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mais patente do que <strong>em</strong> qualquer outra, são atribuídos méritos especiais ao trobardus — o<br />
que à letra significa "poesia hermética"<br />
A representação <strong>em</strong> forma humana de coisas incorpóreas ou inanimadas é a essência de toda<br />
formação mítica e de quase toda a poesia. Neste sentido, a personificação surge a partir do<br />
momento <strong>em</strong> que alguém sente a necessidade de comunicar aos outros suas percepções.<br />
Assim, as concepções surg<strong>em</strong> enquanto atos da imaginação.<br />
Haverá razões para chamar a este hábito inato do espírito, a esta tendência para criar um<br />
mundo imaginário de seres vivos (ou talvez um mundo de idéias animadas), um jogo do<br />
espírito ou um jogo mental?<br />
Tom<strong>em</strong>os como ex<strong>em</strong>plo uma das formas mais el<strong>em</strong>entares da personificação, as<br />
especulações míticas a respeito da orig<strong>em</strong> do mundo e das coisas, nas quais a criação é<br />
concebida como obra de alguns deuses a partir do corpo de um gigante universal.<br />
Encontramos esta concepção no Rig-Veda c no primeiro Edda. Atualmente, a filologia tende<br />
a considerar os textos onde se encontra esta lenda como uma redação literária ocorrida <strong>em</strong><br />
época relativamente tardia. O décimo hino do Rig-Veda nos oferece uma paráfrase mística<br />
de uma matéria mítica primordial, paráfrase feita pelos sacerdotes sacrificadores, que a<br />
interpretaram <strong>em</strong> termos ritualísticos. O Ser primordial, Purusha (isto é, o hom<strong>em</strong>) serviu de<br />
matéria para o universo1. Todas as coisas foram formadas a partir deste corpo, "os animais<br />
do ar, e as florestas e as aldeias"; "a lua veio de seu espírito; o sol, de seu olho; de sua boca<br />
vieram Indra e Agni; de seu hálito, o vento; de seu umbigo, a atmosfera; de sua cabeça, o<br />
céu; de seus pés, a terra; e de seus ouvidos, os quatro quadrantes do horizonte; assim eles (os<br />
deuses2) fizeram os mundos". Queimaram Purusha como oferenda. O hino é uma mistura<br />
de antigas fantasias míticas e de especulações místicas de uma fase mais tardia da cultura<br />
religiosa. Note-se de passag<strong>em</strong> que num dos versos, o décimo primeiro, surge<br />
repentinamente a nossa já conhecida interrogação: "Quando dividiram eles Purusha, <strong>em</strong><br />
quantas partes o dividiram eles? Como foi chamada sua boca, e seus braços, e suas coxas, e<br />
seus pés?" Por que os homens subordinam as palavras à métrica, à cadência e ao ritmo? Se<br />
respondermos que é por causa da beleza ou da <strong>em</strong>oção, estar<strong>em</strong>os deslocando o probl<strong>em</strong>a<br />
para um terreno ainda mais difícil. Mas se respondermos que os homens faz<strong>em</strong> poesia porque<br />
sent<strong>em</strong> a necessidade do jogo social já<br />
estar<strong>em</strong>os mais próximos do alvo. A palavra rítmica nasce dessa necessidade. Só na atividade<br />
lúdica da comunidade a poesia des<strong>em</strong>penha uma função vital e possui seu pleno valor, e estes<br />
se perd<strong>em</strong> à medida <strong>em</strong> que os jogos sociais perd<strong>em</strong> seu caráter ritual ou festivo. El<strong>em</strong>entos<br />
como a rima e o dístico só adquir<strong>em</strong> sentido dentro das estruturas lúdicas int<strong>em</strong>porais e<br />
onipresentes de que derivam: golpe e contragolpe, ascensão e queda, pergunta e resposta,<br />
numa palavra, ritmo. Sua orig<strong>em</strong> está inseparavelmente ligada aos princípios da canção e da<br />
dança, os quais por sua vez faz<strong>em</strong> parte da im<strong>em</strong>orial função do jogo. Todas as qualidades<br />
da poesia reconhecidas como próprias, como a beleza, o caráter sagrado, a magia, são desde<br />
início abrangidas pela qualidade lúdica fundamental. Segundo os imortais modelos gregos,<br />
distinguimos na poesia três grandes gêneros, o lírico, o épico e o dramático. O lírico é o que<br />
permanece mais próximo da esfera lúdica da qual todos derivam. Aqui, o lírico deve ser<br />
tomado cm sentido extr<strong>em</strong>amente amplo, incluindo, além do gênero enquanto tal, todos os<br />
modos que exprim<strong>em</strong> o arrebatamento. Na escala da linguag<strong>em</strong> poética, a expressão lírica é<br />
a mais distante da lógica e a mais próxima da música e da dança. É a linguag<strong>em</strong> da<br />
cont<strong>em</strong>plação mística, dos oráculos e da magia. É nela que o poeta experimenta mais<br />
intensamente a sensação de ser inspirado de fora, é nela que se encontra mais próximo da<br />
supr<strong>em</strong>a sabedoria, mas também da d<strong>em</strong>ência. O abandono total da razão e da lógica é<br />
característico da linguag<strong>em</strong> dos sacerdotes e dos oráculos entre os povos primitivos,<br />
chegando muitas vezes a ser uma algaraviada incompreensível.