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"Isto te pergunto, dá-me a resposta certa, Ahura! Conseguirei eu o prêmio de dez éguas,<br />
um garanhão e um camelo que me foi prometido?" Além das questões cosmogônicas, há<br />
outras de natureza mais catequética, relativas às origem e à definição da piedade, a distinção<br />
entre o bem e o mal, a pureza e a impureza, as melhores maneiras de lutar contra o espírito<br />
do mal etc. Aquele pastor suíço que, no país e no tempo de Pestalozzi, escreveu um<br />
catecismo para crianças intitulado<br />
"Pequeno livro de adivinhas" (Ratselhüchleiit) não podia saber até que ponto sua idéia era<br />
próxima da verdadeira fonte de to<strong>dos</strong> os cre<strong>dos</strong> e catecismos.<br />
Os gregos da época mais tardia tinham plena consciência das relações existentes entre o<br />
jogo <strong>dos</strong> enigmas e as origens da filosofia. Clearco, um <strong>dos</strong> discípulos de Aristóteles,<br />
escreveu um tratado sobre os provérbios, o qual encerrava uma teoria <strong>dos</strong> enigmas,<br />
provando que originariamente o enigma fora um assunto filosófico. Diz ele: "Os antigos<br />
usavam-no como prova de sua educação (παιδεια)21, observação que nitidamente se refere<br />
ao jogo de enigmas de que acima tratamos. E, com efeito, não seria exagerado considerar<br />
os primeiros produtos da filosofia grega como deriva<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> enigmas primitivos. Para<br />
Heráclito, o "filósofo obscuro", a natureza e a vida são um griphos, um enigma, e ele<br />
próprio é um decifrador de enigmas. As afirmações de Empédocles têm muitas vezes a<br />
ressonância da solução de enigmas místicos, e se revestem ainda de uma forma poética.<br />
A POESIA E O LUDICO<br />
Em qualquer civilização viva e florescente, sobretudo nas culturas arcaicas, a poesia<br />
desempenha uma função vital que é social e litúrgica ao mesmo tempo. Toda a poesia da<br />
antigüidade é simultaneamente ritual, divertimento, arte, invenção de enigmas, doutrina,<br />
persuasão, feitiçaria, adivinhação, profecia e competição. Praticamente, to<strong>dos</strong> os motivos<br />
característicos da poesia e do ritual arcaicos encontram-se no terceiro Canto da epopéia<br />
popular finlandesa Kalevala. O velho e sábio Vainamõinen encanta o jovem presunçoso<br />
que se atreve a desafiá-lo para uma competição de feitiçaria. A primeira competição é sobre<br />
o conhecimento das coisas naturais, a segunda sobre o conhecimento esotérico relativo às<br />
origens. Neste momento, o jovem Joukahainen pretende que parte da criação se deve a ele<br />
mesmo; ao que o velho feiticeiro canta-o para dentro da terra, para dentro do pântano,<br />
para dentro da água, e a água sobe-lhe até à cintura, até às axilas, depois até à boca, até que<br />
finalmente o jovem lhe promete sua irmã Aino. Só então Vainamõinen, sentado na "pedra<br />
da canção", canta durante mais três horas para desfazer sua poderosa mágica e libertar o<br />
ousado desafiante. Nesta façanha encontram-se unidas todas as formas de competição a<br />
que anteriormente nos referimos:<br />
concurso de insultos, de jactância, a "comparação <strong>dos</strong> homens", a competição em<br />
conhecimento cosmogônico, a competição pela noiva, o teste de resistência, o ordálio —<br />
uma prova/teste que os juristas da idade média infringiam aos acusa<strong>dos</strong>, que caso<br />
vencessem eram considera<strong>dos</strong> inocentes, segundo o juízo divino.- num jacto ao mesmo<br />
tempo selvagem e sóbrio de imaginação poética. A verdadeira designação do poeta arcaico<br />
é Vates, o possesso, inspirado por Deus, em transe. Estas qualificações implicam ao<br />
mesmo tempo que ele possui um conhecimento extraordinário. Ele é um sábio, sha’ir,<br />
como lhe chamavam os árabes. Na mitologia <strong>dos</strong> Eddas o hidromel que é preciso beber<br />
para se transformar em poeta é preparado com o sangue de Kvasir, a mais sábia de todas as<br />
criaturas, que nunca foi interrogada em vão. O poeta-vidente vai gradualmente assumindo<br />
as figuras do profeta, do sacerdote, do adivinho, do mistagogo e do poeta tal como o<br />
conhecemos; e também o filósofo, o legislador, o orador, o demagogo, o sofista e o mestre<br />
de retórica brotam desse tipo compósito primordial que é o Vates. To<strong>dos</strong> os poetas gregos<br />
arcaicos revelam vestígios de seu progenitor comum. Sua função é eminentemente social;<br />
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