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exposto quase todo o sistema ético <strong>dos</strong> hindus— notável exemplo da transição entre o<br />
enigma cosmológico sagrado e o jeu d'esprit. Uma visão correta das disputas teológicas da<br />
Reforma, com a de Lutero contra Zwingli em Marburgo, em 1529, ou a de Theodore Beza<br />
contra seus colegas calvinistas e alguns prela<strong>dos</strong> católicos em Poissy, em 1561, revelará que<br />
elas não passam de uma continuação direta de um imemorial costume ritualístico.<br />
Os aspectos literários do diálogo interrogativo são especialmente interessantes no caso do<br />
tratado Fali chamado Milindapanha — as Questões do rei Menandro, um <strong>dos</strong> príncipes<br />
greco-indianos, que reinou na Bactriana no século II A. C. Embora este texto não fizesse<br />
oficialmente parte <strong>dos</strong> Tripitaka, os textos sagra<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> budistas meridionais, era<br />
altamente considerado tanto por estes últimos quanto por seus irmãos do Norte, e deve ter<br />
sido composto cerca do início da era cristã. Mostra-nos ele a disputa entre Menandro e o<br />
grande Arhat, Nagasena. A obra é de teor puramente filosófico e teológico, mas pela forma<br />
e pelo tom possui um parentesco com o concurso de enigmas. Quanto a este último<br />
aspecto, o preâmbulo é um exemplo típico:<br />
Disse o rei: "Venerável Nagasena, quereis conversar comigo?"<br />
Nagasena: "Fá-lo-ei, se Vossa Majestade conversar comigo da maneira como falam os<br />
sábios; mas não o farei, se Vossa Majestade conversar comigo da maneira como falam os<br />
reis."<br />
"E qual a maneira como conversam os sábios, venerável Nagasena?"<br />
"Ao contrário <strong>dos</strong> reis, os sábios não ficam irrita<strong>dos</strong> quando são postos entre a espada e a<br />
parede."<br />
E o rei consente em discutir com ele em pé de igualdade, tal como no gaber do duque de<br />
Anjou. Alguns <strong>dos</strong> sábios da corte também participam; e o público é formado por<br />
quinhentos yonakas, isto é, jônios e gregos, assim como por oitenta mil monges budistas.<br />
Em atitude de desafio, Nagasena propõe um problema "que implica dois aspectos, muito<br />
profundo, difícil de resolver, mais duro que um nó". Os sábios do rei queixam-se de que<br />
Nagasena os atormenta com perguntas astuciosas de tendência herética. Muitas delas são<br />
típicos dilemas, atira<strong>dos</strong> com um triunfante: "Veja Vossa Majestade se consegue sair desta!"<br />
E assim são passa<strong>dos</strong> em revista os problemas fundamentais da doutrina budista, expressos<br />
numa simples forma socrática.<br />
O tratado inicial da Snorra Edda, conhecido como Gyl-fagmning, também pertence ao<br />
gênero do discurso teológico interrogativo. Gangleri inicia sua disputa com Har sob a<br />
forma de uma aposta, depois de ter começado<br />
por atrair a atenção do rei Gylf com seus habili<strong>dos</strong>os malabarismos com sete espadas. O<br />
concurso de enigmas sagrado relativo à origem das coisas está ligado por transições<br />
graduais ao concurso de enigmas em que estão em jogo a honra, as posses ou a vida, e<br />
finalmente às discussões filosóficas e teológicas. Outras formas de diálogo se encontram<br />
intimamente relacionadas com estas últimas, tais como a litania e o catecismo das doutrinas<br />
religiosas. Não existe exemplo mais flagrante de inextricável mistura de todas estas formas<br />
do que o cânon do Avesta, onde a doutrina é apresentada sobretudo numa série de<br />
perguntas e respostas trocadas entre Zaratustra e Ahura Mazda18. Especialmente os<br />
Yasnas, os textos litúrgicos para os rituais de sacrifício, conservam ainda numerosos<br />
vestígios da forma lúdica primitiva. Típicas questões teológicas, relativas à doutrina, à ética<br />
e ao ritual, alternam com velhos enigmas cosmogônicos, como em Yasna, 44. To<strong>dos</strong> os<br />
versos iniciam-se pela frase de Zaratustra: "Isto te pergunto, dá-me a resposta certa,<br />
Ahura!" As perguntas iniciam-se por: "Quem é aquele que. . .?" Por exemplo: "Quem é<br />
aquele que sustentava cá em baixo a terra, e lá em cima o céu, para que não caíssem?"<br />
"Quem é aquele que uniu a rapidez ao vento e às nuvens?" "Quem é aquele que criou a<br />
bendita luz e a escuridão ... o sono e a vigília?" Ao fim, uma passagem notável mostra<br />
claramente que nos encontramos perante vestígios de um antigo concurso de enigmas:<br />
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