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03.09.2014 Views

Mas foi sobretudo no século XIX, que a medicina viu seu campo se expandir e adentrar o tema da higienização da sexualidade, tornando-se assunto de Estado. Data do fim do século anterior e o início do século XIX os livros dedicados a difundir as técnicas elaboradas pela medicina sobre o cuidado com a educação das crianças, guias e dicionários. 17 Temas como o onanismo, a divulgação da amamentação materna e a medicação das crianças eram recorrentes. Mudou-se o objetivo da medicina: ela queria legislar também sobre as uniões, para melhor regular os corpos (COSTA, 1979). A partir da segunda metade do século XIX, começaram a surgir impasses e mudanças nos papéis sociais conferidos aos homens e as mulheres, como observa Rohden (2001). A entrada das mulheres de classe menos favorecida empregadas nas fábricas, e a vontade por parte das mulheres das classes abastadas em exercerem atividades fora do lar, abandonando o lugar que até então lhes era assegurado com exclusividade: o lar e sua função social de mãe e esposa, fizeram surgir uma voz cada vez mais presente no espaço público, até então pertencente praticamente aos homens, exigindo acesso à educação, engajamento nos debates públicos, reivindicando mais oportunidades e experiência sexual e maior autonomia (Ibid.). Esse movimento, como Fraise e Perrot (1991) descrevem, estava ligado à modernidade e às suas exigências intrínsecas de mudança, e ligado também aos comportamentos das próprias mulheres e ao seu desejo de ultrapassar os limites impostos ao seu sexo. Elas dedicam-se aos movimentos fora do espaço privado: viagens, ações sociais; sindicais ou grevistas. Essas mudanças começam, então, a ameaçar a ordem social estabelecida desde o século XVIII, onde as mulheres estavam associadas e definidas pelos seus órgãos reprodutivos. Passa, então, a ser necessário elaborar uma reação contra esse novo movimento emancipatório, numa tentativa de buscar novas posições sociais, que era tido como uma 17 Na Inglaterra destacava-se o médico William Cadogam (1748) com seu folheto que acentuava a necessidade de alimentação materna. Chegou a sua décima edição e foi traduzida para o francês. O também médico inglês John Davis (1820) publicou um folheto visando a chamar a atenção para as causas da mortalidade infantil e advogar em prol da amamentação materna (LESSA, 1951).

grande ameaça à ordem burguesa, que englobasse desde os discursos médicos e suas representações elaboradas por esse discurso, passando pelos psicológicos e sociais que tivessem um discurso homogêneo baseado na diferença anatômico, fisiológico, de temperamento e intelectual entre homens e mulheres ditadas por uma natureza hierárquica, definidora de valores e não democrática, sendo a desigualdade plenamente compreensível, inquestionável e os cientistas os seus intérpretes legítimos (LAQUEUR, 2001; ROHDEN, 2001). Para ilustrar bem essa discussão, passo para a descrição do trabalho de Schiebinger (1998), que analisa como a construção do termo Mammalia (Da mama, ou Os Que tem Mama), 18 criado pelo médico sueco Lineu, para diferenciar a classe dos mamíferos das outras classes de animais na zoologia, 19 contribuiu para “legitimar a reestruturação da sociedade européia, enfatizando quão era, para o sexo feminino – humano e não-humano – amamentar e criar suas próprias crias” (Ibid., p. 239). A autora defende a idéia de que a escolha desse nome encontra-se embasada por uma política de gênero. Ao trabalhar a história da construção dessa nomenclatura, a autora põe em evidencia a ligação do termo Mammalia com a história cultural dos seios na Europa, seios estes que “simbolizavam a síntese entre natureza e sociedade, o vínculo entre os mundos privados e públicos” (p. 238). Rohden (2001) também ressalta que, assim como o útero, os seios representavam focos de afeições morais inerentes ao papel maternal da mulher. Como observa Schiebinger (1998), Lineu, ao escolher esse termo, não estava interessado no fato de as mamas não serem uma característica presente em todos os animais mamíferos, de funcionarem apenas em metade desses animais e por um período determinado e limitado, ou mesmo nunca. Ela acrescenta que existiam termos mais neutros, que poderiam ter sido usados para designar essa classe, uma vez que os mamíferos possuem outras características em comum, como dotado de pelos (Pilosa); buracos nos ouvidos 18 Resulta essa classe de animais, anteriormente chamada de quadrupedia (quadrúpedes), os seres humanos, chimpanzés, ungulados, preguiças, peixes-bois, elefantes, morcegos “e todos os outros organismos dotados de pêlos, três ossos no ouvido e um coração de quatro câmaras” (SCHIEBINGER, 1998, p. 219). 19 As outras classes de animais são Amphibia, Aves, Insecta , Pisces e Vermes.

gran<strong>de</strong> ameaça à or<strong>de</strong>m burguesa, que englobasse <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os discursos médicos e suas<br />

representações elaboradas por esse discurso, passando pelos psicológicos e sociais que<br />

tivessem um discurso homogêneo baseado na diferença anatômico, fisiológico, <strong>de</strong><br />

temperamento e intelectual entre homens e mulheres ditadas por uma natureza hierárquica,<br />

<strong>de</strong>finidora <strong>de</strong> valores e não <strong>de</strong>mocrática, sendo a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> plenamente compreensível,<br />

inquestionável e os cientistas os seus intérpretes legítimos (LAQUEUR, 2001; ROHDEN,<br />

2001).<br />

Para ilustrar bem essa discussão, passo para a <strong>de</strong>scrição do trabalho <strong>de</strong> Schiebinger<br />

(1998), que analisa como a construção do termo Mammalia (Da mama, ou Os Que tem<br />

Mama), 18 criado pelo médico sueco Lineu, para diferenciar a classe dos mamíferos das<br />

outras classes <strong>de</strong> animais na zoologia, 19 contribuiu para “legitimar a reestruturação da<br />

socieda<strong>de</strong> européia, enfatizando quão era, para o sexo feminino – humano e não-humano –<br />

amamentar e criar suas próprias crias” (Ibid., p. 239). A autora <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a idéia <strong>de</strong> que a<br />

escolha <strong>de</strong>sse nome encontra-se embasada por uma política <strong>de</strong> gênero.<br />

Ao trabalhar a história da construção <strong>de</strong>ssa nomenclatura, a autora põe em evi<strong>de</strong>ncia<br />

a ligação do termo Mammalia com a história cultural dos seios na Europa, seios estes que<br />

“simbolizavam a síntese entre natureza e socieda<strong>de</strong>, o vínculo entre os mundos privados e<br />

públicos” (p. 238). Roh<strong>de</strong>n (2001) também ressalta que, assim como o útero, os seios<br />

representavam focos <strong>de</strong> afeições morais inerentes ao papel maternal da mulher.<br />

Como observa Schiebinger (1998), Lineu, ao escolher esse termo, não estava<br />

interessado no fato <strong>de</strong> as mamas não serem uma característica presente em todos os animais<br />

mamíferos, <strong>de</strong> funcionarem apenas em meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses animais e por um período<br />

<strong>de</strong>terminado e limitado, ou mesmo nunca. Ela acrescenta que existiam termos mais neutros,<br />

que po<strong>de</strong>riam ter sido usados para <strong>de</strong>signar essa classe, uma vez que os mamíferos possuem<br />

outras características em comum, como dotado <strong>de</strong> pelos (Pilosa); buracos nos ouvidos<br />

18 Resulta essa classe <strong>de</strong> animais, anteriormente chamada <strong>de</strong> quadrupedia (quadrúpe<strong>de</strong>s), os seres humanos,<br />

chimpanzés, ungulados, preguiças, peixes-bois, elefantes, morcegos “e todos os outros organismos dotados <strong>de</strong><br />

pêlos, três ossos no ouvido e um coração <strong>de</strong> quatro câmaras” (SCHIEBINGER, 1998, p. 219).<br />

19 As outras classes <strong>de</strong> animais são Amphibia, Aves, Insecta , Pisces e Vermes.

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