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03.09.2014 Views

A gente fica com culpa: se não volta a trabalhar, se volta, fica com culpa porque tem que cuidar do filho (Beatriz, reunião do dia 08 out. 2002). Paralelo ao papel de mãe, a mulher teve que conciliá-lo com a sua carreira, acarretando múltiplos papéis e uma sobrecarga de funções. De acordo com Rocha-Coutinho (1992), conciliar os ideais da maternidade com o de uma “profissional competente” e esposa foram os objetivos de muitas mulheres, e à medida que elas não conseguiam alcançá-los, instaurava-se uma sensação de fracasso e culpa, por não obterem o resultado que pretendiam nessas duas esferas. O dilema esta instaurado: E essa preocupação toda, e você volta a trabalhar, e você vê uma queda, não é só do seu nível de produção, entendeu, né, das peças que você faz e tudo. Eu ficava “meu Deus do céu, tenho que estudar, tenho que trabalhar”, às vezes eu tenho que fazer um negócio sério e você não conseguia. Às vezes eles me ligavam “- a Júlia ta com febre”, aí você, entendeu, aí você pirava ali, você querendo chegar cedo, a audiência ali, sabe, você “meu Deus do céu”, “ai meu Deus do céu (???), mais uma audiência” (Luiza). Até tenho uma tia minha que ela fala que o marido dela, o marido e a filha são, assim, pagodeiros, sabe. Então, o que que acontece, ela amamentando, aí ele...ela não podia, né, de jeito nenhum, não sei o que, e ele não deixava de ir para os pagodes dele, entendeu. Então, quer dizer, isso tudo dificulta o relacionamento, e dificulta até a mulher, mesmo querer continuar amamentando, porque pra ela é muito prático deixar com outra pessoa e falar: “- ah, você dá o NAN, não sei o que, porque eu tenho que sair com o meu marido”, não sei o que, entendeu, porque depois que você tem filho, o marido fica pro segundo plano, entendeu, é uma coisa assim, automática, entendeu e ele tem que ter essa consciência de que ele tá no segundo plano e ele tem que ter essa consciência também de que ele tem que deixar de fazer as coisas (Luiza). A existência de um ideal materno tão presente nas representações das mulheres, faz entrever a existência de sentimentos de culpa e angústia que, muitas vezes, são experimentados como um conflito, um problema não só porque elas ficam com uma sensação de não serem “boas mães”, mas também não conseguirem atender às expectativas desse papel social, nem de manter seus relacionamentos com as famílias, nas condições anteriores.

Todo dia eu falava que ia dar aquela mamadeira. Aí, eu nunca dava. Porque o meu leite, ela crescia, tava tudo bem, o que quê eu pensava: “pô, vou alterar isso, se tá tudo certo. Tá ganhando peso, tá tudo ótimo, por que quê eu vou mudar esse negócio?” aí, eu nunca acabava dando (Nina). Também aparece, nos ideais de maternidade, a questão da rejeição de seus bebês. Para essas mães, esse sentimento é vivenciado, quando seus respectivos bebês não mamam em seus peitos. Essas mulheres chegam às reuniões procurando um alento, perguntando se fizeram algo errado para que isso acontecesse, num tom de lamento, principalmente ao verem que outros bebês que mamam em suas mães: O neném rejeitar o peito para mim era: ele não gosta de mim, ele está me rejeitando. E pensava: se eu não amamentar, eu vou ser uma assassina. Aquilo virou uma obsessão “eu tenho que (amamentar)!” (Letícia, reunião do dia 10 set. 2002) Sônia, que também vivenciou esse sentimento, entende a situação da seguinte maneira: Eu cheguei à conclusão de que ela (sua filha) tava me rejeitando, ela rejeitava o meu peito, ela não me queria (Reunião do dia 25 jun. 2002). 4.1.2.5 Amamentação e sentimento de poder Se a amamentação é um dos aspectos presentes na maternidade, neste contexto, ela pode estar ligada ao que Bruschini (1990) denomina de “ação socializadora”, sendo capaz de transmitir e reproduzir uma ideologia. Muitas mães relataram que a amamentação pode ser vista como um símbolo de poder. Esta tese é reafirmada por Rocha-Coutinho (1992), ao nos mostrar que a maternidade concedeu, à mulher, uma identidade ligada ao espaço privado, dando-lhe uma certa autoridade e controle sobre os filhos, sua casa e a família. O que representou a amamentação pra mim? Prazer e poder. É um negócio, é uma troca, é um poder de eu ser forte, de eu poder discutir sobre a minha vida (Beatriz). Esse poder é mencionado por Maldonado, Dickstein e Nahoum (2000) como um direito das mulheres em amamentar, que está diretamente ligado ao prazer e poder das

A gente fica com culpa: se não volta a trabalhar, se volta, fica com culpa porque tem<br />

que cuidar do filho (Beatriz, reunião do dia 08 out. 2002).<br />

Paralelo ao papel <strong>de</strong> mãe, a mulher teve que conciliá-lo com a sua carreira,<br />

acarretando múltiplos papéis e uma sobrecarga <strong>de</strong> funções. De acordo com Rocha-Coutinho<br />

(1992), conciliar os i<strong>de</strong>ais da maternida<strong>de</strong> com o <strong>de</strong> uma “profissional competente” e<br />

esposa foram os objetivos <strong>de</strong> muitas mulheres, e à medida que elas não conseguiam<br />

alcançá-los, instaurava-se uma sensação <strong>de</strong> fracasso e culpa, por não obterem o resultado<br />

que pretendiam nessas duas esferas. O dilema esta instaurado:<br />

E essa preocupação toda, e você volta a trabalhar, e você vê uma queda, não é só do<br />

seu nível <strong>de</strong> produção, enten<strong>de</strong>u, né, das peças que você faz e tudo. Eu ficava “meu<br />

Deus do céu, tenho que estudar, tenho que trabalhar”, às vezes eu tenho que fazer um<br />

negócio sério e você não conseguia. Às vezes eles me ligavam “- a Júlia ta com<br />

febre”, aí você, enten<strong>de</strong>u, aí você pirava ali, você querendo chegar cedo, a audiência<br />

ali, sabe, você “meu Deus do céu”, “ai meu Deus do céu (???), mais uma audiência”<br />

(Luiza).<br />

Até tenho uma tia minha que ela fala que o marido <strong>de</strong>la, o marido e a filha são, assim,<br />

pago<strong>de</strong>iros, sabe. Então, o que que acontece, ela amamentando, aí ele...ela não podia,<br />

né, <strong>de</strong> jeito nenhum, não sei o que, e ele não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ir para os pago<strong>de</strong>s <strong>de</strong>le,<br />

enten<strong>de</strong>u. Então, quer dizer, isso tudo dificulta o relacionamento, e dificulta até a<br />

mulher, mesmo querer continuar amamentando, porque pra ela é muito prático <strong>de</strong>ixar<br />

com outra pessoa e falar: “- ah, você dá o NAN, não sei o que, porque eu tenho que<br />

sair com o meu marido”, não sei o que, enten<strong>de</strong>u, porque <strong>de</strong>pois que você tem filho, o<br />

marido fica pro segundo plano, enten<strong>de</strong>u, é uma coisa assim, automática, enten<strong>de</strong>u e<br />

ele tem que ter essa consciência <strong>de</strong> que ele tá no segundo plano e ele tem que ter essa<br />

consciência também <strong>de</strong> que ele tem que <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazer as coisas (Luiza).<br />

A existência <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al materno tão presente nas representações das mulheres, faz<br />

entrever a existência <strong>de</strong> sentimentos <strong>de</strong> culpa e angústia que, muitas vezes, são<br />

experimentados como um conflito, um problema não só porque elas ficam com uma<br />

sensação <strong>de</strong> não serem “boas mães”, mas também não conseguirem aten<strong>de</strong>r às expectativas<br />

<strong>de</strong>sse papel social, nem <strong>de</strong> manter seus relacionamentos com as famílias, nas condições<br />

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