Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
estaremos mais próximos do alvo. A palavra rítmica nasce dessa necessidade. Só na<br />
atividade lúdica da comunidade a poesia desempenha uma função vital e possui seu pleno<br />
valor, e estes se perdem à medida em que os jogos sociais perdem seu caráter ritual ou<br />
festivo. Elementos como a rima e o dístico só adquirem sentido dentro das estruturas<br />
lúdicas intemporais e onipresentes de que derivam: golpe e contragolpe, ascensão e queda,<br />
pergunta e resposta, numa palavra, ritmo. Sua origem está inseparavelmente ligada aos<br />
princípios da canção e da dança, os quais por sua vez fazem parte da imemorial função do<br />
jogo. Todas as qualidades da poesia reconhecidas como próprias, como a beleza, o caráter<br />
sagrado, a magia, são desde início abrangidas pela qualidade lúdica fundamental. Segundo<br />
os imortais modelos gregos, distinguimos na poesia três grandes gêneros, o lírico, o épico e<br />
o dramático. O lírico é o que permanece mais próximo da esfera lúdica da qual to<strong>dos</strong><br />
derivam. Aqui, o lírico deve ser tomado cm sentido extremamente amplo, incluindo, além<br />
do gênero enquanto tal, to<strong>dos</strong> os mo<strong>dos</strong> que exprimem o arrebatamento. Na escala da<br />
linguagem poética, a expressão lírica é a mais distante da lógica e a mais próxima da música<br />
e da dança. É a linguagem da contemplação mística, <strong>dos</strong> oráculos e da magia. É nela que o<br />
poeta experimenta mais intensamente a sensação de ser inspirado de fora, é nela que se<br />
encontra mais próximo da suprema sabedoria, mas também da demência. O abandono<br />
total da razão e da lógica é característico da linguagem <strong>dos</strong> sacerdotes e <strong>dos</strong> oráculos entre<br />
os povos primitivos, chegando muitas vezes a ser uma algaraviada incompreensível.<br />
Emile Faguet refere-se algures a "le grain de sottise nécessaire au lyrique moderne". Mas<br />
não é só o poeta lírico moderno que precisa dela; todo o gênero forçosamente precisa não<br />
estar submetido às limitações do intelecto. Um <strong>dos</strong> traços fundamentais da imaginação<br />
lírica é a tendência para o exagero. A poesia precisa ser exorbitante.<br />
São necessárias mais algumas explicações sobre o papel da competição na evolução da arte.<br />
Praticamente to<strong>dos</strong> os exemplos conheci<strong>dos</strong> de competições em que foram dadas mostras<br />
de uma habilidade espantosa pertencem mais à mitologia, à lenda e à literatura do que<br />
propriamente à história da arte. O gosto pelo exorbitante e o miraculoso encontra seu<br />
terreno mais fértil nas estórias fantásticas contadas acerca <strong>dos</strong> artistas do passado. Os<br />
grandes portadores de cultura <strong>dos</strong> tempos primitivos, segundo as mitologias, inventaram<br />
todas as artes e ofícios que hoje constituem os tesouros da civilização em conseqüência de<br />
uma ou outra espécie de conquista, muitas vezes com risco da própria vida. Os Vedas dão<br />
a seu deus faber um nome especial: tvashtar, ou seja, aquele que faz. Foi ele que forjou o<br />
raio (vajra) para Indra. Participou de um concurso de destreza com os três rbhu ou<br />
artífices divinos, os quais fizeram os cavalos de Indra, o carro <strong>dos</strong> Asvins (os Dioscuru <strong>dos</strong><br />
hindus) e a vaca milagrosa de Brhaspati. Os gregos tinham uma lenda sobre Politecnos e<br />
sua esposa Aeden, os quais se gabavam de amar-se mais um ao outro do que Zeus e Hera,<br />
ao que Zeus lhes enviou Eris (a Emulação), que os induziu a competir um com o outro em<br />
toda a espécie de trabalhos artísticos. Os anões artífices da mitologia nórdica pertencem à<br />
mesma tradição, assim como Wieland o Ferreiro, cuja espada era tão afiada que era capaz<br />
de cortar novelos de lã flutuando num rio. Assim também Dédalo, que sabia fazer tudo:<br />
construiu o Labirinto, fez estátuas que caminhavam, e uma vez, perante o problema de<br />
fazer passar um fio pelas sinuosidades de uma concha, resolveu-o amarrando o fio a uma<br />
formiga. Aqui, a proeza técnica encontra-se ligada ao enigma; mas, enquanto o bom enigma<br />
encontra solução num contato espiritual inesperado e surpreendente, num espécie de curtocircuito<br />
mental, a primeira muitas vezes se perde no absurdo, como na lenda da corda de<br />
areia usada para coser pedaços de pedra relatos de milagres e o espírito lúdico.<br />
Além de ser um tema <strong>dos</strong> mais freqüentes no mito e na lenda, o artesanato competitivo<br />
desempenhou um papel perfeitamente claro no desenvolvimento efetivo das artes e das<br />
técnicas. A competição em destreza, narrada pelo mito, que se estabeleceu entre Politecnos<br />
e Aedon teve de fato seus correspondentes na realidade histórica, como a competição entre<br />
101