14.10.2014 Views

A questão dos ressentimentos e a imigração alemã-judaica para o ...

A questão dos ressentimentos e a imigração alemã-judaica para o ...

A questão dos ressentimentos e a imigração alemã-judaica para o ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA<br />

CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL<br />

Narrativas e lágrimas: A questão <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> e a<br />

imigração alemã-<strong>judaica</strong> <strong>para</strong> o Brasil (1938-1981)<br />

Valdir Pimenta <strong>dos</strong> Santos Junior<br />

Londrina, Setembro, 2008.


2<br />

Narrativas e lágrimas: construções de <strong>ressentimentos</strong> e<br />

fronteiras – A imigração alemã-<strong>judaica</strong> <strong>para</strong> o Brasil<br />

(1938-1981)<br />

Valdir Pimenta <strong>dos</strong> Santos Junior<br />

Orientador (a): Marco Antonio Neves Soares<br />

Dissertação de Mestrado apresentada ao<br />

Programa de Pó-Graduação em História<br />

Social do Centro de Letras e Ciências<br />

Humanas, da Universidade Estadual de<br />

Londrina – UEL, em cumprimento às<br />

exigências <strong>para</strong> obtenção do título de<br />

Mestre em História Social, na linha de<br />

Culturas, Representações e<br />

religiosidades.<br />

Londrina, Setembro, 2008.


3<br />

Valdir Pimenta <strong>dos</strong> Santos Junior<br />

Narrativas e lágrimas: construções de <strong>ressentimentos</strong> e<br />

fronteiras – A imigração alemã-<strong>judaica</strong> <strong>para</strong> o Brasil (1938-<br />

1981)<br />

Avaliado em_____________com conceito ____________<br />

Banca examinadora da Dissertação de Mestrado:<br />

Profº ___________________________________________<br />

Orientador<br />

Profº___________________________________________<br />

Examinador externo<br />

Profº___________________________________________<br />

Examinador interno


4<br />

DEDICATÓRIA<br />

Gostaria de dedicar este trabalho a meu pai, por sua<br />

inestimável presença e confiança. Também a minha mãe, por seu cuidado e<br />

carinho.<br />

Não poderia deixar de mencionar meu orientador, Prof. Doutor<br />

Marco Antonio Neves Soares, do departamento de História da Universidade<br />

Estadual de Londrina, pelas longas horas de conversa e orientação, por sua<br />

amizade e paciência, a você sou muito grato.<br />

Gostaria ainda de dedicá-lo a meus irmãos, Aline e Diego, pela<br />

força incondicional que nos une.<br />

Também aos queri<strong>dos</strong> amigos Ana Albara e Manoel Nasser,<br />

pela intensa caminhada nas ruas de Londrina. A Raquel Palma, por ter feito<br />

meus dias mais ternos e mais vivos.<br />

Dedico também a to<strong>dos</strong> aqueles que partici<strong>para</strong>m de alguma<br />

forma de toda a minha história, familiares, oriun<strong>dos</strong> de Itália ou Portugal,<br />

amigos de diferentes lugares, professores, a vocês minha gratidão.<br />

Por fim, gostaria de agradecer aqueles que iniciaram comigo<br />

esta jornada em Londrina e sem os quais eu seria literalmente um peixe fora<br />

d’água: Isadora Librais, Jaquis Greter e Jorge Bacco. A vocês três minha<br />

imensa reverência. Sem me esquecer ainda de amigos conquista<strong>dos</strong> por<br />

aqui: Janaina Palmar, Igor Galdino e Thiago Pizutti. A vocês também sou<br />

eternamente grato pelo tempo compartilhado.<br />

Ainda meus agradecimentos a outros não cita<strong>dos</strong> , mas não<br />

menos importantes: Matheus Passianoto, Letícia, Gabriel Del Grossi, Daniel<br />

Bruhl, Caroline Minorelli, Nilo, Juca San Martin, Raphael Batista, Diego<br />

Velho, Fernando Murya, Thiago Roncon, Marcos Ursi, Lívia Harfuchi e a<br />

to<strong>dos</strong> os queri<strong>dos</strong> amigos de Rancharia não menciona<strong>dos</strong> aqui. Muito<br />

Obrigado.


5<br />

O sofrimento é repartido ao longo da vida e<br />

se<strong>para</strong>do por blocos de esquecimento. (Carlos<br />

Drummond de Andrade)


6<br />

AGRADECIMENTOS<br />

Pela elaboração da pesquisa gostaria de agradecer a<br />

Universidade Estadual de Londrina, que durante quase uma década me<br />

acolheu enquanto estudante.<br />

Gostaria de agradecer aos professores do departamento de<br />

História por suas aulas ministradas ao longo desses anos.<br />

Também aos colegas que partici<strong>para</strong>m igualmente desta<br />

caminhada desde a graduação em História.<br />

Gostaria de agradecer aos imigrantes ainda vivos de Rolândia<br />

por sua colaboração e também aos descendentes que muito nos ajudaram<br />

com suas entrevistas e seu material fornecido <strong>para</strong> o desenvolvimento de<br />

nosso trabalho.<br />

Ainda meus agradecimentos a to<strong>dos</strong> aqueles que direta ou<br />

indiretamente partici<strong>para</strong>m da construção desta pesquisa. A to<strong>dos</strong> vocês<br />

meus agradecimentos.


7<br />

PREFÁCIO<br />

O presente trabalho foi elaborado a partir de uma pesquisa<br />

desenvolvida na Universidade Estadual de Londrina acerca das relações<br />

estabelecidas a partir <strong>dos</strong> eventos que se desenvolveram no contexto da<br />

Segunda Grande Guerra (1939-1945).<br />

Particularmente, a pesquisa se colocou sobre as questões que<br />

envolvem o anti-semitismo praticado pela estrutura do nazismo alemão.<br />

Foram utilizadas fontes literárias <strong>para</strong> investigar a construção histórica <strong>dos</strong><br />

<strong>ressentimentos</strong> em refugia<strong>dos</strong> estabeleci<strong>dos</strong> no município de Rolândia -PR a<br />

partir do final da década de 1930. Duas obras foram escolhidas como<br />

fontes primárias: Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva<br />

brasileira – Relato de um imigrante (1938-1975), de Max Hermann Maier e<br />

Os jardins de minha vida, de Mathilde Maier. A partir da narrativa <strong>dos</strong> dois<br />

autores surgiu então a idéia de uma investigação da formação <strong>dos</strong><br />

<strong>ressentimentos</strong>. Ambos os autores refugiaram -se no Brasil em 1938, tendo<br />

então estabelecido moradia em uma fazenda de nome Jaú aos arredores da<br />

cidade de Rolândia, ainda em formação naquele momento.<br />

Os livros esboçam aquilo que definimos como trabalhos<br />

memorialísticos, ou seja, buscam expor as expe riências a que foram<br />

submeti<strong>dos</strong>. Max Hermann Maier parte de uma análise ligada ao momento<br />

em que abandonaram a Alemanha, seguindo até a chegada ao Brasil e a<br />

conseqüente adaptação em terra estrangeira. Mathilde Maier trabalha de<br />

forma distinta, aborda toda a trajetória de sua vida, desde a infância até a<br />

imigração <strong>para</strong> o Brasil.<br />

A história <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> se revelou uma difícil abordagem<br />

daquilo a que os homens possuem ampla dificuldade de expressão. Desta<br />

forma, analisar o não dito em suas narrativas foi o objetivo principal da<br />

pesquisa, procurando assim analisar de que forma sua análise seria possível


8<br />

através de um olhar historiográfico de desconstrução de valores intrínsecos,<br />

a fim de estabelecer como é possível sua viabilidade social.<br />

Ao lado da historiografia foram utilizado s instrumentos<br />

forneci<strong>dos</strong> pela antropologia, a partir daquilo que a mesma estabelece<br />

enquanto interpretação <strong>dos</strong> grupos étnicos e a forma como definem valores<br />

ou características que sejam pertinentes a identificação de tais grupos.<br />

Desta forma, a pesquisa utilizou -se de fontes literárias e não<br />

documentos formais <strong>para</strong> sua elaboração. Esta peculiaridade forneceu<br />

caminhos interessantes ao trabalho historiográfico, de forma que a partir da<br />

narrativa <strong>dos</strong> dois imigrantes é que buscamos definir nosso foco, nesse<br />

caso, a investigação da construção histórica <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>.<br />

Sendo assim, aquilo a que chamamo s <strong>ressentimentos</strong> estaria<br />

ligado a uma construção subjetiva, individual ou coletiva, mas sempre em<br />

comunicação com os eventos que os precedem, ou seja, a form ação de um<br />

sujeito ou grupo envolvido em <strong>ressentimentos</strong> se dá a partir da experiência<br />

que produzem e comungam com os outros, entendi<strong>dos</strong> aqui no sentido da<br />

alteridade, onde a experiência sempre negativa de tal manifestação se<br />

coloca somente na intervenção de um ou muitos sobre estes.<br />

Particularmente, a experiência histórica da etnia <strong>judaica</strong>,<br />

apresenta nesse sentido um ilimitado campo de investigação <strong>para</strong><br />

historiadores, sobretudo quando tornamos relevante o anti -judaismo<br />

praticado ao longo <strong>dos</strong> séculos em diversas regiões do mundo. É importante<br />

ressaltar o caráter estritamente investigativo deste trabalh o, não se tratando<br />

aqui de um discurso em defesa da vasta comunidade <strong>judaica</strong> ou ainda de<br />

expor tal grupo enquanto vítimas da história, ao contrário, nosso objetivo se<br />

debruça sobre a necessidade de desconstruir historicamente um <strong>para</strong>digma<br />

que não se abstém de ações igualmente humanas, e, por isso, inválidas de<br />

serem concretizadas de outra forma.<br />

Mantendo o ponto inicial que expunha a experiência <strong>judaica</strong>,<br />

juntamente às fontes utilizadas, foram escolhi<strong>dos</strong> outros personagens<br />

históricos que pudessem também contribuir com o desenvolvimento da


9<br />

pesquisa, reforçando assim o estudo acerca <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>. Para tanto,<br />

dois autores e suas respectivas biografias foram escolhi<strong>dos</strong>: Primo Levi e<br />

Stefan Zweig, além destes o trabalho passa também por uma reflexão acerca<br />

de ações de descendentes judaicos no Brasil dentro do contexto do período<br />

militar no país. Tais passagens parecem demonstrar, no contexto da<br />

pesquisa, construções de <strong>ressentimentos</strong> em momentos distintos , através de<br />

igualmente distintas perspectivas. Os trabalhos a respeito da literatura<br />

produzida por escritores de ascendência <strong>judaica</strong> renderam em outros<br />

momentos pesquisas referentes a certa peculiaridade da produção literária<br />

<strong>judaica</strong>, de forma a demonstrarem como o fato de estarem liga<strong>dos</strong> ao<br />

judaísmo dava aos textos um tipo de melancolia, um humor específico.<br />

Estes elementos configurariam assim uma relação textual estabelecida com<br />

a procedência étnica de seus autores. Ao longo da dissertação essa questão<br />

será abordada com mais detalhes e as devidas referência s.<br />

Portanto, o trabalho que se desenvolveu aqui não é mais que<br />

uma reflexão acerca das relações estabelecidas na história entre os<br />

<strong>ressentimentos</strong> e a produção literária de escritores de ascendência <strong>judaica</strong>.<br />

O recorte temporal se estabelece no período contemporâneo, de 1938 a<br />

1981, a data inicial foi escolhida por ser o ano da imigração do casal Maier<br />

<strong>para</strong> o Brasil e a data final por ser o ano da publicação do livro de Mathilde<br />

Maier, que evidentemente foi publicado posteriormente ao de Max Hermann<br />

Maier. Este teve sua publicação em 1975, mas somente no idioma alemão,<br />

mais tarde, entre 1976 e 1977, Mathilde Maier e Elmar Joenck, professor e<br />

amigo do casal, finalizaram a versão em português iniciada por Max<br />

Hermann Maier e não finalizada devido ao seu falecim ento em 1976.


10<br />

RESUMO<br />

SANTOS JUNIOR, Valdir Pimenta <strong>dos</strong>. Narrativas e lágrimas: A questão <strong>dos</strong><br />

<strong>ressentimentos</strong> e a imigração alemã-<strong>judaica</strong> <strong>para</strong> o Brasil (1938-1981). [Dissertação de<br />

Mestrado]. Londrina: UEL, 2010, pp.<br />

O trabalho intitulado Narrativas e Lágrimas – A questão <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong><br />

e a imigração alemã-<strong>judaica</strong> <strong>para</strong> o Brasil (1938-1981) se define como um<br />

esforço historiográfico que buscou compreender a estruturação histórica que<br />

permeia a formação <strong>dos</strong> chama<strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>. A partir da análise de<br />

duas obras produzidas por imigrantes alemães, Um advogado de Frankfurt<br />

se torna cafeicultor na selva brasileira – Relato de um imigrante (1938-<br />

1975), de Max Hermann Maier, editado em 1975 no idioma alemão e<br />

traduzido <strong>para</strong> o português em 1977, e Os jardins de minha vida, de<br />

Mathilde Maier, editado em 1981, o trabalho foi desenvolvido. As duas<br />

narrativas utilizadas serviram como fontes <strong>para</strong> a investigação da<br />

construção <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> em refugia<strong>dos</strong> de ascendência <strong>judaica</strong> no<br />

município de Rolândia-PR. Tais refugia<strong>dos</strong> chegaram ao Brasil no ano de<br />

1938 após as restrições impostas pelo partido nacional socialista alemão aos<br />

alemães-judeus residentes na Alemanha. Desta forma se configurou o<br />

cenário que mais tarde levou Max e Mathilde Maier a produzirem suas<br />

obras, tratadas aqui como relatos memorialísticos, ou seja, narrativas que<br />

buscaram expor suas experiências na Europa e em terra estrangeira.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Imigração – Judaísmo – Ressentimentos –<br />

Religião – História – Memória<br />

ABSTRACT<br />

SANTOS JUNIOR, Valdir of pepper. Narratives and tears: The issue of resentment and<br />

German-Jewish immigration to Brazil (1938-1981). [Dissertation]. Londrina: UEL, 2010,<br />

pp.<br />

The work entitled Narratives and Tears - The issue of resentment and German-Jewish<br />

immigration to Brazil (1938-1981) is defined as a historiographical effort that sought to<br />

understand the historical structure that permeates the formation of so-called resentment.<br />

From the analysis of two works created by German immigrants, a lawyer from Frankfurt<br />

becomes grower in the Brazilian jungle - Report of an immigrant (1938-1975), Max<br />

Hermann Maier, published in 1975 in German and translated into Portuguese in 1977, and


11<br />

gardens of my life, Mathilde Maier, published in 1981, the work was done. The two<br />

narratives were sources used to research the construction of the resentments of Jewish<br />

refugees in the city of Rolândia-PR. These refugees arrived in Brazil in 1938 after the<br />

restrictions imposed by the German National Socialist Party of German-Jewish residents in<br />

Germany. This should set the scene who later took Max and Mathilde Maier to produce<br />

their works treated here as reports memoirs, or stories that sought to explain their<br />

experiences in Europe and in a foreign land.<br />

KEY WORDS: Immigration - Judaism - Resentments - Religion - History -<br />

Memory


12<br />

SUMÁRIO<br />

I – INTRODUÇÃO.......................................................14<br />

I.I – CONTEXTUALIZAÇÃO......................................21<br />

II – JUSTIFICATIVA..................................................26<br />

III – A HISTÓRIA E OS RESSENTIMENTOS.............28<br />

III,I – OS RESSENTIMENTOS E OS IMIGRANTES<br />

ALEMÃES DE ROLÂNDIA-PR...................................44<br />

IV – O OUTRO NA HISTÓRIA E A FIGUEIRA<br />

BRAVA........................................................................57<br />

IV.I – O ESTRANHAMENTO, O JUDEU E A<br />

HISTÓRIA...................................................................57<br />

IV.II – MATHILDE MAIER E A FIGUEIRA BRAVA<br />

OU O DISCURSO DO ESTRANHAMENTO.................70


13<br />

IV.III – OUTRAS DUAS HISTÓRIAS..........................77<br />

V -CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................82<br />

VI – ANEXOS..............................................................87<br />

VI.I – FOTOGRAFIAS................................................87<br />

VI.II – ENTREVISTA KLAUS KAPHAN.....................99<br />

VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................109


14<br />

I – INTRODUÇÃO<br />

A questão da memória, aos trabalhos historiográficos, é de<br />

suma importância. Aos povos antigos, a ideia de tempo mítico, alheia ao<br />

tempo histórico, tirava-lhes a necessidade de um significado na história.<br />

Mais tarde, o significado na história, segundo alguns pesquisadores , passou<br />

a ser significativo, com e <strong>para</strong> os judeus:<br />

“Dizem que Heródoto é reconhecido como o “pai da história”<br />

(afirmativa que requer reavaliação, mas não me deterei aqui em<br />

fazê-la), e até bem recentemente todas as pessoas cultas sabiam<br />

que os gregos produziram uma linhagem de grandes<br />

historiadores, que podem ainda ser li<strong>dos</strong> com prazer e empatia.<br />

Entretanto, nem os historiadores gregos, nem a civilização que<br />

os criou percebeu qualquer significado transcendente ou<br />

fundamental na história como um todo; realmente, eles nunca<br />

chegaram a elaborar bem o conceito de históri a universal, da<br />

história “como um todo”. Heródoto escreveu com a aspiração<br />

humana característica de – em suas próprias palavras –<br />

“preservar do perecimento a lembrança daquilo que os ho mens<br />

realizaram e impedir as grandes e maravilhosas ações <strong>dos</strong> gregos<br />

e <strong>dos</strong> bárbaros de perder sua merecida recompensa de glória”.<br />

Para Heródoto, narrar a história era uma garantia contra a erosão<br />

inexorável da memória engendrada pela passagem do tempo. Em<br />

geral, a historiografia grega foi expressão daquela esplêndida<br />

curiosidade helênica de conhecer, e investigar, que ainda nos<br />

aproxima deles, ou ainda de buscar no passado exemplos morais<br />

ou insights políticos. Além disso, a história não tinha verdades a<br />

oferecer, e assim não tinha lugar na filosofia ou religião gregas.<br />

Se Heródoto, foi o pai da história, os pais do significado na<br />

história foram os judeus. O antigo Israel foi quem primeiro<br />

determinou um significado decisivo à história, e assim forjou


15<br />

nossa visão de mundo, cujas premissas foram essenciais foram<br />

por fim apropriadas pelo cristianismo a também pelo islamismo.<br />

“Os céus” nas palavras do salmista podem ainda proclamar a<br />

“glória do senhor”, mas foi a história humana que revelou seu<br />

desejo e propósito. Essa nova percepção não foi resultado de<br />

especulação filosófica, mas da natureza peculiar da fé israelita.<br />

Emergiu da compreensão intuitiva e revolucionária de Deus, e<br />

foi refinada através de experiências históricas profundamente<br />

vivenciadas. 1<br />

Desta forma, a afirmação se coloca sobre uma espécie de lugar<br />

dominante da história no antigo Israel, ou seja, sobre o fato de que o<br />

próprio deus judaico só se revela na medida em que é historicamente<br />

conhecido. Yerushalmi acrescenta:<br />

“Enviado <strong>para</strong> trazer as novas da libertação <strong>para</strong> os escravos<br />

hebreus, Moisés não vem em nome do cr iador do Céu e da Terra,<br />

mas em no me do “Deus <strong>dos</strong> antepassa<strong>dos</strong>”, isto é, o Deus<br />

histórico: “Vai e reúne os anciãos de Israel, dizendo -lhes: o<br />

Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de<br />

Jacó apareceu-me e disse-me: Eu vos visitei e vi o que se vos faz<br />

no Egito...” 2<br />

Portanto, se assim direcionamos nosso olhar <strong>para</strong> a experiência<br />

<strong>judaica</strong>, assim podemos concluir que a memória tornou -se fundamental <strong>para</strong><br />

o exercício da própria fé hebraica e, em última instância, <strong>para</strong> sua própria<br />

existência. 3 A ordem de lembrar-se é assim absoluta, havendo porquanto<br />

uma sabedoria antiga que os remetia ao fato de compreender quão curta e<br />

instável é a memória humana. Não se trata aqui de afirmarmos que o<br />

judaísmo caminhou no sentido da formação de uma “nação” de<br />

1 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história <strong>judaica</strong> e memória <strong>judaica</strong>; tradução de Lina G. Ferreira<br />

da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Yosef Hayim Yerushalmi é professor de História, Cultura e<br />

Sociedade Judaica e diretor do Centro de estu<strong>dos</strong> Judaicos e de Israel da Universidade de Columbia.<br />

2 O trecho citado por Yerushalmi encontra-se na Tora, livro máximo da expressão <strong>judaica</strong>, em Êxodo, 3:16.<br />

3 Idem 2.


16<br />

historiadores, sobretudo por que se esta história é real, não poderá se<br />

repetir, apenas o tempo mítico se repete, ou seja, a fuga do Egito ou a<br />

libertação do cativeiro da Babilônia só poderiam uma vez dar -se<br />

historicamente, o que obriga a to<strong>dos</strong> os outro s que lá não estiveram, a um<br />

exercício de preservação de tais acontecimentos, também porque, na<br />

concepção hebraica, o homem,<br />

“lançado na história, veio <strong>para</strong> afirmar sua existência histórica,<br />

apesar do sofrimento que esta encerra e, gradual e<br />

laboriosamente, descobre que Deus o revela a ele próprio<br />

durante o decurso da hist ória. Os rituais e festas no antigo Israel<br />

não são mais repetições de arquétipos míticos destina<strong>dos</strong> a<br />

aniquilar o tempo histórico. Quando evocam o passado, não mais<br />

se trata do passado p rimevo, mas do passado histórico, no qual<br />

realizaram-se os momentos cruciais da história de Israel. Longe<br />

de tentar uma fuga da história, a religião bíblica se permite ser<br />

impregnada por ela, e não pode ser concebida se apartada da<br />

história” 4<br />

Assim, se a preocupação com o tempo histórico está presente<br />

na cultura <strong>judaica</strong>, esta se faz na narrativa e também nos rituais. As festas,<br />

mesmo preservando seus laços orgânicos (primavera e primeiros frutos),<br />

foram transformadas, por exemplo, em comemorações do Êxodo do Egito e<br />

da estada no deserto. Em Deuteronômio 26, diz -se que um celebrante<br />

israelita na cerimônia <strong>dos</strong> primeiros frutos deve proferir as seguintes<br />

palavras:<br />

“Meu pai era um arameu errante que desceu ao Egito com poucas<br />

pessoas e ali residiu; e lá torno u-se uma nação grande, forte e<br />

numerosa. Os egípcios nos afligiram e nos oprimiram, impondo -<br />

nos uma penosa servidão. Chamamos então ao Senhor, o Deus de<br />

nossos pais, e ele ouviu nosso clamor e viu nossa aflição e nossa<br />

miséria e nossa opressão. E o Senhor nos tirou do Egito com mão<br />

4 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história <strong>judaica</strong> e memória <strong>judaica</strong>; tradução de Lina G. Ferreira<br />

da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Página 29.


17<br />

forte e braço estendido, e com grande terror, e com sinais, e com<br />

prodígios. E ele nos trouxe até este lugar, e nos deu esta terra,<br />

uma terra onde mana leite e mel...” 5<br />

Parece-nos um tipo de história concisa, onde o essencial a ser<br />

lembrado está claramente presente sob uma forma ritualizada. Não se trata,<br />

é claro, de uma história “factual” no sentido moderno, mas aos povos<br />

antigos tratava-se de tipos de percepção e interpretações históricas<br />

legítimas. A historiografia bíblica n ão apresenta uniformidade nesse<br />

sentido, mesmo porque sua narrativa foi escrita em diferentes momentos<br />

históricos e inevitavelmente, por diferentes autores. Sobre isto afirma<br />

Yerushalmi:<br />

“As narrativas históricas que abrangem os perío<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> inícios<br />

da humanidade até a conquista de Canaã são necessariamente<br />

mais lendárias, os relatos da monarquia muito menos, e mesmo<br />

dentro de cada segmento existem acentuadas variações de grau.<br />

Isso já era de se esperar. Os textos históricos da Bíblia, escritos<br />

por diferentes autores em épocas diversas, frequentemente eram<br />

também produtos de um longo processo de transmissão de<br />

tradições e documentos mais antigos”. 6<br />

Podemos expor, desta maneira, que mesmo aos sábios hebreus<br />

que viveram após os tempos bíblicos, o tempo q ue lhes importou foi<br />

sobretudo aquilo que sentiam ser relevante, ou seja, destaca -se aqui aquilo<br />

que era então relevante ao avanço da vida religiosa e comunitária do povo<br />

judeu. Não preservaram, portanto, a história política da Antiguidade, ou<br />

ainda revelaram escasso interesse na história de Roma, mas não<br />

esqueceram a perseguição sofrida sob o imperador Adriano e o martírio<br />

<strong>dos</strong> sábios. 7 Há uma relação direta na compreensão histórica <strong>judaica</strong> entre<br />

5 Deuteronômio 26:5-9, in Tora.<br />

6 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história <strong>judaica</strong> e memória <strong>judaica</strong>; tradução de Lina G. Ferreira<br />

da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Página 33.<br />

7 Idem. Página 44.


18<br />

destruição e redenção, como se aquilo que pode emergir ou sustentar a<br />

comunidade enquanto povo sagrado é sempre algo que não apenas surge da<br />

interferência divina na história, mas também que esta interferência é<br />

determinada por momentos de intensa ruptura, como o Messias que nascera<br />

somente no dia em que o Templo fora destruído. Trata-se de uma história de<br />

significa<strong>dos</strong> cria<strong>dos</strong> a partir de eventos históricos, de significações<br />

escolhidas detalhadamente e, por conseguinte definidora não de uma<br />

verdade, mas de uma interpretação específica da história.<br />

Juntamente à interpretação histórica que os judeus criaram e<br />

suas amplas necessidades de memória podemos observar a questão do<br />

sofrimento e mais adiante aquilo que nos é mais importante neste trabalho:<br />

a construção de seus <strong>ressentimentos</strong>, ou ainda a construção de seus<br />

<strong>ressentimentos</strong> a partir da experiência histórica:<br />

“Ele que respondeu a Abraão, nosso pai, no monte Moriá.<br />

Ele nos responderá, e a todas as comunidades sagradas,<br />

e a to<strong>dos</strong> imersos em sofrimento e aflição,<br />

e a to<strong>dos</strong> prisioneiros de reis e príncipes.<br />

Ele que respondeu a Moisés no Mar Vermelho,<br />

Ele nos responderá.<br />

Ele que respondeu a Josué em Gilgal,<br />

Ele nos responderá.<br />

Ele que respondeu a Samuel em Mizpah,<br />

Ele nos responderá.<br />

Ele que respondeu a Elias nos monte Carmel,<br />

Ele nos responderá.<br />

Ele que respondeu a J onas na barriga da baleia,<br />

Ele nos responderá.<br />

Ele que respondeu a Davi e a Salomão em Jerusalém,<br />

Ele nos responderá”. 8<br />

Não apenas a memória de seus antepassa<strong>dos</strong> e de suas<br />

experiências frente a intervenção divina, mas também a memória de suas<br />

8 Da liturgia de um jejum bíblico (baseado na Mishnah Ta’anit 2:4)


19<br />

dores e a memória daquilo que julgaram definidor de seu papel junto a<br />

Deus. A memória trágica do povo judaico parece então definidora de sua<br />

própria expectativa enquanto povo sagrado. Para uma comunidade que<br />

impõe o tempo histórico como valor de pertença e símbolo <strong>para</strong> que as<br />

gerações futuras atentem sobre sua responsabilidade, os acontecimentos<br />

trazem e afirmam aquilo que os define, ou seja, <strong>para</strong> que possam somente<br />

enxergar a si mesmos quando então evocam aquilo que seus antepassa<strong>dos</strong><br />

fizeram em nome da própria comunidade e a serviço de Deus, ou ainda<br />

somente a partir da intervenção divina é que é feita a manutenção de sua<br />

trajetória na história e estas intervenções quase sempre se manifestaram na<br />

narrativa hebraica quando necessitavam de uma espécie de milagre <strong>para</strong><br />

livraram-se ou serem libertos de uma imposição terrena, como os perío<strong>dos</strong><br />

de escravidão ou submissão a um grupo que lhes era hostil.<br />

Sendo assim, como se formou ou como é definida a experiência<br />

de dor do povo judeu? Quais são os elementos que definem aquil o que<br />

julgam pertinente <strong>para</strong> a permanência, quais os acontecimentos mais<br />

importantes <strong>para</strong> a memória do sofrimento judaico, ou ainda quais<br />

acontecimentos devem jamais ser esqueci<strong>dos</strong>? Quais fundamentos<br />

justificam-nos? Ao que nos parece inicialmente, o sentim ento coletivo<br />

colocado sobre situações de intensidade em hostilidade e violência, pode a<br />

priori poder ser o mais rápido argumento <strong>para</strong> justificar a construção de<br />

uma memória de tal grupo. No caso da história <strong>judaica</strong>, as constantes<br />

dispersões e movimentos anti-judaicos a que seus antepassa<strong>dos</strong> foram<br />

expostos, seriam suficientes <strong>para</strong> tal argumento. Embora isso, o tratamento<br />

dado a este grupo poderia então encaixar-se a qualquer outro. Mas a questão<br />

<strong>dos</strong> judeus parece possuir suas peculiaridades e assim necessit a de uma<br />

investigação própria que justifique suas particularidades.<br />

Na literatura <strong>judaica</strong> não é difícil encontrarmos o lamento, não<br />

referimo-nos somente a palavra em seu sentido etimológico, mas<br />

principalmente ao peso que tal expressão possui ao povo jude u, onde a<br />

mesma refere-se ao conjunto de valores que define os elementos e não mais


20<br />

os coloca num mundo disperso e incerto. Ao contrário, a definição de<br />

sofrimento de seus semelhantes justifica sua estada em qualquer local que<br />

se encontrem e reforça sua aliança com um Deus que olha somente aos seus.<br />

Tal é a importância disso, que a memória construída sobre os lamentos<br />

praticamente atropela a memória rigidamente histórica, ou seja, embora<br />

saibam de diversos acontecimentos que exigem seu lamento e devoção, o<br />

momento ou datas exatas não requerem a mesma importância:<br />

“Os judeus que lamentavam na sinagoga a queda do Templo<br />

sabiam o dia do mês, mas duvido que a maioria soubesse ou se<br />

importasse com o ano exato em que o Primeiro ou o Segundo<br />

Templos foram destruí<strong>dos</strong>, quanto mais com as táticas e armas<br />

que foram empregadas. Sabiam que os babilônios e os romanos<br />

haviam sido os destruidores, mas nem um nem outros poderiam<br />

ter sido realidades históricas <strong>para</strong> eles. As memória articuladas<br />

em cânticos melancólicos de gra nde poder poético eram básicas<br />

e comovedoras, mas expressas em tendências que simplesmente<br />

diferem de nossas noções de “saber história”. Aqui está um<br />

pequeno trecho de um longo lamento pelo nono dia de Ab, que<br />

revela tão somente uma maneira pela qual a mem ória coletiva<br />

<strong>judaica</strong> podia se estruturar:<br />

“Um fogo me incendeia quando me lembro – quando deixei o<br />

Egito. Mas levanto lamentos quando me lembro – quando deixei<br />

Jerusalém. Moisés cantou uma canção que nunca seria esquecida<br />

– quando deixei o Egito. Jeremia s lamentou e gritou em<br />

desespero – quando deixei Jerusalém. As ondas do mar se<br />

recolheram mas ficaram de pé como um muro – quando deixei o<br />

Egito. As águas transbordaram e cobriram minha cabeça –<br />

quando deixei Jerusalém. Moisés me conduziu e Aarão me guiou<br />

– quando deixei o Egito. Nabucodonosor e o imperador Adriano<br />

– quando deixei Jerusalém” “. 9<br />

9 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história <strong>judaica</strong> e memória <strong>judaica</strong>; tradução de Lina G. Ferreira da<br />

Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Segundo Yerushalmi o autor desse lamento é desconhecido. O<br />

poema aparece em várias liturgias.


21<br />

I.I – CONTEXTUALIZAÇÃO<br />

As recentes questões colocadas a partir de fim do século XIX e<br />

princípio do século XX trazem reflexões que se colocam como fundamentais<br />

aos historiadores e pensadores em geral. As ideias de civilização absoluta,<br />

dotada de racionalidade, progresso e dinamismo , encontraram enfim, sua<br />

síntese mais obscura, desta vez repleta d e uma racionalização que caminhou<br />

contra os princípios racionais, mo rais e modernos <strong>dos</strong> novos tempos. 10<br />

As sociedades modernas e o crescente desenvolvimento do<br />

a<strong>para</strong>to estatal instalaram de fato um sentido plenamente antagônico na<br />

humanidade, o progresso então inevitável em uma Europa industrializada<br />

sob os mecanismos do desenvolvimento científico fez-se também aliada à<br />

barbárie, o racional e o irracional como uma dicotomia explosiva que<br />

resultou em processos de extremo terror na primeira metade do século XX. 11<br />

A instalação de regimes totalitários, nazista e fascista, na<br />

Alemanha e Itália respectivamente, mostrou à Europa e ao mundo o poder<br />

de destruição da união do desenvolvimento científico, da racionalidade<br />

instrumental e do surgimento das grandes massas, agora concentradas em<br />

centros urbanos e submetidas às formas de s ubmissão do Estado. Esta<br />

instrumentalização forneceu os mecanismos ideais <strong>para</strong> os acontecimentos<br />

que resultaram na Segunda Grande Guerra Mundial (1939 -1945). Terror ou<br />

irracionalidade são termos utiliza<strong>dos</strong> <strong>para</strong> representar não somente a<br />

10 Em “Dialética do esclarecimento”, “Theodor Adorno e Max Horkheimer apontam <strong>para</strong> o que chamam<br />

“crise da modernidade”:”. O indivíduo não precisa mais recorrer a si mesmo <strong>para</strong> decidir o que deve fazer.<br />

[...] sua vida profissional é determinada pela hierarquia de organizações e pela administração pública, e sua<br />

vida privada pelo esquema da indústria cultural. [...] as massas, privadas até da aparência de uma<br />

personalidade, se conformam mais docilmente aos modelos e às palavras de ordem que as pulsões à censura<br />

interna. Se, na época liberal a individualização de parte da população era necessária <strong>para</strong> adaptar a sociedade<br />

em seu conjunto ao estado atingido pela técnica., hoje o funcionamento do aparelho econômico exige uma<br />

administração das massas que não seja mais perturbada pela individualização”. Tomamos como pertinente<br />

aqui somente a contextualização a que se remetem os autores, observando sobretudo a construção teórica das<br />

relações estabelecidas neste novo momento, não sendo nosso objetivo o aprofundamento conceitual ou<br />

metodológico <strong>dos</strong> mesmos.<br />

11 ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. 1966.


22<br />

formação do totalitarismo, mas, sobretudo, a perseguição, exclusão e<br />

extermínio de significativa parte das comunidades <strong>judaica</strong>s espalhadas por<br />

toda a Europa.<br />

Porém, o ofício historiográfico, de maneira muito interessante,<br />

permite não permanecer ligado somente a esta primeir a reflexão. Embora o<br />

termo anti-semitismo apareça somente em 1879 na Alemanha , o<br />

antijudaísmo como acontecimento social é velha prática na Europa. E, como<br />

reforça Rabinovitch, o antijudaísmo não desaparece com a modernidade,<br />

ele se reposiciona. O anti-semitismo agrava mais ainda sua propensão<br />

mortífera. 12 Desta forma, é possível distinguir práticas de intolerância<br />

contra os israelitas, de formas distintas e movidas por razões igualmente<br />

distintas, onde cada época é filha de seu próprio tempo. Massacres em<br />

massa e violências cíclicas poderiam ser aponta<strong>dos</strong> aqui por toda a História<br />

(Alemanha em 1096, Espanha em 1391, Polônia em 1648 -1649), e, após<br />

1881 é na Rússia que se agrava a prática de pogroms contra as populações<br />

<strong>judaica</strong>s mais pobres 13 . O anti-semitismo moderno é político:<br />

“A democracia que emerge no decorrer do século XIX no<br />

continente europeu permanece de substrato cristão. A perda de<br />

influência política das autoridades eclesiásticas deixa intacta no<br />

coração <strong>dos</strong> combates os mais seculares a pregnância an ti<strong>judaica</strong><br />

do pagano-cristianismo. A recomposição normativa do discurso<br />

público, que passa do teológico ao político, não acarreta a<br />

decomposição da vindita anti<strong>judaica</strong>. A função de “bode<br />

expiatório” que pesou sobre os judeus é retomada. Ao lado da<br />

perpetuação do antijudaísmo clássico desenvolve -se um antisemitismo<br />

político, social ou nacionalista, progressista ou<br />

reacionário”. 14<br />

12 RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepulcros nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004.<br />

13 Em 1905, a Okhrana, polícia secreta do Czar russo, fabrica o conhecido “Protocolos <strong>dos</strong> sábios de Sion”,<br />

plano secreto de dominação mundial atribuído à comunidade judio-maçônica. Os fantasmas do anti-semitismo<br />

estavam de volta, o falso plano funcionou como uma espécie de “licença <strong>para</strong> matar”.<br />

14 Cit. pág. 33. Lembrado aqui o “afair Dreyfus” no início do século XX, onde o o então capitão da marinha<br />

francesa foi acusado de conspiração e apoio aos alemães.


23<br />

Com o início das perseguições muitos abandonaram a Europa,<br />

sobretudo após os episódios que culminaram com a Kristallnacht 15 e se<br />

dirigiram a regiões consideradas seguras, entre elas o Brasil, que acabou<br />

por ser o destino de muitos imigrantes de origem <strong>judaica</strong> na primeira<br />

metade do século XX. 16<br />

Os fenômenos de massa antes orienta<strong>dos</strong> pelas tradições<br />

utópicas do período clássico chegaram ao fim do século XX com uma<br />

emergência da memória como fonte de orientação. A força da memória na<br />

construção <strong>dos</strong> mitos identitários que tem informado contemporaneamente<br />

as ações de reconhecimento social e político. 17 Toda memória é criação do<br />

passado, reconstrução e manipulação, ou seja, desempenha um papel<br />

fundamental na maneira como os grupos sociais apreendem o mundo<br />

presente e reconstroem sua identidade. Desta forma, a relação mais evidente<br />

se torna a que se coloca entre memória e poder, onde também o<br />

esquecimento é igualmente vital na construção de uma memória coletiva .<br />

Phillipe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart alertam sobre a necessidade de<br />

esquecimento no imaginário coletivo francês, visto os conflitos étnicos no<br />

país. 18<br />

Neste sentido, a relação entre História e memória é pertinente,<br />

sendo notório que a historiografia tem recorrido à memória voluntária,<br />

produzida através do desenvolvimento cognitivo, desqualificando assim a<br />

memória involuntária, tida como irracional e muitas vezes avessa à<br />

História.<br />

15 Ou noite <strong>dos</strong> cristais. Episódio que a partir de 1938 define a intolerância fascista e a perseguição<br />

exacerbada contra os judeus.<br />

16 PRÛSER, Friedrich. O Rolasnd e Rolândia in Roland und Rolandia. Bremen. Robert Bargman: 1957.<br />

17 DE SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de Memórias em terras de História: Problemáticas atuais. in:<br />

BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márica. Memória e (res) sentimento. Campinas: Unicamp, 2004.<br />

18 POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998. A noção<br />

de esquecimento desempenha uma relação com as forças dogmáticas de um determinado grupo étnico. Desta<br />

forma, os valores a que estaria ligada a sociedade francesa não permitem a estes se interessar pelo fato de que<br />

sua nação formou-se historicamente por meio da conquista, migrações ou anexações de povos distintos.<br />

Assim, o esquecimento desempenha o papel que permite ao grupo agarrar-se convictamente a conjunto de<br />

valores étnicos.


24<br />

A relação entre memória e História, somamos a já apontada<br />

noção de <strong>ressentimentos</strong>, mas como uma espécie de dinâmica <strong>dos</strong><br />

<strong>ressentimentos</strong>, criadora de valores, de finalidades sentidas como desejáveis<br />

pelos indivíduos e que eles buscam realizar. Tal movimento conduz à ação,<br />

à exteriorização, levando em consideração as satisfações e benefícios que<br />

os <strong>ressentimentos</strong> podem proporcionar. No caso das manifestações anti -<br />

semitas, o ódio 19 recalcado e posteriormente manifestado acaba por criar um<br />

vínculo afetivo que permite uma forte identificação de cada um com seu<br />

grupo de pertença. Como um reagrupamento de indivíduos que se unem <strong>para</strong><br />

gritar sua agressividade, inventando signos que exprimam desejos hostis,<br />

como apedrejar símbolos alheios ou queimar figuras sagradas de um grupo<br />

ao qual se manifesta ódio e desejo de vingança.<br />

As experiências afetivas a que os atores se propõem são em<br />

escalas diferenciadas recalcadas e evitadas, de forma a não serem reveladas<br />

freqüentemente. Poderia então, a memória <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> conduzirem<br />

sempre à das violências e perseguições, uma espécie de dever da memória,<br />

onde fatos e sofrimentos suporta<strong>dos</strong> não são leva<strong>dos</strong> ao esquecimento.<br />

A partir destas referências podemos nos valer de considerações<br />

da História Cultural, a refazer trajetórias de vida que operam como que<br />

janelas ou portas de entrada <strong>para</strong> a compreensão de formas de agir, de<br />

pensar e de representar o mundo em uma determinada época 20 , ou seja,<br />

buscando representações que revelem fatores previamente não observa<strong>dos</strong>,<br />

dando voz a personagens que de outra maneira ficariam no esquecimento, o<br />

que segundo Jaques Revel nos proporciona uma descida ao rés do chão. A<br />

abordagem da obra de Max Hermann Maier e de Mathilde Maier parece<br />

revelar exatamente essa fragmentação, a possibilidade de compreender os<br />

fenômenos decorrentes da segunda grande guerra e principalmente aqueles<br />

que se relacionam com a memória e com os <strong>ressentimentos</strong> desenvolvi<strong>dos</strong><br />

19 É preciso esclarecer que o elemento “ódio” se configura em todas as partes envolvidas, de forma que assim<br />

como aqueles que praticam do anti-semitismo podem ser movi<strong>dos</strong> por tal sentimento, os hostiliza<strong>dos</strong><br />

desenvolvem também o ódio pelos anti-semitas, além também daquele deferido por seu próprio grupo de<br />

pertença.<br />

20 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005


25<br />

nestes imigrantes. Esta análise se fará no discurso embutido em suas obras,<br />

naquilo que não se revela claramente em suas palavras. Como o s<br />

<strong>ressentimentos</strong> se manifestam, a quais comportamentos servem de fonte, que<br />

atitudes inspiram, conscientes ou não?<br />

O trabalho utiliza como fontes duas obras principais: 1)<br />

MAIER, Max Hemann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na<br />

selva brasileira - Relato de um imigrante(1938-1975). Título do original<br />

alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffeepflanzer in Urwald<br />

Brasiliens. Bericht Eines Emigranten (1938-1975). 2) MAIER, Mathilde. Os<br />

jardins de minha vida. São Paulo: Versão: Roswitha Kempf. Massao Ohno<br />

Editor, 1981. Do original Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef Knecht-<br />

Carolusdrukerei. Frankfurt am Main.


26<br />

II – JUSTIFICATIVA<br />

As pesquisas que se debruçaram sobre, não apenas, os<br />

fenômenos da modernidade, mas, também, os regimes totalitários e as duas<br />

grandes guerras mundiais se esforçaram também no sentido de compreender<br />

a trajetória daqueles que sofreram todo o terror e trauma das perseguições,<br />

assim como o trabalho forçado nos campos de concentração e de extermínio.<br />

As diversas linhas de pesquisa historiográficas revelaram e continuam a<br />

revelar um ilimitado campo de interpretações e possibilidades de<br />

investigações dentro do efeito imigratório durante a segunda guerra<br />

mundial, os sobreviventes, a passagem pelos campos nazistas, a perseguição<br />

em território alemão, a investida em terra hostil e toda a tragédia causada<br />

pela experiência da barbárie fornecem ferramentas suficientes <strong>para</strong> a<br />

pesquisa histórica. Uma possibilidade de apoio em uma concepção<br />

multidimensional da realidade social, onde cada nível ou dimensão traça<br />

sua própria história, ao mesmo tempo em que se articula com outras, a fim<br />

de restabelecer o movimento de uma sociedade. A própria história <strong>judaica</strong>,<br />

enquanto grupo étnico dentro <strong>dos</strong> acontecimentos da segunda grande guerra<br />

tornou-se extremamente fragmentada quando relacionada às questões que<br />

envolvem imigração, exílio ou mesmo fuga do território alemão. A presença<br />

de famílias imigradas ao Brasil revela ao s historiadores um amplo campo de<br />

pesquisa e também possibilita ao presente trabalho a utilização de<br />

instrumentos varia<strong>dos</strong>, como os recursos ofereci<strong>dos</strong> pela História Oral ou<br />

consulta de arquivos públicos e priva<strong>dos</strong>.<br />

Partindo deste movimento o trabalho pre tende realizar esforços<br />

nas discussões historiográficas que envolvem o s <strong>ressentimentos</strong>. Conceito<br />

que revela uma multiplicidade de interpretações e significa<strong>dos</strong>, desde a<br />

psicanálise freudiana ou mesmo a filosofia de Nietzsche, em ambos os casos<br />

é sempre presente a relação direta desta dimensão psicológica com as<br />

construções sociais.


27<br />

As práticas de anti-semitismo como ódio aos judeus são<br />

escolhidas como potenciais <strong>para</strong> a investigação da gênese <strong>dos</strong><br />

<strong>ressentimentos</strong>, o que nos permite igualmente relacioná-lo com a memória.<br />

Para Freud não há erradicação <strong>dos</strong> sentimentos, antes dele Maquiavel<br />

teorizou que o medo é o principal motor do ódio. Temos, portanto, uma<br />

busca da compreensão não apenas <strong>dos</strong> conflitos humanos ou <strong>dos</strong> grupos<br />

étnicos em sua essência política, mas também das relações emocionais, de<br />

teor mais subjetivo, que revelam o surgimento de <strong>ressentimentos</strong> a part ir de<br />

experiências trágicas. Vincula<strong>dos</strong> a intensidade e força dificilmente não<br />

possuíram consequências ou manifestações na conduta <strong>dos</strong> indivíduos. Não<br />

objetivamos um trabalho de defesa de grupos supostamente vitimiza<strong>dos</strong> pela<br />

História, pois, ao passo em que escolhemos uma determinada maneira de<br />

encarar o objeto, é importante atentarmo -nos <strong>para</strong> a ilimitação da produção<br />

hstórica desses <strong>ressentimentos</strong>. Seja estarmos falando de personalidades<br />

caracterizadas como ressentidas, feito Adolf Hitler, seja observarmos os<br />

distanciamentos entre as diferentes confissões religiosas. Portanto, os<br />

<strong>ressentimentos</strong> a que nos referimos são amplamente produzi<strong>dos</strong> pelos<br />

grupos em ordens e ritmos inconstantes, escolhi<strong>dos</strong> assim em determina<strong>dos</strong><br />

momentos como mais pertinentes ou não, de forma a optarmos a dar mais<br />

relevância a este ou aquele, e, assim, não estarmos nos posicionando <strong>para</strong><br />

um entre eles, mas sim, estarmos optando por uma conduta de pesquisa.<br />

O trabalho busca uma contribuição <strong>para</strong> os varia<strong>dos</strong> estu<strong>dos</strong> de<br />

anti-semitismo, conflitos étnicos e intolerância, além da própria<br />

contribuição à historiografia e seus estu<strong>dos</strong> acerca do século XX e seus<br />

acontecimentos, mas ainda também uma possibilidade de ampliação das<br />

discussões no que se refere ao lado mais subjetivo da experiência, buscando<br />

a compreensão do fenômeno <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> e as construções que<br />

permeiam as relações de afeto e memória política assim inserida.


28<br />

III - A HISTÓRIA E OS RESSENTIMENTOS<br />

“Existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo<br />

grande <strong>dos</strong> sertões, <strong>dos</strong> mares, <strong>dos</strong> desertos, o medo <strong>dos</strong><br />

solda<strong>dos</strong>, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o<br />

medo <strong>dos</strong> ditadores, o medo <strong>dos</strong> democrat as, cantaremos o medo<br />

da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de<br />

medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e<br />

medrosas”. 21<br />

“A morte a vida estão no poder da palavra”. 22<br />

Sigmund Freud, em sua obra Reflexões <strong>para</strong> os tempos de<br />

guerra e morte 23 , aponta <strong>para</strong> as relações estabelecidas entre aqueles que<br />

sobreviveram a primeira grande guerra (1914 -1918), de forma a buscar a<br />

compreensão <strong>dos</strong> traumas e consequentemente da postura assumida após<br />

1918 diante da vida. De certa forma essa pers pectiva se aproxima daquilo<br />

que o autor buscou explicar através da constituição do psiqu ismo e as raízes<br />

intolerância. Segundo Mara Selaibe:<br />

[...] o tipo de natureza <strong>para</strong>nóica de nosso narcisismo básico e<br />

fundante a fim de complexizar em direção ao reconh ecimento e a<br />

aceitação – inclusive a admiração – por aquilo que nos é<br />

estranho, que nos é outro ou apenas díspar. Tornamo -nos únicos<br />

e humanos pela via dupla da identificação e da<br />

diferenciação/se<strong>para</strong>ção. Tal <strong>para</strong>doxo permanece sempre e<br />

recrudesce a cada situação de perseguição, de impedimento da<br />

afirmação da diversidade, de ataque físico e psíquico à<br />

21 Carlos Drummond de Andrade.<br />

22 Provérbios, 18-21.<br />

23 FREUD, Sigmund. Reflexões <strong>para</strong> os tempos de guerra e morte. Obras completas de Freud, vol. XIV.<br />

Imago Editora, 2006.


29<br />

alteridade visando imobilizá -la e neutralizá -la. A violência<br />

contra um outro humano se impõe totalitária e faz valer a partir<br />

dela a homogeneização , o exterm ínio da diferença. 24<br />

Desta forma, inspirada na reflexão freudiana, a autora caminha<br />

também no referencial psíquico de alteridade do indivíduo, tomando por<br />

conseqüência a coletividade desses mecanismos de ação e diferenciação que<br />

quando toma<strong>dos</strong> em grandes proporções resultaram em episódios de<br />

massacre e extermínio, numa profunda exteriorização da intolerância. No<br />

caminho traçado pela psicanálise o principal texto <strong>para</strong> pensar as<br />

diferenças, a diferenciação – bem como as resistências a elas – seja nos<br />

indivíduos seja nos grupos, nas instituições e nas massas foi O mal estar na<br />

civilização de 1929. 25 Temos nesta obra a solidificação da diferenciação , do<br />

mal estar recalcado nas sociedades e a relação estabelecida entre o próprio<br />

sujeito atuante e o meio social ao qual esteve vinculado e assim voltamos<br />

nossa atenção sobre não apenas as diferenças reconhecidas pelos atores,<br />

mas principalmente como operam tais diferenciações e como os mesmos<br />

atores se sensibilizam em relação a elas e comportam -se reciprocamente no<br />

contato de suas fronteiras.<br />

Ora, aquilo que pretendemos – observar historicamente os<br />

<strong>ressentimentos</strong> – só poderia inicialmente ser abordado na relação<br />

identificada com a idéia de alteridade ou estranhamento 26 , estabelecer as<br />

condições de sua existência e não d e sua validade, ou seja, tomamos a<br />

verdade como uma produção histórica, onde tal análise nos remete ao<br />

aparecimento, organização e transformação de determina<strong>dos</strong> valores. A<br />

regularidade da pesquisa por sua vez individualizada no espaço do<br />

conhecimento estabelece compatibilidades e incompatibilidades.<br />

Em sua Microfísica do Poder, Michel Foucault afirma que o<br />

poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em<br />

ação, como também da afirmação que o poder não é manutenção e<br />

24 SELAIBE, Mara. Raízes da intolerância. In: Psicanálise e intolerância. São Paulo: 2005.<br />

25 SELAIBE, Mara. Raízes da intolerância. In: Psicanálise e intolerância. São Paulo: 2005.<br />

26 Detalhes no capítulo O outro na História e a figueira brava. Págs. 30 à 51.


30<br />

reprodução das forças econômicas, mas acima de tudo uma relação de<br />

força. 27 Desta forma, o poder se configuraria em um exercício, um exercício<br />

de compreensão <strong>dos</strong> mecanismos de repressão, onde as relações de poder<br />

nas sociedades atuais têm essencialmente por base uma rela ção de força<br />

estabelecida, em um momento historicamente determinável. Em seu<br />

percurso rumo à realização de um projeto em relação à história do<br />

pensamento, o autor procurou mostrar como porções particulares de<br />

conhecimento limitaram a liberdade humana e qua is recursos seriam váli<strong>dos</strong><br />

<strong>para</strong> a superação de tais restrições. Des ta forma, Michel Foucault apontou<br />

<strong>para</strong> o que chama de regimes de verdade, ou seja, relações circulares onde<br />

sistemas de poder as produzem e sustentam. Sobre a questão diz o a autor:<br />

“Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral”<br />

de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz<br />

funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que<br />

permitem distinguir os enuncia<strong>dos</strong> verdadeiros <strong>dos</strong> falsos, a<br />

maneira como se s ancionam uns e outros; as técnicas e os<br />

procedimentos que são valoriza<strong>dos</strong> <strong>para</strong> a obtenção da verdade;<br />

o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona<br />

como verdadeiro”. 28<br />

As relações de força e a produção de discursos refletem de<br />

maneira inquestionável na conduta <strong>dos</strong> indivíduos. Aquilo a que Michel<br />

Foucault chama “política geral” manifesta -se de maneira heterogênea em<br />

cada sociedade. A transformação <strong>dos</strong> discursos, o surgimento de novos, o<br />

desaparecimento de outros, a mudança lentamente se fe z vencedora, de<br />

forma que se distinguem inevitavelmente em tempo e espaço. Jean<br />

Delumeau, em sua obra sobre o medo no Ocidente 29 , dedica pelo menos um<br />

27 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989.<br />

28 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 1987. A verdade, no pensamento foucaultiano é entendida, portanto, como um sistema de<br />

procedimentos ordena<strong>dos</strong> <strong>para</strong> a produção, regulação, distribuição, circulação e operação <strong>dos</strong> discursos. A<br />

questão fundamental da Filosofia deve ser buscada a partir da relação que estabelece entre nós e a verdade, ou<br />

seja, de que forma devemos conduzir-nos? Através desse trabalho vemos modificadas as relações com a<br />

verdade e, principalmente, vemos modificada a conduta <strong>dos</strong> homens.<br />

29 DELEMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. De<br />

início o autor questiona-se: “Por que esse silêncio prolongado sobre o papel do medo na história?” Trata-se<br />

aqui, assim como em nossa pesquisa sobre os <strong>ressentimentos</strong>, de não apenas abordar o medo puro e<br />

simplesmente, mas de relacionar o complexo de sentimentos que desempenharam um papel crucial na história


31<br />

capítulo ao anti-semitismo e às relações entre a “Europa e os judeus”.<br />

Chama-nos a atenção nesse momento a contextualização e constatação do<br />

autor ao verificar “idas e vindas” ou “altas e baixas” da comunidade<br />

israelita e a relação desta com a população de forma geral e as instituições<br />

de época. Segundo Delumeau, durante parte da História a intolerância<br />

deferida aos judeus aconteceu, sobretudo, pela existência de um anti -<br />

judaísmo popular, ocorri<strong>dos</strong> principalmente nas cidades com episódios<br />

sangrentos anteriores ao século XVI 30 , sendo relata<strong>dos</strong> casos onde a<br />

intervenção papal se fazia necessária quando da acusação de algum cidadão<br />

judeu em relação a qualquer crime, a população insana e determinada não se<br />

contentava senão com a morte <strong>dos</strong> israelitas 31 . Na Idade Média e em sua<br />

sequência, principalmente após o século XVI, a instituição religiosa passou<br />

por modificações significativas no tratamento e no discurso. O aparente<br />

“medo” da ameaça <strong>judaica</strong> solidificou-se no pensamento cristão, o povo<br />

judeu estava, agora, ligado a tudo aquilo que determinasse efetivamente o<br />

mal, o demônio, as trevas. Desta forma, regiões como a Esp anha, antes<br />

conhecida como “território das três religiões” 32 , pela tolerância religiosa<br />

das sociedades humanas. Sobre o assunto o autor cita o texto Pour l’histoire d’um sentiment: Le besoin de<br />

sécurité, de 1956 publicado na Annales e escrito por L. Febvre: “Não se trata [...] de reconstruir a história a<br />

partir da exclusiva necessidade de segurança – como G. Ferrero estava tentado a fazer a partir do sentimento<br />

do medo (no fundo, de resto, os dois sentimentos, um de ordem positiva, o outro de ordem negativa, não<br />

acabam por encontrar-se?) – [...], trata-se essencialmente de colocar em seu lugar, digamos de restituir seu<br />

quinhão legítimo a um complexo de sentimentos que, considerando-se as latitudes e as épocas, não pôde<br />

deixar de desempenhar um papel capital na história das sociedades humanas <strong>para</strong> nós próximas e familiares”.<br />

Aqui o medo fora detectado sobretudo pela análise da segurança, ou seja daquilo que os grupos humanos<br />

fizeram registrar-se em suas preocupações com as edificações, grandes portais, muralhas, feito a descrição<br />

detalhada das fortificações de entrada na Augsburgo do século XVI.<br />

30 Segundo Jean Delumeau “...Os pogroms que acompanharam a Peste Negra na Alemanha e na Catalunha e as<br />

violências de que os judeus foram vítimas em Paris e no resto da França com o advento de Carlos VI (1380)<br />

revelam, no plano local, os <strong>ressentimentos</strong> de uma população - ou antes de uma fração desta – em relação aos<br />

israelitas. Usurários ferozes, sanguessugas <strong>dos</strong> pobres, envenenadores das águas bebidas pelos cristãos: assim<br />

os imaginam freqüentemente os burgueses e o povo miúdo urbano no final da Idade Média. Eles são a própria<br />

imagem do “outro”, do estrangeiro incompreensível e obstinado em uma religião, <strong>dos</strong> comportamentos, de<br />

um estilo de vida diferente daqueles da comunidade que os recebe”.<br />

31 C it. pág. 279: “Essa estranheza suspeita e tenaz aponta-os como bodes expiatórios em tempos de crise.<br />

Inversamente, muitas vezes aconteceu – por exemplo na Espanha e na Alemanha no decorrer da Peste Negra,<br />

mas também na Boêmia no século XIV e na Polônia no século XVII – que soberanos e nobres tomassem a<br />

defesa <strong>dos</strong> judeus contra a cólera popular. Do mesmo modo, os papas tiveram por muito tempo uma atitude de<br />

compreensão em relação a eles”.<br />

32 Sobre este afirma Jean Delumeau: “O país que, nos séculos VXI e VXII, se tornou mais intolerante em<br />

relação aos judeus, a Espanha, foi o que, anteriormente, melhor os acolhera. No final do século XIII, eles


32<br />

durante parte da Idade Média, transformaram-se em palcos de terror e<br />

perseguição, mas desta vez haviam sido fortemente estimuladas pelo<br />

discurso religioso:<br />

“Do mesmo modo que o racismo hitlerista deu ao anti -semitismo<br />

alemão do começo do século XX uma agressividade e uma<br />

dimensão novas, assim também o temor ao judeu – verdadeiro<br />

“racismo religioso” – experimentado pela Igreja militante entre<br />

os séculos XIV e XVII, numa p sicose de cerco um pouco<br />

comparável, não só exacerbou, legitimou e generalizou os<br />

sentimentos hostis em relação aos judeus das coletividades<br />

locais, mas ainda provocou fenômenos de rejeição que, sem essa<br />

incitação ideológica, sem dúvida não se teriam produ zido.<br />

Reencontra-se então um juízo já enunciado por H. C. Lea quando<br />

ele escrevia no começo de sua monumental History of the<br />

Inquisition of Spain: “ Não é exagerado dizer que a Igreja foi a<br />

principal ou mesmo a única responsável pela multidão de<br />

sevícias so fridas pelos judeus no decorrer da Idade Média”. E eu<br />

acrescentarei esta emenda: mais ainda durante a Renascença”. 33<br />

Desta forma, o discurso produzido aponta <strong>para</strong> momentos<br />

diferentes, primeiro aquele onde a “discursividade ideológica” tem papel<br />

determinante nos movimentos anti-judaicos, e segundo, onde a<br />

agressividade popular era tamanha que aqueles mais favoreci<strong>dos</strong> dentro da<br />

hierarquia social tomavam a defesa <strong>dos</strong> judeus frente à intolerância popular.<br />

Ambos apontam também <strong>para</strong> perío<strong>dos</strong> distintos na Históri a, mas embora<br />

tudo isso comunga da mesma hostilidade a um mesmo povo, sendo assim os<br />

judeus vistos como “aliança do mal” e a quem deferem to<strong>dos</strong> os males<br />

surgi<strong>dos</strong> <strong>para</strong> as comunidades.<br />

A idéia de Delumeau e de outros autores que o mesmo nos<br />

aponta corre em direção à formação de um discurso, de uma “incitação<br />

eram ali perto de 300 mil e vivam mistura<strong>dos</strong> ao resto da população. Cristãos e israelitas convidavam-se à<br />

mesa uns <strong>dos</strong> outros. Iam aos mesmos banhos públicos e muitas vezes nos mesmos dias, a despeito de certas<br />

interdições pouco respeitadas. Cristãos assistiam às circuncisões e judeus aos batismos. [...] Tal era, na Idade<br />

Média, a Espanha das “três religiões”, um país tolerante porque não homogêneo”. Também a Polônia por<br />

muito tempo destacou-se como região de tolerância. Na segunda metade do século VXI dizia o estatuto <strong>dos</strong><br />

judeus poloneses: “Nessas regiões, encontram-se massas de judeus que não são despreza<strong>dos</strong> como em outras<br />

partes. Não vivem na submissão e não estão reduzi<strong>dos</strong> aos ofícios vis. Possuem terras, ocupam-se do<br />

comércio, estudam a medicina e a astronomia. Possuem grandes riquezas e não são apenas conta<strong>dos</strong> entre as<br />

boas pessoas, mas por vezes as dominam. Não usam nenhum sinal distintivo, e lhes é permitido até mesmo<br />

portar armas. Em suma, dispõem de to<strong>dos</strong> os direitos do cidadão”.<br />

33 Idem 7. cit. pág 278-279.


33<br />

ideológica” que predominantemente determina o percurso da análise,<br />

sobretudo naquilo em que lhes confere o sentimento, a subjetividade do<br />

medo. O ditado popular “se não podes com eles junte -se a eles” é aqui<br />

utilizado às avessas. Cabia aos judeus atender a uma oportunidade de<br />

conversão, de permanência, de partilhar valores, ainda que de qualquer<br />

maneira jamais o fosse plenamente. Era -lhes em muitos momentos a única<br />

chance:<br />

“No momento em que Lutero confes sava seu imenso medo do<br />

perigo turco, enfurecia -se também contra os judeus que, em um<br />

primeiro tempo, esperara conquistar <strong>para</strong> o Evangelho. A<br />

simultaneidade das duas denúncias não era fortuita. Ao<br />

contrário, ela esclarece uma situação histórica. Na Europa<br />

Ocidental, o antijudaísmo mais coerente e mais doutrinal se<br />

manifestou no período em que a Igreja, percebendo inimigos por<br />

toda parte, sentiu-se presa entre os fogos cruza<strong>dos</strong> de agressões<br />

convergentes. De modo que, no começo da Idade Moderna, o<br />

temor aos j udeus se situou sobretudo no nível religioso”. 34<br />

Esta passagem aponta <strong>para</strong> o momento em que Lutero acreditou<br />

ainda poder converter os judeus e trazê-los <strong>para</strong> o interior da reforma<br />

protestante. Ao mesmo tempo, a Igreja, que ainda sangrava após o cisma do<br />

cristianismo no Ocidente, reagiu imediatamente contra tudo aquilo que lhes<br />

parecesse igualmente passível de estranhamento. Portanto, os israelitas não<br />

encontraram diálogo seguro com nenhuma das confissões cristãs. E assim , a<br />

longa crise da Igreja começada com o grande Cisma, e depois continuada<br />

pelas guerras hussitas, o avanço turco e finalmente a secessão protestante<br />

engendraram nos meios eclesiásticos endurecimentos doutrinais e um medo<br />

maior do perigo judeu. 35<br />

Séculos mais tarde os acontecimentos que culm inaram nas duas<br />

grandes guerras e, sobretudo nas práticas de intolerância e anti -semitismo<br />

durante a segunda guerra mundial elevaram fortemente o prestígio do<br />

Estado, sendo atribuída a ele uma força legítima sobre a vida, a morte e a<br />

liberdade. As massas, privadas até da aparência de uma personalidade, se<br />

34 Cit. pág. 278.<br />

35 Cit. pág. 282.


34<br />

conformaram mais docilmente aos modelos e às palavras de ordem. Ou seja,<br />

as massas são submetidas à exploração e à dominação, por de trás do bem -<br />

estar recalcou-se todo um ambiente caótico. Temos uma maneir a diferente<br />

de manifestação anti-semita, embora alguns elementos, como a ideologia<br />

religiosa, que foram ainda estimula<strong>dos</strong> e ainda assim ao estilo nazista, de<br />

forma que a Igreja não exerceu participação determinante nas perseguições,<br />

formações de campos de concentração ou mesmo extermínios. Nos tempos<br />

de Hitler, segundo Jean Delumeau, o antijudaísmo<br />

“teve dois co mponentes que muitas vezes se somaram: de um<br />

lado, a hostilidade experimentada por uma coletividade – ou por<br />

uma parte desta – em relação a uma minoria empreendedora,<br />

considerada inassimilável e chegando a ultrapassar um limiar<br />

tolerável no plano do número ou do êxito, ou nos dois ao mesmo<br />

tempo; e, do outro, o medo sentido por doutrinários que<br />

identificam o judeu com o mal absoluto e o perseguem com seu<br />

ódio implacável mesmo quando ele foi repelido <strong>para</strong> fora das<br />

fronteiras”. 36<br />

Embora o contexto da primeira metade do século XX possa<br />

assim pensar o anti-semitismo na Europa e o próprio nazismo, as práticas de<br />

intolerância deferidas aos israelitas rem etem a momentos bem mais remotos<br />

da História européia e principalmente não se vinculam necessariamente à<br />

expressão <strong>dos</strong> sentimentos populares ou a uma situação social e econômica.<br />

Delumeau acrescenta que:<br />

“Do mesmo modo que o racismo hitlerista deu ao ant i-semitismo<br />

alemão do começo do século XX uma agressividade e uma<br />

dimensão novas, assim também o temor ao judeu – verdadeiro<br />

racismo “religioso” – experimentado pela Igreja militante entre<br />

os séculos XIV e XVII, numa psicose de cerco um pouco<br />

comparável, não só exacerbou, legitimou e generalizou os<br />

sentimentos hostis em relação aos judeus das coletividades<br />

locais, mas ainda provocou fenômenos de rejeição que, sem essa<br />

incitação ideológica, sem dúvida não se teriam produzido.” 37<br />

Desta forma, o antijudaísmo popular não deve ser visto como<br />

única ou principal força motora das agressões contra os judeus. Há uma<br />

36 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989.<br />

37 Cit. pg. 278.


35<br />

relação entre os chama<strong>dos</strong> “afetos” – conjunto de manifestações e<br />

percepções subjetivas ligadas sobretudo à moral e hombridade <strong>dos</strong> atores –<br />

e o político, ou seja, aquilo que por ventura age diretamente no objeto em<br />

questão: a formação <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>.<br />

A partir destes acontecimentos, tomando principalmente nosso<br />

recorte temporal, remeti<strong>dos</strong>, portanto, ao século XX e ao anti -semitismo<br />

praticado durante sua primeira metade, com os conseqüentes extermínios em<br />

massa nos campos de concentração e os grupos de refugia<strong>dos</strong> espalha<strong>dos</strong><br />

por todo o mundo no antes e pós-1945. Temos assim articuladas<br />

problemáticas que permitem observar a construção <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> entre<br />

os descendentes judaicos.<br />

As perspectivas do medo e das formações discursivas em suas<br />

subjetividades dão aos <strong>ressentimentos</strong> aquilo que podemos colocar como um<br />

pós-operatório, ou seja, como a herança de tempos em que as piores<br />

expectativas confirmaram-se tragicamente <strong>para</strong> os israelitas. A expressão do<br />

sobrevivente ou do hostilizado é manifesta, consciente ou não, em relação<br />

ao seu algoz.<br />

Observamos anteriormente que o antijudaísmo encontra sua<br />

fonte em conflitos antigos entre grupos distintos e nas riv alidades<br />

teológicas. A evangelização <strong>dos</strong> povos europeus o propagou no Ocidente,<br />

daí os estu<strong>dos</strong> sobre anti-semitismo ocuparem-se da relação deste com as<br />

sociedades ocidentais. Transformam as populações <strong>judaica</strong>s em “bode<br />

expiatório”. 38 Desta forma a perseguição e exclusão aos judeus tornou-se<br />

frequentemente praticada em território ocidental.<br />

38 RABINOVITCH, Gerard. Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004. Expressão esta utilizada<br />

também por Jean Delumeau na “História do medo no Ocidente”. O chamado “bode expiatório” caracterizouse<br />

como aquele a quem são credita<strong>dos</strong> feitos ou intervenções, ou seja, se justificou ações muitas vezes<br />

conspiradas por outros ao elemento judeu, de forma que o peso de sua ascendência por si só era suficiente<br />

como prova e podia convencer a grande maioria do grupo. Antes da primeira guerra mundial o caso do oficial<br />

da marinha francesa, Dreyfus, acusado de alta traição e conspiração com os alemães tornou-se um <strong>dos</strong> mais<br />

famosos julgamentos internacionais da História e fonte de inspiração <strong>para</strong> a reflexão nas expressões sociais,<br />

feito a obra de 1925 “O Processo”, de Franz Kafka. Na narrativa kafkiana Josef K. é um bancário de 30 anos<br />

que acorda certa manhã, e, sem motivos sabi<strong>dos</strong>, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por um<br />

crime não revelado, quando se declara inocente é questionado “inocente de quê?”. K. termina morto nos<br />

portões da cidade. Por outro lado, em meio a estes acontecimentos, tivemos também a formação e<br />

estruturação do pensamento sionista, sobretudo com a atuação de seu principal mentor, Theodor Herzl. O


36<br />

Em uma observação particular, tomando aqui os anos que<br />

antecedem o fenômeno nazista, o sociólogo Zygmunt Bauman, em sua obra<br />

Holocausto e Modernidade, alerta <strong>para</strong> o fato de que a Alemanha, antes da<br />

ascensão do partido nacional socialista, com<strong>para</strong>da a outras regiões da<br />

Europa, não apresentou naquele momento (sobretudo a partir do início da<br />

década de 1930) um sentimento extremo de ódio aos judeus, algo muito<br />

mais visto em outras regiões do continente. 39 A explosão do sentimento<br />

anti-semita não é inédita nem formulada ao pé do século XX, trata -se de<br />

valores recalca<strong>dos</strong>, que em momentos de incitação tomam lugares de<br />

destaque no cenário social.<br />

A intolerância <strong>dos</strong> alemães levou mais de cinco milhões judeus<br />

à morte no período compreendido entre os anos de 1939 -1945. Foram estes<br />

trazi<strong>dos</strong> de várias regiões da Europa, dentre estes a maior parte de judeus<br />

russos e poloneses. 40<br />

O discurso da violência e sua heroificação apresentam -se<br />

também como forma de conduta, de salva-guarda de valores de um povo<br />

considerado forte e honrado. Segundo Gérard Rabinovitch:<br />

“Bertold Brecht em sua peça A resistível ascensão de Arturo Ui<br />

com<strong>para</strong>va os nazistas aos gangsters. Os trabalhos <strong>dos</strong><br />

sociólogos e <strong>dos</strong> antropólogos sobre a máfia tradicional podem<br />

confirmar a intuição do autor. A heroificação da violência como<br />

maneira de “estar no mundo”, é o ponto mais flagrante de<br />

similitude entre a subcultura mafiosa e o nazismo (que lhe é<br />

posterior). As regras de ast úcia, de ferocidades, de práticas de<br />

roubo e de embuste, a concepção real de honra baseada na<br />

aptidão <strong>para</strong> a violência homicida, a prática do duplo discurso,<br />

sionismo foi caracterizado como um movimento de direito à autodeterminação do povo judeu e à existência<br />

de um Estado judaico. Em 1896, o livro "Der Judenstaat" ("O estado judaico") de T. Herzl apontava <strong>para</strong> a<br />

necessidade da formação de um Estado judaico, onde somente assim o problema do anti-semitismo seria<br />

resolvido.<br />

39 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. O autor aponta <strong>para</strong><br />

um recorte muito específico que engloba as relações mais superficiais dentro do território alemão, não<br />

expandindo a análise a uma conjuntura de longa duração. A expressão anti-semita deflagrada no Ocidente,<br />

como já exposto aqui, foi hora e outra exteriorizada, em uma relação de continuidade com rupturas<br />

estruturais, feito a incitação ideológica por parte de um ou outro.<br />

40 R. Hilberg. La destruction des Juifs d’ Europe. Fayard, 1988. & E. Jäckel. P. Longerich, J. H. Shoeps,<br />

Enziklopädie dês Holocaust, Argon, 1993. Segundo os autores, que divergem em números totais por uma<br />

questão de demarcações e fronteiras, o número de russos mortos está entre 700.000 e 1.100.000 e o número de<br />

poloneses entre 2.900.000 e 3.000.000. Estima-se que o total de judeus mortos durante a guerra esteja entre<br />

5.100.000 e 5.860.000.


37<br />

do logro, do imperativo de subordinação, da hierarquia<br />

fundamentada na predominância do mais forte , da livre<br />

disposição sádica sobre os fracos e os sem -defesa, da<br />

fanfarronada, os mafiosos têm seus homólogos nos Schwarze<br />

Korps e na Schutzsaffel (SS). “Nos castelos de minha ordem,<br />

crescerá uma juventude que aterrorizará o mundo. Eu quero uma<br />

juventude violenta, despótica, sem medo, cruel...” dirá Hitler. O<br />

emprego da violência homicida é indispensável ao homem de<br />

honra. A hierarquia no seio da sociedade honrada está baseada<br />

na agressividade, na ferocidade,, na solidez <strong>dos</strong> nervos, na<br />

ausência total de escrúpulos, na selvageria, na capacidade de<br />

tomar decisões rapidamente. A heroificação do “Super -Homem”<br />

nazista lhe é homóloga quase termo a termo. Ela está no centro<br />

das expressões de Hitler, Goebbels e de Himmler. É a da SS<br />

como guarda pretoriana na qualida de de corpos de elite e na<br />

função de núcleo da “nova ordem” do Reich de mil anos”. 41<br />

Uma vez instauradas as noções de intolerância e de anti -<br />

semitismo podemos agora dirigir-nos à questão da formação <strong>dos</strong><br />

<strong>ressentimentos</strong> e seu apelo junto à História, quais di scursos viabilizaram, de<br />

que maneira foram opera<strong>dos</strong>, quem os manteve e como aconteceram nas<br />

sociedades ou mesmo grupos que compartilharam da experiência da<br />

hostilidade sobretudo no anti-semitismo moderno. 42<br />

Para tanto a idéia <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> deve concentrar-se em<br />

uma diversidade de formas, <strong>para</strong> que assim possamos trabalhar com a<br />

definição de <strong>ressentimentos</strong> e não ressentimento. Em seu estudo sobre<br />

memória e (res)sentimentos, Márcia Regina Naxara e Maria Stell a Bresciani<br />

alertam os leitores:<br />

“Não pensamos aqui somente na co municação voluntária de<br />

experiências ou na prática da transmissão oral de lendas e<br />

tradições entre populações, o mais das vezes iletradas; a<br />

preocupação maior busca também o avesso da face<br />

historicamente datada da obrigação à memória, es sa memória<br />

voluntária construída como estratégia de luta política, afirmação<br />

positiva de identidade pelos que se vêem excluí<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> direitos<br />

41 RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectivas, 2004. Em seu breve ensaio<br />

sobre o Holocausto e as “raízes do antijudaísmo” o autor expõe dentro daquilo que denomina “cultura da<br />

corja” elementos da formação do ideário e práxis nazista, tais como anti-semitismo, o mito ariano, a cultura<br />

da morte e a heroificação da violência. Desta forma, o conjunto de valores dignos de um representante ariano<br />

deveriam não confrontar-se com estes. Segundo o autor, assim como pensou o poeta alemão Bertold Brecht,<br />

os valores do nazismo estavam próximos daqueles vistos entre as famosas máfias de início do século XX.<br />

42 Entendemos aqui como anti-semitismo moderno as práticas de intolerância deferidas aos judeus a partir da<br />

primeira metade do século XX e a ascensão dessa militância que culminou no movimento nazista na<br />

Alemanha.


38<br />

à cidadania; rememoração dolorosa, mas não menos afirmativa,<br />

de perseguições políticas, religiosas, étnicas, por ve zes<br />

acompanhadas de práticas violentas de genocídio. Como se<strong>para</strong>r<br />

essas memórias de sentimentos negativos, humilhações, afetos<br />

ressenti<strong>dos</strong>, rancores e desejos de vingança das evocações da<br />

parte so mbria, inquietante e frequentemente terrífica da<br />

história?” 43<br />

Portanto, a memória <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> pode conduzir os<br />

indivíduos a uma manutenção negativa de suas experiências passadas, de<br />

forma a preservarem sentimentos hostis.<br />

Uma noção envolvida com a psicologia social definiria os<br />

<strong>ressentimentos</strong> a partir das relações entre os afetos e o político, entre os<br />

sujeitos individuais em sua afetividade e as práticas sociais e políticas,<br />

como expresso por Max Hermann Maier:<br />

“No dia 10 de novembro de 1938, após doze anos de uma vida<br />

conjugal feliz e trabalhosa, após seis anos sob o terror nazista,<br />

depois da “Noite <strong>dos</strong> Vidros Quebra<strong>dos</strong>” (Kristallnacht, em<br />

alemão); depois do “pogrom” ordenado pelos nazistas, pude<br />

enfim sair da minha cidade natal (Frankfurt sobre o Meno) com a<br />

minha família. Pudemos salvar -nos das perseguições do último<br />

dia da nossa estada em Frankfurt co m a ajuda de bons amigos;<br />

sem essa ajuda não teríamos conseguido pegar o trem da noite<br />

<strong>para</strong> a Holanda. Antes da fronteira, na cidade de Emmerich,<br />

fomos deti<strong>dos</strong> pela “SS” e trata<strong>dos</strong> de maneira humilhante. Na<br />

noite de onze de novembro, felizmente nos libertaram.” 44<br />

Desta forma, a multiplicidade de idéias permite ao termo<br />

<strong>ressentimentos</strong> uma variedade de abordagens, sendo, porém, presente na<br />

maioria delas uma questão delicada, pois nos obriga a explorar regiõ es e<br />

temas a que somos resistentes. Questão sensível a das memórias<br />

acorrentadas a <strong>ressentimentos</strong>. 45 Portanto, a referência a memórias<br />

43 BRESCIANI. Stella (org) e NAXARA. Márcia. Memória e ressentimento.Unicamp: 2004.<br />

44 Pág. 4, cap. 2 in: MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva<br />

brasileira – Relato de um imigrante (1938-1975) Nesta passagem Max Hermann Maier narra o desepero da<br />

família que saiu tardiamente da Alemanha, daí as dificuldades em ultrapassar as barreiras nazistas rumo a um<br />

lugar qualquer que lhes fosse mais amistoso .<br />

45 BRESCIANI. Stella (org) e NAXARA. Márcia. Memória e ressentimento.Unicamp: 2004. A advertência<br />

das autoras parece-nos bastante pertinente ao passo em que a pretensão da história <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> se nos<br />

apresenta de maneira bastante subjetiva, sendo necessário a exploração de memórias noturnas, àquelas <strong>para</strong> as<br />

quais desenvolvemos resistências colossais, estando ainda sujeitos a uma deformação dessas memórias,<br />

delírios, invenções. É necessário atenção e cuidado ao trabalho historiográfico.


39<br />

acorrentadas a <strong>ressentimentos</strong> podem ter na perspectiva historiográfica uma<br />

intensa relação com estu<strong>dos</strong> multidisciplinares, onde as utilizações de<br />

ferramentas fornecidas pela psicologia, filosofia e sociologia podem<br />

fornecer suportes <strong>para</strong> a investigação em história.<br />

Pierre Ansart em seu estudo sobre os <strong>ressentimentos</strong> e suas<br />

implicações com a memória já apontava tamb ém <strong>para</strong> uma abordagem plural<br />

do tema, ou seja, uma diversidade das formas de ressentimento, que podem<br />

estar relaciona<strong>dos</strong> a uma intensidade na perspectiva da psicanálise, a<br />

representações, ligadas a crenças, religiões, imaginários ou ideologias além<br />

de relações entre grupos e a reciprocidade entre eles. 46 Assim, a tomada de<br />

manifestações cotidianas, feito a leitura de um livro ou o trabalho em um<br />

pequeno jardim transformam-se em meios diretamente relaciona<strong>dos</strong> ao<br />

ressentimento, exteriorizam valores e revelam a memória:<br />

“Eu vos digo amadas árvores, que plantei já pressentindo...<br />

cresçam como que saindo de minha alma ao puro ar, pois que<br />

dores e prazeres enterrei sob vossos pés. Cada dia tragam<br />

sombra, tragam frutos, regozijos, mas que eu possa perto, perto,<br />

perto dela vos fruir.” 47<br />

Estas palavras de Goethe foram inspiradoras <strong>para</strong> Mathilde<br />

Maier, que assim as comentou:<br />

“Esta poesia Goethe escreveu <strong>para</strong> Charlotte v. Stein, quando<br />

plantou seu jardim – um presente do duque – fora <strong>dos</strong> portais da<br />

cidade de Weimar. I númeras vezes recitamos esta poesia e<br />

identificamo -nos com ela. Da mesma maneira como este jardim<br />

em Weimar possibiltou a se<strong>para</strong>ção definitiva de Goethe de<br />

Frankgurt – e há muitas provas disto – assim o plantio do nosso<br />

jardim, seu crescimento, sua floresc ência e frutificação, fizeram -<br />

nos radicar profundamente neste país novo e esquecer o<br />

sofrimento indizível da se<strong>para</strong>ção da pátria e <strong>dos</strong> entes queri<strong>dos</strong>,<br />

e as amargas experiências do tempo do nazismo. E assim como o<br />

sofrimento em comum aprofunda o amor, assim a formação e a<br />

construção conjunta de jardim e casa nos confortou”. 48<br />

46 Também BARISH, Louis e BARISH, Rebecca. O problema do sofrimento in: Crenças Básicas do<br />

Judaísmo. São Paulo: Ed. Edigraf, 1967.<br />

47 Citação de Goethe feita Mathilde Maier em sua obra “Os jardins de minha vida”.<br />

48 Pág. 64 in: MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Massao Ono Ed. São Paulo: 1981.


40<br />

Há, portanto, uma espécie de dinâmica <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>,<br />

criadora de valores, de finalidades sentidas como desejáveis pelos<br />

indivíduos e que eles buscam realizar. Assim, dificilmente se pode aceitar a<br />

hipótese de que um sentimento do qual sublinhamos a intensidade e força,<br />

não tenha conseqüências nem manifestações na conduta <strong>dos</strong> indivíduos. 49<br />

Ou seja, não se livraram desse passado noturno, ele os acompanha ainda que<br />

no Brasil estejam desde o amanhecer ao fim <strong>dos</strong> dias e a Alemanha tão<br />

distante. Tal movimento conduz à ação, à exteriorização, levando em<br />

consideração as satisfações e benefícios que os <strong>ressentimentos</strong> podem<br />

proporcionar. No caso das manifestações anti -semitas, o ódio recalcado e<br />

posteriormente manifestado acaba por criar um vínculo afetivo que permite<br />

uma forte identificação de cada um com seu grupo de pertença. Como um<br />

reagrupamento de indivíduos que se unem <strong>para</strong> gritar sua agressividade,<br />

inventando signos que exprimam desejo s hostis, como apedrejar símbolos<br />

alheios ou queimar figuras sagradas de um grupo ao qual se manifesta ódio<br />

e desejo de vingança.<br />

Mas, qual a solidariedade viabilizada pelos <strong>ressentimentos</strong><br />

coletivos, ou ainda, como se operam os movimentos que conduzem à a ção?<br />

Os <strong>ressentimentos</strong> se constituiriam em sentimentos criadores, feito a inveja,<br />

ciúme, rancor, maldade, desejo de vingança, humilhação e medo. Devemos<br />

duvidar de que algum tipo de sociedade possa fazer desaparecer a<br />

experiência do ódio, inferioridade, humilhação e potencialidades<br />

permanentes de agressividade. Segundo a perspectiva freudiana as pulsões<br />

inconscientes nos confrontam à dualidade pulsional do amor e do ódio, onde<br />

esta dualidade é redescoberta e incessantemente posta e recomposta.<br />

Ao tentar problematizar os <strong>ressentimentos</strong> e a História devemos<br />

buscar restituir e explicar o devir <strong>dos</strong> sentimentos individuais e coletivos.<br />

Segundo Pierre Ansart,<br />

49 RABINOVITCH, Gerard. Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004.


41<br />

“A dificuldade é redobrada quando se trata não somente de<br />

analisar os ódios, mas de compreender e explic ar aquilo que<br />

precisamente não é dito, não é proclamado; aquilo que é negado<br />

e se constitui, entretanto, como um móbil das atitudes,<br />

concepções e percepções sociais. O objeto esquiva -se, é preciso<br />

formular a hipótese de sua importância e reconstituir o inv isível<br />

que, se não é totalmente inconsciente, ao menos em parte é não<br />

consciente”. 50<br />

E acrescenta:<br />

“O historiador encontra -se na obrigação de acumular o estudo<br />

<strong>dos</strong> indícios, <strong>dos</strong> signos, <strong>dos</strong> traços: estudar a distribuição <strong>dos</strong><br />

camponeses nos solos, estabele cer a curva <strong>dos</strong> casamentos<br />

mistos, observar as estratégias de afastamento, considerar os<br />

limites das terras e <strong>dos</strong> litígios, recompor os rituais religiosos,<br />

observar qual imagem, do outro é ai apresentada, retraçar a<br />

história particular de um estupro e <strong>dos</strong> rumores que o tornaram<br />

público e o transformaram em crime simbólico. Tarefa delicada<br />

que diz mais respeito ao estudo <strong>dos</strong> costumes, <strong>dos</strong> usos da vida<br />

cotidiana que à grande história política.” 51<br />

Portanto as experiências afetivas a que nos propomos , sejam<br />

elas ligadas a circunstâncias particulares, como a história privada de<br />

famílias ou, sejam elas ligadas a valores conti<strong>dos</strong> em situações públicas,<br />

feito os conflitos étnicos, são, em escalas diferenciadas, recalcadas e<br />

evitadas, de forma a não serem reveladas freqüentemente. Poderia então, a<br />

memória <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> nos conduzir sempre à das violências e<br />

perseguições, uma espécie de dever da memória, onde fatos e sofrimentos<br />

suporta<strong>dos</strong> não são leva<strong>dos</strong> ao esquecimento.<br />

Por outro lado a investigação de tais val ores remete o<br />

historiador a uma observação mais minuciosa, de forma que os pormenores<br />

50 ANSART, Pierre. História e Memória <strong>dos</strong> Ressentimentos in: BRESCIANI, Stella. Memória e (res)<br />

sentimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2004.<br />

51 Cit. pág. 29.


42<br />

da vida cotidiana é que irão de fato nos conduzir dentro da pesquisa,<br />

revelando mais tarde acréscimos e subtrações no devir histórico, naquilo<br />

que os grupos tomam <strong>para</strong> si e naquilo que recusam de bom grado, com<br />

hostilidades maiores ou não. No caso <strong>dos</strong> israelitas alguns autores refletem<br />

sobre a assimilação do judeu em relação à Europa, ao passo em que<br />

reconhecem nos povos europeus uma porção de judaísmo. Sobre isso<br />

afirmou Georg Simmel:<br />

“O perigo da absorção não ameaça de modo algum os judeus,<br />

pelo contrário, encontram-se no estágio de judaização da<br />

Europa. Se examinarmos isso com uma lupa psicológica,<br />

encontraremos elementos judaicos no sangue de to<strong>dos</strong> os povos<br />

de cultura e essa judaização do não judeu ocorre <strong>para</strong>lela à<br />

europeização <strong>dos</strong> judeus. Quanto mais os judeus se assimilam,<br />

tanto mais eles se assimilam a si mesmos, e o momento da maior<br />

assimilação <strong>dos</strong> judeus coincidirá com o momento de sua maior<br />

influência enquanto elemento psíquico (...) europeus e judeus<br />

encontram-se em uma profunda ligação cultural. Eles são<br />

indivisíveis.” 52<br />

Árdua tarefa a da memória <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>, configura<strong>dos</strong> em<br />

discriminação, repressão, terror, intolerância, tortura ou violência. Na<br />

perspectiva historiográfica buscar ainda a transformação, no sentido de<br />

compreender a memória que o indivíduo conserva de seus <strong>ressentimentos</strong>, a<br />

memória que conserva <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> daquele de quem foi vítima e<br />

ainda a memória conservada pelo grupo de seus p róprios <strong>ressentimentos</strong>. A<br />

memória híbrida de civilização e barbárie:<br />

“O mundo <strong>dos</strong> campos da morte e a sociedade que engendra<br />

revelam o lado progressivamente mais obscuro da civilização<br />

judaico-cristã. Civilização significa escravidão, guerras,<br />

exploração, e campos da morte. Também significa higiene<br />

médica, elevadas idéias religiosas, belas artes e requintada<br />

52 Georg Simmel (1858-1918)


43<br />

música. É um erro imaginar que civilização e crueldade<br />

selvagem sejam antíteses. Em nosso tempo as crueldades, como<br />

muitos outros aspectos do nosso mu ndo, passaram a ser<br />

administradas de maneira muito mais afetiva que em qualquer<br />

época anterior. Não deixaram e não deixarão de existir. Tanto a<br />

criação como a destruição são aspectos inseparáveis do que<br />

chamamos civilização”. 53<br />

A passagem de Rubenstein atenta <strong>para</strong> um ponto fundamental<br />

em qualquer pesquisa que pretenda elaborar algo realmente significativo<br />

sobre o holocausto e as perseguições anti -semitas: não se deve partir de<br />

pressupostos de isolamento, ou seja, a observação da imigração semita <strong>para</strong><br />

o Brasil deve ser encarada como parte integrante de um movimento de todas<br />

as sociedades, e mais do que isso, igualmente integrante à mentalidade que<br />

conduziram nossos semelhantes às práticas de intol erância. Ora, o<br />

holocausto nasceu e foi executado em nossa sociedade moderna e racional,<br />

no auge do desenvolvimento cultural humano, por essas razões é um<br />

problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura. Como aponta<br />

Rubenstein a barbárie aconteceu juntamente à música e belas artes. 54<br />

A presença <strong>dos</strong> Maier e de outros imigrantes no norte do Paraná<br />

configuram aos historiadores e pesquisadores das Ciências Humanas uma<br />

vasta área de investigações, seja a partir da constituição <strong>dos</strong> grupos étnicos<br />

e suas imigrações ou <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> desenvolvi<strong>dos</strong>, recalca<strong>dos</strong> e ain da<br />

assim, manifesta<strong>dos</strong>. A estruturação <strong>dos</strong> imigrantes torna possível a<br />

possibilidade de apoio em uma concepção multidimensional da realidade<br />

social, onde cada nível ou dimensão traça sua própria história, ao mesmo<br />

tempo em que se articula com outras, a fim de restabelecer o movimento de<br />

uma sociedade. A própria história <strong>judaica</strong>, enquanto grupo étnico dentro <strong>dos</strong><br />

acontecimentos da segunda grande guerra tornou -se extremamente<br />

fragmentada quando relacionada às questões que envolvem imigração, exílio<br />

53 Richard Rubenstein. The Cunning of History. New York: Harper, 1978. in: BAUMAN, Zygmunt.<br />

Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.<br />

54 Assim como nos salientou Benjamin nas famosas teses sobre o conceito de história: “não há um<br />

monumento da cultura que não seja também um monumento da barbárie”.


44<br />

ou mesmo fuga do território alemão. As presenças de famílias com sangue<br />

judaico na cidade de Rolândia revelam aos historiadores um amplo campo<br />

de pesquisa.<br />

Parece-nos que o movimento aqui exposto relaciona -se mais<br />

fundamentalmente com a cultura, entendida aqui de fo rma ampla, ou seja,<br />

tudo que o homem construiu <strong>para</strong> tornar humanizado o seu espaço. To<strong>dos</strong> os<br />

elementos do humano estão inscritos no campo da cultura. Desta forma a<br />

postura não visa uma discursividade sobre espaços específicos que<br />

pretendam dar visibilidade <strong>para</strong> determina<strong>dos</strong> grupos sociais e legitimar o<br />

seu poder. Ao contrário, as manifestações das sensibilidades e a<br />

constituição de imigrantes como grupo étnico em “terras longínquas” são<br />

fenômenos que buscamos compreender no movimento histórico através da<br />

investigação de vontades individuais dentro da estrutura geral da sociedade<br />

humana.<br />

III.I – OS RESSENTIMENTOS E OS IMIGRANTES<br />

ALEMÃES EM ROLÂNDIA-PR<br />

A obra de Mathilde Maier, Os jardins de minha vida 55 , pode ser<br />

compreendida como um retrospecto de sua p rópria história enquanto<br />

personagem de um cenário habitado por outras centenas de histórias que a<br />

precederam. O abandono da Europa em 1938 e a exposição de seu último<br />

jardim em solo alemão refletem não mais que um aspecto de tragédia, a<br />

guerra que se anunciava novamente frente os olhos de uma geração que já<br />

havia passado pelos horrores da primeira grande guerra (1914 -1918):<br />

“ninguém ainda pressentia o terror da Primeira Guerra Mundial que afetou<br />

55 O livro de Mathilde Maier, publicado em 1981, foi editado pela primeira vez pela Editora Massao Ohno, de<br />

São Paulo-SP. A versão é de Roswitha Kempf. Kempf foi também uma refugiada alemã que veio ao Brasil e<br />

mais tarde casou-se com Massao Ohno. Os Maier já os conheciam <strong>dos</strong> tempos vivi<strong>dos</strong> em Rolândia.


45<br />

tão gravemente a nossa geração”. 56 Desta forma, <strong>para</strong> uma geração mais<br />

madura, o anúncio da segunda grande guerra representava não mais espanto,<br />

mas temor e medo, frente ao a experiência de que já haviam comungado<br />

antes. Aos jovens, segundo Mathilde Maier, causava menor angústia a idéia<br />

de transferência <strong>para</strong> terras est rangeiras, embora o não reconhecimento, o<br />

estranhamento em relação ao tempo que viviam fosse o mesmo <strong>para</strong> to<strong>dos</strong>.<br />

“Quando depois da emigração, que se deu em 1938 , fomos pela<br />

primeira vez visitar a Alemanha, então foram os amigos que<br />

sobreviveram ao terror do nazismo e da guerra; a casa de Goethe<br />

o jardim das palmeiras, que nos facultaram de novo este<br />

sentimento de solidariedade com a velha pátria” 57<br />

Não é difícil identificar entre os imigrantes alemães -judeus<br />

que vieram <strong>para</strong> Rolândia uma espécie de a bandono ao modus operandi<br />

germânico. Embora não pudessem eliminar traços característicos de sua<br />

formação, muitos buscaram evitar a permanência de laços com a antiga<br />

pátria. Alguns se recusavam a falar o idioma alemão, outros jamais<br />

retornaram à Alemanha e com o tempo seus descendentes foram criando,<br />

segundo relatos e observações, um desapego ainda maior, e desta vez não<br />

somente com a cultura germânica, mas também com o próprio judaísmo. 58<br />

Ao que parece, o casal Maier não adotou postura tão radical.<br />

Retornaram algumas vezes à antiga pátria, registraram seu estranhamento e<br />

não deixaram de viver no Brasil até o fim de suas vidas. Isto não caracteriza<br />

de certa forma, uma menor formação de <strong>ressentimentos</strong> em relação aos<br />

episódios que os fizeram abandonar a Alemanh a, mas talvez uma relação<br />

diferenciada <strong>para</strong> com suas próprias experiências:<br />

“Em 1938, o destino nos levaria às regiões tropicais com seu<br />

pujante crescimento. Talvez a lembrança do despertar tímido da<br />

56 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />

(primeira edição), 1981. Cit. p. 22.<br />

57 Cit. P. 23.<br />

58 Para compreender esta questão está inserido em anexo, ao final da dissertação, uma entrevista com Klaus<br />

Kaphan, filho de imigrantes e antigos sócios do casal Maier que chegaram a Rolândia ainda no início da<br />

década de 1930.


46<br />

natureza depois do inverno, as campânulas de neve e as<br />

primeiras violetas na grama, sejam o que resta da saudade do<br />

<strong>para</strong>íso perdido da infância, do qual não podemos ser<br />

expulsos”. 59<br />

A narrativa de Mathilde Maier, ao contrário de Max Hermann<br />

Maier, possui uma grande metáfora recalcada em seus jardins, que se<br />

referem não somente às suas experiências de infância, juventude e<br />

maturidade, mas também uma forma bastante específica de expor seu<br />

lamento, de exemplificar de que maneira poderia ela ou não manter seus<br />

laços com aquilo que ninguém poderia lhe arrancar. Neste caso, a vivência<br />

da infância parece ser aquela que melhor traduz o que não podem lhe tirar,<br />

o <strong>para</strong>íso perdido como a autora mesma coloca. E os momentos liga<strong>dos</strong> aos<br />

seus jardins são vastos em toda a narrativa:<br />

“Feliz a criança que pode brincar num jar dim. O meu jardim<br />

estendia-se atrás de uma bela antiga casa renana que, na frente,<br />

apresentava uma portentosa escadaria e atrás, <strong>para</strong> o lado do<br />

jardim, um largo terraço de pedra onde se viam grandes vasos<br />

com oleandros vermelhos, cor de rosa e brancos. No verão, estes<br />

arbustos sempre floriam abundantemente, porque eram bem<br />

trata<strong>dos</strong>, rega<strong>dos</strong> e aduba<strong>dos</strong> e nisto o co mprido cachimbo de<br />

meu pai desempenhava uma função significativa: as cinzas do<br />

tabaco eram colocadas nos vasos. Na minha memória o estranho<br />

perfume sulino das flores de oleandro ficou <strong>para</strong> sempre<br />

associado a um leve cheiro de cachimbo” 60<br />

Ou ainda:<br />

“Como era pacífica a Alemanha, na perspectiva de uma criança<br />

de antes da grande guerra mundial! Agora, aqui no Brasil,<br />

quando a noite estou deitada na n ossa casa de madeira, muitas<br />

vezes deprimida pelas notícias <strong>dos</strong> jornais, eu passo em<br />

pensamentos pelos aposentos e jardins de minha infância. E<br />

então escuto o estorninho cantar do alto da casa, onde está<br />

sentado na entrada de seu ninho, as plumas pretas e lustrosas, e<br />

à sua frente a pereira que esbanja o misterioso e doce perfume<br />

de suas flores. Este estorninho canta em louvor do Criador do<br />

59 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />

(primeira edição), 1981. Cit. p. 10.<br />

60 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />

(primeira edição), 1981. Cit. p. 9.


47<br />

universo e em seu canto eu reencontro a fé na perfeição da<br />

criação”. 61<br />

Aliado à perspectiva de seu passado, Mathild e expressa um<br />

sentimento depressivo, uma nostalgia do lar e da infância, <strong>dos</strong> tempos de<br />

paz. A redenção parece querer surgir através de seu louvor à natureza. Os<br />

jardins representam a forma mais sutil de permanência em um ambiente<br />

ausente da violência e hostilidade daqueles dias.<br />

Depois de imigra<strong>dos</strong>, os Maier se estabeleceram em uma<br />

fazenda, num cenário próximo aquele que a autora imaginava enquanto<br />

liberto, juntamente a isto outro fator determinante <strong>para</strong> a estabilização,<br />

sobretudo emocional, parece ter sido o apego a literatura, que na passagem<br />

de ambos, Max Hermann Maier e Mathilde Maier, ocupou um lugar especial<br />

após a fuga <strong>para</strong> o Brasil:<br />

“Ser católico ou judeu, não fazia diferença na estima humana<br />

recíproca e nos conceitos de ordem divina no mundo. A c ruzinha<br />

de cinzas na testa de Hede, eu a olhava com o acanhado respeito<br />

por uma tradição que <strong>para</strong> mim era estranha. Desde cedo, eu me<br />

tinha desligado das religiões tradicionais em favor de um<br />

conceito religioso mais ou menos no sentido <strong>dos</strong> Hypsistários,<br />

uma seita do século três, cuja doutrina consiste numa mistura do<br />

judaísmo e paganismo. O nome é derivado do grego e significa a<br />

veneração de um Deus só. No Brasil, depois de velhos, onde <strong>para</strong><br />

meu marido e <strong>para</strong> mim, Goethe se tornara uma figura<br />

orientadora, e ncontramos numa carta dele escrita em 1831 a seu<br />

amigo Boisserée, o seguinte trecho que, <strong>para</strong> mim, foi<br />

concludente: “Nenhum ho mem se livrará do sentimento<br />

religioso...entre todas as confissões ainda não achei uma, à qual<br />

eu pudesse me confessar plenamente. Agora nos meus velhos<br />

dias chego a saber de uma seita <strong>dos</strong> Hypsistários que, situa<strong>dos</strong><br />

entre pagãos, judeus e cristãos, declaram estimar o melhor, o<br />

mais perfeito que viesse a seu saber, admirá -lo e venerá-lo e,<br />

desde que esteja em íntima relação com uma di vindade, também<br />

adorá-lo. De uma época obscura surgiu de repente uma luz<br />

alegre, pois eu senti que durante toda minha vida tentara<br />

qualificar-me como Hypsistário, e isso não foi coisa fácil”. 62<br />

61 Idem. Cit. P. 15.<br />

62 Idem. Cit. P. 19.


48<br />

Nesta passagem, além <strong>dos</strong> valores religiosos a que a autora se<br />

coloca, há claramente o valor dedicado ao escritor alemão Johann Wolfgang<br />

Von Goethe (1749-1832), a quem o casal declara em alguns momentos uma<br />

interferência direta em sua estabilidade psicológica, a uma nova concepção<br />

de mundo, que menos antes, quando já o conheciam, não haviam ainda<br />

conseguido exercer tal olhar sobre sua obra. Sobre isso escreveu Max<br />

Hermann Maier:<br />

“Seguir incondicionalmente um homem, e endeusá -lo até, foi<br />

possível unicamente porque os seus sequazes, numa obediência<br />

cega, não tinham mais fé em Deus e, por isso mesmo, não<br />

sentiam mais remorsos em tripudiar sobre a dignidade humana de<br />

seus semelhantes. No estrangeiro lemos co m novos olhos o velho<br />

Kant, <strong>para</strong> o qual a crença em Deus criador era a razão prática<br />

das necessidades inatas ao ser humano. Em nenhum lugar,<br />

porém, a soberania e as exigências de Deus vêm tão claramente<br />

delineadas quanto na Bíblia, na qual aliás se mencionam<br />

inúmeras, arrogantes e fracassadas tentativas humanas de<br />

usurpar-se o lugar de Deus. A Bíblia torna -se sempre o livro<br />

mais importante do emigrante. Sempre de novo lida, comentada e<br />

explicada ela pode ser encontrada na casa de cada emigrante da<br />

Alemanha, muitas vezes em várias edições e exemplares. No<br />

estrangeiro, pudemos chegar também a uma nova noção do maior<br />

poeta alemão, Goethe. Essa noção já nos havia sido anunciada<br />

antes, por Albert Schweitzer e Karl Jaspers, mas ela se tornou<br />

viva e real somente pela própria experiência. Gotthold Ephraim<br />

Lessing expressou de maneira ímpar o que significa experiência<br />

própria: “A riqueza da experiência obtida através de leitura e<br />

livros se chama erudição. Experiência própria é sabedoria. O<br />

capítulo menor da sabedoria vale por milhões de erudição”. Em<br />

1947, após receber o prêmio Goethe da cidade de Frankfurt,<br />

disse Karl Jaspers: “É do espírito de Goethe que se participe da<br />

sua vida, lendo -o cada ano, a ele, suas obras, cartas e discursos.<br />

Ele se torna nosso companheiro e auxiliar constante em todas as<br />

fases da nossa vida. Viver com Goethe nos torna alemães, nos<br />

transforma em pessoas humanas”. Por desejo de minha esposa,<br />

por ocasião da emigração, trouxemos a edição de 8 volumes das<br />

cartas de Goethe, apesar das limitações de bagagem. Tornaram -<br />

se um tesouro em nossa casa, ao lado de outras obras, clássicas e<br />

românticas. A leitura des sas cartas tornou-se justamente uma<br />

fonte de afirmativas <strong>para</strong> se viver em tempos difíceis. Embora<br />

Goethe mesmo tivesse tido suas horas e temporadas de<br />

sofrimento e preocupações, quando “adormecia entre lágrimas”,<br />

tendo até chegado a dizer a seu amigo Ecker mann que em seus<br />

75 anos não tivera “nem um mês de alegria”, suas obras e cartas<br />

são cheias de amor e entusiasmo pelo homem e seu futuro:<br />

“Como quer que ela seja, a vida é um bem, ela é boa”. Sentenças<br />

desse teor, axiomas ou regras de vida, são freqüentes em seus<br />

epigramas: “O que cada dia quer de ti, deves perguntar, o que


49<br />

ele deseja, vai te responder. Alegra -te em tuas obras, e dá valor<br />

às alheias. Que a menor das coisas te dê satisfação. Aproveita<br />

bem a hora presente. Acima de tudo, não odeies a pessoa<br />

alguma. E deixa o futuro nas mãos de Deus”. 63<br />

E acrescenta:<br />

“Ele foi, isso sim, um ser humano de profunda sensibilidade,<br />

vivendo entre semelhantes, de muita bondade e paciência. Para<br />

poder conservar suas energias <strong>para</strong> o trabalho, construiu como<br />

que um muro ao seu redor e, como disse seu venerador Karl<br />

Jaspers, Goethe vislumbrou as mais terríveis coisas, mas não<br />

permitiu que elas o atingissem. Por isso mesmo é que <strong>para</strong> nós,<br />

vítimas de fatos horríveis e desumanos os quais não soubemos<br />

evitar em nossas vida s, <strong>para</strong> nós Goethe se tornou mais que um<br />

guia ou ajudante, tornou -se mestre universal que, pela sua<br />

personalidade e suas obras, nos adverte a que nos empenhemos<br />

to<strong>dos</strong>, e em tudo, <strong>para</strong> sermos pessoas dignas, que honrem a<br />

humanidade”. 64<br />

Desta forma, a importância do pensamento goethiano se fez<br />

bastante presente entre os Maier. A necessidade de uma orientação naquele<br />

momento representava não apenas novas condições de sobrevivência, mas<br />

acima de tudo uma possibilidade de manter-se vivo. A experiência da<br />

hostilidade e violência que levou muitos alemães -judeus a refugiarem-se em<br />

localidades distintas fez com que muitos não encontrassem essa espécie de<br />

porto seguro como os Maier e consequentemente buscaram soluções radicais<br />

<strong>para</strong> aquilo que enfrentavam. 65<br />

Para Mathilde Maier, o fato de estarem vivendo em uma região<br />

de mata tropical, trazia talvez além da perspectiva literária uma relação<br />

construída com suas experiências passadas, com a construção de vida desde<br />

a infância:<br />

63 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 55.<br />

64 Idem. Cit. P. 56.<br />

65 Sobre este assunto ver o item IV. III. Para muitos refugia<strong>dos</strong> a solução mencionada foi o suicídio.


50<br />

“Aqui, no nosso jardim brasileiro, temos u ma arcada com trinta<br />

videiras de várias espécies. Quando na primavera brasileira, em<br />

setembro, passo pela arcada e sinto doce cheiro da flor da uva,<br />

então vejo o jardim de Trier, vejo o rio Mosela entre os morros<br />

cobertos de vinhe<strong>dos</strong>. Um bem-estar independ ente do tempo se<br />

apodera de mim, sinto a natureza eterna, na qual nos é permitido<br />

ficar por um tempo determinado . Este sentimento de fazer parte<br />

da natureza eu já tive naquele tempo do terraço, onde os ramos<br />

das parreiras se enroscavam nas colunas e onde n o fim do outono<br />

colhíamos as uvas Moscatel avermelhadas. Estas uvas têm bagos<br />

firmes, sua casca é grossa e são um tipo bem original de uva,<br />

perfumosas e de bonito aspecto, porém não muito doces”. 66<br />

Assim, a construção <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong>, com efeitos não<br />

menores, diga-se aqui, se faz apenas de maneira distinta. Não significa<br />

imaginar que <strong>para</strong> os Maier os acontecimentos liga<strong>dos</strong> à investida nazista<br />

tenham repercutido com pouca intensidade. A formação de tal subjetividade<br />

implica em um auxílio buscado por ambos em formas de superação de sua<br />

própria tragédia. Assim como colocou Max Hermann Maier ao mencionar<br />

Karl Jaspers em seu discurso sobre Goethe, o poeta teria construído ao seu<br />

redor um muro <strong>para</strong> que pudesse continuar a trabalhar e manter suas<br />

perspectivas em relação à condição humana, ainda que tenha vislumbrado<br />

coisas terríveis ele não permitiu que elas o atingissem. Os Maier buscaram<br />

também não se permitir atingir, e como Goethe ou em Goethe, buscaram tal<br />

inspiração.<br />

Em Rolândia, na comunidade formada p or diversas famílias de<br />

refugia<strong>dos</strong>, é presente a figura de Max Hermann Maier como alguém que<br />

reivindicou entre to<strong>dos</strong> a continuação de práticas e valores antes<br />

66 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />

(primeira edição), 1981. Cit. p. 18.


51<br />

experimenta<strong>dos</strong>. Por ocasião de seu falecimento, em 1976, durante o elogio<br />

fúnebre, disse o pastor da igreja luterana Hermann Muelhaeuser:<br />

“Não preciso falar da valiosa e singular importância que teve o<br />

Dr. Maier <strong>para</strong> a comunidade rolandense. Não seria esta a minha<br />

incumbência. Menos ainda seria tarefa minha avaliar uma vida<br />

destas. Quem seria capaz disso? Muito ousado seria pretender -se<br />

fazer o retrospecto ou descrição de uma vida assim, moldada e<br />

esculpida ao mesmo tempo por profecias bíblicas, pela eterna<br />

filosofia, pela mística <strong>judaica</strong> e pela teologia <strong>dos</strong> rabinos, pela<br />

ética religiosa e prática, pela poesia de Goethe, pela<br />

participação no desenvolvimento e sobrevivência de Israel, e<br />

pelos mais atuais e pessoais esforços pela obtenção da paz <strong>para</strong><br />

o mundo. Acima de tudo, a formação e a sabedoria do nosso<br />

querido Dr. Maier nunca constituíram puro dil etantismo, um<br />

destaque pessoal em si e <strong>para</strong> si – mas seu espírito viveu neste<br />

mundo e foi preocupado com a pessoa humana a quem ele<br />

devotava um vivo e amoroso interesse. Dificilmente haveria<br />

entre nós alguém que não tivesse de alguma maneira sido tocado,<br />

influído ou beneficiado pela forte e marcante personalidade do<br />

Dr. Maier”. 67<br />

Embora se trate aqui de um discurso fúnebre que naturalmente<br />

se inclina no intuito de expor qualitativamente aquele que morre, o pastor<br />

coloca Max Hermann Maier como uma figura de determinada importância na<br />

formação da cidade de Rolândia. Por outro lado, o trabalho de campo<br />

realizado com outros imigrantes apontou <strong>para</strong> uma diferenciação entre<br />

aqueles que viveram na cidade e aqueles que foram a área rural aos<br />

arredores da cidade, sendo assim, as famílias que se estabeleceram fora da<br />

zona urbana seriam aquelas com maior potencial financeiro, que<br />

abandonaram a Alemanha e que lá possuíam poder econômico antes da<br />

ascensão nazista. Desta forma, a distinção entre estes imigrantes existiu,<br />

sobretudo no contato entre os mesmos. Não entendemos aqui uma reflexão<br />

67 Idem. Cit. P. 72.


52<br />

com uma determinante econômica, onde a influência <strong>dos</strong> Maier e sua<br />

sobrevivência no Brasil tenha se dado apenas por suas condições materiais,<br />

mesmo porque aqueles que abandonaram a Alemanh a, mesmo possuindo tais<br />

condições, foram desvaloriza<strong>dos</strong> pelos nazistas e acabaram por perder muito<br />

do que possuíam. Sobre estas diferenças escreveu Mathilde Maier:<br />

“Ganhar o suficiente, ter comida, um telhado sobre a cabeça, ter<br />

alguém <strong>para</strong> cuidar em caso de doença ou quando nascia uma<br />

criança, isto criava uma atmosfera de confiança recíproca<br />

agradável <strong>para</strong> to<strong>dos</strong>. Este comportamento básico sempre<br />

considerei como condicionado por religião. Muitas vezes<br />

ouvíamos dizer: “Tem gente rica e gente pobre, se somos bons<br />

uns com os outros é possível viver em harmonia””. 68<br />

Por outro lado, naquilo que consistia em experiência prática,<br />

não haviam os refugia<strong>dos</strong> passado por situações tão distintas assim. Cabe<br />

aqui, ainda sobre a formação destes alemães, acrescentar que durante a<br />

primeira guerra mundial (1914-1918), tiveram, alguns deles uma<br />

participação direta como qualquer outro alemão. Sobre isso escreveu<br />

Mathilde:<br />

“Os eventos da guerra se abatiam como um pesadelo sobre nós.<br />

Vinham notícias de colegas de escola que to mbaram, ou uma<br />

amiga noiva perdia o bem-amado. O entusiasmo pela guerra,<br />

grande a princípio, era fomentado exageradamente nas escolas e<br />

também na nossa. Queriam que nós, alunas do segundo ano<br />

colegial, cantássemos de manhã no início das aulas: “Deus<br />

castigue a Inglaterra”, (nós não o fizemos, devo dizer <strong>para</strong> a<br />

honra de minha classe). – Este entusiasmo cedeu à um luto<br />

abafado pelos terríveis acontecimentos na frente de guerra. Só<br />

mais tarde, na convivência co m meu marido que sempre foi um<br />

homem da política, percebi como éramos pouco escola<strong>dos</strong> nessa<br />

matéria. As questões de Estado, de comunidade humana e de<br />

convivência <strong>dos</strong> povos deviam ocupar um grande espaço na<br />

educação de todo jovem. Nós, estudantes femininas, fomos<br />

convocadas em 1917, no “inverno das beterra bas”, pela<br />

Universidade de Muenchen <strong>para</strong> o “Serviço de Ajuda<br />

Espontânea”. Felizes por finalmente poder fazer alguma coisa<br />

pela coletividade, nós nos apresentamos ao reitor”. 69<br />

68 Idem. Cit. P. 61.<br />

69 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />

(primeira edição), 1981. Cit. p. 26.


53<br />

Também Max Hermann Maier havia participado da primeira<br />

grande guerra enquanto recruta do exército alemão. Por conta de círculos<br />

filosóficos realiza<strong>dos</strong> em Frankfurt no pós -guerra (1919), onde se<br />

estudavam as Teorias do Direito de Fries e mais tarde O Estado de Platão, é<br />

que Max Hermann Maier e Mathilde Maier se conheceram. Estas reu niões<br />

foram organizadas por jovens que eram to<strong>dos</strong> marca<strong>dos</strong> pela guerra 70 , de<br />

forma que eram igualmente envolvi<strong>dos</strong> com as questões políticas. Max<br />

Hermann Maier era quem orientava estas reuniões.<br />

Desta forma, as obras escolhidas enquanto fontes deste trabalh o<br />

representam mentalidades enraizadas na experiência da guerra. Tinham já o<br />

conhecimento da primeira grande guerra em suas memórias. Fato este que<br />

não deve simplificar ou diminuir o terror vivido frente ao regime nazista,<br />

mas que de qualquer forma não os coloca como inexperientes em um cenário<br />

de barbárie promovido por uma Europa às portas de mais um conflito<br />

armado.<br />

Concluímos, portanto que, a exteriorização, a prática cotidiana,<br />

traz em sua simplicidade a capacidade de revelar os sentimentos ocultos,<br />

recalca<strong>dos</strong>, que tem o jardim com a saída de Goethe da cidade de Frankfurt?<br />

Aparentemente nada, assim como a construção <strong>dos</strong> jardins de Mathilde não<br />

teriam, não fosse a história a que se ligam com profundidade e a elas<br />

remetem em seus dias. Ainda que a autora revele o contexto em que está<br />

inserida, os <strong>ressentimentos</strong> não permitiram uma exposição explícita da<br />

argumentação:<br />

“As fantasias do nacional socialismo que prometia tudo a to<strong>dos</strong>,<br />

era como um veneno mortal que infestava toda a Alemanha e que<br />

mais tarde exigiu sacrifícios indizíveis de todo o mundo<br />

civilizado. Sobre isto não quero escrever”. 71<br />

70 Idem. Cit. P. 30.<br />

71 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />

(primeira edição), 1981. Cit. p. 39.


54<br />

Certamente é mais atraente ao escritor narrar os feitos de suas<br />

histórias, sobretudo quando se expõe a própria história, num regime de<br />

escrita autobiográfica, de maneira a concretizar sua subjetividade, suas<br />

emoções, através de um viés, de uma metáfora que sintetize pacificamente<br />

uma trilha obscura, de obstáculos diversos que possuem mais experiências<br />

trágicas do que harmoniosas: “A se<strong>para</strong>ção <strong>dos</strong> velhos amigos sempre foi<br />

ferida que não se fecha na alma”. 72 No prefácio da obra de Max Hermann<br />

Maier escreveu Elmar Joenck:<br />

“Este é um relato diferente. Não se procurem nele baratos<br />

suspenses e empolgações. Para isso existem outros livros. Este é<br />

um relato que deverá agrad ar a to<strong>dos</strong> aqueles que souberem<br />

reconhecer como “mais perene que o bronze” o valor e o<br />

exemplo de uma vida enraizada e vivida conforme as mais puras<br />

tradições da cultura germânica, e iluminada pelo humanismo<br />

europeu e judaico. Além disso, o relato nos atin ge de frente,<br />

pois essa vida veio encerrar entre nós sua peregrinação, a<br />

conselho de mestres como Goethe e Albert Schweitzer, faróis<br />

como poucos, ainda capazes de nos salvar do naufrágio no meio<br />

das tempestades em que to<strong>dos</strong> navegamos.” 73<br />

O comentador refere-se a um texto que os atinge de frente, não<br />

o leitor que mais tarde conhecerá o texto de Max Hermann Maier, mas eles<br />

próprios, também refugia<strong>dos</strong> alemães que vieram <strong>para</strong> Rolândia -PR, onde a<br />

experiência narrada do autor confunde -se com a do tradutor, que finalizou a<br />

obra começada pelo imigrante. De alguma forma, a manutenção de valores<br />

construí<strong>dos</strong> na Europa tinha na figura de Max Hermann Maier um papel<br />

importante na comunidade formada em terras brasileiras: “Árvores hoje<br />

pujantes devem seu viço a seivas antigas. E o respeito às suas raízes é a<br />

melhor garantia ao verdor de seus ramos ansiosos de flores e frutos.” 74<br />

72 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im Urwald<br />

Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975. Rolândia:<br />

Gráfica Velox-PR, 1976.<br />

73 Idem. Cit. P. 2.<br />

74 Esta passagem foi escrita por Elmar Joenck ao final do prefácio do livro de Max Hermann Maier. Encontrase<br />

na página 6. Joenck fala neste prefácio da maneira como concluíram a tradução do livro, feita em parceria<br />

com Mathilde Maier.


55<br />

Por outro lado, o autor apresenta em seu texto uma participação<br />

efetiva no desenvolvimento das questões políticas, como aqu elas que<br />

envolviam diretamente os refugia<strong>dos</strong> no Brasil:<br />

“Para nós, bani<strong>dos</strong> da Alemanha, foi uma grande ajuda podermos<br />

ficar sossega<strong>dos</strong> co mo relação aos títulos das terras da<br />

Companhia, e sermos também acolhi<strong>dos</strong> de maneira agradável<br />

pela direção, inclusive com conselhos acert a<strong>dos</strong> e importantes.<br />

Imigrantes de muitas partes do Brasil e da Europa foram<br />

chegando antes e depois de nós às terras da Co mpanhia. Os<br />

gerentes davam ajuda a to<strong>dos</strong> eles, a começar pelo diretor geral,<br />

o escocês Arthur Thomas, auxiliado pelo brasileiro Willie Davis,<br />

também de origem inglesa. Ajudaram também a aconselhar os<br />

colonos o Boris Kleswerk, um fugitivo da Rússia comunista, e<br />

que falava bem o alemão, sem esquecer o velho oficial da força<br />

aérea inglesa, Gordon Fox Rule. A mentalidade desses homens<br />

se caracteriza por um artigo que Rule escreveu mais tarde, no<br />

qual se lê: “Não podia imaginar, depois da primeira guerra<br />

mundial, que alguns anos mais tarde eu receberia esses alemães,<br />

solda<strong>dos</strong> na primeira guerra e que haviam cumprido seu dever<br />

com a pátria, eu os receberia como expulsos da sua pátria, <strong>para</strong><br />

ajudá-los e instruí-los. Nós os ajudávamos sem aceitar nem<br />

esperar agradecimentos. Esses imigrantes valentes, <strong>para</strong> melhor<br />

dizer, fugitivos, co mpraram as terras da Companhia e criaram<br />

Rolândia. Foram exemplos v ivos das virtudes <strong>dos</strong> heróis com<br />

cujo nome batizaram a cidade: Rolândia, terra de Roland.” 75<br />

Portanto, havia ainda a relação com estrangeiros de partes<br />

diversas, os ingleses, que fundaram a Companhia de Terras e expuseram na<br />

Europa uma forma de negociação, sendo assim, portanto, a maneira como os<br />

alemães tiveram acesso a essas informações e assim puderam comprar os<br />

vale-terras e refugiar-se no Brasil, visto que os nazistas não permitiam que<br />

alemães-judeus retirassem o dinheiro que tinham de dentro da Aleman ha.<br />

Max Hermann Maier comenta o fato de ter deixado na Alemanha parte de<br />

seus livros:<br />

“Para pôr um tijolo definitivo sobre o passado, resolvi não levar<br />

nenhum livro jurídico comigo <strong>para</strong> o Brasil. Com o correr <strong>dos</strong><br />

anos em Rolândia, comecei a lamentar essa decisão. Precisei<br />

comprar de novo tais livros porque algumas tarefas vinham -me<br />

75 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im Urwald<br />

Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975. Rolândia:<br />

Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 18, capítulo 7.


56<br />

ao encontro. No meio do mato, como se diz, percebi que um<br />

jurista, que aprendeu a amar sua profissão, recebe uma marca<br />

indelével, um character indelebilis.” 76 .<br />

Havia uma comunicação entre os imigrantes, e desta forma<br />

puderam organizar-se no sentido de resolver os problemas imediatos a que<br />

foram expostos, a sobrevivência econômica era sem dúvida uma questão que<br />

não podia ser deixada <strong>para</strong> outro momento, nesse sentido o contato com os<br />

ingleses foi fundamental: Os ingleses nos ajudaram, e a muitos e muitos<br />

fugitivos do nazismo, a começar uma vida nova, em liberdade, no Brasil 77 .<br />

Alheio a isso, o advogado Max Hermann Maier desenvolveu atividades<br />

políticas e não deixou de manter rel ações constantes com aqueles que<br />

permaneceram na Alemanha, não menos intensa foi a participação nas<br />

questões ligadas aqueles que estavam no Brasil. Havia uma espécie de<br />

plano, onde outros alemães poderiam também ser trazi<strong>dos</strong> <strong>para</strong> o Brasil e<br />

aqui fixarem residência. 78<br />

Portanto, a reinvenção de práticas cotidianas após a imigração<br />

é o fator que permite a investigação das fontes, de forma a nos possibilitar<br />

assim uma aproximação com o objeto e a observação <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong><br />

desenvolvi<strong>dos</strong>.<br />

76 Idem. Cit p. 2. Capítulo 1.<br />

77 Idem. Cit. P. 12. Capítulo 1.<br />

78 Sobre esta questão ver entrevista com Klaus Kaphan. Kaphan era do filho de Heinrich Kaphan, antigo sócio<br />

de Max Hermann Maier na fazenda Jaú. Sobre ele escreveu: “Numa viagem profissional a Berlim, no fim de<br />

1935, falei com amigos mais i<strong>dos</strong>os sobre nossos planos de emigração, na esperança de ganhá-los <strong>para</strong> o<br />

Brasil. Mas já tinham outros planos em vista. Eles nos puseram em contato com o agricultor Heinrich<br />

Kaphan, de Emilienhof, perto do Dramburg na Pomerânia. Este já estava resolvido a emigrar <strong>para</strong> o Brasil,<br />

com sua mulher Kaete e com três meninos. Após um contato telefônico, o resoluto prussiano apareceu em<br />

Berlim, já no dia seguinte, <strong>para</strong> conhecer-nos”. Klaus Kaphan fala em sua entrevista sobre a formação de uma<br />

espécie de alojamento que abrigaria estudantes alemães refugia<strong>dos</strong>, mas a idéia não chegou a ser concretizada.


57<br />

IV – O OUTRO NA HISTÓRIA E A “FIGUEIRA<br />

BRAVA”<br />

IV.I – O ESTRANHAMENTO, O JUDEU E A HISTÓRIA<br />

Investigar as origens de atração e repulsa na civilização não é<br />

tarefa das mais fáceis. Compreender os diferentes grupos humanos,<br />

se<strong>para</strong><strong>dos</strong> em espaço, tempo ou cultura somente, seria limitar a reflexão.<br />

Quem é o “outro”? Na História, quem é o “outro”? Sabemos que o exército<br />

nazista era um e que o soviético era outro. Teríamos ai um perfeito exemplo<br />

de alteridade: alemães e russos. Cada qual identificou no adversário o<br />

“outro”, distintos geograficamente ou politicamente. Desta forma, o<br />

estrangeiro configura-se claramente no embate bélico, na oposição política<br />

que sacudiu a Europa e fez evidenciar a heterogeneidade do velho<br />

continente. Seguindo este raciocínio podemos elabora r um mapeamento<br />

histórico e concluir que, com conflitos explícitos ou não, o “outro” é aquele<br />

que se estabelece fora do grupo de origem, que não compartilha <strong>dos</strong> mesmos<br />

valores de pertença.<br />

Esta análise parece bastante superficial quando um olhar<br />

profundo é lançado sobre o problema. O estrangeiro, termo há tempos<br />

ligado a uma persona non grata 79 , estabelece em uma sociedade relações de<br />

valores que ocupam posições privilegiadas em suas estruturas morais, no<br />

desenvolvimento das práticas coletivas, que ori entam a sustentação do<br />

grupo enquanto tal. Ginzburg diz aos seus leitores: “ Sou um judeu nascido<br />

79 Persona non grata é um termo do latim, cujo significado literal é pessoa não bem-vinda.


58<br />

num país católico; nunca tive educação religiosa; minha identidade <strong>judaica</strong><br />

é em grande parte fruto da perseguição” 80 . E conclui:<br />

“Compreendi melhor algo que já pensava saber, isto é, que a<br />

familiaridade, ligada em última análise à pertença cultural, não<br />

pode ser um critério de relevância. [...] o mundo é nossa casa<br />

não quer dizer que tudo seja igual; quer dizer que to<strong>dos</strong> nos<br />

sentimos estrangeiros em relação a alguma coisa e a alguém”. 81<br />

Assim, aquilo que por vezes chamam o estranhamento pode ser<br />

encarado como definidor das características de pertença, ou ainda afirmá -<br />

las ou reafirmá-las como elemento de manutenção. O embate nestas<br />

fronteiras subjetivas torna o grupo reconhecedor de valores específicos e<br />

aquilo que por vezes poderia desaparecer, pode permanecer sob olhares de<br />

definição do outro.<br />

A história obscura da perseguição à comunidade <strong>judaica</strong> se<br />

encontra entre acusações de envenenamento das águas, homicí dios,<br />

bruxarias, encontros noturnos, feitiçaria; uma porção de caracterizantes<br />

pode ser encontrada na história <strong>dos</strong> judeus em solo estrangeiro. Fato<br />

interessante é aquele ainda onde temos absorvida a delirante construção<br />

deste estrangeiro. Tal sentimento, muitas vezes configurado em ódio é<br />

expresso de forma não direta e não assumida, mas sempre interiorizado e<br />

mesmo denegado, podendo até fazer-se como construção de um possível<br />

auto-ódio <strong>para</strong> com os iguais e, sobretudo <strong>para</strong> com os próprios judeus,<br />

onde uma tragédia comum entre os grupos étnicos que são hostiliza<strong>dos</strong> ou<br />

persegui<strong>dos</strong> é o fato de que muitas vezes acabam introjetando a deletéria<br />

imagem que deles é construída. 82 Assim sendo, se os dizem as multidões é<br />

por que devem ter razão.<br />

80 Este trecho está na obra Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância, onde o autor italiano Carlo<br />

Ginzburg expõe diferentes olhares sobre o estranhamento, sobre a sensação de reconhecer o estrangeiro e de<br />

perceber-se igualmente como um. “Grandes olhos de madeira, por que olham <strong>para</strong> mim”, pergunta Collodi,<br />

pseudônimo de Carlo Lorenzini, escritor também italiano autor de Pinóquio, obra infantil do final do século<br />

XIX.<br />

81 GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Cia. Das Letras,<br />

2001.<br />

82 BAIBICH, Tânia Maria. Fronteiras da identidade - o auto-ódio tropical. Curitiba: Ed. Moinho, 2001.<br />

Ainda sobre esta passagem é interessante destacar o papel de certos elementos constitutivos da cultura


59<br />

O hostilizado assume voluntariamente o papel do estrangeiro,<br />

embora possa em quase to<strong>dos</strong> os seus aspectos compartilhar de valores<br />

culturais deste mesmo grupo e ter seus descendentes liga<strong>dos</strong> aos mesmos há<br />

séculos 83 . A presença não só <strong>dos</strong> Maier, mas de diversos imigrantes<br />

refugia<strong>dos</strong> em Rolândia enfatizam tal argumento. A manutenção do grupo<br />

enquanto possuidor do espírito cultural alemão é mais presente que as<br />

relações mantidas com o judaísmo. O mais forte expoente da cultura alemã<br />

entre os Maier e outros imigrantes foi sem dúvi da Goethe. O poeta serviu<br />

principalmente ao casal Maier como uma figura orientadora em seus novos<br />

dias.<br />

Portanto, a relação estabelecida com a literatur a alemã e,<br />

sobretudo com Goethe, revela-se na narrativa do advogado como um ponto<br />

seguro e redefinidor suas emoções ligadas ao desespero e tragédia vividas<br />

outrora. Em outras palavras, a esperança e vontade de viver encontravam na<br />

sua voz a liderança. A respeito da coleção particular de livros <strong>dos</strong> Maier é<br />

interessante destacar o conflito entre os hábitos de brasi leiros e alemães.<br />

Tendo sido mais tarde declarada guerra à Alemanha pelo Estado brasileiro,<br />

muitos imigrantes foram intima<strong>dos</strong> a pr estar esclarecimento devido ao peso<br />

de suas bagagens. Muitos traziam caixas enormes e pesadas que continham<br />

somente livros. Tal prática não havia sido compreendida pelas autoridades<br />

brasileiras:<br />

“Como nossos vizinhos, quando chegamos da Europa, trouxemos<br />

caixões de livros que eram cuida<strong>dos</strong>amente transporta<strong>dos</strong> da<br />

estação de trem até nossas casas. No co meço da Segunda Guerra<br />

Mundial, uma denúncia junto às autoridades militares afirmava<br />

que nós, os alemães, escondíamos armas e munições nas casas,<br />

humana, feito a religião, a música, a literatura, como referenciais imprescindíveis <strong>para</strong> a superação de práticas<br />

intolerantes por parte <strong>dos</strong> grupos hostiliza<strong>dos</strong>. Sobre isso trataremos mais detalhadamente em outro momento.<br />

83 Uma análise permitiria reconhecer a heterogeneidade <strong>dos</strong> grupos étnicos. Sobre esta questão, enfatizando o<br />

não reconhecimento desta heterogenia pelos membros <strong>dos</strong> grupos, no prefácio de Teorias da Etnicidade, nos<br />

diz Jean-Willian Lapierre ao pensar a sociedade francesa: “A ideologia jacobina de nossa república, em nome<br />

do dogma do Estado-nação, sempre negou a diversidade étnica da população francesa. [...] Mas a maioria <strong>dos</strong><br />

franceses não está interessada em saber que sua nação formou-se historicamente por meio da conquista, da<br />

migração ou da anexação de povos muitos diferentes e também por uma imigração proveniente de diferentes<br />

regiões da Europa central ou meridional, inclusive das “colônias”, de modo que muitos <strong>dos</strong> cidadãos franceses<br />

da atualidade são descendentes de imigra<strong>dos</strong> que se integraram a nós durante o século XIX ou na primeira<br />

metade do século XX.


60<br />

porque nenhuma outra coisa podia estar nessas caixas pesadas<br />

que chegavam da Alemanha”. 84<br />

De qualquer forma, não é difícil perceber as ín timas relações<br />

estabelecidas com a Alemanha e com toda a cultura envolvida. A primeira<br />

aventura literária de Max Hermann Maier apresentou -se em obra de 1973:<br />

Lembranças da Alemanha – impregnadas em nós, profunda e<br />

maravilhosamente. 85 Poucos anos depois tivemos editadas suas impressões<br />

sobre a imigração <strong>para</strong> o Brasil.<br />

O outro da história fica até aqui como legitimador de práticas<br />

culturais, obriga o estrangeiro a apegar-se àquilo que pode redefini-lo<br />

enquanto ser humano, enquanto agente controlador de seu pr óprio destino.<br />

Depois de estabeleci<strong>dos</strong> em solo brasileiro, os alemães se de<strong>para</strong>ram com o<br />

cenário exótico das matas americanas. Muitas experiências estão descritas<br />

entre a fauna e flora observadas, mas poucas chamaram tamanha atenção na<br />

narrativa de Max Hermann Maier como a figueira:<br />

“A maior parte da nossa fazenda era então mata virgem, na qual<br />

se encontravam grossos troncos de perobas, cedros, paus d’alho,<br />

canelas e figueiras. As figueiras têm enormes copas e raízes<br />

aéreas que se derramam tronco abaixo. S uas sementes numerosas<br />

só se desenvolvem depois de passarem pelo estômago dum<br />

pássaro. Nós observamos com curiosidade um pequeno pé de<br />

figueira brava se desenvolvendo na bifurcação duma árvore no<br />

nosso jardim. Co m os anos, ela abraçou a árvore -suporte como<br />

uma cobra <strong>para</strong> no fim acabar com ela, estrangulando -a; daí seu<br />

nome “figueira -brava”. Presenciamos como que uma tragédia na<br />

natureza” 86<br />

Como compreender as conseqüências de tal experiência? A<br />

assimilação fez-se, sobretudo, pelo reconhecimento da “tragédia ” natural<br />

84 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Trecho do capítulo VII: Brasil, terra de asilo, página 19.<br />

85 Tais lembranças, caracterizadas com as palavras do poeta Rainer Maria Rilke, saíram pela editora Josef<br />

Knecht, de Frankfurt, a mesma que em 1975 lançou seu relato de imigrante. A primeira edição é composta de<br />

208 páginas e editada somente em língua alemã.<br />

86 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Trecho do capítulo IV: O norte do Paraná e a fazenda Jaú, página 13.


61<br />

expressa poeticamente por Max através da figueira -brava, planta que com o<br />

passar do tempo sufoca sua hospedeira primária. A analogia do anti -<br />

semitismo e da figueira-brava pode ser estabelecida em direção ao viés da<br />

imigração, o papel da terra estrangeira em meio aos conflitos do continente<br />

europeu. Após o movimento anti-semita e o nazismo, puderam estes<br />

encontrar, na imigração e em algum momento, sua síntese mundana, mas<br />

síntese de perenidade, de anti-tragédia, de aventura goethiana, de Thomas<br />

Mann e Bach em meio aos pássaros e toda a mata tropical. A figueira -brava<br />

da intolerância não é um olho que tudo vê. Puderam os fugitivos escapar e<br />

não serem sufoca<strong>dos</strong> pela figueira-brava.<br />

Desta forma, o Ostranienie, o estranhamento, desde o lar até<br />

terras longínquas, assume aqui um novo papel no devir humano. No campo<br />

lítero-teatral 87 podemos apreendê-lo como sinônimo de arte em geral ou<br />

produção específica? Ele se manifesta na arte por ser ela edificante aos<br />

homens, tornando possível suportar a realidade, o estranhamento é<br />

necessário <strong>para</strong> que os homens possam encarar a existência e suas<br />

implicações.<br />

No universo religioso a idéia do estranhamento está presente na<br />

medida em que se criaram instrumentos de distanciamento, <strong>para</strong> encarar,<br />

cada qual à sua forma, a realidade. O que se tentou de fato foi caracterizar<br />

o grupo, mantendo os outros distantes, como a fantasia popular da eleição<br />

divina, o mito grego ou a proibição <strong>judaica</strong> da idolatria, onde a imagem é<br />

vista como presença de algo que não existe.<br />

87 O termo ostranienie fora empregado pelo alemão Bertold Brecht, que buscou expor o estranhamento<br />

humano, assim como Tolstoi em suas passagens. Em seus escritos o imperador Marco Aurélio atentava <strong>para</strong> o<br />

reconhecimento da comoção e do envolvimento com aqueles que despertam paixões que deveriam ser<br />

compreendidas: “Cada uma dessas admoestações implicava uma técnica moral específica destinada a adquirir<br />

o domínio sobre as paixões, que nos transformam em marionetes. A voz melodiosa de um canto deve ser<br />

subdividida em cada um <strong>dos</strong> seus sons e, tomando-os um de cada vez, tu te perguntarás se ele te<br />

comove”.Também Viktor Chklovski: “Para ressucitar nossa percepção da vida, <strong>para</strong> tornar sensíveis as coisas,<br />

<strong>para</strong> fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da<br />

coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se serve<br />

de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a qual tende a tornar mais<br />

difícil a percepção, é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o<br />

devir de uma coisa, <strong>para</strong> ela, o que foi não tem a menor importância”.


62<br />

A experiência <strong>dos</strong> Maier pode atentar-nos <strong>para</strong> a legitimação<br />

deste distanciamento na identificação <strong>dos</strong> judeus que abandonaram a<br />

Alemanha na década de 1930, <strong>para</strong> além da caracterização física, feito a<br />

estrela de Davi costurada junto às roupas ou seus passaportes, documento<br />

fundamental <strong>para</strong> qualquer viajante e que trazia um “J”, em vermelho,<br />

destacado na primeira página. Max Hermann Maier apontou as<br />

conseqüências de portar tais sinais: “Os passaportes alemães de judeus<br />

traziam na primeira página um “J” carimbado em vermel ho, que tornava<br />

impossível ao portador o retorno <strong>para</strong> a Alemanha, e visava tornar o<br />

portador “persona non grata” no estrangeiro”. 88 Mais tarde seria a vez do<br />

advogado explicitar suas primeiras impressões sobre o Brasil e o<br />

distanciamento destas com sua cultura de origem:<br />

“Logo após nossa chegada ao recinto da alfândega em Santos,<br />

aprendi que no Brasil é mais conveniente a pessoa entender -se<br />

tanto com as autoridades como com os particulares com um<br />

jeitinho amigável do que se apoiar em leis ou cumprimento de<br />

decretos. O brasileiro está quase sempre disposto a dar um<br />

“jeito” (uma palavra difícil de traduzir: uma “saída” ou um<br />

“acerto”). Max conclui: “Toda a vida aqui era diferente da nossa<br />

habitual vida na Europa”.<br />

Portanto, o estranhamento configurou -se de maneira a atingir<br />

to<strong>dos</strong> os envolvi<strong>dos</strong>, falta-nos aqui apenas o contraponto, a percepção de<br />

estranheza do brasileiro em relação ao alemão. As possibilidades de<br />

pesquisa podem vir a contribuir nesse sentido.<br />

A produção <strong>dos</strong> hábitos no plano do inconsciente pod e também<br />

ser utilizada como argumento agravante, de forma que a manutenção <strong>dos</strong><br />

mesmos cria o auto-reconhecimento e muitas vezes define o distanciamento.<br />

Viktor Chklovski refletiu sobre a questão:<br />

“Se estudarmos com suficiente atenção as leis da percepção, não<br />

tardaremos a perceber que os atos tendem a se tornarem<br />

automáticos. To<strong>dos</strong> os nossos hábitos provêm da esfera do<br />

inconsciente e do auto matismo. O peso <strong>dos</strong> hábitos inconscientes<br />

88 Esta passagem encontra-se no início do livro, capítulo dois, página quinze.


63<br />

é tão forte que a vida passa, se anula. A automatização engole<br />

tudo: coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra”. 89<br />

Portanto, quando Brecht nos fala de seu ostranienie, da<br />

excessiva distância, do estranhamento, devemos reconhecer a construção<br />

historicamente persuadida. Os movimentos, físico, geográfico e também<br />

cultural e psicológico, permitem acumular à experiência individual ou<br />

coletiva uma coleção de novos hábitos, onde, consciente ou não, há um<br />

“sincretismo cultural”, a adoção de novos hábitos, posturas, códigos de<br />

comportamentos que passam a ser novos orientado res de conduta. Mais<br />

adiante poderemos notar as transformações <strong>dos</strong> refugia<strong>dos</strong> em solo<br />

brasileiro, de forma a percebê-los também orienta<strong>dos</strong> por aquilo que nunca<br />

fez parte do universo cultural alemão ou europeu.<br />

Há também uma espécie de inversão, ou seja, nota -se<br />

claramente a manutenção <strong>dos</strong> valores germânicos, desde a língua<br />

amplamente falada até as mínimas manifestações cotidianas, como a<br />

alimentação ou a leitura. Embora isso, agora há uma luta incessante <strong>para</strong> se<br />

fazer manter a perspectiva cultural ligada aos an cestrais, ao universo<br />

europeu sempre impregnado, mas agora apenas na memória, nas lembranças,<br />

nas histórias, não se respira mais o inverno da Europa, quem os acorda é o<br />

verão americano.<br />

A experiência <strong>judaica</strong>, de grupo “legitimamente” apátrida,<br />

assim definido pelos “outros”, é caracterizada levando em conta a<br />

ascendência que não se define exatamente nem como religiosa nem como<br />

étnica.<br />

Não se chama este ou aquele de “cristão”, no que se refere ao<br />

seu valor étnico pelo simples fato de fazer ou não parte de uma cultura<br />

mergulhada no cristianismo. Quando colocamos o que não se diz, apelamos<br />

ao fato da distinção operada pela terminologia quando ela é aplicada ao<br />

elemento judeu. Ou seja, ele o é independente de suas forças autônomas e<br />

subjetivas. O papel <strong>dos</strong> judeus na filosofia contemporânea, a influência do<br />

89 Citado por Ginzburg em “Olhos de madeira”, páginas quinze e dezesseis.


64<br />

judaísmo nas revoluções socialistas do século XX, a participação <strong>dos</strong> judeus<br />

na militância de esquerda durante a ditadura militar no Brasil, enfim, de<br />

diversas formas podemos representar a passagem destes ator es na<br />

experiência civilizatória. A relação estabelecida com a religião criou e<br />

ainda cria sugestões interessantes <strong>para</strong> a compreensão do fenômeno.<br />

Para alguns autores que interpretaram a participação <strong>dos</strong> judeus<br />

em movimentos mais tardios, como as transform ações na década de 1960,<br />

estes possuem estreita relação com o mito do Éden, de forma a definirem o<br />

romantismo revolucionário como aquele que<br />

Apresenta uma crítica da modernidade, isso é, da civilização<br />

capitalista moderna, em nome de valores e ideais do p assado<br />

(pré-capitalista, pré -moderno). [...] Um romantismo<br />

revolucionário e/ou utópico, [que objetivava] instaurar um<br />

futuro novo, no qual a humanidade encontraria uma parte das<br />

qualidades e valores que tinha perdido com a modernidade:<br />

comunidade, gratuidade, doação, a harmonia com a natureza,<br />

trabalho como arte, encantamento da vida. 90<br />

Dessa forma, a luta armada no Brasil contra a ditadura “não foi<br />

senão uma das manifestações mais radicais do romantismo revolucionário<br />

naqueles anos, presente não só no cam po político-partidário, mas também<br />

político-cultural, na música popular, no cinema, no teatro, nas artes<br />

plásticas e na literatura” 91 . A intensidade deste período e de seus eventos<br />

aproxima-se de nosso objeto em questão, sobretudo quando defini<strong>dos</strong> a<br />

partir de conceitos contextuais, como afinidade eletiva, onde a definição de<br />

uma época aproxima valores e ideais naqueles coloca<strong>dos</strong> como<br />

historicamente distintos:<br />

A definição sobre esse conceito baseia -se na definição de<br />

Michael Lövy ( Redenção e Utopia: o judaí smo libertário na<br />

Europa Central. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989, p. 13 -8). O<br />

autor o define co mo “um tipo muito particular de relação<br />

dialética que se estabelece entre duas configurações sociais e<br />

90 LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Romantismo e política. São Paulo: Paz e terra, 1993.<br />

_____________________________. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade.<br />

Petrópolis: Vozes, 1995.<br />

91 RIDENTI, Marcelo. O romantismo revolucionário nos anos 60, cit., p.414.


65<br />

culturais, não redutível à determinação causal direta ou à<br />

“influência” no sentido tradicional. Trata -se, a partir de uma<br />

certa analogia estrutural, de um movimento de convergência, de<br />

atração recíproca, de confluência ativa, de combinação capaz de<br />

chegar até a fusão. [...] Essa força é a afinidade, determinand o a<br />

combinação <strong>dos</strong> corpos heterogêneos numa união que é uma<br />

espécie de casamento, de enlace químico, procede antes do amor<br />

que do ódio. [...] Muitos dão o no me afinidade ao que chamamos<br />

atração. [...] Afinidade é um caso particular de atração. [...]<br />

formam um ser que tem propriedades novas e distintas daquelas<br />

que pertencem a cada um desses corpos antes da co mbinação.<br />

[...] A afinidade eletiva não é a afinidade ideológica inerente às<br />

diversas variantes de uma mesma corrente social e cultural. [...]<br />

A afinidade eletiva também não é sinônimo de influência, na<br />

medida em que implica uma relação bem mais ativa e uma<br />

articulação recíproca (podendo chegar à fusão). É um conceito<br />

que nos permite justificar processos de interação que não<br />

dependem nem da causalidade d ireta, nem da relação expressiva<br />

entre forma e conteúdo (por exemplo, a forma religiosa como<br />

expressão de conteúdo político ou social). [...] A afinidade<br />

eletiva não se dá no vazio ou na placidez da espiritualidade<br />

pura: ela é favorecida (ou desfavorecida) por condições<br />

históricas e sociais. 92<br />

Assim, a atração entre jovens judeus que se tornaram militantes<br />

arma<strong>dos</strong> no Brasil no fim <strong>dos</strong> anos 60 não representa igualmente a<br />

experiência <strong>dos</strong> judeus fugitivos da Segunda Grande Guerra, nem o que<br />

ocorreu nos anos trinta entre imigrantes e nativos pode ser descrito como<br />

uma afinidade neste sentido. O que torna válido o argumento é a relação<br />

desenvolvida entre os próprios imigrantes, que submeti<strong>dos</strong> a um contexto<br />

92 KUSHNIR, Beatriz. Nem bandi<strong>dos</strong> nem heróis: os militantes judeus de esquerda mortos sob tortura no<br />

Brasil (1969-1975). In: Cadernos de Língua e Literatura hebraica. São Paulo: Humanitas-FFLCH-USP, 2001.<br />

A autora trata neste ensaio de dez diferentes casos de tortura e morte durante o auge da repressão militar no<br />

Brasil. To<strong>dos</strong> os militantes envolvi<strong>dos</strong> eram de ascendência <strong>judaica</strong> e partici<strong>para</strong>m <strong>dos</strong> principais grupos<br />

arma<strong>dos</strong> de esquerda no país. O primeiro caso citado é o do estudante de medicina e militante da VPR<br />

(Vanguarda Popular Revolucionária) Chael Charles Schreier, primeiro militante torturado e morto nas<br />

dependências do DEOPS (Destacamento de Operações de informações/Centro de Operações de Defesa<br />

Interna do II Exército) no Rio de Janeiro no ano de 1969. Nos anos seguintes a autora passa por outros<br />

militantes com o desenlace final nos casos Wladimir Herzog e Iara Iavelberg, ambos certamente tortura<strong>dos</strong> e<br />

mortos pela polícia política embora ainda hoje se mantenha em alguns setores a versão de suicídio em ambas<br />

mortes. Wladimir Herzog e Iara Iavelberg jazem na ala reservada aos suicidas no cemitério israelita do<br />

Butantã em São Paulo (setor G. Iara está no G/quadra 26/lápide 57 e Herzog no G/28/64). Em 1996, o artista<br />

plástico Carlos Zílio, ex-militante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), expôs no MAM<br />

(Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) sua arte e política entre os anos de 66/76. No catálogo da<br />

exposição, a dedicatória é <strong>para</strong> os amigos perdi<strong>dos</strong>, sobretudo <strong>para</strong> José Roberto Spiegner, morto em 1970:<br />

“Fico espantado em pensar como tão jovens tínhamos a certeza de poder mudar o mundo e modelar a história.<br />

As mortes e o sofrimento me comovem. Experimentamos a dura realidade da derrota. [...] Gostaria de dedicar<br />

esta exposição a to<strong>dos</strong> que morreram nessa luta, alguns, inclusive, de maneira bastante cruel. Mas queria<br />

homenagear, sobretudo, José Roberto Spiegner. Foi meu primeiro amigo a morrer [...] De certo modo, devolhe<br />

a vida”.


66<br />

histórico sem precedentes e sem nada que pudessem faze r desenvolveram<br />

uma reciprocidade mútua, uma alavanca <strong>para</strong> a superação de males maiores,<br />

seja incorporando novos padrões valorativos e cotidianos ou fazendo<br />

permanecer as manifestações germânicas.<br />

No Brasil, durante a repressão militar após o golpe de 1964,<br />

havia a expressão do Estado que dizia “Ame-o ou Deixe-o”. De certa forma<br />

muitos o deixaram mesmo sob juras de amor eterno. Décadas anteriores,<br />

sobretudo os anos da era Vargas, apresentam não só a repressão e<br />

manipulação da máquina estatal em to<strong>dos</strong> os setores da sociedade, mas<br />

também uma relação peculiar com os estrangeiros e precisamente com os<br />

estrangeiros de ascendência <strong>judaica</strong>. Em 1933, publica -se no Rio de Janeiro<br />

uma coletânea de artigos entre intelectuais brasileiros, cujo título era: “Por<br />

que ser anti-semita?”. Neste livro, embora a maioria criticasse o anti -<br />

semitismo percebe-se certa ambigüidade de opiniões, apesar daquilo que<br />

declaravam sobre os judeus:<br />

“Única raça pura que talvez ainda exista no mundo, vem desde<br />

séculos realizando este milagre único: o de um grande povo, uma<br />

verdadeira nação, sem o menor palmo de território. São, assim,<br />

os primeiros humanistas do mundo. Como brasileiro, porém,<br />

filho de um país novo e ainda fraco, aberto a todas as investidas,<br />

sem defesa, principalmente, <strong>para</strong> to da e qualquer manifestação<br />

de caráter mais espiritual do que real, não deixo de receiar muito<br />

que os judeus se implantem vitoriosamente no Brasil. Bastará<br />

que o queiram, esta é a verdade. Não acredito muito que o<br />

desejem, porém, pois ainda estamos, apesar de tudo, no período<br />

do desbravamento e os judeus preferem chegar mais tarde: no da<br />

colheita”. 93<br />

Assim, persiste no discurso a construção de idéias<br />

questionáveis, como a pretensa formação de uma “raça” <strong>judaica</strong>, distinta de<br />

outros tipos de ”raça”, de outros tipos de pessoas. A definição étnica é<br />

realmente<br />

Naqueles anos o controle sobre os estrangeiros era amplo,<br />

segundo Helena Lewin,<br />

93 NETTO, Américo. Dois pontos de vista. In: Vários Autores. Por que ser anti-semita. Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira, 1933.


67<br />

“O controle não se restringiu à correspondência, incluía jornais<br />

e chamadas telefônicas; outras providências foram adotad as,<br />

como a elaboração de listas do movimento portuário de<br />

passageiros desembarca<strong>dos</strong> no Brasil ou em trânsito <strong>para</strong> outros<br />

países, informações sobre passaportes, sobretudo de cidadãos<br />

russos, identificação de to<strong>dos</strong> os estrangeiros, além das fichas de<br />

registro em hotéis da cidade e exame detalhado <strong>dos</strong> pedi<strong>dos</strong> de<br />

naturalização. Por outro lado, as instituições <strong>judaica</strong>s eram<br />

obrigadas a dispor, <strong>para</strong> conhecimento da polícia, seus estatutos,<br />

composição da diretoria e, em alguns casos, a lista de to<strong>dos</strong> os<br />

seus sócio s, principalmente no caso de associações que tinham<br />

vínculo externo, como o Joint, Ica, Wizo, organizações sionistas<br />

e outras como a Socorro às Vítimas da Guerra, obrigatoriamente<br />

dependente da Cruz Vermelha Brasileira. Em muitas ocasiões, a<br />

polícia refuta va os nomes apresenta<strong>dos</strong> <strong>para</strong> aprovação que<br />

deviam ser preferentemente brasileiros ou naturaliza<strong>dos</strong>, e, até<br />

que se pro movesse a substituição, a instituição não obtinha<br />

licença <strong>para</strong> funcionar ”. 94<br />

Desta forma, os vestígios históricos da questão <strong>judaica</strong><br />

convencem àqueles que querem ver. Seja na militância armada ou na<br />

imigração forçada, os judeus estavam etnicamente identifica<strong>dos</strong>, com um<br />

distanciamento, uma subjetiva fronteira, não geográfica, mas cultural, por<br />

que implica na proximidade, no contato entre seus atores. Assim, a<br />

permanência de valores depende do desenvolvimento no choque dessas<br />

fronteiras, do sucesso ou não da reciprocidade estabelecida entre os grupos,<br />

desviando assim o foco da importância fundamental dada ao fato de se<br />

compartilhar uma mesma cultura. 95<br />

A interpretação teórica <strong>dos</strong> grupo s étnicos ligada à<br />

antropologia traz-nos assim um forte campo de discussão e análise,<br />

sobretudo quando parte de uma reflexão contrária à chamada antropologia<br />

94 LEWIN, Helena. Dops: o instrumental da repressão política. In: CAD. Líng. Lit. Hebr., n. 3, p.267-294,<br />

2001.<br />

95 Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos Étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth/Phillipe Poutignat,<br />

Jocelyne Streiff-Fenart; São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. Esta visão a respeito <strong>dos</strong> grupos<br />

étnicos é principalmente encontrada na obra do antropólogo Fredrik Barth. Em Grupos étnicos e suas<br />

fronteiras Barth expõe que o argumento é lucrativo quando visto como uma implicação ou um resultado, mais<br />

do que como uma característica primária e definicional da organização do grupo étnico. Coloca ainda que “a<br />

classificação de pessoas e grupos locais como membros de um grupo étnico deve depender do modo como<br />

demonstram os traços particulares da cultura. [...] A atenção é dirigida à análise das culturas, não à<br />

organização étnica. [...] O ponto de vista abrange igualmente uma “etno-história” que faz a crônica <strong>dos</strong><br />

ganhos e das mudanças culturais e procura explicar por que razão determina<strong>dos</strong> itens foram toma<strong>dos</strong> de<br />

empréstimo”.


68<br />

tradicional no que se refere a uma concepção <strong>dos</strong> grupos étnicos, onde os<br />

designa como populações que: a) perpetuam -se biologicamente de modo<br />

amplo, b) compartilham valores culturais fundamentais, c) constituem um<br />

campo de comunicação e interação, d) possuem um grupo de membros que<br />

se identifica e é identificado por outros. Tal definição se aproxima em<br />

conteúdo da proposição postulada de que uma raça = uma cultura = uma<br />

linguagem e que uma sociedade = entidade que rejeita e discrimina outras.<br />

Esse modelo sem dúvida aproxima-se de várias situações, de objetos<br />

estuda<strong>dos</strong> à luz etnográfica, mas desenvolve de maneira problemática uma<br />

concepção ideal <strong>dos</strong> grupos étnicos, sobretudo em relação à gênese,<br />

estrutura e função <strong>dos</strong> grupos. Isso nos impediria de compreender o<br />

fenômeno étnico e seu papel na cultura humana. A manut enção das<br />

fronteiras nesse caso decorreria do isolamento de cada grupo. Segundo o<br />

pensamento barthiano:<br />

“O mais grave de tudo é que ela nos induz a assumir que a<br />

manutenção das fronteiras não é problemática e decorre do<br />

isolamento implicado pelas caracte rísticas: diferença racial,<br />

diferença cultural, se<strong>para</strong>ção social e barreiras lingüísticas,<br />

hostilidade espontânea e organizada. Isso limita igualmente o<br />

âmbito <strong>dos</strong> fatores que utilizamos <strong>para</strong> explicar a diversidade<br />

cultural: somos leva<strong>dos</strong> a imaginar cada g rupo desenvolvendo<br />

sua forma cultural e social em isolamento relativo,<br />

essencialmente, reagindo a fatores ecológicos locais, ao longo<br />

de uma história de adaptação por invenção e empréstimos<br />

seletivos. Esta história produziu um mundo de povos se<strong>para</strong><strong>dos</strong>,<br />

cada um com sua cultura própria e organizado numa sociedade<br />

que podemos legitimamente isolar <strong>para</strong> descrevê -la co mo se<br />

fosse uma ilha”. 96<br />

Desta forma, o autor não apenas afirma a importância das<br />

fronteiras como elemento fundamental da compreensão do grupo, d e sua<br />

interação com os demais e evitando assim formulações hostis e por vezes<br />

violentas como também dá um papel de destaque à história, enquanto<br />

reveladora <strong>dos</strong> resulta<strong>dos</strong> pragmáticos dessa concepção. Jean Delemeau, em<br />

96 BARTH, F. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne.<br />

Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998.


69<br />

seu trabalho sobre o medo no Ocidente contextualizou a relação entre os<br />

diversos grupos e os judeus em meio a isso, destacando alguns pontos <strong>para</strong><br />

compreender a gênese daquilo que colocaria o judeu como uma face do mal:<br />

[...] outras verdades históricas devem ser ressaltadas: a) as<br />

relações entre cristãos e judeus, antes do tempo <strong>dos</strong> pogroms,<br />

não haviam sido sempre más; b) o fator religioso desempenhou<br />

um papel importante nessa degradação; c) no século XVI, esse<br />

fator religioso tornou -se o elemento motor, a característica<br />

dominante do antijudaí smo ocidental. 97<br />

Somente uma visão de isolamento poderia influenciar<br />

excessivamente na relação entre os grupos ou entre judeus e cristãos. Uma<br />

história que produziu um mundo de povos se<strong>para</strong><strong>dos</strong>, cada qual podendo ser<br />

observado particularmente. É a política do estranhamento. Das dificuldades<br />

de realizar uma manutenção de suas fronteiras e do que podemos dizer<br />

também como uma impossibilidade de suas assimilações plenas, surgindo<br />

assim a obrigatoriedade de sua tolerância mútua. A História mostra que<br />

poucos momentos assim se mantiveram. O judeu foi identifica do, sobretudo<br />

após o ano 1.000 d.C. como uma das faces do diabo. 98 O estranhamento de<br />

cristãos e a exteriorização desses levaram a episódios sangrentos em<br />

diversas partes da Europa, sobretudo na Espanha após o século XVI, França,<br />

Inglaterra, Portugal, além de outras regiões como Polônia ou Alemanha. De<br />

forma geral a hostilização sofrida pelos judeus foi amplamente<br />

caracterizada com expulsões, extermínios, acusações ou sinais de<br />

identificação exteriores.<br />

97 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. Sobre<br />

esta passagem, ao falar do fator religioso o autor cita Jean Paul Sartre em sua obra Reflexões sobre a questão<br />

judia de 1961: “Foram os cristãos que criaram o judeu ao provocar sua assimilação”. Assim, os elementos<br />

aponta<strong>dos</strong> por Delemeau implicam nas relações historicamente produzidas entre, sobretudo, cristãos e judeus,<br />

de forma que a variação ou perío<strong>dos</strong> de maior ou menor hostilidade entre os grupos são provocadas pela<br />

alteração ideológica, que se manifestou principalmente através do discurso de pregadores cristãos. Embora<br />

essa compreensão, o autor aponta também os fatores econômicos, desde as mudanças geográficas das<br />

comunidades israelitas e seus perío<strong>dos</strong> de manutenção, sucesso e decadência até o desenvolvimento tardio <strong>dos</strong><br />

cristãos nas relações comerciais, sobretudo nas internacionais.<br />

98 Ibid. p. 280.


70<br />

IV.II – MATHILDE MAIER E A FIGUEIRA-BRAVA OU O<br />

DISCURSO DO ESTRANHAMENTO<br />

“... Lá nos pilares da sala de estar e da biblioteca estão<br />

penduradas três cápsulas de metal, como é costume entre os<br />

judeus, nas quais estão escritos sobre pergaminho em letras<br />

hebraicas os versos do quinto livro de Moisés: Amarás o Eterno<br />

teu Deus de todo coração e com toda tua alma. Para nós isto<br />

sempre significou que só o amor de Deus manifestado através da<br />

beleza da natureza, pode ajudar ao homem”. 99<br />

Escrever sua própria história, reencontrar largos caminhos<br />

percorri<strong>dos</strong>, trilha<strong>dos</strong>. O homem, Deus e a natureza. Assim Mathilde Maier<br />

poderia ter sua narrativa, intitulada Os jardins de minha vida 100 , justificada<br />

ou interpretada. Inicialmente publicada em alemão, a obra teve, assim como<br />

a Max Hermann Maier, uma versão traduzida ao português 101 . O labirinto<br />

percorrido pela autora e a chave que a conduz ao fim de um escuro e<br />

99 MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef<br />

Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf<br />

(primeira edição), 1981. Cit. p. 82.<br />

100 Segundo Ethel V. Kosminsky, em seu artigo Literatura judaico-feminina de imigração nos Esta<strong>dos</strong><br />

Uni<strong>dos</strong> e no Brasil, publicado no Caderno de Língua e Literatura Judaica da USP (Universidade de São<br />

Paulo), volume 3 (2001), o estudo da autobiografia e do romance de cunho autobiográfico, escritos por<br />

mulheres imigrantes judias e suas filhas, possibilita a colocação de algumas questões, como o que é possível<br />

conhecer <strong>dos</strong> processos migratórios e de adaptação à nova sociedade de famílias judias por meio da literatura<br />

feminina? Coloca ainda que: “A ampliação do movimento feminista provocou o levantamento da vida de<br />

mulheres, daquelas que tinham sido mantidas à parte, isoladas pelo silêncio. Segundo a socióloga inlgesa<br />

Mary Evans, o reconhecimento <strong>dos</strong> limites das grandes teorias teria conduzido, provavelmente, ao crescente<br />

interesse pela pesquisa, em menor amplitude, do particular e, ainda, a legitimação do crescente<br />

individualismo, com as suas idéias de ressocialização do indivíduo. O novo pluralismo que valoriza a<br />

singularidade e a autonomia social implicou a liberação de uma série de possibilidades, ampliando os limites<br />

do que é aceitável. Esse sentimento de liberação ocorre de forma <strong>para</strong>lela a dois importantes<br />

desenvolvimentos do uso da biografia: a crescente ênfase na documentação das experiências de pessoas<br />

comuns e o surgimento de um novo tratamento <strong>dos</strong> da<strong>dos</strong> pessoais, nos quais a vida é entendida como uma<br />

repetição de certos padrões, que provavelmente se formaram a partir da infância”. Sendo assim, a pertinência<br />

do uso da obra de Mathilde Maier pode ser justificada não apenas pelas transformações de postura, mudanças<br />

sociais ou alterações de méto<strong>dos</strong> acadêmicos, mas, sobretudo por aquilo em que pode sua obra contribuir à<br />

narração do devir migratório de ascendentes israelitas, ou como diz Kosminky: ampliação e adaptação à<br />

nova sociedade por meio da literatura feminina.<br />

101 Feita por Roswitha Kempf, editora, que se estabeleceu em Rolândia juntamente com sua família, em 1936.


71<br />

interminável túnel é a natureza. A memória encontrada e reencontrada<br />

através da mais involuntariosa possibilidade de s e lembrar, de recordar de<br />

sua própria experiência vivida, por vezes tida como sonho no misto com a<br />

aproximação da realidade. Através <strong>dos</strong> jardins constituí<strong>dos</strong> em seus<br />

diversos lares pela Europa e culminando no jardim da grande casa de<br />

madeira na fazenda Jaú, Mathilde Maier traz a história sua que é também a<br />

história do turbulento século XX, com suas aflições e alegrias, relacionadas<br />

à natureza e ao homem, sendo este sua parte essencial. Caminhava pelos<br />

oitenta e três anos de vida quando se dedicou à elaboração do livro. Viúva<br />

em terra estrangeira foi através da reconstituição da caminhada por estes<br />

imensos e memoriosos jardins que a imigrante alemã -judia recompensou<br />

seus últimos momentos de vida no Brasil.<br />

Quando da elaboração e edição do livro os Maier já estavam<br />

no Brasil há mais de quarenta anos. A experiência de fugitivos em solo<br />

desconhecido já não era mais tão evidente. Os colonos alemães -judeus<br />

imigra<strong>dos</strong> já desfrutavam de forte assimilação, sobretudo nas relações<br />

comerciais e na estruturação de fun ções, atividades, novos hábitos, além do<br />

conhecimento da língua local e reciprocidade com os brasileiros. O norte do<br />

Paraná não mais se caracterizava em torno da atividade ferroviária e da<br />

presença estrangeira. A modernidade já havia estruturado grandes ci dades,<br />

centros de produção econômica, todo um a<strong>para</strong>to civilizatório bastante<br />

distinto daquilo que os imigrantes encontraram nos anos 30. Mathilde<br />

encontrou nos jardins seu próprio consolo:<br />

“As mulheres em geral não se destacam na literatura sobre<br />

jardins. Não obstante, encontrei muitas mulheres criativas <strong>para</strong><br />

as quais o jardim era uma fonte de vida. Situado no meio de<br />

Basel, este jardim era tão grande que ocupava dois jardineiros o<br />

tempo todo. Sobre aterros em forma de pequenas elevações havia<br />

jardins de p edra, então em plena florescência com aubrécias<br />

lilazes, iberis brancas, tulipas precoces vermelhas e narcisos<br />

amarelos. Nos la<strong>dos</strong> do jardim vi estufas com orquídeas<br />

tropicais. Quantas horas boas este jardim deve ter proporcionado<br />

a estes exila<strong>dos</strong>”. 102<br />

102 Cit. p. 42.


72<br />

Ao que parece, o mito judaico-cristão do Éden se faz,<br />

consciente ou não, tranqüilizador enquanto simbolicamente manifestado em<br />

jardins públicos, mas principalmente nos particulares, aqueles que foram<br />

caseiramente cuida<strong>dos</strong>, onde era possível encontrar algum ti po de conforto:<br />

“Também nós encontramos conforto no nosso jardim, nestes anos<br />

difíceis da perseguição, em nossa casa aberta <strong>para</strong> o jardim que<br />

abrigou tantos amigos, nos últimos dias antes de emigrarem,<br />

quando não tinham onde ficar. Ajudar os outros na dif ícil<br />

despedida da pátria tornou -se nossa missão. Os jovens confiantes<br />

e isto com toda razão; <strong>para</strong> os mais velhos era penoso. [...] Os<br />

últimos anos em Frankfurt foram difíceis e só valeram pela ajuda<br />

que pudemos dar a outros. Muitos de nossos conheci<strong>dos</strong> pus eram<br />

fim à própria vida. Nós os compreendíamos, sem aprová -los,<br />

porém. [...] O último jardim em Frankfurt foi o do consulado<br />

inglês. Era um jardim pobre, maltratado e mesmo assim ele nos<br />

confortou com suas poucas flores enquanto esperávamos pelo<br />

Visto, tão vitalmente necessário ”. 103<br />

Nesse sentido, a tragédia natural da figueira brava, que ainda<br />

não havia chegado aos olhos <strong>dos</strong> Maier, já se fazia sobre o espectro do<br />

nazismo. Após 1938 e consequentemente o início da guerra a Europa já<br />

deixara de ser um local atrativo aos judeus, e entre aqueles que puderam ou<br />

conseguiram de algum modo deixar o continente, já o haviam feito.<br />

O capítulo oitavo da obra de Mathilde Maier traz suas<br />

primeiras impressões sobre o Brasil e, consequentemente, suas primeiras<br />

formas de estranhamento:<br />

A primeira saudação do Brasil foram as palmeiras de uma ilha,<br />

pouco antes de nosso navio, o Cap Arcona, atracar em Santos.<br />

Era dezembro, a época quente do ano. Na travessia tínhamos<br />

estudado português e tentado imaginar como seria nossa vida no<br />

campo. Na bagagem vinham caixas co m sementes e mudas e eu<br />

tentei visualizar o futuro jardim. Max fazia projetos <strong>para</strong> a<br />

103 Idem / p. 43. O último jardim antes de abandonar a Europa não poderia vir senão como um aspecto trágico.<br />

Assim a autora o descreve, seu estranhamento de cores e formas sob o manto do início da segunda grande<br />

guerra. Frankfurt não é a mesma, entre eles reconheceu-se apenas a solidariedade. Nada mais era reconhecível<br />

aos judeus no final da década de 1930 na Alemanha. Aos jovens menor temor causava o estrangeiro, a<br />

longínqua terra, se não hostil ao menos desconhecida. Nestes casos o estranhamento é <strong>para</strong> com to<strong>dos</strong>, não se<br />

define senão naquilo que não pode ser, em um não reconhecimento, expatriado dentro de um mundo que não<br />

oferece mais espaço.


73<br />

construção de uma casa e estes foram realiza<strong>dos</strong>, ao contrário do<br />

que aconteceu com minhas idéias sobre jardinagem neste clima<br />

totalmente diferente. [...] Soubera eu, que tudo seria em vão,<br />

porque a terra e o clima estranho acabariam em curto tempo co m<br />

elas. 104<br />

Seguindo a narrativa, a autora adentra pelo universo que os<br />

conduziu até seu último lar. O casal Maier não obteve maior problema até<br />

sua chegada em Rolândia-PR. Naquele momento grande parte do norte do<br />

Paraná estava dentro de um desbravamento territorial ligado ao<br />

desenvolvimento econômico e realizado por parcerias entre empresas<br />

estrangeiras e investidores brasileiros. O que se vi u pelas janelas daquele<br />

trem não pareceu muito acolhedor ao casal: “Em 1939, só uma estrada de<br />

ferro primitiva conduzia ao interior, a locomotiva era movida a lenha”. 105<br />

No interior <strong>dos</strong> vagões chamou-lhes a atenção o “desnível, às vezes grande<br />

entre a camada baixa sem pretensões e primitiva, e a camada alta por vezes<br />

sofisticada demais”. 106 De fato não foram boas as expectativas naquele<br />

momento e o cenário fez-se como que um espelho <strong>dos</strong> angustiantes dias que<br />

viveram na Europa. Max Hermann Maier comenta a paisa gem sob seus<br />

olhos:<br />

“Quando da janela do trem olhamos <strong>para</strong> a paisagem,<br />

compreendemos porque tínhamos de viajar seiscentos<br />

quilômetros <strong>para</strong> chegar ao nosso destino: absolutamente não era<br />

convidativa. Pastos magros, plantações de milho mirradas, um<br />

pobre bosque de eucaliptos e áreas imensas de capoeira”. 107<br />

O ambiente tragicamente descrito foi o cenário da incerteza, da<br />

expectativa, do distanciamento entre o que eram e o que viam, mas era<br />

também o cenário do alívio, de uma esperança pela vid a distante <strong>dos</strong><br />

campos de concentração e de toda a segunda guerra na Europ a. As<br />

104 O jardim europeu em terras brasileiras nunca se realizou. Mas o processo de interação e manutenção levou<br />

a novas formas de invenção desses novos cotidianos, sobretudo naquilo em que os despertou o exotismo do<br />

Brasil. Mathilde descreve sua primeira experiência com uma manga ou um mamão e aponta aquele que foi o<br />

primeiro jardim a acompanhar suas memórias: o de um hospital em São Paulo em que se hospedaram por<br />

alguns dias por ocasião de um problema de hérnia em Max H. Maier.<br />

105 Cit. p. 51.<br />

106 Idem.<br />

107 Idem.


74<br />

impressões do casal Maier vieram a transformar -se com o correr <strong>dos</strong> anos.<br />

Mathilde acrescenta sobre a viagem: “De vez em quando o trem <strong>para</strong>va em<br />

pequenas estações de aspecto caótico com nomes que soavam estranho <strong>para</strong><br />

nós, como Ibiporã”. 108 Em Rolândia foram recebi<strong>dos</strong> pelo sócio de Max H.<br />

Maier 109 e seguiram até a fazenda. Sobre os primeiros dias na Fazenda Jaú<br />

comentou:<br />

“Na fazenda fomos recebi<strong>dos</strong> com muita amabilidade pela<br />

família de nosso sócio. Eles moravam com os três filhos numa<br />

modesta casa de madeira; ao lado havia outra casinha <strong>para</strong> o<br />

professor particular e sua mulher. Nós fomos acomoda<strong>dos</strong> na<br />

“casa <strong>dos</strong> estagiários” e logo na primeira noite pudemos dormir<br />

em lençóis limpos. [.. .] A casa <strong>dos</strong> estagiários tinha sido<br />

construída <strong>para</strong> um grupo de jovens que, instruí<strong>dos</strong> em<br />

agricultura na Fazenda Experimental de Grossbreesen na Silésia,<br />

deviam emigrar ao Brasil. Mas o governo fascista de Getúlio<br />

Vargas, influenciado pelos nazistas, nego u o visto de entrada<br />

<strong>para</strong> estes jovens e quase to<strong>dos</strong> pereceram em campos de<br />

concentração. Isto fez com que uma sombra escura pairasse<br />

sobre nosso começo, uma sombra que não podíamos afastar e<br />

nem o queríamos. A casa, na qual além de nós só morava um<br />

estagiário, estava no meio de uma plantação de algodão. Pela<br />

primeira vez vimos flocos brancos de algodão sair das cápsulas<br />

arrebentadas. Dos 114 alqueires co mpra<strong>dos</strong>, 36 tinham sido<br />

transforma<strong>dos</strong> em terra de cultura com 10.000 pés de café e<br />

plantações de milho, arroz, feijão e algodão. Atrás da casa<br />

descia um barranco até a mina de água; na frente via -se a mata<br />

virgem que subia ao lado <strong>dos</strong> cafezais até o espigão. Ali, onde<br />

havia mata, resolvemos fazer a nossa casa porque uma fonte<br />

garantia o abastecimento abundan te de água, o que era muito<br />

importante. Ainda hoje, após quarenta anos, essa fonte é o nosso<br />

suprimento de água e de alegrias. Ela ainda alimenta o pequeno<br />

chafariz perto da varanda, no qual se banham os beija -flores<br />

exibindo sua plumagem brilhante, - um espetáculo incrivelmente<br />

belo”. 110<br />

108 Cit. P. 64.<br />

109 Heinrich Kaplan era também alemão e refugiado, recebeu a família Maier ainda quando de seu<br />

desembarque, mas por ocasião de uma consulta médica <strong>para</strong> Max Hermann Maier, ele e a esposa<br />

permaneceram em São Paulo enquanto a sobrinha seguiu <strong>para</strong> Rolândia com o imigrante alemão Heinrich<br />

Kaplan. In: MAIER, Max Hemann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira -<br />

Relato de um imigrante(1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird<br />

Kaffeepflanzer in Urwald Brasili<br />

ens. Bericht Eines Emigranten (1938-1975).<br />

110 Em 11 de março de 1828 Goethe escreveu a Eckermann: “O ar puro do campo é realmente o lugar ao qual<br />

pertencemos, é como se o espírito de Deus ali envolvesse o homem diretamente e como se uma força divina<br />

exercesse sua influência”. Os Maier consideravam-se felizes por poder passar a segunda metade da vida no<br />

campo, em terra tão aventurosamente estranha. De alguma maneira os fatores externos podem vir a<br />

contribuir com o desenvolvimento <strong>dos</strong> grupos? Os fatores econômicos? De fato, o quase isolamento na mata,<br />

afasta<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> grandes centros urbanos do Brasil e com uma excelente quantidade de terras e estrutura já<br />

desenvolvida, são fatores que poderiam justificar a estada de mais de sessenta anos desses imigrantes. Ma isso


75<br />

Havia, portanto, um evidente distanciamento entre os<br />

imigrantes e a nova terra. A experiência da narrativa expõe o<br />

estranhamento. Mathilde Maier revela seus personagens, mas de forma a<br />

pouco descrevê-los, talvez pela intenção de não causar-lhes ares de<br />

romance, o que tornaria a leitura menos biográfica ou memorialística do que<br />

romancista. Embora isso, a narrativa é certamente bastante instigadora à<br />

compreensão do fenômeno migratório alemão -judaico <strong>para</strong> o sul do Brasil,<br />

tomado aqui evidentemente o caso da comunidade de Rolândia. O elemento<br />

judaico parece igualmente presente, sobretudo na perspectiva digamos<br />

talmúdica de sua obra, ou seja, aquela que segundo a tradição israelita não<br />

permite uma interpretação unívoca e definitiv a pelo respeito ao livro divino<br />

que impede sua cristalização e redução a um sentido único. A visão sobre o<br />

novo mundo que a cerca torna possível a descoberta de novas camadas de<br />

sentido até então ignoradas. Sobre esta influência apontou Walter<br />

Benjamin: “Eu nunca pude pesquisar ou pensar senão num sentido, se me<br />

atrevo a dizê-lo, teológico – isto é, de acordo com a doutrina talmúdica <strong>dos</strong><br />

quarenta e nove níveis de sentido de cada passagem da Torá”. 111 Para Berta<br />

Waldman vistas com distância, essas interpretaçõ es de interpretações<br />

seria limitar a reflexão do movimento migratório. É preciso que se observe os fatores que operam nas<br />

instâncias morais, psicológicas e emocionais, passando por seus conflitos intra e extra grupo. Sendo assim,<br />

não existem regras de avaliação, diferentes casos foram relata<strong>dos</strong> e caracterizam igualmente um mesmo<br />

fenômeno, por ocasião do início da segunda guerra Mathilde disse: “e também na nossa pequena comunidade<br />

em Rolândia houve vítimas; alguns não agüentaram a tensão e se desesperaram”. Certamente que se trata de<br />

um eufemismo <strong>para</strong> suicídio entre os emigra<strong>dos</strong>. De qualquer forma, os Maier sobreviveram aos anos<br />

juntamente com a maior parte <strong>dos</strong> imigrantes alemães. Goethe talvez lhes tenha sido a principal inspiração<br />

literária, onde certos olhares sobre suas palavras parecem ter sido escritos sob encomenda ao destino <strong>dos</strong><br />

refugia<strong>dos</strong>.<br />

111 BERTA, Waldman. A letra e a lei no texto de Clarice Lispector. Cad. Ling. Lit. Hebr., n.3, p. 295-309.<br />

São Paulo, 2001. Segundo a autora essa afirmação de Walter Benjamin sublinha sua ligação não aos preceitos<br />

ou aos dogmas da religião <strong>judaica</strong>, mas a um modelo de leitura herdado do estudo <strong>dos</strong> textos sagra<strong>dos</strong>. Na<br />

tradição teológica <strong>judaica</strong>, e especialmente na tradição talmúdica ( o Talmud integra duas linhas de<br />

comentários: a Halakhá, da raiz hebraica halakh que significa andar ou caminhar, e a Agadáh, da raiz hebraica<br />

higuid que significa dizer ou falar. A primeira inclui a parte normativa da Tora epassou a designar a tradição,<br />

a regra ou o regulamento. Já a segunda é o repositório de vôos imaginativos de muitas gerações de sábios,<br />

podendo ser traduzida por lenda ou fábula.), a interpretação não pretende delimitar um sentido definitivo. [...]<br />

Que Benjamin reivindique essa tradição religiosa no contexto de uma análise materialista <strong>dos</strong> textos literários<br />

é absolutamente notável: significa que a crítica materialista, <strong>para</strong> ele, não tem como meta estabelecer a<br />

verdade definitiva sobre uma obra ou sobre um autor, mas tornar possível a descoberta de novos senti<strong>dos</strong>.


76<br />

desenham uma linha que põe em movimento senti<strong>dos</strong> que não se agrupam<br />

nem se fixam numa figura única. 112 Assim, o argumento da autora parte da<br />

idéia de uma multiplicidade de senti<strong>dos</strong> revela<strong>dos</strong> nas obras de autores de<br />

ascendência <strong>judaica</strong>, como Clarice Lispector, Kafka ou o próprio Walter<br />

Benjamin, conscientes ou não estariam ancora<strong>dos</strong> na tradição talmúdica das<br />

interpretações da Tora, é como se estivessem sempre sobre um manto<br />

ilimitado da compreensão. Mathilde Maier referencia em sua obra a atenção<br />

que davam à natureza (alguns trechos de Goethe aparecem naquilo que o<br />

escritor mencionou a respeito da natureza), inclusive o pequeno temor que<br />

tiveram quando se de<strong>para</strong>ram com cobras, por exemplo. Ou seja, a<br />

preocupação pareceu ter sido a de explanar a perspicácia, a tolerância ou<br />

reciprocidade com que tentavam encarar a tudo e a to<strong>dos</strong>.<br />

A genealogia humana e as facetas de seus grupos<br />

invariavelmente recorrem a elementos similares de sobrevivência.<br />

Experiências traumáticas como a Schoá 113 aproximaram, na mesma medida<br />

em que os repeliram de sua pátria mãe, daqueles que comumente eram<br />

vistos, sobretudo com distanciamento e com a clareza de tratarem -se eles<br />

to<strong>dos</strong> de universos distintos. Portanto, a possibilidade de adequação e<br />

fixação <strong>dos</strong> imigrantes em solo estrangeiro permitiu, ao menos em partes, a<br />

transgressão dessas fronteiras, sua violação e contato contínuo. Nas<br />

palavras de Poutignat e Streiff-Fenart, por que<br />

a etnicidade não é um conjunto imutável de traços culturais<br />

(crenças, valores, símbolos, ri tos, regras de conduta etc.),<br />

transmiti<strong>dos</strong> da mesma forma de geração <strong>para</strong> geração na<br />

história do grupo, ela provoca ações e reações entre este grupo e<br />

os outros em uma organização social que não cessa de evoluir 114 .<br />

112 Cit. p. 297.<br />

113 Catástrofe. Termo hebraico que simboliza as mortes de israelitas durante a segunda grande guerra.<br />

114 POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998.


77<br />

IV.III – OUTRAS DUAS HISTÓRIAS<br />

“Um grupo de sobreviventes de Auschwitz e da Grande Guerra<br />

viaja erraticamente por entre escombros da barbárie, ao sabor do<br />

arbítrio e da burocracia <strong>dos</strong> vencedores. Numa Europa<br />

semidestruída, esta trégua soa como ironia trágica, intervalo<br />

entre a indústria do genocídio e a memória da danação eterna em<br />

cada sonho matinal; também, entre lugares -fantasmas de um<br />

mapa pontilhado de setas <strong>para</strong> o nada. Lento movimento de trens<br />

até a estepe russa, o jogo da sobrevivência é o único retalho do<br />

sentido que se deslocou da história.” 115<br />

Francisco Foot Hardman 116 inicia com estas palavras a breve<br />

apresentação da obra de Primo Levi. La tregua foi publicada pela primeira<br />

vez em 1958, alguns anos após o fim da Segunda Grande Guerra. Primo<br />

Levi nasceu em Turim em 1919, foi químico e destacou-se também como<br />

escritor, atividade a qual se dedicou, sobretudo nos anos pós-nazismo. De<br />

família judaico-piemontesa 117 , foi um sobrevivente de Auschwitz e, pode -se<br />

dizer que dessa condição se esboçou toda a sua obra. A na rrativa 118 , que<br />

segundo Levi conta “coisas verdadeiras, mas filtradas” , situa-se no<br />

ambiente silencioso que se instalou na Europa depois de 1945.<br />

Sobreviventes de um <strong>dos</strong> maiores campos de extermínio da guerra,<br />

Auschwitz, um grupo de pessoas inicia mais um longo capítulo da queles<br />

tempos, que inevitavelmente e mesmo com a memória trágica do terror,<br />

trouxe junto a si inúmeros conflitos: que é agora a Europa? A que<br />

chamamos lar? Por onde devemos seguir? A condição perpetua -se entre os<br />

vitoriosos, a narrativa de Levi apresenta p rincipalmente o contato com o<br />

exército soviético, este o primeiro a estar no coração do III Reich e que<br />

115 LEVI, Primo. A trégua. São Paulo: Cia. Das Letras, 1997.<br />

116 Francisco Foot Hardman é professor titular do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual<br />

de Campinas.<br />

117 Piemonte é uma região situada ao norte da Itália cuja capital é Turim.<br />

118 A Trégua faz parte de uma “trilogia” escrita por Primo Levi, conta ainda com as obras “É isto um<br />

homem?” e “Os afoga<strong>dos</strong> e os sobreviventes”.


78<br />

conduziram este grupo até a Cracóvia, onde foram concentra<strong>dos</strong> em<br />

hospitais, escolas e outros espaços públicos juntamente com outros<br />

sobreviventes.<br />

O argumento não só interessante, mas acima de tudo instigante<br />

do autor nos remete a reflexão que expõe a fragilidade da idéia de que com<br />

o fim <strong>dos</strong> conflitos os sobreviventes estariam a salvo e rapidamente se<br />

reconstruiria suas antigas posições sociais. Em A trégua somos convida<strong>dos</strong><br />

a reconhecer a ineficiência de readequação destas pessoas, as inúmeras<br />

vezes em que foram desacreditadas por suas histórias de cárcere, as pessoas<br />

realmente não podiam acreditar em suas experiências.<br />

“Tínhamos a esperança de uma via gem breve e segura, <strong>para</strong> um<br />

campo pre<strong>para</strong>do <strong>para</strong> nos receber, <strong>para</strong> um substituto aceitável<br />

de nossas casas; e tal esperança fazia parte de uma esperança<br />

maior, a de um mundo reto e justo, milagrosamente restabelecido<br />

em seus fundamentos naturais após uma e ternidade de<br />

transtornos, erros e tragédias, após o tempo de nossa longa<br />

paciência. [...] Mas não; acontecera algo que somente<br />

pouquíssimos sábios dentre nós haviam previsto. A liberdade, a<br />

improvável, impossível liberdade tão distante de Auschwitz, que<br />

apenas nos sonhos ousávamos imaginar, chegara: mas sob a<br />

forma de uma impie<strong>dos</strong>a planície deserta. Esperavam por nós<br />

outras provas, outras fadigas, outras fomes, outros gelos, outros<br />

me<strong>dos</strong>”. 119<br />

A relação entre estranhamento e liberdade pode se configurar<br />

de diferentes maneiras. Embora não estivessem mais sob os olhos <strong>dos</strong><br />

algozes nazistas, o que evidentemente lhes causou o mais profundo <strong>dos</strong><br />

anti-reconhecimentos, o estranhamento e o medo, a idéia de liberdade em<br />

seus imaginários conectava-se diretamente ao reconhecimento, de sons,<br />

cores, cheiros e tudo o que lhes permitisse de volta o mundo que lhes<br />

antecedeu o cárcere. Ingenuamente não se deram conta da nova forma de<br />

liberdade que os aguardou, outras provas, outras fadigas, outras fomes,<br />

outros, outros me<strong>dos</strong>. Percebe-se, talvez totalmente perplexo, o<br />

distanciamento pela própria vida, o estranhamento desta, e não somente<br />

119 LEVI. Cit. p. 54.


79<br />

destes ou aqueles, definitivamente tudo havia mudado e tais feridas jamais<br />

poderiam cicatrizar-se. 120<br />

Uma semana depois do carnaval, no dia vinte e três de<br />

fevereiro de 1942, o casal de emprega<strong>dos</strong> domésticos encontrou Lotte e<br />

Stefan Zweig mortos em duas camas, na casa alugada em Petrópolis<br />

próximo ao Rio de Janeiro. O médico atestou “morte por ingestão de<br />

substância tóxica – suicídio”. 121<br />

O choque e a emoção foram grandes, como comprovam<br />

testemunhas e jornais da época. As fotos da polícia, mostrando o<br />

casal morto, abraçado nas camas simples colocadas lado a lado,<br />

ainda comovem e causam arrepios, e quem as vê não pode deixar<br />

de sentir-se, ao mesmo tempo, um intruso. [...] Como na época,<br />

ainda hoje as pessoas se perguntam por que Stefan Zweig, autor<br />

famoso no mundo inteiro, suicidou -se, e por que sua jovem<br />

esposa, Elisabeth Charlotte, de 34 anos, procurou a mo rte junto<br />

com ele. 122<br />

Certamente, a morte do famoso escritor alemão em um duplo<br />

suicídio com sua esposa ainda antes do fim da segunda guerra chocaram a<br />

to<strong>dos</strong> no Brasil e no mundo. Segundo o próprio autor em carta <strong>para</strong> sua ex -<br />

mulher “a solidão, que no começo tinha efeito tão calmante, começou a ser<br />

opressiva”. Ainda em 1941, Zweig e a esposa conseguiram permissões<br />

120 Segundo a revista <strong>judaica</strong> Morashá, edição 41de junho de 2003 a morte de Levi trouxe alguns<br />

questionamentos sobre um possível suicídio: “Em abril de 1987, aos 68 anos, Primo Levi é encontrado morto<br />

no poço da escadaria do apartamento no qual vivera toda a vida. Na época, sua morte foi atribuída a suicídio.<br />

Acreditou-se que o grande escritor havia posto um fim à vida, pois esta se tornara pesada demais. Mas, nos<br />

últimos anos, três importantes biografias (duas na Inglaterra e uma na França) colocam em dúvida esse<br />

suposto suicídio. Afirmam que, provavelmente, foi um acidente provocado pelos remédios que Primo Levi<br />

tomava na época. Uma das mais completas biografias é da escritora e pesquisadora Myriam Anissimov,<br />

publicada na França em 1996. Primo Levi é retratado como um homem gentil, um tanto reservado. Em sua<br />

essência, era um otimista. Enfrentou a crueldade em sua forma mais irracional. Foi forçado a testar suas<br />

certezas racionais e humanas contra a máquina nazista, determinada a transformar suas vítimas em seres<br />

desprezíveis antes de exterminá-los. Mas, mesmo assim, não perdeu a lucidez, nem sua fé na racionalidade,<br />

sua curiosidade em observar e analisar, mesmo nas horas mais desesperadoras. Por que um homem assim<br />

escolheria o suicídio, pergunta Myriam Anissimov em seu livro. E se ele realmente queria acabar com sua<br />

vida, por que, sendo químico, não usou uma forma menos traumática? Por que não deixou algo escrito, uma<br />

última mensagem? Acreditar que um homem assim se suicidou é difícil, porém a verdade sobre os últimos<br />

instantes do grande escritor nunca será descoberta. Talvez, no fim, Auschwitz tenha atingido seu objetivo,<br />

cobrando-lhe a vida tantos anos depois. Mas não resta dúvida que a vida de Primo Levi pode ser dividida em<br />

dois perío<strong>dos</strong> distintos: antes e depois de Auschwitz.<br />

121 Informações colhidas no prefácio de Ingrid Schwamborn, doutora em Letras Romanas pela Universidade<br />

de Bonn, Alemanha em Grandes mestres da literatura contemporânea – Stefan Zweig, Ed. Record. 1996.<br />

122 Idem.


80<br />

permanentes <strong>para</strong> a estadia no Brasil. Viveram em uma modesta casa de<br />

veraneio em Petrópolis, local este onde escreveu sua obra Schachnovelle ou<br />

Novela de Xadrez, obra que obteve toda a atenção de Zweig em seus últimos<br />

dias. Trata-se esta de uma das primeiras obras literárias com reflexos da<br />

política alemã, ao contrário de suas outras obras, nessa Zweig diminui a<br />

distância em relação a seus próprios sentimentos e também entre tempo<br />

fictício e tempo real.<br />

Trata-se aqui não de um distanciamento nacional ou territorial,<br />

vemos um personagem em puro distanciamento da vida, da impossibilidade<br />

da sensibilidade, da arte, <strong>dos</strong> espíritos criadores frente à barbárie <strong>dos</strong><br />

tempos vivi<strong>dos</strong>. Ainda que tendo decla rado amor ao país acolhedor, o seu<br />

<strong>para</strong>íso, em pleno inferno mundial, a vida se tornou insuportável <strong>para</strong> ele.<br />

Antes de morrer tomou todas as providências necessárias <strong>para</strong> que sua obra,<br />

finanças e todas as atividades particulares em geral fossem devi damente<br />

deixadas em ordem pelo escritor, preocupava-se sobretudo com o destino de<br />

sua produção literária, tendo por isto enviado diversos exemplares <strong>para</strong><br />

amigos e editores, entre eles um brasileiro, Abrahão Koogan, que recebeu<br />

de Zweig um exemplar de Schachnovelle. Anos mais tarde a editora<br />

Guanabara, de Waismann e Koogan, com tradução do médico Odilon Galotti<br />

foi a primeira a publicar a obra em âmbito mundial.<br />

Naqueles anos trinta no Brasil, dizem os biógrafos, Stefan<br />

Zweig foi um <strong>dos</strong> escritores mais fotografad os e li<strong>dos</strong> no país 123 , recebeu<br />

homenagens de autoridades políticas e também da Academia Brasileira de<br />

Letras, onde em discurso dizia estar envergonhado por to<strong>dos</strong> conhecerem<br />

tanto de sua obra e ele tão pouco sobre a literatura brasileira. Tais<br />

depoimentos deixou em “Pequena viagem ao Brasil” (Kleine Reise nach<br />

Brasilien) e “Brasil, país do futuro”. Este último, o mais famoso de seis<br />

livros no Brasil, escreveu em 1940, publicado pela editora Guanabara em<br />

1941. As belezas naturais, a popularidade, a cultura do p ovo, o caráter<br />

123 Os livros de Stefan Zweig foram queima<strong>dos</strong> na Alemanha em 1933 e sua antiga editora Insel, não mais o<br />

publicava.


81<br />

“amável e pacífico” das pessoas, a aparente ausência de barreiras, tudo isso<br />

proporcionou a Stefan Zweig um sentimento tranqüilizador, apaixonante<br />

pelo Brasil, como ele mesmo disse “eine Seelenkur” ou uma “cura de alma”.<br />

Porém, as estreitas relações surpreendentemente construídas tão<br />

rapidamente não foram suficientes <strong>para</strong> Stefan Zweig, o horror daqueles<br />

tempos o abatera profundamente. Paradoxalmente, o escritor abandonou o<br />

solo de seus ancestrais e de seus contemporâneos pátrios, teve seu tr abalho<br />

destruído e sua família ameaçada, os amigos mortos ou expulsos de suas<br />

casas e de seus países. Chegando ao Brasil, uma acolhedora recepção, em<br />

pouco tempo um visto definitivo, o clima tropical, a popularidade, os<br />

livros. Não haveria outra palavra senão mesmo <strong>para</strong>íso <strong>para</strong> aqueles que<br />

conseguiram refugiar-se fora da Alemanha ou <strong>dos</strong> territórios anexa<strong>dos</strong>, feito<br />

Zweig, que era austríaco e não alemão.<br />

Embora as transformações pudessem permitir uma tranqüila<br />

estadia no Brasil, o suicídio lhe veio como a ta ntos outros, a depressão, a<br />

solidão e a angústia daqueles dias foram insuportáveis a ele. Em sua última<br />

novela, “Schachnovelle”, alguns dizem que buscou expor uma nova<br />

modalidade de tortura, mas <strong>para</strong> outros queria apenas relaçar a luta da<br />

sensibilidade e intelectualidade contra a brutalidade e a barbárie, as<br />

questões que atormentam o personagem Dr. B, que havia sido enterrogado<br />

pela Gestapo, certamente incomodavam também a Stefan Zweig. Não por<br />

acaso, o suicídio é uma temática abordada na maioria de suas ob ras, em<br />

“Schachnovelle”, seu único livro escrito inteiramente no Brasi l, nenhum<br />

<strong>dos</strong> personagens pensa em suicidar-se. Segundo Ingrid Schwamborn “A vez<br />

agora, era do próprio autor. Xeque-mate no <strong>para</strong>íso” 124 .<br />

124 Grandes mestres da literatura contemporânea – Stefan Zweig, Ed. Record.


82<br />

V - CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O caráter historiográfico da pesquisa é essencial neste trabalho.<br />

Aquilo que foi pretendido aqui foi somente uma tentativa de ampla<br />

exposição de um tema antes determinado: a construção histórica <strong>dos</strong><br />

<strong>ressentimentos</strong> a partir da experiência de refugia<strong>dos</strong> alemães -judeus<br />

estabeleci<strong>dos</strong> na cidade de Rolândia-PR.<br />

A segunda grande guerra (1939-1945), sem dúvida alguma,<br />

trouxe e ainda reflete em toda a comunidade israelita, um tipo de memória<br />

recente que expõe talvez o evento de maior teor trágico <strong>para</strong> a história deste<br />

grupo. Desta forma, aquilo a que nos submetemos resolver, foi de encontro<br />

a um tema bastante delicado, sobretudo quando pretendemos realizar uma<br />

reconstrução ou ainda desconstrução de um lado assim por dizer, bastante<br />

subjetivo da experiência individual e coletiva da queles que se<br />

estabeleceram em território brasileiro.<br />

A pesquisa permitiu, através do contato com a narrativa<br />

produzida por Max Hermann Maier e Mathilde Maier, observar não apenas<br />

como reagiram aos eventos que marcaram a Europa entre as décadas de<br />

1930 e 1940, mas ainda como estes imigrantes desenvolveram sua memória<br />

a respeito destes eventos e também como a construção de um “porto seguro”<br />

lhes permitiu superar de alguma maneira a experiência da hostilidade e da<br />

aversão étnica.<br />

Quando tratamos aqui de uma superação, não estamos nos<br />

referindo a um tipo de esquecimento, mesmo porque o esquecimento das<br />

tragédias coletivas não faz parte da tradição <strong>judaica</strong>, ao contrário, é preciso<br />

sempre reforçar tais acontecimentos, de forma que estes identificam e<br />

marcam as características do grupo ao longo de sua própria história. E isto<br />

o fazem com seriedade.<br />

A questão <strong>dos</strong> <strong>ressentimentos</strong> apresenta uma referência social,<br />

de forma que a sua possibilidade de existência se faz a partir de uma


83<br />

relação entre os sujeitos e as práticas socialmente determinadas. Sendo<br />

assim, não tratamos aqui de subjetividades alheias e independentes, ao<br />

contrário, é preciso que a reflexão seja inteiramente relacionada ás práticas<br />

sociais e assim podê-las determinar historicamente.<br />

A literatura enquanto fonte da investigação historiográfica<br />

permite ao historiador uma observação que nos parece diferenciada.<br />

Enquanto o tratamento com documentos ditos formais exigem uma precisão<br />

e um tipo específico de questionamento, o uso de obras ditas literárias e em<br />

nosso caso, memorialísticas, exige uma atenção porque aparece como uma<br />

mistura entre aquilo que a priori é entendido enquanto relato de uma<br />

experiência e aquilo que pode esporadicamente ser construído por seus<br />

autores enquanto ocultação, ou seja, um cui dado dado ao tratamento de suas<br />

narrativas, de forma que isto é, então, a determinante <strong>para</strong> o investigador.<br />

Desconstruir as formas como se criam narrativas e a elas dão um teor de<br />

verdade, de narração exata de uma experiência trágica. Ora, o caráter<br />

trágico de suas narrativas é justamente o elemento que nos conduziu a este<br />

estudo. E sendo assim, o objetivo foi retirar de seus “não ditos” aquilo que<br />

pudesse ser pertinente ao nosso trabalho.<br />

No caso do texto de Mathilde Maier, Os jardins de minha vida,<br />

a narrativa possui, por detrás de uma história aparentemente particular, que<br />

busca um retrospecto desde a infância, uma experiência do cotidiano, uma<br />

exposição de <strong>ressentimentos</strong> liga<strong>dos</strong> a formação de jardins, que<br />

simbolicamente expuseram tudo aquilo que a autor a possuía dificuldade em<br />

relatar explicitamente. A violência, seja física ou moral, não é algo que se<br />

trate facilmente, sendo assim a conveniência de um texto escrito a partir de<br />

memórias individuais, pode de alguma forma, retroceder a tudo aquilo que<br />

porventura se vive com resistência. Em outros casos, poderíamos sim,<br />

encontrar pensamentos que se colocaram de forma a serem igualmente<br />

violentos, taxativos, denunciadores de uma situação vivida. Embora<br />

Mathilde fale constantemente <strong>dos</strong> dias experimenta<strong>dos</strong> na A lemanha, da<br />

saudade de outros tempos, e a idéia de uma narrativa autobiográfica deixa


84<br />

isso bastante claro, os <strong>ressentimentos</strong> não são expostos trivialmente. Há um<br />

cuidado com aquilo que pretende falar de si mesma e da forma como<br />

lidaram com os acontecimentos.<br />

O texto de Max Hermann Maier possui grandes diferenças. Sua<br />

narrativa é feita de maneira mais formal, ou como escreveu Elmar Joenck,<br />

professor que auxilio Mathilde Maier no término da tradução de Um<br />

advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva b rasileira – relato de<br />

um imigrante (1938-1975), Max se expressou em exata terminologia,<br />

clássica, científica e jurídica. 125 Sendo assim, Max Hermann Maier<br />

procurou escrever de maneira mais concisa, onde os eventos não são<br />

evita<strong>dos</strong>, mas escritos de forma diferente.<br />

As narrativas se encontram em muitos momentos, embora sejam<br />

diferentes naquilo que poderíamos chamar de uma estrutura pessoal na<br />

natureza de seus discursos. A questão da imigração <strong>para</strong> o Brasil, os<br />

primeiros acontecimentos em São Paulo por ocasião da chegada, alguns<br />

elementos da perseguição nazista e a forma como foram trata<strong>dos</strong> no<br />

momento em que deixavam a Alemanha, enfim, não poderiam de outra<br />

forma tratar de assuntos distintos que não tomassem estes acontecimentos<br />

como importantes no decorrer da escrita, ainda assim, Max Hermann Maier<br />

se utiliza de um discurso que percorre os <strong>ressentimentos</strong> de forma<br />

redentora, ou seja, se preocupa com a maneira como expõe a construção de<br />

novos cotidianos, da superação de eventos de outrora.<br />

Entre livros, música, teatro, política, plantações de café e<br />

percepções imediatas de um mundo que se transformava a cada momento, os<br />

Maier e outros imigrantes criaram novas maneiras de cotidiano, de<br />

experimentação e construção de realidade. Os <strong>ressentimentos</strong> se refletem<br />

sobretudo na fragmentação de valores antigos, na permanência de tradições<br />

germânicas orientadas pela filosofia, literatura e religião.<br />

125 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. página 6.


85<br />

O elemento religioso, presente nas narrativas de ambos os<br />

autores, não é tomado da maneira como se poderiam imaginar judeus<br />

praticantes de uma ortodoxia. O judaísmo os servia mais como uma<br />

referência étnica e transmissora de valores e não uma postura assumida<br />

radicalmente. Certamente, que os chama<strong>dos</strong> “judeus de Hitler”, que pela<br />

expressão política do partido nazista foram necessari amente assim<br />

designa<strong>dos</strong>, estavam mais assimila<strong>dos</strong> a cultura germânica e ao espírito<br />

europeu do início de século do que ao próprio judaísmo instituído enquanto<br />

prática determinante de suas personalidades.<br />

Talvez seja este um ponto importante <strong>para</strong> a reflexã o acerca<br />

daqueles que foram obriga<strong>dos</strong> a abandonar seu país de origem. Embora<br />

judeus, eram alemães. Em alguns momentos isto se tornou um problema no<br />

Brasil <strong>para</strong> os refugia<strong>dos</strong>, visto que uma vez fora da Alemanha, era<br />

determinado que se colocassem como “sem p átria”, não podendo estes, por<br />

exemplo, em situações formais, apresentarem -se enquanto alemães:<br />

“Meu sócio e eu nos inscrevemos num pequeno albergue, onde<br />

queríamos pernoitar, informando sermos “sem nacionalidade”,<br />

que nesse tempo era uma espécie real de estado civil. O governo<br />

nazista da Alemanha recusara aos judeus a nacionalidade alemã.<br />

Em seguida mandaram-nos dar uma chegada, à noite, ao gabinete<br />

do chefe de polícia. Este disse ser obrigado a nos prender no<br />

caso de insistirmos ser sem nacionalidade”. 126<br />

Desta forma, os problemas com a Alemanha não foram extintos<br />

no momento em que se refugiaram no Brasil, sobretudo no período em que<br />

os nazistas ainda governavam o país. Eles mantiveram -se e trouxeram aos<br />

alemães-judeus uma confusão acerca de suas própri as identidades. E o<br />

chamado aqui de confusão, é por outro lado, a reflexão que permeia uma<br />

formação direta de um tipo de ressentimento <strong>para</strong> com aqueles que lhe<br />

negaram o direito de permanecerem alemães: Profundas eram nossas raízes<br />

126 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 19.


86<br />

na Alemanha; gostávamos demais de nossa casa, linda, com grande jardim,<br />

no bairro de Holzhausen Park, na Rua Kleeberg. 127<br />

Questões identitárias, formações de jardins em diversas partes<br />

da Europa e novos jardins no Brasil, a guerra, a violência; varia<strong>dos</strong><br />

elementos que permearam a situação de refugia<strong>dos</strong> que se espalharam por<br />

muitas regiões do continente americano. A experiência aqui demonstrada<br />

surgiu da relação entre potencialidades de uma perspectiva política que se<br />

utilizou do anti-semitismo como valor de ordem e manutenção de uma<br />

verdade e a coisa em si refletida pragmaticamente, ou seja, na forma como<br />

aqueles que se tornaram hostiliza<strong>dos</strong> reagiram, mantendo assim a<br />

possibilidade de sobrevivência.<br />

127 MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um<br />

imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im<br />

Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.<br />

Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 10.


87<br />

VI – ANEXOS<br />

VI.I – FOTOGRAFIAS<br />

Ilustração 1 128<br />

128 A Menorah significa candelabro, suporte <strong>para</strong> lâmpadas. Tradicionalmente a Menorah<br />

possui 07 lumes de lâmpadas, uma haste central e 03 braços que saem de cada lado.


88<br />

Ilustração 2 129<br />

129 Interior da casa de Max e Mathilde Maier.


89<br />

Ilustração 3 130<br />

130 Biblioteca da casa.


90<br />

Ilustração 4 131<br />

131 Piano vertical.


91<br />

Ilustração 5 132<br />

132 Visão lateral.


92<br />

Ilustração 6 133<br />

133 Varanda.


93<br />

Ilustração 7 134<br />

134 Detalhe da construção, o desnível do terreno fez com que a arquitetura da casa recorresse a uma estrutura<br />

lineadora.


94<br />

Ilustração 8 135<br />

135 Varanda.


95<br />

Ilustração 9 136<br />

136 Visão frontal.


96<br />

Ilustração 10 137<br />

137 Visão lateral.


97<br />

Ilustração 11 138<br />

138 Mata ao redor da casa.


98<br />

Ilustração 12 139<br />

139 Entrada da fazenda Jaú, Rolãndia-PR.


99<br />

VI.II – ENTREVISTA<br />

ENTREVISTA - Klaus Kaphan – 20/10/2006 – 15 horas – Fazenda Jaú<br />

K. K:[...] Tudo bem. E, agora, vocês querem que eu conte o que?<br />

Bom, quanto tempo faz que o senhor está aqui em Rolândia?<br />

K.K.:Faça a conta, de 1936 pra cá. Junho de 36.<br />

E como que o senhor veio pra cá?<br />

K.K.:Como ou por quê?<br />

Como...<br />

K.K.:Eu vim de trem (risos)<br />

O senhor desceu em Santos?<br />

K.K.:Desci em Santos, <strong>para</strong>mos em São Paulo e viemos pra cá.<br />

Mas, quais foram as circunstâncias, por que Rolândia.?<br />

K.K.:Bom, o negócio foi o seguinte, como você disse, nós fomos judeus e meus pais<br />

reconheceram em tempo o que tava ... o que iria acontecer na Alemanha e teve a<br />

possibilidade de escolher entre ir <strong>para</strong> Israel e vir <strong>para</strong> o Brasil. E, como naquele tempo<br />

tinha a Companhia de Terras Norte do Paraná que vendia, que tinha essa concessão, uma<br />

área grande aqui no norte do Paraná <strong>para</strong> colonizar e vender terras. Estavam vendendo<br />

terras na Alemanha. Meus pais...meu pai conseguiu vender a propriedade dele lá e com esse<br />

dinheiro comprar um vale <strong>para</strong> x hectares de terra dessa companhia. Essa companhia, pelas<br />

informações que meus pais receberam, era uma companhia séria, como realmente foi, mas<br />

ele poderia ter também chegado aqui no Brasil com um pedaço de papel na mão, com a<br />

esposa e três crianças pequenas e não encontrar nada, né. Mas, deu tudo certo, então...foi<br />

assim que nós chegamos. Chegamos em São Paulo, depois pegamos o trem, ai os meus pais<br />

me deixaram em São Paulo com as crianças na casa duma senhora que tinha uma pensão e<br />

meus pais vieram de trem pra Rolândia que foi a ultima estação que tinha naquele tempo<br />

Terminava ai ... Quer tomar um suco?


100<br />

Então, pelo que o senhor fala foi muito tranqüila a vinda do senhor pra cá.<br />

K.K.:Nossa vinda foi tranqüila, que as coisas ficaram feias mesmo só depois disso, só em<br />

38, 39, que... Agora já quando nós saímos da Alemanha, minha irmã mais velha já sentiu<br />

muita discriminação contra judeus na Alemanha, na escola, pelos professores e tudo isso.<br />

Eu era menor e tava numa escolinha, numa vila perto da fazenda do meu pai, então eu<br />

quase num...<br />

Qual era a idade do senhor?<br />

K.K.:Eu tinha nove anos e... chegamos aqui em Rolândia, meu pai alugou uma casinha na<br />

cidade. A cidade que tinha acho tinha dez, quinze casas, ou menos. Então ele pôde, com a<br />

ajuda do pessoal da Companhia de Terras, pôde escolher onde ele queria a terra, escolheu<br />

essa área aqui, abriu uma clareira e construiu a casa, que é logo ali na frente. Aquela casa<br />

amarela lá pra frente. E, hoje minha filha mora lá. E estamos aí desde 15 de janeiro de<br />

1937, que nós moramos aqui na fazenda.<br />

E, assim, a família do senhor seguia o judaísmo?<br />

K.K.:Não, éramos... meus pais eram bastante liberais, vamos dizer assim. Não éramos<br />

ortodoxos, nem nada, como a maioria das famílias que vieram pra cá naquele tempo. E a<br />

gente... Eles, os adultos se, como posso dizer, eles se juntaram em grupos muito menos pela<br />

religião do que pela descendência de país, por causa da língua e tudo isso. Cultura que<br />

tinham. Então não houve mesmo uma comunidade <strong>judaica</strong> por aí. Teve relativamente<br />

poucos, não teve oitenta imigrantes judaicos aqui em Rolândia, de maneira nenhuma.<br />

Não chega?<br />

K.K.:Não chega a isso, nem de longe. Não sei se vocês sabem que <strong>para</strong> certas cerimônias<br />

<strong>judaica</strong>s[...] quando precisavam fazer uma cerimônia, por exemplo, mesmo um enterro ou<br />

qualquer coisa, tinha que ter treze pessoas, treze homens <strong>para</strong> poder fazer uma celebração<br />

de qualquer coisa <strong>judaica</strong>, né. E, às vezes era difícil encontras treze pessoas, treze homens<br />

adultos <strong>para</strong> fazer.<br />

Aqui em Rolâdia?<br />

K.K.:Aqui em Rolândia. Eu acredito que, assim pode ser que não existam oitenta então, que<br />

seja, né. Mas, existe então um número significativo de famílias judias aqui em Rolândia.


101<br />

Bom, hoje tem muito menos ainda, mas não vieram oitenta famílias pra cá. Hoje a maioria<br />

ou voltaram pra Alemanha, a maioria também já morreram do pessoal que vieram, também<br />

os meus pais e nossos vizinhos, inclusive.<br />

Mas, vieram algumas famílias de judeus pra cá. E, aqui? Vocês se sentiam seguros aqui, em<br />

relação às perseguições que vocês estavam sofrendo?<br />

K.K.:Se a gente se sentia seguro? Sim. Muito, muito, nossa! Bom, meus pais se sentiram<br />

muito bem aqui e nós, crianças, nós... Bom, eu não tenho mais nenhuma ligação com a<br />

Alemanha, eu falo alemão porque meus pais falaram, mas vivi aqui, to naturalizado, meus<br />

filhos são brasileiros, meus netos são brasileiros, então...<br />

O senhor nunca teve a intenção de voltar pra lá?<br />

K.K.:Não.<br />

O senhor se sente brasileiro?<br />

K.K.:Me sinto brasileiro e to muito bem aqui. O pouco tempo que me resta, quero ficar<br />

aqui.<br />

E, quanto ao judaísmo, o senhor se considera um judeu?<br />

K.K.:Bom, eu me considero judeu de descendência, vamos dizer assim. Eu não sou<br />

religioso, nem nada. Não sou praticante. Eu sou judeu porque meus pais eram e na<br />

Alemanha, naquele tempo eu seria considerando judeu, como era, não sei quantas gerações<br />

pra trás.<br />

Sim, mas aqui existiu certa se<strong>para</strong>ção entre os judeus e os outros que não eram judeus.<br />

Existe até o clube concórdia que dizem ter sido um clube nazista, fundado por eles...<br />

K.K.:Bom, principalmente naquele tempo existiam alguns, talvez ainda existam alemães<br />

que vieram, às vezes são descendentes de alemães que ainda acham, que se acham nazistas,<br />

mas nós não... aqui muito pouco. Mas aqui, quando eles vinham pra cá, não tinham...Tinha.<br />

Tinha os alemães que eram nazistas, tinham.<br />

E como eles tratavam vocês?


102<br />

K.K.:Bom, a gente não se misturava, eles formavam o grupo deles e a gente se mantinha<br />

se<strong>para</strong><strong>dos</strong>, não queria saber de política (risos) e cada um queria viver em paz.<br />

E os judeus que vieram pra cá, houve uma união entre essas famílias aqui?<br />

K.K.:Houve uma união assim, não tanto pela religião, quanto pelo grupo <strong>dos</strong> judeus. E<br />

houve também, teve muitos imigrantes não-judeus e que faziam parte do grupo, teve muita<br />

gente que saiu por motivos políticos ou simplesmente não concordavam com o que tava<br />

acontecendo lá.<br />

O Sr. Max Hermann Maier, era sócio do senhor?<br />

K.K.:Era sócio do meu pai.<br />

Eles tinham um alojamento <strong>para</strong> estudantes, não tinham?<br />

K.K.:Tinha. Isso era aqui na fazenda. Eram, meu pai com doutor Maier, juntos e, eles eram<br />

sócios, os dois eram donos daqui da fazenda e tinham, existia um plano de trazer filhos de<br />

proprietários de gente que tinham comprado terras também mais que não vieram e os filhos<br />

deles eram pra vir pra cá pra tomar posse da terra que os pais compraram e aqui ia ser um<br />

centro de treinamento de adaptação eram pra vir quinze, dezesseis jovens, principalmente<br />

de uma escola agrícola alemã, mas judia e desses quinze, dezesseis, não sei mais quantos<br />

eram um único conseguiu vir. A maior parte não conseguiu sair da Alemanha, morreram<br />

em campos de concentração e outros conseguiram sair <strong>para</strong> outros paises e não<br />

conseguiram vir ao Brasil. Então só teve uma pessoa desse grupo de jovens que chegou.<br />

Chegou aqui, morou aqui, e inclusive depois casou com uma irmã minha e ele já faleceu há<br />

tempo também. O nome dele era Hans Rosenthal. Depois ele casou com dona Inge, não sei<br />

se vocês já... Inge Marie Rosenthal que ainda mora aqui na fazenda inclusive.<br />

Então assim, a princípio a ideia era trazer estudantes e refugia<strong>dos</strong>, ao mesmo tempo? Ou<br />

eram só estudantes?<br />

K.K.:Eram estudantes e refugia<strong>dos</strong> ao mesmo tempo. Não, não, judeus, porque aquela<br />

escola era judia. Era uma fazenda – escola. E era pra vir pra cá, se adaptar aqui pra depois<br />

cada um ir pro seu lado.<br />

Existe alguma coisa, mesmo que ruína desse alojamento?


103<br />

K.K.:Não. Foi demolido. Existe da madeira daquele lá, ai onde vocês <strong>para</strong>ram ai, a casa da<br />

direita, o escritório da fazenda, isso foi feito de parte da madeira. Mais isso já faz muitos<br />

anos.<br />

E a adaptação da família do senhor aqui. Não era cidade, né, mas era tudo, acredito que<br />

mato fechado. Foi difícil a adaptação?<br />

K.K.:Bom, quando gente já de idade, não era fácil, né? Chegar num país estranho,<br />

praticamente sem dinheiro, três filhos pequenos, sem saber falar a língua e conhecer... e o<br />

clima diferente e tudo mais, não foi fácil. Agora, meu pai sempre era otimista, meu pai se<br />

adaptou mais fácil, ele não falava o português no começo, mas se fazia entender. E no fim<br />

ele era um <strong>dos</strong> poucos agricultores já que tinha propriedade na Alemanha antes, que tinha<br />

propriedade agrícola, então ele ajudou muito os outros aqui, aconselhando e na parte<br />

agrícola, coisa que ele sabia, ele conseguiu ajudar muita gente aqui.<br />

Ele tinha intenção de voltar <strong>para</strong> Alemanha?<br />

K.K.:Nunca. Nunca. Bom, depois que se sai tocado de um lugar, de um lugar onde<br />

assassinaram teus parentes to<strong>dos</strong>, que quase ninguém escapou de lá, você tem... eu pelo<br />

menos não pretendo, nunca quero voltar pra lá, que pras pessoas mais velhas eu não posso<br />

olhar nem na cara assim dizer: será que você tava no meio disso? Será que você matou<br />

meu tio?<br />

Mas o senhor voltou <strong>para</strong> lá depois?<br />

K.K.:Não.<br />

Nem pra visitar?<br />

K.K.:Nem pra visitar. Não quero, não. Eu falo alemão, tenho amigos alemães e tudo isso,<br />

mas eu não me sentiria à vontade lá, de jeito nenhum.<br />

Tem alguém da família do senhor lá?


104<br />

K.K.:Na Alemanha não. E mesmo que tivesse, eu pessoalmente, eu não... eu sempre falei<br />

que não quero, e não vou, não vou mesmo.<br />

Veio a família do senhor <strong>para</strong> cá, seus pais e seus irmãos, mais ficaram ainda familiares do<br />

senhor na Alemanha?<br />

K.K.:Ficaram. Ficou minha vó, que é a mãe da minha mãe e ficou o pai do meu pai. E eles<br />

conseguiram vir em 38. Eles ainda vieram, viveram aqui com a gente até falecer. Fora os<br />

outros parentes que conseguiram sair, estão esparrama<strong>dos</strong> pelo mundo, em Israel, uns<br />

foram pra China primeiro e outros lugares. O único parente nosso que veio <strong>para</strong> cá,<br />

independente da gente, não sei se vocês já ouviram falar do Max Moser? Ele era primo do<br />

meu pai.<br />

O senhor falou que a maioria das famílias que vieram <strong>para</strong> cá, já eram mais liberais, que<br />

não seguiam tanto o judaísmo, mas em alguns momentos vocês tentavam seguir a tradições<br />

porque o senhor mesmo fala que...<br />

K.K.:Bom, meus pais tentaram manter as festas religiosas, por exemplo. Nós tínhamos no<br />

começo, como não tinha escola, a gente tava longe da cidade, mesmo na cidade não tinha<br />

escola, então veio uma moça junto com meus pais <strong>para</strong> ser professora nossa no primeiro<br />

ano, depois ela foi embora, veio um casal também eram refugia<strong>dos</strong> alemães, também eram<br />

professores e viveram aqui por três anos.<br />

Quem era esse casal?<br />

K.K.:Esse casal era, ele chamava [...], acho que ninguém menciona, eles moraram aqui na<br />

fazenda e deram aulas em alemão, um curso mais ou menos escolar e deram aula de<br />

religião também. Sabiam um pouquinho de religião. Mas ficou nisso, quando tinham as<br />

festas, ano novo e o dia do perdão, tudo ai então eles celebravam com a gente, pra manter a<br />

tradição. Agora, tem outras famílias que mantém mais a religião ainda, por exemplo, a<br />

senhora Inge Rosenthal, ela é muito mais, não é ortodoxa nem nada, mas é mais, como<br />

posso dizer? Se identifica muito mais ainda com a religião judia, entendeu?<br />

Tem famílias que, mesmo que não fossem tão praticantes lá, na Alemanha, quando eles<br />

vieram pra cá, eles tentaram resgatar esse passado deles.<br />

K.K.:Não, claro. No começo era isso e era a cultura alemã, que a geração anterior a minha,<br />

quer dizer, esses que vieram, tentaram manter a cultura, que é uma cultura diferente da<br />

cultura daqui.


105<br />

Sim. Existia até um clube, né, que é o Pró- Arte.<br />

K.K.:Tinha o Pró-Arte, que o Dr, Max Hermann Maier era, naquele tempo ele era o líder,<br />

faziam palestras e convidavam, tinha alguma pessoa em São Paulo, que entendia de alguma<br />

coisa, e to<strong>dos</strong> ficavam pra dar uma palestra aqui...e, uma porção de coisa assim, né.<br />

Então, mas nós percebemos, assim, que nos dois cemitérios daqui, que a maioria desses<br />

judeus, em suas sepulturas, eles acabam seguindo um pouco a tradição.<br />

K.K.:Como assim?<br />

Da própria arquitetura tumular, a questão do túmulo ser perpétuo...<br />

K.K.:Sim, mas isso não é, não é típico judeu, isso é típico alemão e mesmo aqui, talvez, o<br />

jeito de pedra das lápides ai, <strong>dos</strong> meus pais, vocês devem ter visto lá, tem uma pedra pesada<br />

que nós pusemos lá. E, mas...mas isso não é tradição, assim...é mais, é...pessoal.<br />

E, quanto ao velório <strong>dos</strong> pais do senhor? Como que foi?Vocês seguiram a tradição?<br />

K.K.:Foi seguida a tradição um pouco, que tinha uma pessoa em Londrina que...que<br />

ajudava, que vinha celebrar um pouco. Mas não, sabe, eu, pessoalmente não...não, como se<br />

costuma dizer? Não simpatizava, não é certo. Mas eu não fazia questão, vamos dizer assim.<br />

Quando o senhor veio pra cá, se o senhor lembrar, vocês trouxeram muitas coisas?<br />

K.K.:Bom, o que a gente podia trazer, trazia. As caixas, caixote grande de coisas que<br />

podiam trazer, que gente vinha de navio então não era tão difícil. Naquele tempo não tinha<br />

avião. Tinha avião, mas não tinha aviões de passageiros, assim constantes como tem hoje,<br />

então a gente podia trazer mais coisas. Trazia utensílios de casa, um pouco de ferramentas<br />

que a gente achava que um dia podia usar aqui. Ferramentas de carpinteiro, ferreiros, de<br />

coisas que podiam usar ai, na fazenda, né.<br />

Livros?


106<br />

K.K.:Livros, muitos livros. Isso, como eu falei sobre a cultura dessas pessoas. Tem na casa<br />

do Max Hermann Maier ainda existe, ela está aqui, está vazia no momento, está muito bem<br />

conservada.<br />

Nós podemos fotografá-la?<br />

K.K.:Pode. O meu filho assumiu aquela casa. Meu filho mora em São Paulo, mas ele tem a<br />

família, e eles querem, tão logo que eles podem, eles querem renovar a casa e usar ela <strong>para</strong><br />

férias e tudo isso. E, na sala você vai ver que tem a biblioteca ainda, é uma parede enorme,<br />

cheia de livros, ta lá ainda, os livros estão lá. A <strong>dos</strong> livros deles estão lá.<br />

Eram romances?<br />

K.K.:Tinha de tudo, né. De todo. Mas, mais era literatura.<br />

Filosofia?<br />

K.K.:È, filosofia e. como te diria, autores antigos e conhecidamente... não sei como<br />

explicar (risos). Que tudo isso fazia parte da cultura européia e a cultura alemã, né. Eram os<br />

...<br />

E assim, o senhor veio <strong>para</strong> cá quando tinha nove anos, o senhor era pequeno. Os pais do<br />

senhor incentivavam o senhor a ler aqueles livros?<br />

K.K.:É, mais eu nunca era de ler muito aqueles. Eu li muito pouco daquilo, li e sei sobre<br />

eles alguma coisa, mas tem gente muito mais culta (risos).<br />

Não ter se formado então essa comunidade <strong>judaica</strong>, então o senhor realmente atribui isso ao<br />

fato de que esses judeus não seguiam tanto a tradição, eles eram mais liberais, não envolve<br />

questão financeira, de não conseguir construir uma comunidade...?<br />

K.K.:Não, não.<br />

A questão da perseguição, aqui também não tinha perseguição?<br />

K.K.:Não, perseguição não tinha nenhuma.


107<br />

Nenhuma?<br />

K.K.:Ao contrário, durante a guerra os alemães que eram... eles não podiam falar alemão na<br />

rua. Eu estudei em Londrina, estive um ano do ginásio londrinense, que nem existe mais<br />

hoje e quando eu vinha <strong>para</strong> casa em algum fim de semana, tinha que ir na delegacia tirar<br />

salvo conduto <strong>para</strong> poder ir viajar de jardineira ou de trem de Londrina a Rolândia. E tem<br />

alemães nazistas que ficaram presos, foram presos por se manifestarem nazistas. Ficaram<br />

presos durante a guerra.<br />

E, assim quanto à questão do senhor Nixdorf, senhor Oswald Nixdorf, existem alguns<br />

relatos de que ele seria nazista.<br />

K.K.:É o que dizem. Pessoalmente não sei, ouvi falarem isso e acredito que tenham sido,<br />

agora, dizer que ele foi eu não posso porque ele nunca me falou nada (risos).<br />

Mas assim, aqui o senhor não tinha contato com ele assim, e com a família dele?<br />

K.K.:Não, muito pouco. Eu conheço o filho dele, o Klaus Nixdorf, mas também conheço,<br />

né? Ele é uma pessoa que gosta de cultivar o germanismo que disso eu mantenho longe, né?<br />

[...] <strong>dos</strong> judeus que ainda moram aqui em Rolândia, ela, Suzanne Behrend...<br />

Que também era liberal.<br />

K.K.:Era liberal e a dona Inge Rosenthal, o Bruch, inclusive vocês entrevistaram a filha<br />

dele por acaso?<br />

A Léa? Sim, temos entrevista marcada.<br />

K.K.:O Bruch passou um tempo aqui na fazenda trabalhando com a gente, trabalhou em<br />

muitas fazenda ai, e só tem ela agora, a Lea do pessoal daquela família.<br />

Se eu não me engano, a dona Mathilde Maier, ela não dava aula de hebraico?<br />

K.K.:Ela dava aula de hebraico, tentou dar <strong>para</strong> nós, tentou dar aulas <strong>para</strong> os meus filhos.<br />

Ela era uma personalidade interessante. Ela escrevia. Vocês leram os livros dela, Os jardins


108<br />

da minha vida, ela dava aula, mas hoje em dia ela não esta mais ai, nem o Rafael nem<br />

ninguém se interessou pela religião (risos). Agora você diz ai no cemitério São Rafael...<br />

você vê que tem muito poucas sepultura de judeus lá. Poucas, tem muitos alemães, não sei<br />

porque eles se uniram lá...[...]<br />

K.K.: Existe até uma certa diferença, uma certa simbologia, a questão das pedras...<br />

Sim. Mais eu vejo isso muito mais uma questão individual, pessoal do que... cavar o<br />

terreno, não sei se você viu que tem a sepultura <strong>dos</strong> meus pais e atrás nos pusemos a lapide<br />

do meu avô, e tem a estrela de Davi nela e logo atrás a da minha avó também.Mas isso ai é<br />

tudo diferente, cada um faz do seu jeito, ninguém fala que tem que ser assim, que tem que<br />

ser daquele jeito. Pra mim, pessoalmente, eu nunca vou negar que sou judeu, inclusive que<br />

nasci judeu, judeu <strong>para</strong> mim não é uma raça, como Hitler queria que fosse, <strong>para</strong> mim judeu<br />

é uma religião como posso ser muçulmano, posso ser católico ou budista. Eu pessoalmente<br />

sou mais hinduísta do que judeu, nós temos um grupo de meditação em Londrina, que<br />

segue um guru indiano. Se quiser assim, não sou mais judeu. Eu sou judeu porque nasci<br />

judeu, nunca vou negar que sou, né.<br />

[...]<br />

K.K.:Ele (Max Hermann Maier) levanta umas questões de não ter se formado uma<br />

comunidade pelo fato da questão financeira, porque...<br />

Eu não acredito que seja isso.<br />

[...] A Companhia de Terras tinha um contrato com o governo brasileiro de construir uma<br />

estrada de ferro atravessando essa concessão de terras que eles tinham e de fundar, ao longo<br />

dessa estrada de ferro, a cada dez, quinze quilômetros um núcleo, <strong>para</strong> ser uma futura<br />

cidade. É o que fizeram. E, <strong>para</strong> construir essa estrada de ferro, eles compraram na<br />

Alemanha trilhos, locomotivas, vagões, pagando em dinheiro alemão e, meus pais e muitos<br />

imigrantes pagaram <strong>para</strong> a companhia inglesa lá pelo vale de terras, judeu quando saia de<br />

Rolândia não podia levar dinheiro, podia levar cinqüenta marcos, que não era nada. Mas<br />

teve esse vale de terras, então meu pai vendeu a propriedade com o dinheiro que comprou<br />

as terras e aquele dinheiro ficou lá e pagou pelos trilhos e etc da estrada de ferro e salvou<br />

vida de muita gente, com isso muita gente conseguiu sair de lá, compreende? Cinqüenta<br />

marcos pra sair de um país com a família e tudo, não era...Para sair da Alemanha, então,<br />

não podia levar dinheiro. Não podiam levar nada.


109<br />

VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. 1966.<br />

ANSART, Pierre. História e Memória <strong>dos</strong> Ressentimentos in: BRESCIANI,<br />

Stella. Memória e (res)sentimento. Campinas: Ed. Unicamp,2004.<br />

BAIBICH, Tânia Maria. Fronteiras da identidade - o auto-ódio tropical.<br />

Curitiba: Ed. Moinho, 2001.<br />

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge<br />

Zahar, 1998.<br />

BERTA, Waldman. A letra e a lei no texto de Clarice Lispector. Cad. Ling.<br />

Lit. Hebr., n.3, p. 295-309. São Paulo, 2001.<br />

DE SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de Memórias em terras de História:<br />

Problemáticas atuais. in: BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márica.<br />

Memória e (res) sentimento. Campinas: Unicamp, 2004.<br />

BRESCIANI. Stella (org) e NAXARA. Márcia. Memória e<br />

(res)sentimento.Unicamp: 2004.<br />

DELEMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300 -1800). São Paulo:<br />

Cia. Das Letras, 1989.<br />

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal,<br />

1989.


110<br />

_________________. As palavras e as coisas: uma arqueologia da s<br />

ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1987.<br />

FREUD, Sigmund. Reflexões <strong>para</strong> os tempos de guerra e morte. Obras<br />

completas de Freud, vol.XIV. Imago Editora, 2006.<br />

GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância.<br />

São Paulo: Cia. Das Letras, 2001.<br />

KUSHNIR, Beatriz. Nem bandi<strong>dos</strong> nem heróis: os militantes judeus de<br />

esquerda mortos sob tortura no Brasil (1969 -1975). In: Cadernos de Língua<br />

e Literatura hebraica. São Paulo: Humanitas -FFLCH-USP, 2001.<br />

LEVI, Primo. A trégua. São Paulo: Cia. Das Letras, 1997.<br />

LEWIN, Helena. Dops: o instrumental da repressão política. In: CAD.<br />

Líng. Lit. Hebr., n. 3, p.267-294, 2001.<br />

LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Romantismo e política. São Paulo: Paz e<br />

terra, 1993.<br />

_____________________________. Revolta e melancolia: o romantismo na<br />

contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995.<br />

MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. São Paulo: Versão: Roswitha<br />

Kempf. Massao Ohno Editor, 1981. Do original Alle Gärten meines Lebens.<br />

Verlag Josef Knecht-Carolusdrukerei. Frankfurt am Main.<br />

MAIER, Max Hemann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na<br />

selva brasileira - Relato de um imigrante(1938-1975). Título do original


111<br />

alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffeepflanzer in Urwald<br />

Brasiliens. Bericht Eines Emigranten (1938-1975) .<br />

NETTO, Américo. Dois pontos de vista. In: Vários Autores. Por que ser<br />

anti-semita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933.<br />

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte:<br />

Autêntica, 2005.<br />

POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da<br />

Etnicidade. UNESP, 1998.<br />

PRÛSER, Friedrich. O Rolasnd e Rolândia<br />

Bremen. Robert Bargman: 1957.<br />

in Roland und Rolandia.<br />

RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepulcros nas nuvens. São Paulo:<br />

Perspectiva, 2004.<br />

RIDENTI, Marcelo. O romantismo revolucionário nos anos 60. São Paulo:<br />

Humanitas-FFLCH-USP, 2001.<br />

R. Hilberg. La destruction des Juifs d’ Europe. Fayard, 1988. & E. Jäckel.<br />

P. Longerich, J. H. Shoeps, Enziklopädie dês Holocaust, Argon, 1993.<br />

SELAIBE, Mara. Raízes da intolerância. In: Psicanálise e intolerância. São<br />

Paulo: 2005.<br />

YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor:história <strong>judaica</strong> e memória <strong>judaica</strong>.<br />

Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992.


112

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!