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O Sonho (1399) de Bernat Metge e suas ... - História Medieval

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O <strong>Sonho</strong> (<strong>1399</strong>) <strong>de</strong> <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> e <strong>suas</strong> consi<strong>de</strong>rações filosófico-oníricas<br />

Ricardo da Costa<br />

(UFES – GT Filosofia na Ida<strong>de</strong> Média)<br />

Resumo: O <strong>Sonho</strong> (Lo somni) <strong>de</strong> <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> (1340-1413) é uma das obras clássicas do<br />

século XV que, por <strong>suas</strong> consi<strong>de</strong>rações filosóficas e por seu caráter literário, ambos baseados na<br />

tradição greco-romana, prenunciam o Humanismo na Península Ibérica, a partir da coroa <strong>de</strong><br />

Aragão. A proposta <strong>de</strong>sse trabalho é apresentar a tradução que fizemos <strong>de</strong>ssa obra, a primeira<br />

para a língua portuguesa (e diretamente do texto original, <strong>de</strong> <strong>1399</strong>), e analisar a importância do<br />

tema dos <strong>Sonho</strong>s e do universo onírico para a Filosofia, já que o texto <strong>de</strong> <strong>Bernat</strong> tem íntima<br />

relação com A Consolação da Filosofia, <strong>de</strong> Boécio (c. 480-525). A seguir, preten<strong>de</strong>mos<br />

discorrer a respeito do cabedal filosófico no qual <strong>Bernat</strong> fundamenta <strong>suas</strong> consi<strong>de</strong>rações sobre a<br />

morte e a imortalida<strong>de</strong> da alma, <strong>de</strong> resto, temas igualmente clássicos da Filosofia <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o Fédon <strong>de</strong> Platão.<br />

Abstract: The Dream (Lo somni) of <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> (1340-1413) is one of the classical works of<br />

the fifteenth century. Its philosophical consi<strong>de</strong>rations and literary characteristics, both based on<br />

the Greco-Roman tradition, foreshadow Humanism in the Iberian Peninsula, un<strong>de</strong>r the auspices<br />

of the Crown of Aragon. The purpose of this paper is to present our translation of the<br />

aforementioned work, the first to be ma<strong>de</strong> into Portuguese (directly from the original <strong>1399</strong> text,<br />

in ancient Catalan), and also analyze the importance of the theme of the Dreams and the oniric<br />

universe to Philosophy, since <strong>Bernat</strong>'s text bears a close relationship to Boethius' Consolation of<br />

Philosophy. Further, we would like to elaborate on the philosophical knowledge from which<br />

<strong>Bernat</strong> draws its consi<strong>de</strong>rations on <strong>de</strong>ath and immortality of the soul, which have been, since<br />

Plato's Phaedo, regar<strong>de</strong>d as classical themes in Philosophy.<br />

Palavras-chave: <strong>Sonho</strong> – Alma – Morte – <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> – Século XIV.<br />

Keywords: Dream – Soul – Death – <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> – XIV Century.<br />

I. Preâmbulo<br />

*<br />

O cenário: na prisão, <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> (1340-1413) sonha. Angustiado por ter sofrido uma acusação<br />

injusta, nosso autor tem uma visão: surge-lhe seu benfeitor recentemente falecido, o rei João I <strong>de</strong><br />

Aragão (1350-1396), acompanhado <strong>de</strong> Orfeu e Tirésias, importantes (embora secundários)<br />

personagens da mitologia grega.<br />

Na cela, com o morto e os dois mitos, <strong>Bernat</strong> conversa. Os temas versam sobre a imortalida<strong>de</strong> da<br />

alma, a política (a crise da Igreja – o chamado Gran<strong>de</strong> Cisma [1378-1417]) e as mulheres. A<br />

construção literário-filosófica <strong>de</strong> Lo somni tem uma linhagem ancestral <strong>de</strong> peso: Boécio (c. 480-<br />

525) já fizera o mesmo com sua Consolação da Filosofia – até o século XVII, um dos livros <strong>de</strong><br />

filosofia mais lidos e traduzidos. 1 Enquanto aguardava seu julgamento por traição (e posterior<br />

1 BOÉCIO. A consolação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


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con<strong>de</strong>nação), Boécio escreveu esse tratado filosófico, em forma <strong>de</strong> alegoria, no qual a própria<br />

Filosofia surge e, em meio a torturas, lhe conforta.<br />

Por sua vez, não é <strong>de</strong>mais recordar que os sonhos foram relegados pela filosofia contemporânea ao<br />

mundo das alucinações, dos <strong>de</strong>sejos reprimidos. Terra dos <strong>de</strong>svairios psicológicos, mas também<br />

universo das representações poéticas. Freud (1856-1939) consi<strong>de</strong>rava os sonhos um mistério, uma<br />

charada, um enigma que só po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>svendado caso se conseguisse substituir as imagens<br />

oníricas, aparentemente absurdas, por um texto, as figuras por palavras, para assim se ter acesso ao<br />

inconsciente. Para o médico austríaco, todo sonho é a realização <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo. 2<br />

Imagem 1<br />

O <strong>Sonho</strong> (1932, pintura a óleo, 130 x 97 cm). O quadro retrata uma das mulheres <strong>de</strong> Picasso (1881-1973),<br />

Marie-Thérèse Walter (1919-1977), então com vinte e quatro anos. A obra pertence ao período <strong>de</strong> Picasso<br />

<strong>de</strong> representações distorcidas, contornos simples e cores contrastantes. A alusão sexual é marcante (a<br />

sugestão do pênis ereto e retorcido na meta<strong>de</strong> superior do rosto do mo<strong>de</strong>lo, além do seio esquerdo à<br />

mostra). Ao contrário do mundo filosófico clássico e medieval, a partir do Renascimento cada vez mais<br />

os sonhos foram circunscritos ao universo da Arte, da Poesia, do Erotismo, da Psicanálise.<br />

2 FREUD, Sigmund. A Interpretação dos <strong>Sonho</strong>s. Edição Comemorativa 100 anos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 2001.<br />

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Ao contrário, a Filosofia Clássica – entendida aqui em seu sentido amplo, que abrange tanto a<br />

<strong>Medieval</strong> quanto a Renascentista 3 – <strong>de</strong>u aos sonhos um notável espaço em <strong>suas</strong> consi<strong>de</strong>rações<br />

filosóficas. Seu uso por parte <strong>de</strong> <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> como recurso literário-alegórico nada mais é do que<br />

uma invocação à tradição filosófica tradicional para enriquecer a tessitura dramático-existencial <strong>de</strong><br />

sua obra.<br />

Para po<strong>de</strong>rmos abordá-la <strong>de</strong> modo confiável, procedi à sua tradução, a partir do texto original,<br />

escrito em catalão antigo. O trabalho foi um convite do Projeto Internacional IVITRA (Institut<br />

Virtual Internacional <strong>de</strong> Traducció) da Universitat d’Alacant (Espanha). 4 Para isso, utilizei como<br />

base a edição do texto (e tradução) feita pela Profa. Júlia Butiñá (UNED-Madrid), quem nos<br />

acompanhou durante todo o trabalho <strong>de</strong> tradução. 5<br />

O método utilizado foi o filológico. A tradução filológica se caracteriza por sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao<br />

original, sem <strong>de</strong>trimento da qualida<strong>de</strong> literária, e é acompanhada por notas e comentários<br />

(filológicos, históricos ou culturais), quando o tradutor explica <strong>suas</strong> escolhas e apresenta ao leitor o<br />

contexto da época e as referências linguísticas e literárias presentes no original. Trata-se <strong>de</strong> uma<br />

tradução-erudição, pois consi<strong>de</strong>ra o texto um objeto <strong>de</strong> estudo e é dirigido a um público<br />

especializado. 6 O objetivo é o aprofundamento da capacida<strong>de</strong> compreensiva: <strong>de</strong>ixar os mortos em<br />

paz e ir ao cemitério. Obsessivo trabalho <strong>de</strong> necrófilo. 7<br />

II. O universo onírico e a Filosofia<br />

Os sonhos encontram-se nos fundamentos da própria criação do homem. E é a Filosofia quem o diz.<br />

Para Platão (c. 428-348 a. C.), o corpo humano participa, por sua cabeça esférica, <strong>de</strong> todos os<br />

movimentos existentes no Cosmos. Nesse “habitáculo do que temos <strong>de</strong> mais divino e sagrado”,<br />

quando os olhos, “portadores <strong>de</strong> luz”, se fecham, retêm a potência do fogo. É essa retenção da<br />

energia da chama que provoca o sono. Quando o repouso é profundo, o sono que se apossa <strong>de</strong> nós é<br />

3 COSTA, Ricardo da. “Los clásicos que hacen clásicos: la importancia <strong>de</strong> los clásicos y <strong>de</strong> la tradición clásica en la<br />

configuración <strong>de</strong>l canon cultural medieval”. In: Cua<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Historia Universal UCR - UA, Vol. I, t. 3. Revista <strong>de</strong><br />

Historia UCR - UNA, Fuera <strong>de</strong> serie, 2012 (no prelo). Internet, http://www.ricardocosta.com/artigo/los-clasicos-quehacen-clasicos-la-importancia-<strong>de</strong>-los-clasicos-y-<strong>de</strong>-la-tradicion-clasica-en<br />

4 Site: www.ivitra.ua.es<br />

5 BERNAT METGE. Lo somni / El sueño (edición, traducción, introducción y notas <strong>de</strong> Julia Butiñá). Madrid: Centro <strong>de</strong><br />

Lingüística Aplicada Atenea, 2007, da qual aproveitei as notas explicativas.<br />

6 FUSTER ORTUÑO, Maria Ángeles. Curial e Güelfa multilingüe. Universitat d’Alacant: Tesi doctoral sota la direcció<br />

<strong>de</strong>l Prof. Dr. Vicent Martines Peres, 2009, p. 94.<br />

7 COSTA, Ricardo da. “As relações entre a Literatura e a História: a novela <strong>de</strong> cavalaria Curial e Guelfa”. In: BUTIÑÁ<br />

& CORTIJO (eds.). Literatura, Llengua i Cultura <strong>de</strong> la Corona d'Aragó, volume 1, 2012, p. 92. Internet,<br />

http://www.ricardocosta.com/sites/<strong>de</strong>fault/files/pdfs/ehumanista.ivitra.dacosta.pdf<br />

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quase <strong>de</strong>sacompanhado <strong>de</strong> sonhos; mas caso permaneçam movimentos mais impetuosos,<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> sua natureza e das regiões em que se manifestem, eles suscitam no nosso íntimo<br />

outras tantas imagens, que nos lembramos quando acordamos para o mundo exterior (Timeu, 45e). 8<br />

Assim, mesmo no necessário <strong>de</strong>scanso, nosso íntimo (Freud chamaria inconsciente) produz<br />

imagens, visões da mesma natureza que a alma elabora quando está acordada. Creio que na<br />

expressão imagens se encontra a chave interpretativa da passagem platônica: os sonhos têm imagens<br />

do mundo exterior. Como afirmou Platão, imagens da mesma natureza. Em outras palavras, o<br />

sonho é tão real quanto a vigília. Para o filósofo grego, essa similitu<strong>de</strong> das sensações do sonho e da<br />

vigília é uma maravilha, e como o tempo do sono é igual ao tempo em que estamos acordados,<br />

Platão <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> as opiniões dos dois momentos com a mesma energia (Teeteto, 158b-d). 9<br />

A<strong>de</strong>mais, os sonhos <strong>de</strong>vem ser igualmente submetidos à razão, isto é, à parte da alma na qual resi<strong>de</strong><br />

a reflexão: o homem só <strong>de</strong>ve se entregar ao sono após ter alimentado seu raciocínio com belos<br />

pensamentos e especulações, para que assim possa adormecer em paz. Caso contrário, segundo o<br />

filósofo grego, os sonhos manifestarão os <strong>de</strong>sejos mais ilegítimos e animalescos, livres da poda da<br />

razão, como, por exemplo, o incesto com a própria mãe, assassinatos e quaisquer outras coisas<br />

<strong>de</strong>spudoradas (República, IX, 571c-572b). 10<br />

Portanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os seus primórdios, a Filosofia consi<strong>de</strong>rou os sonhos como um elemento importante<br />

da constituição psíquica humana. Por isso, Aristóteles (c. 384-322 a. C.), para refutá-los, isto é, para<br />

colocá-los em seu <strong>de</strong>vido locus reflexivo (para ele, as explicações fisiológicas), <strong>de</strong>dicou nada<br />

menos que três obras ao tema em sua Parva aturalia (conjunto <strong>de</strong> sete escritos sobre o corpo e a<br />

alma): Do Sono e da Vigília (De Somno et Vigilia), Dos <strong>Sonho</strong>s (De Insomniis) e Da Interpretação<br />

dos <strong>Sonho</strong>s (De Divinatione per Somnum)!<br />

Assim como assassinou todos os <strong>de</strong>uses do Olimpo <strong>de</strong> uma só tacada (com o Deus que é<br />

pensamento puro <strong>de</strong> si mesmo, em sua Metafísica [Livro XII, 1072b20]) 11 , Aristóteles <strong>de</strong>svalorizou<br />

8 PLATÃO. Diálogos (Timeu – Crítias – O Segundo Alcibía<strong>de</strong>s – Hípias Menor) (tradução do grego <strong>de</strong> Carlos Alberto<br />

Nunes). Belém: Editora da UFPA, 2001, p. 84.<br />

9 PLATÃO. Teeteto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 217.<br />

10 PLATÃO. A República (trad. e notas <strong>de</strong> Maria Helena da Rocha Pereira). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,<br />

1996, p. 411-412.<br />

11 ARISTÓTELES. Metafísica (ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário <strong>de</strong> Giovanni Reale). São<br />

Paulo: Edições Loyola, 2005, vol. II, p. 563.<br />

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radicalmente os sonhos. Mas, nesse aspecto, o Estagirita não criou escola: em sua maior parte, a<br />

Ida<strong>de</strong> Média cristã foi platônica, especialmente em <strong>suas</strong> consi<strong>de</strong>rações oníricas.<br />

No mundo filosófico medieval, os sonhos foram muito consi<strong>de</strong>rados. Isso em parte se explica<br />

porque, no período <strong>de</strong> transição entre os dois universos históricos (grosso modo, entre os séculos IV<br />

e VII), muitos autores se <strong>de</strong>bruçaram sobre o tema – Tertuliano (c. 160-220), Agostinho (354-430),<br />

Sulpício Severo (c. 363-425), Gregório Magno (c. 540-604), mas sobretudo Macróbio e seu<br />

Comentário ao <strong>Sonho</strong> <strong>de</strong> Cipião (séc. V). 12<br />

III. Lo somni e a Consolação da Filosofia<br />

O dilema que angustia ambos os tratados é o mesmo: qual o sentido da vida e das <strong>de</strong>cisões morais<br />

em um mundo dominado pelo mal e pelos pervesos que <strong>de</strong>têm o po<strong>de</strong>r (perversi resi<strong>de</strong>nt celso<br />

[solio] Philosophiae consolatio, I.4.29)? Em Boécio, é a própria Filosofia que, ao surgir na prisão<br />

na qual se encontra o filósofo, estoicamente, admoesta-o a recuperar o que per<strong>de</strong>u: o conhecimento<br />

<strong>de</strong> si mesmo (I.16.17). Em Lo somni, o rei João I <strong>de</strong> Aragão é quem faz as honras da Filosofia para<br />

<strong>Bernat</strong>. Ele é quem consola <strong>Bernat</strong> com a visão do post mortem: sem a transcendência, não há<br />

justiça.<br />

Todos os dias vês que muitos homens <strong>de</strong> vida correta sofrem pobreza, doenças, perdas e gran<strong>de</strong>s<br />

perseguições, nas quais morrem, e muitos homens <strong>de</strong> má vida prosperam o quanto querem e<br />

nunca sofrem adversida<strong>de</strong>s. Se a alma morresse com o corpo, Deus seria muito injusto, pois não<br />

retribuiria a cada um aquilo que merece.<br />

E como é necessário que a justiça <strong>de</strong> Deus seja exercida, convém que a alma racional viva<br />

<strong>de</strong>pois da morte corporal e que, em algum momento, ela receba o prêmio ou remuneração que<br />

merece. Se ela não recebe enquanto vive o corpo, é necessário que receba após a morte, ou<br />

terias que concordar que Deus é injusto, o que é impossível e distante da opinião comum dos<br />

homens. Desejas dizer algo a esse respeito ou o que se passa em teu coração? (I, V.20)<br />

Platão já havia se pronunciado a respeito: os justos serão recompensados, pois, após a morte irão<br />

para cima, para o Céu, à direita, e os injustos nessa vida irão para baixo, à esquerda, quando<br />

pagarão por seus crimes (A República, X, 614c-d). No entanto, embora tanto a Filosofia (em<br />

Boécio) quanto o rei João (em <strong>Bernat</strong>) sejam apresentados como terapeutas – i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> base estóica –<br />

o conceito <strong>de</strong> Deus é um pouco distinto. Enquanto na Consolação da Filosofia a palavra Deus<br />

também significa a racionalida<strong>de</strong> do curso natural das coisas, em <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> trata-se,<br />

12 MACROBIO. Comentarios al Sueño <strong>de</strong> Escipión (edición y traducción <strong>de</strong> Jordi Raventós). Madrid: Ediciones<br />

Siruela, 2005.<br />

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naturalmente do Deus cristão (Boécio, mesmo católico, na Consolação, fez com que a Filosofia<br />

discutisse as questões existenciais com argumentos racionais, sem qualquer base <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>).<br />

Imagem 2<br />

A morte <strong>de</strong> Sócrates (1787), <strong>de</strong> Jacques-Louis David (1748-1825). Óleo sobre tela, 129,5 cm x 196,2 cm,<br />

Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. Após discorrer sobre a imortalida<strong>de</strong> da alma, já <strong>de</strong>vidamente<br />

preparado para a morte, Sócrates está a ponto <strong>de</strong> beber a cicuta, oferecida pelo envergonhado carcereiro<br />

(<strong>de</strong> túnica vermelha). Enquanto esten<strong>de</strong> a mão direita para receber o veneno, com a esquerda Sócrates<br />

aponta para cima, para o Céu, e mostra aos seus discípulos on<strong>de</strong> espera que as almas dos justos sejam<br />

recompensadas após a morte corporal. Na prisão, após ter as pernas soltas dos grilhões, o filósofo consola<br />

seus pesarosos <strong>de</strong>votos. Alguns se <strong>de</strong>sesperam. Com a mão na perna esquerda do filósofo, Críton mira a<br />

atitu<strong>de</strong> resoluta <strong>de</strong> Sócrates; na cabeceira da cama, resignado, cabisbaixo, está Platão (uma das várias<br />

licenças poéticas <strong>de</strong> David, já que Platão não estava presente, tampouco era um ancião). De fato, a prisão<br />

como um ambiente propício às mais elevadas consi<strong>de</strong>rações filosóficas é um locus literário muito<br />

recorrente na história do pensamento oci<strong>de</strong>ntal. 13<br />

Nesse aspecto, em contrapartida, <strong>Bernat</strong> fundamenta sua questão no filósofo Ramon Llull (1232-<br />

1316), como se percebe nessa passagem do Livro da Alma Racional (1296):<br />

Deus é justo, e Sua justiça requer que a alma seja imortal para que possa existir um sujeito<br />

permanente que julgue para a eviternida<strong>de</strong> a boa e a má alma. Caso a alma fosse mortal, em sua<br />

mortalida<strong>de</strong> a justiça <strong>de</strong> Deus atentaria contra Si mesma, uma vez que atentaria contra o que<br />

13 “A morte <strong>de</strong> Sócrates (1787) é mais um drama <strong>de</strong> cores discretas, uma representação <strong>de</strong> martírio que reúne discurso e<br />

silêncio em perfeito equilíbrio dramático. Mesmo agonizante, Sócrates continua falando (pois o veneno <strong>de</strong>mora a fazer<br />

efeito), mas Platão, sentado ao pé da cama, sofre em silenciosa e amarga resignação.” – SCHAMA, Simon. O po<strong>de</strong>r da<br />

arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 208.<br />

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requer Seu juízo. Mas como a justiça <strong>de</strong> Deus não po<strong>de</strong> injuriar a Si mesma, convém que a alma<br />

seja imortal (Livro I, III, 5).<br />

O pano <strong>de</strong> fundo transcen<strong>de</strong>ntal fundamenta a <strong>de</strong>fesa da inconsistência da felicida<strong>de</strong> terrena. Na<br />

Consolação, a Filosofia se pergunta: porque os mortais procuram uma felicida<strong>de</strong> fora <strong>de</strong> si, nos<br />

bens exteriores? (II.4.22) Eles não oferecem a verda<strong>de</strong>ira felicida<strong>de</strong>. Por isso, as <strong>de</strong>sgraças são<br />

melhores que a sorte, pois educam. A sorte ilu<strong>de</strong>. Por sua vez, <strong>Bernat</strong>, cético, duvida que algo exista<br />

após a morte: só crê no que vê; no resto, “não se preocupa”. Por isso sofre. Por isso pe<strong>de</strong> ao rei que<br />

explique o que é o espírito e o faça compreen<strong>de</strong>r sua imortalida<strong>de</strong> (I, III.7).<br />

A partir <strong>de</strong>sse ponto as duas obras se separam. Enquanto na Consolação Boécio faz com que a<br />

Filosofia discorra sobre o Amor (princípio cosmológico por excelência), o Bem e a Eternida<strong>de</strong>,<br />

<strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> apresenta (no Livro I) vários argumentos sobre a imortalida<strong>de</strong> da alma e a morte<br />

como passagem. Inicia com uma exposição dos filósofos gregos, prossegue com argumentos<br />

extraídos <strong>de</strong> Cassiodoro (490-581), Macróbio e Isidoro <strong>de</strong> Sevilha (560-636). Por exemplo: 1) Toda<br />

coisa que tem substância não po<strong>de</strong> dá-la a outros. Por isso, por tê-la recebido só para si, convém<br />

que a tenha <strong>de</strong> Deus, pois, caso contrário, seria criadora, e 2) sua substância é própria, pois só ela<br />

tem paixões (amor, ódio, <strong>de</strong>sejo, etc.) (I, IV.11), que são a fonte da impetuosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu<br />

movimento.<br />

Nesse último ponto, Lo somni dialoga com o Comentário ao <strong>Sonho</strong> <strong>de</strong> Cipião. Invisível, a alma é<br />

princípio primeiro, fonte do movimento que não tem início nem fim. Atestam isso seus<br />

pensamentos, alegrias, esperanças e temores. São eles que nos arrastam em direção aos <strong>de</strong>sejos. Por<br />

isso, caso sejam governados pela razão, são saudáveis (II, 25). O rei João I atesta sua natureza<br />

filosófica platônico-ciceroniana: a alma “...é vivificadora <strong>de</strong> seu corpo, porque, assim que ele lhe é<br />

concedido, ama seu cárcere com gran<strong>de</strong> amor, e o ama porque não po<strong>de</strong> ser livre”, clara alusão<br />

ao Fédon (82d). 14<br />

O movimento autônomo da alma é trazido à baila na argumentação do rei:<br />

Ela é racional: não me parece que alguém duvi<strong>de</strong> ao vê-la tratar das coisas divinas, saber as<br />

humanas, apren<strong>de</strong>r muitas artes e nobres disciplinas e, com a sua razão, superar a todos os<br />

animais. É-lhe dado compreen<strong>de</strong>r <strong>suas</strong> cogitações e, com a língua, exprimi-las. Ela, colocada no<br />

corpo, vê muitas coisas e se esten<strong>de</strong> por quase todo o corpo e do corpo não se separa. Move-se<br />

14 PLATÃO. Diálogos (Protágoras – Górgias - Fedão) (tradução do grego <strong>de</strong> Carlos Alberto Nunes). Belém: Editora<br />

da UFPA, 2002, p. 288.<br />

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e, em si mesma, como se percorresse um gran<strong>de</strong> espaço, discorre e se lhe apresenta o que com<br />

<strong>suas</strong> cogitações vê.<br />

Dotada <strong>de</strong> razão, encontra diversas figuras <strong>de</strong> letras e as utiliza em diversas artes e disciplinas;<br />

amuralha cida<strong>de</strong>s, melhora com seu trabalho os frutos da terra; discorre sobre as terras e o mar;<br />

percorre gran<strong>de</strong>s montanhas; fabrica portos para a utilida<strong>de</strong> dos navegantes e orna a terra com<br />

belos edifícios. Quem po<strong>de</strong>, pois, duvidar <strong>de</strong> sua razão quando, iluminada pelo seu Criador, faz<br />

com que sejam vistas coisas tão maravilhosas feitas com arte? 15 Imortal é, a<strong>de</strong>mais, a alma<br />

racional, e não penso que possas duvidar disso” 16 (I, IV.11).<br />

O movimento da alma é sublime porque criador e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte – assim como seu próprio Criador.<br />

Contudo, em Lo somni, o “personagem <strong>Bernat</strong>” é colocado como contraponto à argumentação<br />

filosófica do rei morto. É um cético.<br />

– Como? – disse ele – Não está suficientemente <strong>de</strong>monstrado comigo, que vivo sem corpo?<br />

– Pela minha fé, senhor, vós me ten<strong>de</strong>s como ignorante se pensais que eu creio firmemente que<br />

sejais alma ou espírito (I, IV.12).<br />

Assim, João I prossegue. Nada há na Natureza que recor<strong>de</strong> as coisas passadas, preveja as vindouras<br />

e abrace as presentes, só a alma racional. O fio do argumento filosófico é sustentado por citações <strong>de</strong><br />

Tomás <strong>de</strong> Aquino (1225-1274) e Cícero (106-43 a. C.). Mas <strong>Bernat</strong> persiste em sua dúvida. João<br />

então altera seu discurso e passa a citar as autorida<strong>de</strong>s que se <strong>de</strong>bruçaram sobre o tema. Primeiro a<br />

Bíblia, a seguir os antigos. E se <strong>de</strong>têm em Cícero, mais uma vez, citando-o textualmente – as<br />

Tusculanae Disputationes (Diálogos em Tusculum), série <strong>de</strong> livros com o tema da contemplação do<br />

mundo como base.<br />

Preciso me <strong>de</strong>ter por um instante nessa célebre obra <strong>de</strong> Cícero, escrita por volta <strong>de</strong> 45 a.C. Dividida<br />

em cinco livros (partes), seus temas versam sobre o <strong>de</strong>sprezo da morte, a dor e as aflições da mente,<br />

<strong>suas</strong> paixões, a virtu<strong>de</strong> e a vida feliz. A passagem abaixo <strong>de</strong> Lo somni se baseia no Livro I das<br />

Tusculanas, parte que trata justamente da morte.<br />

Um gran<strong>de</strong> argumento <strong>de</strong> que a própria Natureza consi<strong>de</strong>ra importante a imortalida<strong>de</strong> da alma é<br />

que todos se preocupam com as coisas que acontecerão após a morte. O homem sempre planta<br />

árvores das quais não espera jamais obter fruto; o sábio or<strong>de</strong>na leis e estatutos. O que tu pensas<br />

que significa a procriação <strong>de</strong> crianças, a propagação do nome, a adoção <strong>de</strong> filhos, a diligência<br />

em fazer testamentos, a edificação <strong>de</strong> sepulcros, senão também na cogitação das coisas que<br />

acontecem após a morte? Não existe melhor natureza na linhagem dos homens do que a dos que<br />

imaginam que nasceram para ajudar, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r e conservar os outros.<br />

15 CASSIODORO, De anima, IV, 82-85, 91-99, 104 e 105-114. Cf. CÍCERO, Cato maior, XXI, 78.<br />

16 CASSIODORO, De anima, IV, 115.<br />

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Não posso crer que tantos homens se tivessem entregado à morte pela coisa pública se<br />

pensassem que seu nome findaria com sua vida, nem que alguém, sem uma gran<strong>de</strong> esperança da<br />

imortalida<strong>de</strong>, expusesse seu corpo à morte pela pátria. Nem sei como se aproxima do<br />

pensamento dos homens um prognóstico ou adivinhação dos séculos posteriores, ainda mais nas<br />

gran<strong>de</strong>s faculda<strong>de</strong>s e nobres corações. Se suprimimos isso, quem seria tão louco a ponto <strong>de</strong><br />

viver em sofrimentos e enormes perigos, assim como fazem os príncipes terrenos? E o que me<br />

dizes dos poetas e dos sutis mecânicos? Não <strong>de</strong>sejam ser enobrecidos após a morte? E os<br />

filósofos? Nos livros que escrevem não colocam seus nomes para obterem glória? Certamente a<br />

maioria <strong>de</strong>les assim o faz (I, IV.25).<br />

Embora não <strong>de</strong>fina o conceito, <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> se vale da noção aristotélica <strong>de</strong> atureza para iniciar<br />

sua argumentação. Para Aristóteles, a atureza, em seu sentido originário e fundamental, é a<br />

substância das coisas que possuem o princípio do movimento, em si mesmas e graças à sua<br />

essência: “Com efeito, a matéria só é dita natureza porque é capaz <strong>de</strong> receber esse princípio, e a<br />

geração e o crescimento só porque são movimentos que <strong>de</strong>rivam <strong>de</strong>sse mesmo princípio”<br />

(Metafísica, Livro V, 1015a, 15). 17 Mais tar<strong>de</strong>, Cícero se valeu <strong>de</strong>sse argumento, que chamarei <strong>de</strong><br />

perenida<strong>de</strong> da i<strong>de</strong>ia. Por exemplo em De natura <strong>de</strong>orum (Sobre a natureza dos <strong>de</strong>uses, escrito em<br />

45 a. C.):<br />

A própria natureza imprimiu a noção dos <strong>de</strong>uses nas almas <strong>de</strong> todos. Que povo ou que tribo <strong>de</strong><br />

homens existe que não tenha, sem ensino, alguma concepção dos <strong>de</strong>uses? A essa concepção,<br />

Epicuro chamou <strong>de</strong> prólepsis, isto é, uma pré-concepção mental <strong>de</strong> uma coisa, uma certa<br />

informação mental pré-concebida, sem a qual nada po<strong>de</strong>ria ser entendido, investigado ou<br />

discutido (I, 43). 18<br />

Compreensão básica, idéia universal, a prolepse é um conceito compreendido por todos. Por<br />

exemplo, a palavra homem: todos têm uma idéia preconcebida <strong>de</strong> que é um homem. Cícero recupera<br />

o conceito <strong>de</strong> Epicuro (341-270 a. C.), e <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong> <strong>de</strong>le se vale para ressaltar a preocupação<br />

universal com a imortalida<strong>de</strong> da alma. Todos se preocupam ou já se preocuparam com essa questão.<br />

Isso, para os antigos, era matéria válida em uma argumentação racional. Chamávamos<br />

positivamente <strong>de</strong> senso comum – preocupação secular da Filosofia e subvertida pelo menos a partir<br />

<strong>de</strong> Giambattista Vico (1668-1744).<br />

De fato, a Filosofia tradicional tinha a preocupação <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver e praticar o senso comum pois<br />

este era consi<strong>de</strong>rado o melhor exemplo do legitimamente humano, como se percebe nessa passagem<br />

<strong>de</strong> uma carta <strong>de</strong> Sêneca (4 a.C. - 65 d. C.): “A primeira coisa que a filosofia nos garante é o senso<br />

comum, a humanida<strong>de</strong>, o espírito <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>, coisas <strong>de</strong> cuja prática nos afastará uma vida<br />

17 ARISTÓTELES. Metafísica, op. cit., vol. II, p. 201.<br />

18 Dez provas da existência <strong>de</strong> Deus (seleção <strong>de</strong> Plínio Junqueira Smith). São Paulo: Alameda, 2006, p. 61.<br />

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<strong>de</strong>masiado diferente” (Epístolas, 5, 4). 19 Ao contrário, Vico afirmou que o senso comum era um<br />

juízo sem qualquer reflexão. 20 Imagem 3<br />

Detalhe do Tapete da Criação (Tapís <strong>de</strong> la creació, c. 1096-1101), bordado, 358 x 450 cm, Museu da<br />

Catedral <strong>de</strong> Girona. O conceito filosófico-aristotélico <strong>de</strong> atureza se mescla, em Lo somni, com a<br />

atureza-mundo físico cristão, concepção simbólica da realida<strong>de</strong> muito presente na Ida<strong>de</strong> Média. Mescla<br />

do conhecimento da ciência grega contido no Comentário ao <strong>Sonho</strong> <strong>de</strong> Cipião, nas úpcias <strong>de</strong> Mercúrio<br />

e a Filologia (<strong>de</strong> Marciano Capela, séc. V) e na tradução comentada da primeira parte do Timeu <strong>de</strong> Platão<br />

(até 53c) feita por Calcídio (séc. IV), os estudos medievais sobre a Natureza circunscreviam-se à mesma<br />

como símbolo, livro escrito por Deus. Como disse São Boaventura, o mundo sensível é um indício, e sua<br />

leitura está reservada aos espíritos mais elevadamente contemplativos, não aos filósofos naturalistas, pois<br />

estes conhecem a natureza em si, não como indício. No Bordado <strong>de</strong> Girona, a cena da atureza perfeita<br />

edênica mostra os animais que cercam Adão (no <strong>de</strong>talhe, apenas sua mão direita), que está, por sua vez, a<br />

buscar outro homem entre eles (Gn 2, 20). 21<br />

19 LÚCIO ANEU SÉNECA, Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 11.<br />

20 “O senso comum é um juízo <strong>de</strong>spido <strong>de</strong> qualquer reflexão.” – VICO. A Ciência ova (trad., pref. e notas <strong>de</strong> Marco<br />

Lucchesi). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Record, 1999, Livro I, II. “Dos elementos”, XII, p. 95.<br />

21 CASTIÑEIRAS, Manuel. El tapiz <strong>de</strong> la creación. Catedral <strong>de</strong> Girona, s/d, p. 90; GREGORY, Tullio. “Natureza”. In:<br />

LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Clau<strong>de</strong>. Dicionário Temático do Oci<strong>de</strong>nte <strong>Medieval</strong> II. Bauru, SP: EDUSC; São<br />

Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 263-277.<br />

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Em <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong>, há a preservação da Filosofia tradicional. Ainda imerso no senso comum<br />

clássico, embora distante da recusa do político típica <strong>de</strong> estóicos como Sêneca, Lo somni recupera a<br />

força da i<strong>de</strong>ia da imortalida<strong>de</strong> da alma e a recompensa post mortem típica do <strong>Sonho</strong> <strong>de</strong> Cipião <strong>de</strong><br />

Cícero, ou melhor, do Comentário ao <strong>Sonho</strong> <strong>de</strong> Cipião, pois a Ida<strong>de</strong> Média não conheceu o texto <strong>de</strong><br />

Cícero (só encontrado no século XIX, em um palimpsesto). 22<br />

Do mesmo modo, o argumento, agora um tanto retoricamente, se dirige aos escritores, filósofos e<br />

poetas, além dos trabalhadores manuais (os das então chamadas artes mecânicas). Para que escrever<br />

aos pósteros senão pela busca da glória, se não há nada após a morte corporal? O rei João conclui<br />

seu raciocínio:<br />

Portanto, se o consentimento <strong>de</strong> todos é a voz da Natureza, e cada um concorda ter alguma coisa<br />

que lhes pertença após sua morte, também nós <strong>de</strong>vemos consentir nisso. Todos os homens<br />

opinam que Deus existe, e O conhecem naturalmente. Semelhante opinião e conhecimento<br />

pertencem à imortalida<strong>de</strong> da alma. Portanto, creiamos que assim é e não nos distanciemos do<br />

senso comum (I, IV.26).<br />

A seguir, João enumera os filósofos e políticos que enfrentaram a morte com a honra <strong>de</strong>vida à<br />

Filosofia: Caio Lélio (cônsul em 190 a. C.), Catão (95-46 a. C.), além, é claro, do próprio Sócrates<br />

(c. 469-399 a. C.):<br />

– Sócrates – disse ele – <strong>de</strong>pois que foi con<strong>de</strong>nado à morte por não crer na pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses,<br />

no último dia <strong>de</strong> sua vida disse muitas belas razões que provavam a imortalida<strong>de</strong> da alma.<br />

Enquanto tinha na mão o veneno que <strong>de</strong>veria beber, disse que não lhe parecia que iria morrer,<br />

mas sim que subiria ao Céu, pois havia dois caminhos nos quais eram preparadas as almas que<br />

saíam dos corpos: um era o da privação do Conselho dos <strong>de</strong>uses, e isso acontecia porque aquele<br />

corpo havia vivido viciadamente, violado a coisa pública e cometido muitas frau<strong>de</strong>s; outro era o<br />

do retorno aos <strong>de</strong>uses, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vieram, e isso ocorria quando o corpo havia vivido <strong>de</strong> modo<br />

casto e distante dos vícios, e assim se assemelhava à vida dos <strong>de</strong>uses (I, IV.29). (ver imagem 2)<br />

A passagem acima está claramente fundamentada no último capítulo da República <strong>de</strong> Platão, que<br />

contém o chamado mito <strong>de</strong> Er, conto escatológico já aludido aqui e que o filósofo utiliza para<br />

concluir sua obra.<br />

João I prossegue em sua exortação filosófica para mostrar ao cético <strong>Bernat</strong> a imortalida<strong>de</strong> da alma e<br />

a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se preparar para a morte. Corrige seus erros lógicos e encerra a primeira parte <strong>de</strong><br />

22<br />

COSTA, Ricardo da. “O <strong>Sonho</strong> <strong>de</strong> Cipião <strong>de</strong> Marco Túlio Cícero” Prólogo <strong>de</strong> Carlos Nougué<br />

/ Apresentação, tradução e notas <strong>de</strong> Ricardo da Costa. In: LAUAND, Luiz Jean (coord.). Revista NOTANDUM, n. 22,<br />

Ano XIII, jan-abr 2010, p. 37-50. Editora Mandruvá - Univ. do Porto. Internet, http://www.ricardocosta.com/artigo/osonho-<strong>de</strong>-cipiao-<strong>de</strong>-marco-tulio-cicero<br />

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seu diálogo com o tema da substancialida<strong>de</strong> (ou não) da alma dos animais – assunto caro a<br />

Aristóteles.<br />

Conclusão<br />

Lo somni preserva em seu Livro I a mais pura tradição filosófica oci<strong>de</strong>ntal: a verda<strong>de</strong>ira Filosofia é<br />

a meditação da morte, como bem afirmara Platão (“Embora os homens não o percebam, é possível<br />

que todos os que se <strong>de</strong>dicam verda<strong>de</strong>iramente à Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e<br />

estarem mortos”, Fédon, 64a). 23 Somado a isso, a recuperação do cárcere como espaço meditativo e<br />

receptivo do mundo onírico faz com que a ambientação do diálogo filosófico ganhe um inusitado<br />

colorido literário.<br />

A alternância das distintas posições existenciais dos personagens, em especial a postura<br />

transcen<strong>de</strong>nte do recém-falecido rei João I antagônica ao ceticismo incrédulo do alter ego da obra,<br />

faz com que o leitor oscile agradavelmente ao acompanhar os argumentos, belamente expostos,<br />

juntamente com a sequência erudita <strong>de</strong> teses <strong>de</strong> diferentes pensadores, poetas e políticos que<br />

abordaram o tema. A leitura do texto exige erudição, mas, passado o primeiro esforço <strong>de</strong><br />

compreensão do entrelaçamento <strong>de</strong> obras – fusão totalizante analisada por Júlia Butiñyà 24 – o<br />

sentimento final da leitura é extremamente reflexivo e suave, aspecto com o qual concluo esse<br />

pequeno trabalho.<br />

E se <strong>de</strong>sejas consi<strong>de</strong>rar as palavras que Cícero disse em <strong>suas</strong> Tusculanas (as quais, se não me<br />

engano, já ouviste), enten<strong>de</strong>rás que ele quer dizer que somente Deus Nosso Senhor se move por<br />

Si mesmo, como fonte e princípio <strong>de</strong> todo o movimento, e que ninguém po<strong>de</strong> negar que tal<br />

natureza foi dada à alma racional. Necessariamente, portanto, convém que admitas que as almas<br />

dos animais perecem com seu corpo.<br />

– Senhor – disse eu – sinto-me não só intensamente iluminado, mas integralmente consolado<br />

com o que me haveis dito. Se à vossa excelsitu<strong>de</strong> não <strong>de</strong>sagradar, eu <strong>de</strong>sejaria me certificar <strong>de</strong><br />

algumas outras coisas convosco.<br />

– Diz o que <strong>de</strong>sejas, mas que sejas breve, porque eu não po<strong>de</strong>rei permanecer aqui por muito<br />

tempo (I, IV.65).<br />

23 PLATÃO. Diálogos (Protágoras – Górgias - Fedão), op. cit., p. 258.<br />

24 BUTIÑYÀ, Julia. En los orígenes <strong>de</strong>l Humanismo: <strong>Bernat</strong> <strong>Metge</strong>. Madrid: Universidad Nacional <strong>de</strong> Educación a<br />

Distancia, 2002. Para o nosso caso, as páginas 175-281.<br />

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