela é muito mais, não é ortodoxa nem nada, mas é mais, como<br />
posso dizer? Se identifica muito mais ainda com a religião judia, entendeu?<br />
Tem famílias que, mesmo que não fossem tão praticantes lá, na Alemanha, quando eles<br />
vieram pra cá, eles tentaram resgatar esse passado deles.<br />
K.K.:Não, claro. No começo era isso e era a cultura alemã, que a geração anterior a minha,<br />
quer dizer, esses que vieram, tentaram manter a cultura, que é uma cultura diferente da<br />
cultura daqui.
105<br />
Sim. Existia até um clube, né, que é o Pró- Arte.<br />
K.K.:Tinha o Pró-Arte, que o Dr, Max Hermann Maier era, naquele tempo ele era o líder,<br />
faziam palestras e convidavam, tinha alguma pessoa em São Paulo, que entendia de alguma<br />
coisa, e to<strong>dos</strong> ficavam pra dar uma palestra aqui...e, uma porção de coisa assim, né.<br />
Então, mas nós percebemos, assim, que nos dois cemitérios daqui, que a maioria desses<br />
judeus, em suas sepulturas, eles acabam seguindo um pouco a tradição.<br />
K.K.:Como assim?<br />
Da própria arquitetura tumular, a questão do túmulo ser perpétuo...<br />
K.K.:Sim, mas isso não é, não é típico judeu, isso é típico alemão e mesmo aqui, talvez, o<br />
jeito de pedra das lápides ai, <strong>dos</strong> meus pais, vocês devem ter visto lá, tem uma pedra pesada<br />
que nós pusemos lá. E, mas...mas isso não é tradição, assim...é mais, é...pessoal.<br />
E, quanto ao velório <strong>dos</strong> pais do senhor? Como que foi?Vocês seguiram a tradição?<br />
K.K.:Foi seguida a tradição um pouco, que tinha uma pessoa em Londrina que...que<br />
ajudava, que vinha celebrar um pouco. Mas não, sabe, eu, pessoalmente não...não, como se<br />
costuma dizer? Não simpatizava, não é certo. Mas eu não fazia questão, vamos dizer assim.<br />
Quando o senhor veio pra cá, se o senhor lembrar, vocês trouxeram muitas coisas?<br />
K.K.:Bom, o que a gente podia trazer, trazia. As caixas, caixote grande de coisas que<br />
podiam trazer, que gente vinha de navio então não era tão difícil. Naquele tempo não tinha<br />
avião. Tinha avião, mas não tinha aviões de passageiros, assim constantes como tem hoje,<br />
então a gente podia trazer mais coisas. Trazia utensílios de casa, um pouco de ferramentas<br />
que a gente achava que um dia podia usar aqui. Ferramentas de carpinteiro, ferreiros, de<br />
coisas que podiam usar ai, na fazenda, né.<br />
Livros?
106<br />
K.K.:Livros, muitos livros. Isso, como eu falei sobre a cultura dessas pessoas. Tem na casa<br />
do Max Hermann Maier ainda existe, ela está aqui, está vazia no momento, está muito bem<br />
conservada.<br />
Nós podemos fotografá-la?<br />
K.K.:Pode. O meu filho assumiu aquela casa. Meu filho mora em São Paulo, mas ele tem a<br />
família, e eles querem, tão logo que eles podem, eles querem renovar a casa e usar ela <strong>para</strong><br />
férias e tudo isso. E, na sala você vai ver que tem a biblioteca ainda, é uma parede enorme,<br />
cheia de livros, ta lá ainda, os livros estão lá. A <strong>dos</strong> livros deles estão lá.<br />
Eram romances?<br />
K.K.:Tinha de tudo, né. De todo. Mas, mais era literatura.<br />
Filosofia?<br />
K.K.:È, filosofia e. como te diria, autores antigos e conhecidamente... não sei como<br />
explicar (risos). Que tudo isso fazia parte da cultura européia e a cultura alemã, né. Eram os<br />
...<br />
E assim, o senhor veio <strong>para</strong> cá quando tinha nove anos, o senhor era pequeno. Os pais do<br />
senhor incentivavam o senhor a ler aqueles livros?<br />
K.K.:É, mais eu nunca era de ler muito aqueles. Eu li muito pouco daquilo, li e sei sobre<br />
eles alguma coisa, mas tem gente muito mais culta (risos).<br />
Não ter se formado então essa comunidade <strong>judaica</strong>, então o senhor realmente atribui isso ao<br />
fato de que esses judeus não seguiam tanto a tradição, eles eram mais liberais, não envolve<br />
questão financeira, de não conseguir construir uma comunidade...?<br />
K.K.:Não, não.<br />
A questão da perseguição, aqui também não tinha perseguição?<br />
K.K.:Não, perseguição não tinha nenhuma.
107<br />
Nenhuma?<br />
K.K.:Ao contrário, durante a guerra os alemães que eram... eles não podiam falar alemão na<br />
rua. Eu estudei em Londrina, estive um ano do ginásio londrinense, que nem existe mais<br />
hoje e quando eu vinha <strong>para</strong> casa em algum fim de semana, tinha que ir na delegacia tirar<br />
salvo conduto <strong>para</strong> poder ir viajar de jardineira ou de trem de Londrina a Rolândia. E tem<br />
alemães nazistas que ficaram presos, foram presos por se manifestarem nazistas. Ficaram<br />
presos durante a guerra.<br />
E, assim quanto à questão do senhor Nixdorf, senhor Oswald Nixdorf, existem alguns<br />
relatos de que ele seria nazista.<br />
K.K.:É o que dizem. Pessoalmente não sei, ouvi falarem isso e acredito que tenham sido,<br />
agora, dizer que ele foi eu não posso porque ele nunca me falou nada (risos).<br />
Mas assim, aqui o senhor não tinha contato com ele assim, e com a família dele?<br />
K.K.:Não, muito pouco. Eu conheço o filho dele, o Klaus Nixdorf, mas também conheço,<br />
né? Ele é uma pessoa que gosta de cultivar o germanismo que disso eu mantenho longe, né?<br />
[...] <strong>dos</strong> judeus que ainda moram aqui em Rolândia, ela, Suzanne Behrend...<br />
Que também era liberal.<br />
K.K.:Era liberal e a dona Inge Rosenthal, o Bruch, inclusive vocês entrevistaram a filha<br />
dele por acaso?<br />
A Léa? Sim, temos entrevista marcada.<br />
K.K.:O Bruch passou um tempo aqui na fazenda trabalhando com a gente, trabalhou em<br />
muitas fazenda ai, e só tem ela agora, a Lea do pessoal daquela família.<br />
Se eu não me engano, a dona Mathilde Maier, ela não dava aula de hebraico?<br />
K.K.:Ela dava aula de hebraico, tentou dar <strong>para</strong> nós, tentou dar aulas <strong>para</strong> os meus filhos.<br />
Ela era uma personalidade interessante. Ela escrevia. Vocês leram os livros dela, Os jardins
108<br />
da minha vida, ela dava aula, mas hoje em dia ela não esta mais ai, nem o Rafael nem<br />
ninguém se interessou pela religião (risos). Agora você diz ai no cemitério São Rafael...<br />
você vê que tem muito poucas sepultura de judeus lá. Poucas, tem muitos alemães, não sei<br />
porque eles se uniram lá...[...]<br />
K.K.: Existe até uma certa diferença, uma certa simbologia, a questão das pedras...<br />
Sim. Mais eu vejo isso muito mais uma questão individual, pessoal do que... cavar o<br />
terreno, não sei se você viu que tem a sepultura <strong>dos</strong> meus pais e atrás nos pusemos a lapide<br />
do meu avô, e tem a estrela de Davi nela e logo atrás a da minha avó também.Mas isso ai é<br />
tudo diferente, cada um faz do seu jeito, ninguém fala que tem que ser assim, que tem que<br />
ser daquele jeito. Pra mim, pessoalmente, eu nunca vou negar que sou judeu, inclusive que<br />
nasci judeu, judeu <strong>para</strong> mim não é uma raça, como Hitler queria que fosse, <strong>para</strong> mim judeu<br />
é uma religião como posso ser muçulmano, posso ser católico ou budista. Eu pessoalmente<br />
sou mais hinduísta do que judeu, nós temos um grupo de meditação em Londrina, que<br />
segue um guru indiano. Se quiser assim, não sou mais judeu. Eu sou judeu porque nasci<br />
judeu, nunca vou negar que sou, né.<br />
[...]<br />
K.K.:Ele (Max Hermann Maier) levanta umas questões de não ter se formado uma<br />
comunidade pelo fato da questão financeira, porque...<br />
Eu não acredito que seja isso.<br />
[...] A Companhia de Terras tinha um contrato com o governo brasileiro de construir uma<br />
estrada de ferro atravessando essa concessão de terras que eles tinham e de fundar, ao longo<br />
dessa estrada de ferro, a cada dez, quinze quilômetros um núcleo, <strong>para</strong> ser uma futura<br />
cidade. É o que fizeram. E, <strong>para</strong> construir essa estrada de ferro, eles compraram na<br />
Alemanha trilhos, locomotivas, vagões, pagando em dinheiro alemão e, meus pais e muitos<br />
imigrantes pagaram <strong>para</strong> a companhia inglesa lá pelo vale de terras, judeu quando saia de<br />
Rolândia não podia levar dinheiro, podia levar cinqüenta marcos, que não era nada. Mas<br />
teve esse vale de terras, então meu pai vendeu a propriedade com o dinheiro que comprou<br />
as terras e aquele dinheiro ficou lá e pagou pelos trilhos e etc da estrada de ferro e salvou<br />
vida de muita gente, com isso muita gente conseguiu sair de lá, compreende? Cinqüenta<br />
marcos pra sair de um país com a família e tudo, não era...Para sair da Alemanha, então,<br />
não podia levar dinheiro. Não podiam levar nada.
109<br />
VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. 1966.<br />
ANSART, Pierre. História e Memória <strong>dos</strong> Ressentimentos in: BRESCIANI,<br />
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