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artista selecionada IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII Nara Amelia<br />
Stummheit, texto e subtexto<br />
Clarissa Diniz<br />
O trabalho de Nara Amelia navega por alguns<br />
“tabus” de parte da produção recente de arte<br />
e, com esta, pelos pré-conceitos de meu<br />
pensamento a respeito. É que, por baixo de um<br />
discurso “oficial” sobre a interdisciplinaridade<br />
de sua obra – que se daria, segundo a artista,<br />
mormente em sua exploração das “relações<br />
entre imagem e enunciado, ou artes visuais<br />
e literatura” –, habitam subtextos que, talvez<br />
por suas idiossincrasias perante um contexto<br />
relativamente homogeneizador da arte<br />
contemporânea, adquirem corpo e força quando<br />
tomados como centro de uma leitura possível<br />
sobre seu trabalho. Refiro-me ao caráter<br />
“crédulo” que atravessa suas gravuras, cuja<br />
aparente “desconstrução” das fronteiras entre<br />
realidade e ficção, arte e literatura, humanidade<br />
e animalidade, etc., pode obscurecer seu lado de<br />
crença e aposta: na simbolização, numa espécie<br />
de moral e em certa metafísica – tabus para um<br />
pensamento de arte que se quer problematizador<br />
dos sentidos, das verdades, do ser.<br />
Envoltas por uma fina cortina de ironia – por que<br />
nossa cultura expande o uso de um “modo do<br />
discurso onde dizemos alguma coisa que realmente<br />
não queremos dizer e esperamos que as pessoas<br />
entendam não só o que queremos de fato dizer<br />
como, também, nossa atitude diante da coisa?”,<br />
perguntaria Linda Hutcheon 1 acerca do lugar da<br />
ironia na atualidade (mas isso já é outra conversa...)<br />
–, que na maior parte das vezes encobre a<br />
melancolia pela impossibilidade de realização de<br />
suas crenças e desejos, as imagens criadas por<br />
Nara Amelia partem da natureza para pensar o<br />
homem e a cultura. Na mediação entre essas<br />
esferas estão a fábula e a ficção que, todavia, não<br />
se resumem como tal: a partir da apropriação de<br />
estéticas (e sentidos) emprestados por ilustrações,<br />
livros, documentos (partituras, manuscritos,<br />
imagens), uma camada de “realidade” é aplicada<br />
sobre esses recursos de linguagem que então não<br />
se podem privar de um posicionamento face a ela.<br />
As imagens-textos de Nara Amelia convocam a<br />
simbolização para um comentário acerca do real,<br />
mas que, ao partir da natureza (como também da<br />
religião), fazem ver uma perspectiva metafísica do<br />
mesmo. (Ou seria apenas ironia?)<br />
A série Este lugar é mal assombrado (2008) parece<br />
dizer algo a respeito. Composta de quatro gravuras<br />
que retratam um quarto com dois homens 2 , cuja<br />
vista que se tem pela janela é alterada em cada<br />
uma das quatro gravuras (um corvo em vôo; um<br />
cardeal cuja cabeça é a de um esquilo, ao redor da<br />
qual há uma aura; um pequeno avião decolando<br />
e um céu repleto de nuvens pesadas), o conjunto<br />
talvez sintetize algumas das questões em torno<br />
da existência humana que a obra de Nara coloca<br />
ao sugerir relações de contemplação, submissão,<br />
mistério, metamorfose e coexistência entre os<br />
seres e seu entorno, que surgem quase sempre<br />
envoltos em medo ou culpa. Uma hierarquia entre<br />
estados de existência (homem, animal, natureza)<br />
– simbolizada por meio de alturas, cordas, posição<br />
de mãos ou sinais de reverência ao longo de<br />
seus trabalhos –, tendo o ser humano não como<br />
referencial, mas como baliza, lança o foco de<br />
sentido de vida para além das razões unicamente<br />
humanas. Num mesmo interior residencial,<br />
Stummheit<br />
água-forte e aquarela, 30 x 30cm<br />
<strong>2010</strong><br />
1<br />
HUTCHEON, Linda. Irony’s edge – the theory and politics<br />
of irony. London: Routledge, 1994.<br />
2<br />
Um, metade animal (fauno), dorme sobre uma cama junto<br />
a um esquilo, ao lado da qual está um aparelho de telefone;<br />
o outro, trajado com um terno cujas calças estão abaixadas,<br />
sentado numa cadeira, mira a grande janela do ambiente.<br />
22 programa de exposições <strong>2010</strong> centro cultural são paulo 23