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2010 - Centro Cultural São Paulo

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artista selecionadO IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII Rafael Assef<br />

O silêncio – das armas, dos nomes, de cada um de nós<br />

Luisa Duarte<br />

Livro: 04 - Registro 501<br />

<strong>2010</strong><br />

nas próximas páginas<br />

Livro: 02 - Registro 733<br />

<strong>2010</strong><br />

A princípio, parece somente fotografia de armas<br />

de fogo. Mas o que interessa a Rafael Assef nesta<br />

série de trabalhos não é a arma, mas sim a rasura,<br />

de diferentes tipos, que pode ser vista em cada<br />

uma delas. Assim, criminosos buscam esconder<br />

a numeração de suas armas. O registro oficial<br />

é driblado. A tentativa é a de camuflar crime e<br />

criminoso. O fato de serem rasuras feitas de modo<br />

aleatório, rabiscos ou incisões, mostra, a um só<br />

tempo, o que é o “jeitinho” característico do nosso<br />

País na hora de lidar com as leis – e aqui ele<br />

surge da pior forma possível –, bem como revela<br />

a indiferença para com as mesmas. Há, sim, uma<br />

necessidade de se esconder, mas o modo de realizar<br />

a ação que faz desaparecer o registro da arma<br />

ocorre sem pudor algum e finda por fundar uma<br />

nova identidade, diversa daquela primeira, oficial.<br />

A fotografia sempre está indissociavelmente<br />

ligada ao seu referente, porém não se trata aqui<br />

de realizar imagens que demonstrem a força e a<br />

violência intrínsecas às armas de fogo, ainda mais<br />

em um contexto como o do Brasil. Se a arma não<br />

é a protagonista da obra, o artista também busca<br />

esmaecer a força da própria fotografia. Para isso,<br />

Assef faz uso de dois dispositivos. O primeiro deles<br />

está na presença de pequenos textos no verso de<br />

cada imagem, nos quais é possível ler os dados<br />

registrados pela polícia após o crime cometido com<br />

cada arma. O texto com o local no qual se encontra<br />

hoje a arma e a indicação do dano causado nos<br />

tiram do entorpecimento que uma certa “beleza”<br />

contida nas fotos pode gerar, nos fazendo imaginar<br />

a sua “história”. Assef oferece, simultaneamente, o<br />

brilho que salta do aço de cada pistola, e o dilui, em<br />

favor da lembrança cifrada, fria, de uma narrativa<br />

crepuscular que recobre cada uma das imagens.<br />

O segundo dispositivo para o esmaecimento da<br />

fotografia está na forma de exposição das mesmas no<br />

espaço do CCSP. Tiradas da parede e içadas a partir<br />

do teto, as imagens têm o seu peso reduzido. Tal<br />

montagem possibilita ao público uma relação diversa<br />

com o trabalho, menos contemplativa. O fato de os<br />

textos que narram de forma sintética o crime causado<br />

se encontrarem na parte de trás da imagem nos convida<br />

a caminhar entre as obras. Esse movimento retarda<br />

um pouco o fechamento do sentido do trabalho. Se as<br />

imagens, todas em grande formato, podem conter uma<br />

definição e um acabamento cujo preciosismo tem a<br />

potência de gerar atração, quando andamos, lemos e<br />

somos lembrados dos usos e danos reais gerados por<br />

aquilo que acabamos de ver, somos levados para um<br />

território que é oposto ao de qualquer embevecimento.<br />

À linguagem da fotografia se somam a linguagem das<br />

rasuras dos criminosos – “faça o que quiser, desde<br />

que não seja descoberto” – e ainda a linguagem fria e<br />

oficial da polícia que doa um novo registro, uma nova<br />

identidade, pós-crime, para cada arma.<br />

Em sua obra, Rafael Assef sempre tomou o partido<br />

por fotografar aquilo que recobre as peles, seja a de<br />

pessoas, seja a de coisas. De certa forma, tatuagens<br />

e cicatrizes se equivalem às rasuras nas armas.<br />

Equivalem-se pois são a base de um pensamento<br />

que crê na força do que está na superfície: algo que<br />

é somente índice e não contém profundidade pode<br />

guardar uma complexidade ímpar.<br />

Se essas incisões, raspagens, são a origem do<br />

trabalho, elas são somente o ponto de partida<br />

para um jogo que revela o conflito de identidades e<br />

oficialidades posto na sociedade em que vivemos.<br />

O número toscamente rasurado em cada arma,<br />

que esconde um crime com vítima, e seu substituto<br />

oficial, frio e sintético, revelam duas faces de uma<br />

dinâmica na qual o silêncio diante da barbárie não<br />

é só daqueles que buscam camuflar o delito, mas<br />

de todos nós, que, na passividade, tornamo-nos de<br />

alguma forma cúmplices desse jogo.<br />

26 programa de exposições <strong>2010</strong> centro cultural são paulo 27

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