Iana Sudo MEDICALIZAÇÃO DAS MULHERES - Instituto de ...

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03.09.2014 Views

Ainda assim, era importante negar às mulheres o acesso a ciência, ao trabalho, para não comprometer o pacto entre o homem e a higiene. Cabia à medicina manter e garantir essa ordem natural das coisas. A tática explorada foi a de se construir uma função e mostrar, às mulheres, aquilo que só elas eram capazes de fazer; para isso, a mulher não poderia escapar das margens de suas casas e das idéias que reforçassem a imagem da mulher-mãe (COSTA, 1979). O autor demonstra ainda que o discurso médico se pautou pela estratégia de procurar comprometer as mulheres com a política do homem, fazendo-as crer na nobreza da função de amamentar, por uma pedagogia da maternidade. Esse discurso higiênico também explora a noção de que a mulher que não amamentasse contribuía para dissolver a união da família. Ao mesmo tempo, novas observações a respeito do corpo da mulher, no período colonial, passam a servir de base para endossar uma diferença antropológica sobre uma natureza da mulher, que estaria diretamente associada à maternidade. Se toda mulher podia ser mãe, não é sem razão, segundo aquele pensamento médico, que toda mulher não podia ser outra coisa senão mãe. É nesse contexto que se consolida a família cristã, a valorização do matrimônio e o enaltecimento da maternidade (DEL PRIORE, 1995). Se, no século XIV, a amamentação era encarada como um ato não-natural, a partir do século XVI recai, sobre este ato, o início de uma medicalização que irá se afirmar tanto na Europa como no Brasil. Teruya e Coutinho (2002) informam que a descoberta de que o leite de vaca continha mais proteína que o leite materno, no final do século XIX, foi responsável por uma mudança significativa no discurso médico, ao exaltar a superioridade do leite de vaca. No final do século XIX, chegam ao Brasil os primeiros leites industrializados, os chamados leites evaporados ou condensados, sendo associados e conhecidos como o leite “ideal” para as crianças (MARTINS FILHO, 2001), e passam a ser uma opção em

detrimento das amas-de-leite e do aleitamento materno (LEITE, 1996). No início do século XX, com a chegada das indústrias de leite, teve início as propagandas dos leites industrializados – os leites “maternizados” ou “humanizados” – 28 estimulando o desmame precoce, tendo como principal viés, em seu discurso, que amamentar era um “ato retrógrado e conservador” (MARTINS FILHO, 2001, p.24): “A fabricação (de leite) em larga escala teve como conseqüência direta a ampliação do conjunto de exceções reconhecidas pelo discurso médico. A corporação médica passou, progressivamente, da condenação do desmame ao estímulo ao aleitamento artificial. Os médicos, em seu discurso, não renunciaram às superioridades do aleitamento materno, mas passaram a estimular de forma subliminar a alimentação com mamadeira (...)” (ALMEIDA, 1999, p. 39). Almeida (1999); Maldonado, Dickstein e Nahoum (2000) e Martins Filho (2001) defendem que grande parte dos médicos absorveu a idéia de que o leite materno precisava ser complementado ou substituído por um leite industrial. Carvalho (2002) apresenta argumentos que, a partir de 1920, a história do leite em pó no Brasil se fez por um extenso esquema promocional. Convencidos por estratégias de marketing dessas indústrias para a comunidade médica para que eles vendessem os leites industrializados, tais indústrias foram utilizando da categoria médica, com um discurso cientificista-higienista. Essas atitudes iam desde patrocínios e financiamentos para as associações profissionais, consultórios, hospitais, tais como congressos, serviços, literatura, almoços, amostras de leite, viagens, bolsas de estudo, equipamentos e presentes (CARVALHO, 2002). Isto se enquadra no que Camargo Jr. (2003) expõe que, num primeiro momento, poderíamos pensar que a presença, em nossa cultura, de uma ênfase no discurso médico apontaria para uma hegemonia médica, já que é esta categoria que está legitimada a falar seja sobre saúde, ou doença. Mas, a partir do momento em que a divulgação de seu conhecimento lhe escapa, o controle não é mais total. Entra em cena, neste apelo à autoridade dos médicos e dos cientistas, um apelo em termos econômicos. A lógica 28 Era assim denominado pela aproximação da composição química do leite de vaca com a do leite humano (FONTENELLE, 1940).

<strong>de</strong>trimento das amas-<strong>de</strong>-leite e do aleitamento materno (LEITE, 1996). No início do século<br />

XX, com a chegada das indústrias <strong>de</strong> leite, teve início as propagandas dos leites<br />

industrializados – os leites “maternizados” ou “humanizados” – 28 estimulando o <strong>de</strong>smame<br />

precoce, tendo como principal viés, em seu discurso, que amamentar era um “ato retrógrado<br />

e conservador” (MARTINS FILHO, 2001, p.24):<br />

“A fabricação (<strong>de</strong> leite) em larga escala teve como conseqüência direta a<br />

ampliação do conjunto <strong>de</strong> exceções reconhecidas pelo discurso médico. A corporação<br />

médica passou, progressivamente, da con<strong>de</strong>nação do <strong>de</strong>smame ao estímulo ao<br />

aleitamento artificial. Os médicos, em seu discurso, não renunciaram às<br />

superiorida<strong>de</strong>s do aleitamento materno, mas passaram a estimular <strong>de</strong> forma<br />

subliminar a alimentação com mama<strong>de</strong>ira (...)” (ALMEIDA, 1999, p. 39).<br />

Almeida (1999); Maldonado, Dickstein e Nahoum (2000) e Martins Filho (2001)<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que gran<strong>de</strong> parte dos médicos absorveu a idéia <strong>de</strong> que o leite materno precisava<br />

ser complementado ou substituído por um leite industrial. Carvalho (2002) apresenta<br />

argumentos que, a partir <strong>de</strong> 1920, a história do leite em pó no Brasil se fez por um extenso<br />

esquema promocional. Convencidos por estratégias <strong>de</strong> marketing <strong>de</strong>ssas indústrias para a<br />

comunida<strong>de</strong> médica para que eles ven<strong>de</strong>ssem os leites industrializados, tais indústrias<br />

foram utilizando da categoria médica, com um discurso cientificista-higienista. Essas<br />

atitu<strong>de</strong>s iam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> patrocínios e financiamentos para as associações profissionais,<br />

consultórios, hospitais, tais como congressos, serviços, literatura, almoços, amostras <strong>de</strong><br />

leite, viagens, bolsas <strong>de</strong> estudo, equipamentos e presentes (CARVALHO, 2002).<br />

Isto se enquadra no que Camargo Jr. (2003) expõe que, num primeiro momento,<br />

po<strong>de</strong>ríamos pensar que a presença, em nossa cultura, <strong>de</strong> uma ênfase no discurso médico<br />

apontaria para uma hegemonia médica, já que é esta categoria que está legitimada a falar<br />

seja sobre saú<strong>de</strong>, ou doença. Mas, a partir do momento em que a divulgação <strong>de</strong> seu<br />

conhecimento lhe escapa, o controle não é mais total. Entra em cena, neste apelo à<br />

autorida<strong>de</strong> dos médicos e dos cientistas, um apelo em termos econômicos. A lógica<br />

28 Era assim <strong>de</strong>nominado pela aproximação da composição química do leite <strong>de</strong> vaca com a do leite humano<br />

(FONTENELLE, 1940).

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